1
CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE - UNIFLU
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS - FDC
MESTRADO EM DIREITO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: RELAÇÕES PRIVADAS E CONSTITUIÇÃO
PATRÍCIA SCARDINI SILVEIRA SCHUCKERT
A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DO
ESTABELECIMENTO E SUA APLICAÇÃO
NO DIREITO DA EMPRESA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E
DO CÓDIGO CIVIL.
Campos dos Goytacazes - RJ
2006
2
PATRÍCIA SCARDINI SILVEIRA SCHUCKERT
A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO E
SUA APLICAÇÃO NO DIREITO DA EMPRESA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE
1988 E DO CÓDIGO CIVIL
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Direito da Faculdade de Direito de
Campos, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre em Direito, na
Área de Concentração Relações Privadas e
Constituição, sob orientação do Professor
Doutor Alexandre Ferreira de Assumpção
Alves.
Campos dos Goytacazes - RJ
2006
3
PATRÍCIA SCARDINI SILVEIRA SCHUCKERT
A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO E
SUA APLICAÇÃO NO DIREITO DA EMPRESA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE
1988 E DO CÓDIGO CIVIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
da Faculdade de Direito de Campos, como requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em Direito, na área de concentração Relações Privadas e Constituição.
Aprovada em 20/10/ 2006
COMISSÃO EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Ferreira de Assumpção Alves
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS
Orientador
___________________________________________________
Profª. Rosangela Gomes
FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS
___________________________________________________
Profª. Moema Augusta Soares de Castro
UFMG
4
“A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu
tamanho original”.
Willian Shakespeare
5
Dedico esta dissertação ao meu filho João Felipe, parte
inseparável da minha existência.
Ao Marcelo, irmão amado, que mesmo ausente, por vontade
Divina, continua presente em todos os nossos momentos.
6
Agradecimentos
A Deus, nosso criador, detentor de todo conhecimento e
sabedoria do universo, que nos deu vida para vivermos em
abundância e plenitude.
Aos meus pais, José (Silveirinha) e Léa, de quem recebi o
melhor de tudo: Amor.
Ao Marck, meu marido, companheiro dos meus sonhos e
ideais.
Ao Rodrigo e José Antônio, irmãos queridos, com os quais
compartilho muito amor e união.
Ao João Victor e Rodrigo Filho, sobrinhos queridos, esperando
que meu exemplo lhes sirva de incentivo.
A tia Eliana pelo incentivo em toda minha trajetória pessoal e
acadêmica, por seus momentos de dedicação e amor
incondicional.
Aos professores, pela compreensão
importante de minha vida: ser mãe.
na
escolha
mais
Aos meus familiares em geral e aos amigos pelo apoio e,
principalmente, compreensão durante meus momentos de
ausência.
Ao meu Professor e orientador Dr. Alexandre Ferreira de
Assumpção Alves, pela oportunidade de mergulhar nessa
pesquisa desafiadora.
A todos que direta ou indiretamente contribuíram para que eu
finalizasse com êxito essa jornada em busca do conhecimento.
7
RESUMO
Vinculada ao projeto de pesquisa “O Novo Direito Empresarial” e à linha de pesquisa
“Relações Privadas Contemporâneas”, a dissertação investiga a proibição de
concorrência no contrato de alienação do estabelecimento empresarial – contrato de
trespasse – em contexto que o exercício da empresa promova os valores axiológicos
eleitos na Constituição de 1988 e proporcione à coletividade os benefícios
decorrentes de sua função social. O fundamento e modo da aplicação das normas
constitucionais entre particulares, chamada de eficácia horizontal, difere da sua
aplicação na relação entre o Estado e o particular, eficácia vertical. Destarte, por se
tratar de restrição à norma constitucional da livre concorrência (art. 170, IV, da CF)
ajustada entre particulares (empresários), a proibição de concorrência contém
elementos limitativos, os quais se inferem da norma do artigo 1147 do Código Civil.
Além disso, a proibição de concorrência deve ser também justificada com vistas à
realização da função social e econômica do contrato (art. 421 do CC) e das legítimas
expectativas dos contratantes como expressão da boa-fé objetiva (arts. 187 e 422 do
CC). Por outro lado, faz-se necessário o controle da legalidade dos elementos da
cláusula de não concorrência por meio dos postulados da razoabilidade e da
proporcionalidade para que se possa alcançar a justiça material e o bem estar social
entre os contratantes e os interesses da coletividade (mercado). Ademais, a
proibição de concorrência é suscetível de aplicação em algumas relações negociais
entre empresários, mas comporta determinadas peculiaridades de acordo com a
espécie contratual. Portanto, pretende-se apresentar uma nova compreensão da
proibição de concorrência, a partir do discurso empresarial constitucional, com vistas
à promoção da solidariedade social e de uma justiça material subordinada das
situações jurídicas patrimoniais da livre iniciativa privada.
PALAVRAS-CHAVE: Estabelecimento
Empresa. Constituição. Código Civil.
empresarial.
Concorrência.
Direito
de
8
ABSTRACT
Attached to the research project called “The new empresarial low” and the reaserch
line “Comtemporany Private Relationships”, the project studies the proibition of
competition in the contract of alienation of the empresarial establishment - crossing
contract - in a context that the establishment promotes the elect axiology values
elected in the Constitution of 1988 and permit the possibility of society to benefit of
its social function. The fundamental and way of the application of the constitutional
rules between particular, called horizontal effectiveness, differ from its application in
the relation between the State and the particular one, vertical effectiveness. Destart,
for treat from with restriction of the constitutional rules of the free competition
(Brazilian Constitution art. 170, IV) adjusted between particular (builders man), the
prohibition of competition contains limiting elements, which if they infer of the norm of
article 1147 of the Civil Code. Furthermore, the prohibition of competition also must
be justified with sights to the realization of the social function and economic of the
contract (Civil Code, art. 421) and of you legitimize expectations to them of the
contractors as expression of the objective good-faith (Civil Code, arts. 187 and 422).
In another side, it makes necessary the control of the legality of the elements of the
clause of not competition by means of the postulates of the razoability and the
proportionality so that if it can reach material justice and the good state between the
contractors and the interests of the collective (market).
So, the prohibition of competition is susceptible of application in some business
relations between business man, but comports determinates peliculiarits According
with the contractual species. Therefore, it is intended to present a new understanding
of the prohibition of competition from the constitutional enterprise speech, seeing the
promotion of social solidarity and a subordinated material justice of the patrimonial
from the free private starting.
