A Lei Maria da Penha e a Falta de Proteção da Vítima Após uma longa luta das mulheres contra a violência doméstica, o legislador brasileiro criou a Lei 11.340, de 22 de setembro de 2006, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a uma vítima deste tipo de violência que sofreu tentativas de homicídio e ficou paraplégica por causa das agressões. Diante da falta de instrumentos estatais que permitissem a efetiva punição do agressor, Maria da Penha foi obrigada a acionar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, já que o Brasil, por não dispor de meios eficazes de persecução criminal do agressor, estaria violando direitos fundamentais da vítima. Somente então, o Estado brasileiro se sensibilizou com o sofrimento das vítimas de violência doméstica, pretendendo, através da promulgação da Lei Maria da Penha, endurecer o tratamento aos agressores e, ao mesmo tempo, facilitar o acesso das vítimas à polícia e à Justiça, bem como garantir-lhes a necessária proteção contra seus algozes. Embora alguns desavisados não concordem com o tratamento diferenciado conferido às mulheres pela Lei 11.340/06, razões históricas, biológicas e sociológicas apontam noutro sentido, exigindo-se do Estado uma atitude positiva, com base no princípio constitucional da igualdade, insculpido no art. 5º da Constituição Federal, na determinação do art. 226, §8º do mandamento constitucional, que prevê a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, além do compromisso assumido pelo Brasil por meio da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da qual o Brasil é signatário, a qual prevê, no art. 7º, que o Brasil agirá “com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher”, criará normas necessárias para prevenir, punir e erradicar”este tipo de violência, adotará “medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade” e tomará “todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher”. Desta forma, a Lei 11.340/06, reafirma a responsabilidade do Estado na promoção de uma vida “sem violência” pelas mulheres, conforme prevê o §2º do artigo 3º. Nesse sentido, a lei elencou uma série de direitos das mulheres (artigos 2º e 3º) e define as diversas condutas que caracterizam violência doméstica, tais como violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, nos termos do artigo 7º. Com a edição desta lei, a ofendida só poderá renunciar ou desistir da representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público, além do que, para os casos de violência doméstica fica vedada a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. A austeridade da lei não pára por ai. Além de criar mais uma circunstância que agrava a pena, alterando a redação do art. 61, inciso II, f, do Código Penal, cria a lesão corporal qualificada pela violência doméstica, aumentado sobremaneira a pena, conforme se verifica na nova redação do art. 129, do Código Penal. Para conferir eficácia a esta nova sistemática, a Lei criou uma série de medidas de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar. O artigo 8º, contém medidas de prevenção, por meio da integração do Sistema de Justiça Criminal e as áreas de assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação, estudos, pesquisas e sistematização de dados sobre violência doméstica e familiar, campanhas educativas, atendimento especializado para as mulheres nas Delegacias de Polícia, dentre outros instrumentos preventivos. Já os artigos 10 ao 12, regulamenta o atendimento das vítimas perante a Autoridade policial, determinando mais celeridade na apuração dos fatos, bem como garantindo proteção policial às vítimas quando necessário. Os artigos seguintes trouxeram inovações processuais, de forma a prevenir o agravamento das agressões e dar eficácia à persecução criminal do infrator, estabelecendo também a necessidade de criação de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei cria também Medidas Protetivas de Urgência, obrigando a autoridade policial a solicitar ao juiz, no prazo máximo de 48 horas, caso seja interesse da vítima, algumas das medidas previstas na lei, tais como suspensão da posse ou restrição do porte de armas, afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, proibição de aproximação e de contato da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, proibição de freqüentar determinados lugares, restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores e prestação de alimentos provisionais. Em caso de descumprimento das medidas protetivas, a lei prevê a possibilidade de decretação da prisão preventiva, a qual pode ser decretada na fase do inquérito policial ou da instrução criminal. Dentre o extenso rol de medidas de proteção, a lei prevê ainda a possibilidade de encaminhamento da vítima e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento, a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor, a separação de corpos, bem como o bloqueio de bens do casal, de forma a impedir a dilapidação do patrimônio por parte do agressor. Veja-se que as inovações da lei exigem que o Estado mantenha uma estrutura muito bem aparelhada e uma ação integrada e interdisciplinar, chamando à responsabilidade o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as polícias e o Poder Executivo, pois não se poderá mais tratar com negligência os casos de violência doméstica, nem utilizar como subterfúgio para a não aplicação da