KEY-WORDS: Empresarial establishment, prohibition of competition, Corporate Law,
Constitutional rules
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11
2 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL......................................................16
2.1 A EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS.......................................16
2.2 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL...........................................................20
2.3 OS VETORES AXIOLÓGICOS-TELEOLÓGICOS DA CONSTITUIÇÃO E A SUA
CONEXÃO COM A ORDEM ECONÔMICA.........................................................24
2.4 NORMAS FUNDAMENTAIS E A ORDEM ECONÔMICA....................................29
2.5 DIREITO COMERCIAL.........................................................................................35
2.6 BREVES NOTAS SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO
COMERCIAL........................................................................................................41
2.6.1 Teoria dos atos de comércio - sistema francês...........................................44
2.6.2 Teoria da empresa - sistema italiano.............................................................46
2.7 O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO COMERCIAL NO BRASIL E A TEORIA
DA EMPRESA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002.......................................................48
2.8 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL....................................................51
3 O ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL..............................................................62
3.1 O CONCEITO JURÍDICO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL...............63
3.2 ESTABELECIMENTO PRINCIPAL, AGÊNCIAS, FILIAIS E SUCURSAIS..........66
3.3 NATUREZA JURÍDICA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL...................68
3.3.1 Teoria da personalidade jurídica...................................................................69
3.3.2 Teoria do patrimônio separado.....................................................................70
3.3.3 Teoria do bem imaterial..................................................................................71
3.3.4 Teoria das universalidades............................................................................71
3.3.4.1 Bens singulares e coletivos (universalidades).........................................72
3.3.4.2 Universalidades de fato e de direito...............................................................73
3.4 A COMPOSIÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E SUA
PROTEÇÃO JURÍDICA.....................................................................................75
3.5 O AVIAMENTO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL.............................100
3.6 A CLIENTELA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL...............................104
3.7 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL.............................................108
3.8 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL RURAL................................................110
4 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO
ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL – O TRESPASSE......................................114
4.1 O CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E A
SUA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA....................................................................114
10
4.2 OS DEVERES PRINCIPAIS E SECUNDÁRIOS NAS FASES DO CONTRATO
DE TRESPASSE.............................................................................................119
4.3 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE TRESPASSE.......122
4.3.1 Evolução da doutrina e da jurisprudência.................................................123
4.3.2 A proibição de concorrência do artigo 1.147 do Código Civil..................129
4.3.3 Os elementos limitativos da proibição de concorrência do artigo 1.147 do
Código Civil................................................................................................130
4.3.4 O controle de legalidade dos elementos limitativos da proibição de
concorrência através do postulado da razoabilidade............................133
4.3.5 O controle de legalidade dos elementos limitativos da proibição de
concorrência através do postulado da proporcionalidade e sua revisão
pelo Poder Judiciário................................................................................139
4.3.6 Eficácia subjetiva e a oponibilidade de proibição de concorrência.........142
4.3.7 Violação direta e indireta da proibição de concorrência...........................145
5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO DIREITO DA
EMPRESA.............................................................................................................148
5.1APLICAÇÃO EXTENSIVA E INTEGRATIVA DO ARTIGO 1.147 DO CÓDIGO
CIVIL DE 2002...................................................................................................148
5.2 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DAS
PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS REPRESENTATIVAS DO CONTROLE DE
SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE PESSOAS E DE CAPITAL...........................152
5.3 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA CISÃO PARCIAL DA
SOCIEDADE......................................................................................................159
5.4 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA AO SÓCIO RETIRANTE
E EXCLUÍDO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA................................................161
5.5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE
FRANQUIA (FRANCHISING)............................................................................165
5.6 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE
COOPERAÇÃO EMPRESARIAL (JOINT VENTURE).......................................168
5.7 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE
SHOPPING CENTER........................................................................................170
6 CONCLUSÃO.......................................................................................................174
7 REFERÊNCIAS....................................................................................................183
11
1 INTRODUÇÃO
O estabelecimento é figura antiqüíssima, que surge juntamente com o
comércio. O estabelecimento, que é a reunião de bens promovida pelo comerciante
para o desenvolvimento de sua atividade, surge juntamente com o desenvolvimento
do comércio, quando este deixa de ser praticado apenas por viajante para ser
praticado por aqueles que se estabelecem montando uma estrutura para o seu
exercício. É, ao mesmo tempo, figura de atualidade patente, pois o instrumento de
trabalho do empresário adquire importância cada vez maior. Se, nos tempos
remotos, a figura do comerciante era motivo de atração de clientela, ou seja, se o
conceito e o carisma pessoal tinham influência na captação de clientela, hoje esse
fator tem cada vez menos relevância. O marketing, as marcas, o bom treinamento do
pessoal, o produto de qualidade ou o produto conhecido são os maiores fatores de
atração em uma sociedade de consumo de massa. A relação de consumo perde seu
caráter pessoal; o mercado utiliza-se de armas mais poderosas que o contato
humano através das várias técnicas de publicidade.
A importância do estabelecimento empresarial, nos dias atuais, faz que se
estude mais detidamente as regras de concorrência desleal. É pelas regras de
concorrência desleal que se protege o estabelecimento empresarial enquanto
conjunto. A proteção ao estabelecimento empresarial é realizada por meio da
proteção da clientela, que é o seu objetivo final. Proteger a clientela de determinado
empresário é impedir que ela seja desviada por meios desleais. Não há garantia
absoluta de manutenção da clientela, uma vez que se convive com o regime da livre
concorrência, impede-se, apenas, que sejam usados meios desleais para a sua
captação.
12
Além da proteção ao estabelecimento empresarial, numa concepção
unitária, cada um dos seus elementos componentes possui sua proteção específica.
O empresário possui proteção, oferecida pelo direito de propriedade, para cada um
dos bens que formam o seu estabelecimento. Trata-se da proteção indireta ao
estabelecimento empresarial, ou seja, a proteção conferida aos seus elementos.
Compreender a figura do estabelecimento empresarial é fundamental num
momento em que a forma de consumo se utiliza desse instrumento como fator
fundamental para a atração da clientela. A importância desse instituto é
demonstrada pelo interesse que surge por parte do empresário em negociá-lo cada
vez mais.
O estudo do estabelecimento empresarial, enquanto complexo de bens do
empresário, vem proporcionar ao jurista base para que se estabeleçam negócios
jurídicos tendo ele como objeto. Entendê-lo juridicamente é imprescindível para que
os negócios jurídicos que o circundam sejam feitos com segurança. Após o
conhecimento das características do estabelecimento empresarial, cabe identificar
sua natureza jurídica, a fim de apontar o regramento jurídico a que ele está
submetido. O interesse prático na qualificação jurídica do estabelecimento reside na
circunstância de que os problemas relativos aos negócios jurídicos, feitos com ou
sobre o estabelecimento, dependem – quanto à forma de realização e quanto aos
efeitos jurídicos – da natureza de que o mesmo se revista perante a lei.
Nesse contexto, o Código Civil Brasileiro de 2002 consagrou, em seu Livro II
(Do Direito de Empresa), Título III (Do Estabelecimento), artigo 1.147, a proibição de
concorrência do empresário alienante no prazo de 05 (cinco) anos subseqüentes à
alienação do estabelecimento empresarial, que se opera por meio do contrato de
trespasse.
13
Os institutos do Direito da Empresa, assim como no Direito Civil, devem
estar vinculados às normas fundamentais e setoriais constitucionais. Assim, por
exemplo, a iniciativa privada de situações jurídicas exclusivamente patrimoniais deve
ser funcionalizada a dos valores existenciais (não patrimoniais), sobretudo a
dignidade da pessoa humana e a solidariedade social, realizando, assim, a
promoção de uma justiça distributiva.
Tome-se, a título de ilustração, a livre iniciativa que está prevista no artigo
1º, inciso IV e na cabeça do artigo 170, da CF. Cabe salientar que, em ambos os
dispositivos constitucionais, a liberdade de iniciativa, da qual se infere a liberdade
contratual, é precedida do valor do trabalho humano, o qual está ligado
umbilicalmente aos Direitos Sociais, no Capítulo II da Constituição Federal.
Os benefícios dessa investigação estão revelados na fixação dos elementos
de validade da proibição de concorrência e dos seus respectivos limites em bases
racionais para cada caso na parte dedicada ao Direito Empresarial Constitucional,
que consiste na aplicação da metodologia civil-constitucional ao direito de empresa.
Com a presente pesquisa será examinada a proibição de concorrência
estipulada em determinados contratos celebrados entre empresários que tenham
efeitos concorrenciais e a sua sujeição à aprovação pelo Conselho Administrativo de
Defesa Econômica - CADE.
A proibição de concorrência constitui uma limitação na esfera da liberdade
de iniciativa do empresário alienante e, portanto, o seu exercício deve estar em
conformidade com os fins eleitos pelo legislador constituinte com vistas à realização
de uma justiça social e distributiva. Portanto, a funcionalização da liberdade de
iniciativa revela uma nova dimensão do poder de contratar e estabelecer o seu
conteúdo.
14
Daí porque se entender que as justificativas ético-jurídicas e econômicas da
proibição de concorrência, bem como dos seus elementos de validade, devem ser
encontrados na leitura funcionalizada pelos valores constitucionais pertinentes às
disposições legais previstas no Direito de Empresa (Lei nº 10.406/02) e do Direito da
Concorrência (Lei nº 8.884/94), guiados pela função social e econômica do contrato
de trespasse e pela boa-fé objetiva (artigos 421 e 422 do CC).
A seguir, buscou-se analisar critérios de controle da legalidade da proibição
de concorrência em determinadas espécies contratuais no Direito de Empresa, como
na cisão parcial da sociedade, na transferência do controle das participações
societárias, na retirada e exclusão de sócio do contrato de sociedade, na franquia,
na joint venture, no shopping center. Para tanto foram analisados dados doutrinários
e jurisprudenciais no decorrer do trabalho.
Em pesquisa exploratória, foi constatada a relevância social e econômica da
proibição de concorrência no Direito de Empresa e no Direito da Concorrência,
conforme será destacado ao longo do trabalho.
Do ponto de vista acadêmico, embora o estudo não tenha intenção de servir
como um referencial e nem de incorporar uma revisão exaustiva da literatura sobre o
estabelecimento empresarial, sua alienação e a proibição de concorrência, pretendese expor didaticamente as principais características e abordagens do tema, trazendo
uma contribuição àqueles que desejarem aprofundar estudos nessa área.
Para a consecução desse objetivo, a presente pesquisa é composta de 4
(quatro) capítulos. O primeiro trata do Direito Empresarial Constitucional, fazendo um
estudo das normas empresariais em consonância com a Constituição Federal; o
segundo refere-se ao estabelecimento empresarial abordando o conceito, os
elementos que o compõe e a natureza jurídica, bem como a clientela e o aviamento;
15
no terceiro, elucidou-se questões polêmicas quanto aos elementos limitativos da
cláusula de proibição de concorrência na alienação do estabelecimento empresarial,
inclusive com a citação de julgados; já no quarto, analisou-se a possibilidade de se
aplicar às situações valoráveis como equivalentes, a proibição de concorrência como
no contrato de franquia.
16
2 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL
Com efeito, o Direito Comercial, como espécie de direito privado, também
deve ser compreendido à luz da Constituição de 1988, mormente após a
promulgação do Código Civil de 2002 que unificou as obrigações privadas e
incorporou a noção de empresa, de modo que não se sustenta mais a distinção
entre atividade mercantil ou civil como critério de aplicação das normas.
2.1 A EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
A história do Direito Constitucional brasileiro é marcada por constantes
ilegalidades, conforme denuncia Luís Roberto Barroso1.
A ilegitimidade do poder no passado representava os interesses de uma elite
de visão estreita, patrimonialista, que não tinha um projeto de vida para as demais
camadas sociais do país. Aliás, essa elite aproveitava-se do espaço público como se
fosse direito privado seu.
Ademais, a carência de efetividade do rol de Constituições brasileiras ao
longo da história imputa-se a duas razões. A primeira consubstanciada no fato da
ausência de reconhecimento da força normativa dos seus enunciados. A segunda
razão é tributada à falta de vontade política para conferir aplicabilidade direta e
imediata às suas disposições. Portanto, em última análise, as Constituições eram
marcadas por promessas endereçadas ao povo, ao qual, no descumprimento delas,
não lhes era reconhecido o direito de invocá-las, nem tampouco detinha
1
BARROSO, Luis Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
princípios no direito brasileiro. In____. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, pp.04-05.
17
mecanismos de ordem procedimental para compelir o Estado a efetivá-las no mundo
dos fatos.
E, por fim, o desrespeito à legalidade constitucional, que se sucedia desde
que a primeira Assembléia Constituinte foi dissolvida por D. Pedro I, seguida de
golpes de Estado, cujo ápice da ilegalidade pode ser tributado aos Atos
Institucionais.
“O marco zero de um recomeço, uma perspectiva de uma nova história”2
constitui contribuição da Constituição de 1988. Sem embargo das inúmeras
emendas que sofreu, perdura o respeito à legalidade constitucional por mais de
dezessete anos.
Ao lado da vontade política do poder constituinte de empreender mudanças
com vistas a promover uma justiça distributiva à sociedade, que contou com a
participação de diversas forças3, essa certa estabilidade também contribuiu para que
as normas constitucionais fossem alçadas à categoria de normas jurídicas, dotadas
de imperatividade, suscetíveis de proteger direta e imediatamente todas as
situações jurídicas que albergam.
A efetividade está ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição e ao
reconhecimento de sua força normativa, visto que as normas constitucionais são
dotadas de imperatividade e sua inobservância deve deflagrar os mecanismos
próprios de cumprimento forçado. Dessa forma, a efetividade é a realização
concreta, no mundo dos fatos, dos comandos abstratos contidos na norma.
2
A frase é de BARROSO. O começo da história, 2005, p.5.
Confira-se CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça distributiva. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2000, p.234: após duas décadas de autoritarismo e governos militares, a reconstrução
do processo político democrático também significava a reconstrução do Estado de Direito. Nesse
sentido, o movimento de retorno ao direito no Brasil teve a sua mais perfeita tradução no processo
constituinte. A constituição de 1988, elaborada através de um processo de participação no qual
estiveram presentes as mais variadas forças, é reveladora de como o retorno ao direito pode
significar uma valorização do espaço público da política.
3
18
Além disso, a Constituição de 1988, como fonte primária do sistema jurídico,
na medida em que reside no ápice do escalonamento normativo do ordenamento
jurídico brasileiro, subordina a interpretação da legislação infraconstitucional em
consonância à normatividade constitucional. Em última análise, a compreensão das
normas infraconstitucionais pressupõe a sua leitura à luz da supremacia
constitucional.