lei a sobrecarga de inquéritos ou processos. Isto porque os casos de violência doméstica têm características peculiares. Uma delas é que, se as vítimas denunciarem o agressor e não tiverem a necessária proteção do Estado, o sentimento de impunidade pode potencializar as agressões, vindo a lesar bens jurídicos mais relevantes, como aconteceu com Maria da Penha, que ficou paraplégica, ou com tantas outras Marias que são lesionadas e mortas por seus companheiros, como o recente caso de Maria Islaine de Morais, que foi brutalmente assassinada por seu ex-companheiro. Por conta da negligência estatal, da repercussão nacional e da comoção da opinião pública, que se viu perplexa com as imagens do homicídio, vale tecer algumas considerações sobre o caso. Após um histórico de violência doméstica, Maria Islaine decidiu por fim ao seu sofrimento. Assim, passou a acionar as Polícias Militar e Civil a cada agressão ou ameaça sofrida por parte do seu ex-companheiro. Em 31/03/2009, foi feito o primeiro Boletim de Ocorrência na Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher/BH, o qual foi remetido à Vara Especializada da Mulher. Em 03/04/2009, foram feitas outras ameaças de morte, que gerou o segundo boletim de ocorrência. Desde então, até a morte de Maria Islaine, foram feitas diversas ocorrências, todas relatando ameaças, agressões físicas, perseguição, explosão de bomba em seu salão etc, dentre os quais cita-se os Boletins de Ocorrência lavrados em 30/06/2009, 04/08/2009, 02/09/2009, 27/09/2009 e 21/11/2009. Dentre estas ocorrências, a única que foi efetivamente apurada pela Delegacia de mulheres foi o BO de 31/03/2009, sendo este também o único que gerou medida protetiva, após intervenção do advogado da vítima bem como a oitiva da vítima pela assistente social, o que levou a juíza, por decisão de 04/05/2009, a conceder as seguintes medidas protetivas: 1) separação de corpos, com o afastamento do agressor do lar; 2) proibição do agressor de manter contato ou de se aproximar da vítima a menos de 200 metros. Na mesma decisão, a juíza informou ao agressor que, em caso de descumprimento das medidas, poderia ser decretada a prisão preventiva, além de incorrer em crime de desobediência. O agressor foi intimado desta decisão em 25/05/2009, quando deixou a residência do casal. Além das ocorrências supra, houve outras que tiveram BOs lavrados, além daquelas em que a Polícia Militar sequer registrou a ocorrência nem conduziu os envolvidos até a autoridade policial. Ademais, várias foram as vezes em que os militares presenciaram inclusive as ameaças, porém nada fizeram. Diante das reiteradas agressões, ameaças e descumprimento das medidas protetivas, o advogado da vítima requereu, por três vezes, a PRISÃO PREVENTIVA do agressor, isto em 31/07/2009, 03/09/2009 e 01/10/2009, porém, o Promotor de Justiça preferiu aguardar a conclusão do inquérito policial, o que foi seguido também pelo excelentíssimo juiz, o qual, mesmo tendo sido alertado sobre a urgência do caso, preferiu tratá-lo como mais um dos casos que abarrotam aquela vara especializada. Este caso de Maria Islaine é paradigmático, pois demonstra a ineficiência do Estado no amparo às vítimas de violência doméstica e na execução da Lei Maria da Penha. Ora, a vítima seguiu todo o roteiro que a propaganda institucional prega: denunciou o agressor, registrou várias ameaças e agressões sofridas, acionou a Polícia e o Poder Judiciário, dando-lhes ciência de todo o ocorrido e juntando diversas provas (inclusive gravações de diversas ameaças). Porém, o Estado não fez a sua parte, podendo-se apontar falhas em diversos órgãos: A Polícia Militar, que, mesmo sem um mandado de prisão, por diversas vezes poderia ter efetuado a prisão do agressor, seja pelo crime de ameaça presenciado algumas vezes pelos militares, seja por crime de desobediência da medida protetiva; A Polícia Civil, que foi lenta e omissa na apuração dos fatos, sendo que das várias ocorrências feitas, apenas uma (de 31/03/2009) foi apurada e enviada à Justiça somente em 30/12/2009; O Ministério Público, que, mesmo diante das reiteradas ameaças e agressões e dos três pedidos de prisão preventiva, preferiu aguardar o inquérito policial; O Poder Judiciário, que, acompanhando o Ministério Público, também ficou aguardando um inquérito (que nunca chegava), para decidir sobre a prisão do agressor. Não dá pra justificar o injustificável. Apenas atendo-se à Lei 11.340/06, vale ressaltar que o art. 22, §3º, determina que o juiz, para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. Já o art. 26, determina que o Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, poderá, quando necessário requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros, além de fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas. A lei é clara e dispensa um maior esforço hermenêutico. O que se pergunta agora é se o Estado continuará tratando os casos de violência doméstiça como mais um dentre os milhares de inquéritos e processos que abarrotam as delegacias e as Varas Criminais de todo o país. Quantas Marias da Penha precisarão ficar paraplégicas e quantas Marias Islaine terão que morrer para fazer com que o Estado seja mais eficiente na persecução criminal dos agressores? *Fernando Nascimento dos Santos* Advogado de Maria Islaine de Morais Advogado Criminalista Especialista em Criminalidade e Segurança Pública pelo CRISP/UFMG