A supremacia constitucional é tributária da idéia de superioridade do poder
constituinte sobre as instituições jurídicas vigentes. Isso faz com que o produto do
seu exercício, a Constituição, esteja situado no topo do ordenamento jurídico,
servindo de fundamento de validade de todas as demais normas. Essa supremacia
somente se verifica onde exista Constituição rígida. Aliás, a rigidez interage, em uma
relação recíproca de causa e efeito, com outro fenômeno que contribui para a
primazia da ordem constitucional: a vocação maior de permanência e estabilidade
que acompanha a Lei fundamental, em contraste com a mutabilidade da legislação
ordinária.
A Constituição é a primeira entre as normas do ordenamento inteiro, a
norma fundamental4. Em primeiro lugar, é a Constituição que define o sistema de
fontes formais do Direito, de tal sorte que a validade de uma Lei está sujeita à sua
compatibilidade com a norma constitucional. Em segundo lugar, a pretensão de
permanência da Constituição é revelada pela chamada rigidez da norma
constitucional, que lhe assegura uma superlegalidade formal, visto que impõe
formas reforçadas de modificação ou alteração constitucional em relação aos
procedimentos legislativos infraconstitucionais.
4
Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid:
civitas,1991, p. 50.
19
Nesse passo, cumpre destacar que a tipologia das normas constitucionais
constitui um relevante critério que está a influenciar a sua efetividade. José Afonso
da Silva5 enunciou a célebre divisão das normas constitucionais, no que diz respeito
à sua eficácia e aplicabilidade, em três categorias: (I) normas constitucionais de
eficácia plena e aplicabilidade imediata; (II) normas constitucionais de eficácia
contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição; e (III) normas
constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, em regra, dependentes de
integração da normativa infraconstitucional para realizarem a totalidade dos seus
efeitos. Essa última é subdividida em declaratórias de princípios institutivos ou
organizativos e declaratórias de princípio programático. Essa classificação foi
empregada de forma subvertida, de modo que, por carência de vontade política, com
freqüência deixava-se de conferir efetividade à norma constitucional sob a
justificativa de que a sua eficácia era limitada, condicionando as diretrizes traçadas
pelo poder constituinte ao legislador infraconstitucional.
De acordo com essa formulação, normas de eficácia plena são as que
receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata e
independem de providência normativa ulterior para sua aplicação. Normas de
eficácia contida são as que receberam, igualmente, normatividade suficiente para
reger os interesses de que cogitam, mas prevêem meios normativos que lhes podem
reduzir a eficácia e aplicabilidade. Por último, normas de eficácia limitada são as que
não receberam do constituinte normatividade suficiente para sua aplicação, o qual
deixou ao legislador ordinário a tarefa de completar a regulamentação das matérias
nelas traçadas em princípio ou esquema.
5
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000,
pp.81- 87.
20
Já a classificação das normas constitucionais, sugerida por Luís Roberto
Barroso6, está assentada em três espécies: (I) normas constitucionais de
organização, que têm por objeto organizar o exercício do poder político: (II) normas
constitucionais definidoras de direito, que têm por objeto fixar os direitos
fundamentais dos indivíduos (direitos subjetivos); e (III) normas constitucionais
programáticas, que têm por objetivo traçar os fins públicos a serem alcançados pelo
Estado. Essa proposta é mais coerente com o conteúdo e alcance das normas
constitucionais, notadamente para além dos direitos fundamentais que, à luz da
norma do parágrafo 1° do artigo 5°, gozam expressamente de eficácia imediata,
como é a hipótese do direito à educação, previsto no art. 205.
A seguir, passa-se a tratar do pressuposto da interpretação constitucional na
perspectiva dos contornos do sistema jurídico vigente.
2.2 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A interpretação constitucional serve-se de alguns princípios próprios e
apresenta especificidades e complexidades que lhe são inerentes. Mas isso não a
retira do âmbito da interpretação geral do direito, de cuja natureza e características
partilha.
O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios
constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da
constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os
princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos
ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de
6
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 93-120.
21
interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que
rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até
chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie7.
A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas,
em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em
duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas disposição8. Estas,
também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às
quais se dirigem. Já aquelas, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior
teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema.
Luís Roberto Barroso9 enquadra os princípios constitucionais, quanto ao seu
conteúdo, na tipologia adotada para as normas constitucionais em geral. Com efeito,
existem princípios constitucionais de organização, como os que definem a forma de
Estado, a forma, o regime e o sistema de governo. Existem, também, princípios
constitucionais cuja finalidade precípua é estabelecer direitos, isto é, resguardar
situações jurídicas individuais, como os que asseguram o acesso à justiça, o devido
processo legal, a irretroatividade das leis etc. Por igual, existem princípios de caráter
programático, que estabelecem certos valores a serem observados – livre iniciativa,
função social da propriedade - ou fins a serem perseguidos como a justiça social.
Aos princípios calha a peculiaridade de se irradiarem pelo sistema
normativo, repercutindo sobre outras normas constitucionais e daí se difundindo
para os escalões normativos infraconstitucionais. Nem todos os princípios, no
entanto, possuem o mesmo raio de atuação; eles variam na amplitude de sua
7
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
8
Vejam-se Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1998, p. 14 e s.; Robert Alexy, Teoría de los
derechos fundamentals, 1993, p. 83; J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 1986, p.172;
Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição – interpretação e crítica, 1990, p.122 e
ss.
9
Ibid., pp. 155-158.
22
aplicação e mesmo na sua influência. Dividem-se, assim, em princípios
fundamentais, gerais e princípios setoriais ou especiais10.
Princípios fundamentais são aqueles que contêm as decisões políticas
estruturais do Estado, exprimem a ideologia política que permeia o ordenamento
jurídico, constituem, também, o núcleo imodificável do sistema, servindo como limite
às mutações constitucionais. Já os princípios constitucionais gerais se irradiam por
toda a ordem jurídica, como desdobramentos dos princípios fundamentais e se
aproximam daqueles que se identificam como princípios definidores de direitos. E
por fim, os princípios setoriais ou especiais, que são aqueles que presidem um
específico conjunto de normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da
Constituição.
Feita essa sistematização, é preciso destacar o papel prático dos princípios
dentro do ordenamento jurídico constitucional, enfatizando sua finalidade ou
destinação. Cabe-lhes, em primeiro lugar, embasar as decisões políticas
fundamentais tomadas pelo constituinte e expressar os valores superiores que
inspiraram à criação ou reorganização de um dado Estado. Em segundo lugar, aos
princípios se reserva a função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do
texto constitucional, dando unidade ao sistema normativo. Um documento
marcadamente político como a Constituição abriga normas à primeira vista
contraditórias. Compete aos princípios compatibilizá-las, integrando-as à harmonia
do sistema.
A unidade constitucional, uma característica da concepção atual de sistema
jurídico, que, segundo Noberto Bobbio11, cabe à norma fundamental o papel
unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. A norma
10
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003, pp.156-158.
11
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. Brasília: UNB, 1999, p.49.
23
fundamental é a Constituição, que constitui o eixo central do sistema jurídico e lhe
confere unidade interior.
Outra característica do sistema jurídico é a ordem que corresponde à
adequação axiológica ou teleológica com vistas à realização de finalidades e de
valores eleitos pelo constituinte12. Portanto, compreende-se o sistema jurídico como
sistema de ordem de valores. Pode-se falar que a constituição é a tábua axiológica
do sistema jurídico.
A supremacia da Constituição é pressuposto de todo o Direito Constitucional
moderno e deve orientar fundamentalmente toda a interpretação do ordenamento
jurídico constitucional e infraconstitucional.
Ensina Eduardo García de Enterría13 que a supremacia da Constituição
sobre todas as normas e seu caráter central na construção e na validade do
ordenamento em seu conjunto impõem a sua interpretação, em qualquer momento
da sua aplicação, tanto os órgãos públicos quanto os privados, em consonância do
que resultam os princípios e as regras constitucionais. Esse princípio é uma
conseqüência derivada do caráter normativo da Constituição e de seus status
supremo que está reconhecido nos sistemas que fazem desse caráter um postulado
básico.
No sistema jurídico brasileiro que tem a Constituição, no seu ápice, de modo
a lhe conferir ordem interior e unidade, inferem-se vetores axiológicos-teleológicos
eleitos pelo poder originário.
A seguir, procede-se a seu exame e investigação e a sua relação direta com
a ordem econômica.
12
CANARIS, Claus-wilhelm, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do
Direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 66-81.
13
Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid:
civitas,1991, p. 95.
24
2.3 OS VETORES AXIOLÓGICOS-TELEOLÓGICOS DA CONSTITUIÇÃO E A SUA
CONEXÃO COM A ORDEM ECONÔMICA
As normas constitucionais previstas14 no Título I, “Dos Princípios
Fundamentais”, da Constituição de 1988, gozam de um peso de normas-matrizes
em virtude da sua localização topológica15.
Na classificação de Luís Roberto Barroso16, as normas matrizes acima são:
14
“Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I- a soberania;
II- a cidadania;
III- a dignidade da pessoa humana;
IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V- o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2° São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o legislativo, o Executivo e o
Judiciário.
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II- garantir o desenvolvimento nacional;
III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Art. 4° A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios:
I- independência nacional;
II- prevalência dos direitos humanos;
III- auto determinação dos povos;
IV- não-intervenção;
V- igualdade entre os Estados;
VI- defesa da paz;
VII- solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e
cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações.
15
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros,
1998, p.99: temos que distinguir entre princípios constitucionais fundamentais e princípios gerais do
Direito Constitucional. Vimos já que os primeiros integram o Direito Constitucional positivo,
traduzindo-se em normas fundamentais, normas sínteses ou normas-matriz, que explicitam as
valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, normas que contém as decisões políticas
fundamentais que acolheu no documento constitucional. Os princípios gerais formam temas de uma
teoria geral do Direito Constitucional, por envolver conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter
seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional.
16
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
25
[...] princípios constitucionais fundamentais, exprimindo a ideologia política
que permeia o ordenamento jurídico, constituem, também, o núcleo
imodificável do sistema, servindo como limites às mutações constitucionais.
Sua superação exige um novo momento constituinte originário. Nada
obstante, esses princípios são dotados de natural força de expansão,
comportando desdobramentos em outros princípios e em ampla integração
infraconstitucional.
Conforme se infere do artigo 1º, o legislador constituinte elegeu o regime
político de Estado Democrático de Direito17 assentado nos seguintes fundamentos:
(I) a soberania; (II) a cidadania; (III) a dignidade da pessoa humana; (IV) os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; (V) e o pluralismo político.
Sem embargo para os fins da presente investigação, interessa aqui alguns
princípios fundamentais, os quais serão examinados pontualmente.
Por soberania, entende-se tratar de um atributo essencial do Estado, o qual
possui uma dupla perspectiva. No plano do direito internacional, a soberania traduz
a idéia de igualdade, de não subordinação. Já no tocante ao plano interno, revela o
valor da supremacia da Constituição e da lei e a superioridade jurídica do Poder
Público na sua interpretação e aplicação18.
A dignidade da pessoa humana é o primeiro direito fundamental assegurado
na Constituição e, por conseguinte, tem uma importância diferencial para a ordem e
unidade da Lei Fundamental. É possível dizer então que a dignidade da pessoa
17
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros,
1998, p.129: Democracia é conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento
de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos
direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma
medida, enriquecendo-lhe o conteúdo a cada etapa do evolver social, mantido sempre o princípio
básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse
aspecto, a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de
afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da
história. [...] Podemos, assim, admitir que a democracia é um processo de convivência social em que
o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do
povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade,
depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em
que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.
18
BARROSO, Luis Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no
controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
56.
26
humana tem a finalidade suprema de todo e qualquer direito e vincula
funcionalmente as outras normas jurídicas19.
Cabe agora delimitar a noção de dignidade da pessoa humana, por ser uma
expressão fluída e com imprecisão semântica, eis que a sua concretização está
relacionada a uma dimensão temporal.
Jesús Gonzáles Pérez20 indica critérios gerais para apreciar quando se
comete um atentado a ela. O primeiro critério está assentado na idéia de que são
indiferentes as circunstâncias pessoais (nascimento, raça, sexo, idade, grau de
inteligência) do sujeito. O segundo critério revela que atentado à dignidade da
pessoa humana não requer intenção ou finalidade. E, por isso mesmo, o terceiro
critério estabelece que é irrelevante a vontade da pessoa afetada. Por derradeiro, o
quarto critério de aferição da violação aponta que, ao qualificar em concreto uma
determinada conduta, devem ser valoradas as distintas circunstâncias concorrentes,
de maneira que não pode prescindir de lugar, tempo e situações em que se produz.
Ao fim, tendo em vista que não seria possível formular um catálogo das possíveis
violações à dignidade da pessoa humana, Jesús González Pérez21 indica que as
formas mais comuns são em suas relações com outras pessoas, em suas relações
com o mundo exterior e pela atividade que se impõe a realizar.
19
A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ilumina a
interpretação da lei ordinária (STJ, HC 9.892-RJ, Rel. orig. Min. Hamilton Carvalhido, Rel. para
redação Min. Fontes de Alencar, DJU de 26/03/2001, p.473). Vivemos o momento de valorização da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF) e todo o esforço interpretativo da legislação
infraconstitucional é canalizado para a vitória deste princípio, que é sustentáculo da felicidade
existencial do homem. (TJSP, AC 115978-4/0, Rel. Dês. Ênio Santarelli Zuliani, publicado na ADV.
19-01/299, n. 97046).
20
PÉREZ, Jesús González. La Dignidad de la Persona. Madrid: Civitas, 1986, pp.111-114.
21
PEREZ, 1986, pp.115-116.
27
Por sua vez, Maria Celina Bodin de Moraes22 sugere que a noção de
dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como uma cláusula geral da
tutela da pessoa humana que dá prevalência a uma situação jurídica existencial em
relação a uma situação jurídica patrimonial. Essa cláusula geral de tutela da pessoa
humana tem por finalidade garantir os direitos das pessoas, notadamente o valor da
personalidade humana. A sua concretização se realiza através dos princípios da
igualdade, da integridade física, da liberdade e da solidariedade.
É o valor essencial do ser humano, que em termos gerais, significa que as
pessoas tenham uma vida digna, é capaz de agasalhar diversas concepções e
eficácias23. Daí, Ana Paula de Barcellos24 sustenta que a sua fração nuclear se
encontra no mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas para a
existência, dotada de eficácia jurídica positiva ou simétrica. Os elementos materiais
são: (I) a educação fundamental; (II) a saúde básica; (III) a assistência aos
desamparados; e (IV) o acesso à justiça.
Com efeito, as lições de Jesús González Pérez, Humberto Ávila, Maria
Celina Bodin de Moraes e Ana Paula de Barcelos não se excluem, ao contrário, são
complementares, na medida em que examinam as diversas perspectivas da
22
BODIN DE MORAES, Maria Celina. O conceito de Dignidade Humana: substrato axiológico e
conteúdo normativo. In SARLET, Ingo Wolfang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e
direito privado. Porto alegre: Livraria dos Advogados, 2003, pp. 105-147. Vale registrar a
observação final da autora acerca da sua aplicação nos casos difíceis: “Quando, nos chamados
casos difíceis, se põe a necessidade de ponderar os interesses conflitantes quer-se com isso dizer
ser cabível examinar, em cada hipótese, a qual princípio deva ser dada prioridade no caso concreto:
à liberdade ou à solidariedade? À integridade psicofísica ou à liberdade? À igualdade ou à
solidariedade? Os casos difíceis, no dizer de P. Ricoeur, constituem um desafio à provação do
julgamento reflexivo. O objetivo a ser alcançado, contudo, é único e não admite relativizações. [...] a
dignidade da pessoa humana, onde quer que ela, ponderados os interesses contrapostos, se
encontre.
23
Sobre as espécies de eficácia dos princípios, confira-se Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios:
da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.78-82; e
BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
princípios no direito brasileiro. In____. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, pp. 42-45.
24
BARCELLOS. Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 103, 247-308.
28
dignidade da pessoa humana – elementos externos e internos (núcleo fundamental),
eficácia jurídica, critérios de violação etc., sem se afastarem da sua compreensão
maior e intangível, como o valor supremo da ordem jurídica.
No que concerne aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, este
está relacionado aos direitos de liberdade (artigo 5º da CF), enquanto aquele diz
respeito aos direitos sociais (artigo 6º da CF), mais especificamente aos direitos dos
trabalhadores, das associações profissionais e sindicatos, e ao de greve (artigos 7º,
8º e 9º)25. São também fundamentos da ordem econômica previstos no artigo 170 da
Constituição Federal.
No que concerne à divisão dos poderes prevista no artigo 2º da CF, cabe
aqui esclarecer que a Constituição, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o
desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes
do Estado e da instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre
si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades
para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles
recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado democrático de
Direito.
O artigo 3º da CF dita as finalidades primordiais da República, vale dizer:
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional;
erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais
e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de
ouras formas de discriminação. A Constituição assinalou, não todos, mas os
25
ZIMMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002,
pp. 202-203: Nesta questão o poder público deve respeitar a livre iniciativa, assim valorizando o livre
empreendedor, conferindo-lhe a oportunidade ao esforço e à iniciativa própria, que nunca são
substituíveis por pesadas máquinas burocráticas guiadas pelo espírito da conservação, repetição e
até mesmo ineficiência. Este valor, enfim, completa-se com o valor social do trabalho, que requer a
garantia dos direitos trabalhistas e a justa remuneração do trabalhador.
29
fundamentais objetivos do Estado brasileiro, e, entre eles, uns que valem como base
das prestações positivas que venham concretizar a democracia econômica, social e
cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana.
Será estudada agora a conexão das normas fundamentais com a ordem
econômica, especificamente a norma do art. 170 da CF.
2.4 NORMAS FUNDAMENTAIS E A ORDEM ECONÔMICA
Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a ordem econômica ou, como
preferem alguns, a Constituição econômica, cuida-se de um componente do
conjunto da Constituição geral. Segundo Washington Peluso Albino de Souza26,
“apresenta-se na tessitura estrutural desta, não importa se na condição de Parte,
Título, Capítulo ou em artigos esparsos. Sua caracterização baseia-se tão somente
na presença do econômico no texto constitucional”.
Em segundo lugar, o papel do Estado na Constituição de 1988 corresponde
à fase da pós-modernidade, iniciada na quadra final do século XX, a qual é
caracterizada por um novo tempo, o da desregulamentação, o da privatização e o
das organizações não governamentais27. Nessa fase, ensina Luís Roberto Barroso28
26
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002, p.23.
27
Sobre a atuação do Estado na ordem econômica e as respectivas fases, consulte-se BARROSO,
Luís Roberto. Modadidades de intervenção na ordem econômica. Regime jurídico das sociedades de
economia mista. Inocorrência de abuso de poder econômica. In___. Temas de Direito
Constitucional. Tomo I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 390/391: O Estado atravessa, ao
longo deste século, três fases bem definidas. A primeira delas, identificada como a pré-modernidade
ou Estado Liberal, exibe de funções reduzidas, confinadas à segurança, justiça e serviços essenciais.
É o estado da virada do sec. XIX para o XX. Nele vivia-se a afirmação, ao lado dos direitos de
participação política, dos direitos individuais cujo objeto precípuo era o de traçar uma esfera de
proteção das pessoas em face do Poder Público. Estes direitos, em sua expressão econômica mais
nítida, traduziam-se na liberdade do contrato, na propriedade privada e na livre iniciativa. Na segunda
fase, referida como modernidade ou Estado social (Welfare state), iniciada com a segunda década
deste século, o Estado assume diretamente alguns papeis econômicos, tanto como condutor do
desenvolvimento, como outros de cunho distributivista, destinados a atenuar certas distorções do
mercado e a amparar os contigentes que ficavam à margem do progresso econômico. Novos e
30
que o Estado encontra-se sob crítica cerrada, densamente identificado com a idéia
de ineficiência, desperdício de recursos, morosidade, burocracia e corrupção.
Perdeu, então, o Estado, protagonista do processo econômico, político e social, o
charme redentor, passando-se a encarar com ceticismo o seu potencial como
instrumento do progresso e da transformação. Ressalte-se, ainda, na perspectiva da
cidadania, os direitos transindividuais que consistem em uma pluralidade de titulares
e a indivisibilidade de seu objeto. Entre eles, citem-se a tutela do consumidor
(artigos 5º, inc. LXXIII, 170, inciso V; e 48 do ADCT), a proteção do meio ambiente e
dos bens e valores históricos, artísticos e paisagísticos (artigo 5º, inciso LXXIII, 170,
inciso VI; 225).
O atual rol dos princípios que informam a ordem econômica pátria é bem
mais amplo do que o contemplado na Constituição anterior. O desenvolvimento
econômico continua sendo o alvo principal que todos os Estados procuram atingir. O
próprio desenvolvimento social, cultural e educacional, dependem de um substrato
econômico. Sem o desenvolvimento dos meios e dos produtos postos à disposição
do consumidor, aumentando destarte o seu poder aquisitivo, não há forma para se
atingirem objetivos também nobres, mas que dependem dos recursos econômicos
para sua satisfação.
O legislador constituinte remete a cabeça do artigo 170 aos seus artigos 1º,
incisos II e III, e 3º, inciso I, todos da CF, o que significa que a atuação do Estado e
dos particulares, nos processos de produção, circulação, distribuição e consumo das
importantes conceitos são introduzidos, como os de função social da propriedade e da empresa,
assim como se consolidam os chamados direitos sociais, tendo por objeto o emprego, as condições
de trabalho e certas garantias aos trabalhadores. [...] A modernidade teria começado com a
Revolução de 30, institucionalizando-se com a Constituição de 1934 – que abriu um título para a
ordem econômica e social – e se pervertindo no golpe do Estado Novo, de 1937. Reviveu,
fugazmente, no período entre 1946/1964, mas sofreu o desfecho melancólico do golpe militar de
1964. Findo o ciclo ditatorial, que teve, ainda, como apêndice, o período entre 1985-1990, chegou-se
à pós-modernidade, que enfrentou, logo na origem, a crise existencial de ter nascido associada ao
primeiro governo constitucionalmente deposto da história do país.
28
BARROSO, pp.390-391.
31
riquezas do país, têm como finalidade última a existência e desenvolvimento da
pessoa humana, que será efetivada em consonância com a justiça social29.
A valorização do trabalho humano e a livre iniciativa são os fundamentos da
ordem econômica. Segundo lição de Ricardo Lobo Torres30, entende-se por
fundamento, a causa, origem ou fonte do ordenamento jurídico. Assim, fundamento
do ordenamento jurídico é a fonte de onde promanam as normas.
A ordem econômica é constituída por princípios setoriais ou especiais, que
são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas ao capítulo I –
Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, do Título VII – Da Ordem Econômica
e Financeira da Constituição Federal31. Eles se irradiam limitadamente, mas no seu
âmbito de atuação são supremos.
Na lição de Luís Roberto Barroso32, os princípios setoriais do art. 170 da CF
possuem diversidade funcional e podem ser agrupados em dois grupos: (I) princípios
de funcionamento da ordem econômica; e (II) princípios fins.
São os princípios de funcionamento que estabelecem parâmetros de
convivência básicos que os agentes da ordem econômica deverão observar. Tais
princípios, que se referem à dinâmica das relações produtivas, são aqueles inseridos
nos incisos I a VI do art. 17033.
A propriedade privada e a função social da propriedade, respectivamente
previstas nos incisos II e III, estão umbilicalmente conectadas, na medida em que,
29
BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no
controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
55.
30
TORRES, Ricardo Lobo. A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da
Razoabilidade. In___(org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p.401.
31
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003, pp.156-158.
32
Idem. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In
Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 56.
33
Ibid., pp.55-56.
32
simultaneamente, é assegurado aos agentes que atuam ou pretendem atuar a
possibilidade de apropriação privada dos bens meios de produção34. Assim, lhes é
imposto um dever de utilizar as faculdades inerentes à propriedade (uso, gozo,
fruição, disposição), também em consonância com os interesses exteriores, isto é,
dos não-proprietários35. Cabe anotar que a propriedade privada e a sua função
social estão também previstas nos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º da CF.
Encartada no inciso IV, a livre concorrência é expressão do direito de
liberdade de iniciativa dos agentes econômicos e, em regra, a competição entre
eles36. A liberdade de escolha da atividade econômica pelo empreendedor está
compreendida na idéia de livre iniciativa (artigo 170, parágrafo único) e isso equivale
ao direito que todos têm de se lançarem ao mercado da produção de bens e
serviços por sua conta e risco. Consoante Gastão Alves de Toledo37, a livre iniciativa
pressupõe também a limitação do Estado na atividade econômica, de maneira que
este ficará adstrito às normas delimitadoras de sua atuação no campo econômico.
Sem embargo, esse princípio não tem caráter absoluto, de tal sorte que o Estado,
em certos segmentos mercadológicos e com respaldo nas diretrizes do constituinte,
poderá intervir legitimamente.
A liberdade de iniciativa sugere a opção do regime econômico capitalista38,
que, de uma forma geral, está fundado em um modelo de eficiência com vistas ao
interesse do consumidor. Por tal razão, o legislador originário foi coerente ao inserir,
no inciso V, a defesa do consumidor, que, aliás, também encontra guarida no artigo
34
Ibid., p.57.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros,
1998, pp.285-287.
36
BARROSO, Luis Roberto, A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no
controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
58.
37
TOLEDO, Gastão de. O Direito Constitucional Econômico e sua Eficácia. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 175
38
BARROSO, op. cit., p. 147, nota 31.
35
33
5º, inciso XXXII e no artigo 48 do ADCT. No segmento de mercado de livre
competição, a liberdade de escolha do consumidor orienta a atuação dos agentes de
produção, pautada na qualidade dos bens e serviços e no respectivo preço justo39.
Por derradeiro, a defesa do meio ambiente, prevista no inciso VI, consiste na
sua preservação, no exercício das atividades econômicas em geral, seja pelo agente
público, seja pelo agente privado40. Anote-se que a preservação do meio ambiente
recebeu minucioso tratamento no Capítulo VI, do Título VIII Da Ordem Social,
notadamente em seu artigo 22541.
O agente econômico, público ou privado, não pode destruir o meio ambiente
a pretexto de exercer seu direito constitucionalmente tutelado da livre iniciativa. Um
ambiente saudável é o limite ao livre exercício da atividade econômica e, para
defendê-lo e garantir a sadia qualidade de vida da população, o Estado tem o poderdever de intervir na atuação empresarial, mediante a edição de leis e regulamentos
que visem a promover o desenvolvimento sustentado.
Por sua vez, os princípios-fim descrevem realidades materiais que o
constituinte deseja que sejam alcançadas42. São os objetivos últimos da ordem
econômica.
O primeiro princípio-fim é a existência digna de todos, o qual se infere da
própria cabeça do artigo 170 e está relacionado ao princípio fundamental da pessoa
humana.
39
Na legislação ordinária, registre-se que a liberdade de escolha do consumidor tem guarida no artigo
6º, inciso II, da lei nº 8078/90. Nos mercados em que não há livre competição, isto é, aqueles
regulados pelo Estado, caberá a este impor diretrizes de planos de metas com vistas ao atendimento
do consumidor, especialmente o fornecimento do produto ou do serviço de qualidade e preço justo.
Nesse sentido, confira-se o artigo 22 da lei 8078/90.
40
BARROSO, op. cit., p. 59, nota 36.
41
Artigo 225. Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial a sadia qualidade de vida, impondo ao poder público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
42
BARROSO, op. cit., p. 56, nota 36.
34
A redução das desigualdades regionais e sociais, prevista no inciso VII do
artigo em questão, está em harmonia com o objetivo fundamental delineado no
inciso III, do artigo 3º da Carta. No plano da ordem econômica, pode-se dizer, com
arrimo na lição de Celso Ribeiro Bastos43, que o desenvolvimento econômico deve
observar uma justa retribuição dos benefícios do processo, isto é, compartilhado por
todos, mormente em virtude dos acentuados desníveis de renda.
A busca do pleno emprego constitui o terceiro princípio-fim, previsto no
inciso VIII, do artigo 170 e guarda íntima relação com a valorização do trabalho
humano. O pleno emprego é uma situação utópica e, portanto, inalcançável44. Por
isso, entende-se que esse dispositivo visa à promoção do acesso ao trabalho.
Por último, o inciso IX do artigo 170, versa o tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras cuja sede e
administração sejam no país. De início, cabe anotar que, no cenário brasileiro, as
pequenas e as microempresas são responsáveis pelo maior número de empregos.
Além disso, ensina Celso Ribeiro Bastos45 que são o instrumento útil para a
democratização do capital e criação de estímulos para que um maior número de
pessoas se lance à atividade empresarial. Ademais, o aludido dispositivo encontra
respaldo
no
princípio
da
igualdade
(substancial),
dispensando
tratamento
diferenciado na exata medida de suas desigualdades. Esse princípio setorial tem-se
efetivado de forma precípua, através da liberação de deveres burocráticos e da
concessão de incentivos fiscais, eis que as pequenas e microempresas detêm o
43
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 7º
volume. São Paulo: Saraiva, 1990, pp.32/33.
44
BASTOS, MARTINS. Op.Cit., p. 34
45
Ibid, p. 36
35
mesmo poder de mercado das macro-empresas, o que lhes confere facilitações na
obtenção de recursos e capacidade para suportar encargos tributários46.
Com efeito, pode-se constatar que a ordem econômica deve ser
compreendida através do filtro das normas fundamentais da Constituição de 1988,
vetores axiológicos-teleológicos que conferem ordem interior e unidade ao sistema
jurídico.
Por tais razões é que se impõe também a leitura da legislação
infraconstitucional à luz da Carta de 1988, de modo que as suas normas
fundamentais interpenetram-se por todo o ordenamento, como o direito comercial
que será examinado a seguir.
2.5 DIREITO COMERCIAL
Direito Comercial é correntemente definido como conjunto de normas,
conceitos e princípios jurídicos que regem, no domínio privado, os fatos e as
relações jurídicas comerciais47 ou, ainda, como o Direito Privado especial do
comércio ou dos comerciantes48.
Segundo António Menezes Cordeiro49, o “Direito Comercial não pode ser
compreendido se não ponderarmos as suas origens, a sua evolução e o papel que,
46
Limites de emolumentos em favor de microempresas. Afirmada em decisão recente (ADIN-MC
1800) a validade em princípio da isenção de emolumentos relativos a determinados registros por lei
federal fundada no artigo 236, §2º, da Constituição, com mais razão parece legítima a norma legal da
União que, em relação a determinados protestos, não isenta, mas, submete a um limite os
respectivos emolumentos, mormente quando o conseqüente benefício às microempresas tem o
respaldo no artigo 170, inciso IX, da Lei Fundamental.” (STF, RTJ174/782, ADIN-MC 1790-DF, Rel.
Min. Sepúlveda Pertence).
47
CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial. 8ª ed. Lisboa: Ediforum, 2003, p.13.
48
MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 28ªed. Atual. Jorge Lobo. Rio de Janeiro, Forense,
2002, p.3.
49
CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001, p.
22.
36
mau grado inúmeros constrangimentos, ainda hoje se lhe atribui”. O Direito
Comercial não provém de qualquer definição lógica pré-elaborada, visto ser fruto de
condicionamentos histórico-culturais complexos e por se tratar de uma disciplina
jurídico-privada.
Embora se reconheça a importância de se conhecer as origens e a evolução
do Direito Comercial, por outro lado, a sua lógica, assim como toda a legislação
infraconstitucional, deve ser buscada nos vetores axiológicos contidos nas normas
fundamentais constitucionais.
A sociedade contemporânea é caracterizada pela interpenetração do direito
público e do direito privado. As diferenças entre um e o outro deixam de ser
qualitativas para ser, quando possível a sua identificação, quantitativa. A exemplo
disso, a submissão da atividade da administração pública ao direito privado assumiu
múltiplas expressões, seja no campo da atividade lícita, seja naquele da atividade
ilícita. Afigura-se pertinente registrar a lição de Michelli Giorgianni:
A nova feição é perfeitamente adequada à função assumida pelo Direito
Privado na sociedade atual, função que se revela prepotentemente nas
relações com o Direito Público, ainda que com as incertezas que
acompanham a “crise” da summa divisio do direito. Assiste-se, assim, ao
lento declínio da concepção, própria da publicística do final do século XIX,
da supremacia do Direito Público sobre o Direito Privado, a qual ceda a
formulações menos extremadas ou mais agnósticas, enquanto se fazem
cada vez mais insistentes e menos tímidas as tentativas de reavaliação da
autonomia privada. Nisto, aliás, se deveria perceber uma ulterior
contradição com o afirmado clima de publicização do direito Privado, se não
se tratasse de dois fenômenos que se movem sobre dois planos diversos,
como visto acima. Em particular, aquela reavaliação da autonomia privada
constitui simplesmente uma manifestação de alinhamento à reação
generalizada contra o positivismo normativista. Cabe à doutrina privatística
a gravosa, mas ao mesmo tempo estimulante tarefa de adequar os próprios
instrumentos teóricos à nova feição do Direito Privado, de modo a expor aos
estudiosos e aos práticos – as linhas de um sistema verdadeiro, isto é,
50
adequado ao momento atual .
50
GIOGIANNI, Michelli. Direito Privado e as suas atuais fronteiras. In Revista dos Tribunais, São
Paulo, vol. 747 [separata], jan.1998, p.55.
37
A Constituição de 1988 abriu caminho para a leitura do Direito Civil e
Comercial,
conforme
as
normas
fundamentais
constitucionais.
Essa
nova
perspectiva da legislação civil é tributada, inicialmente, a Gustavo Tepedino51 e
Maria Celina Bodin de Moraes52 que, fortemente inspirados nas lições de Pietro
Perlingieri53, proclamam a constitucionalização do Direito Civil no Brasil, de maneira
que as normas fundamentais constitucionais, especialmente os valores existenciais
da solidariedade social, a igualdade substancial e a dignidade da pessoa humana,
espraiam-se por toda a legislação infraconstitucional civil. Registre-se que,
posteriormente, entre outros, Heloisa Helena Barboza54 e Luiz Edson Fachin55
aderiram ao discurso civil-constitucional e contribuíram com preciosos trabalhos,
sobretudo no biodireito e nas relações familiares.
O constitucionalismo solidário, expressão de Carlos Roberto de Siqueira
Castro, funda-se na justiça distributiva e no binômio, dignidade humana e
solidariedade social, permitindo-se uma maior aplicação principiológica do direito e
uma razoável e programática utilização da justiça plural.
O Código Civil de 2002, promulgado em 11 de janeiro de 2002, com vacatio
legis de 01 (um) ano, cujo projeto é da década de 70, anterior à Constituição de
51
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In___.
Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 1-22.
52
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Constituição e Direito Civil. Tendências. Revista dos
Tribunais, São Paulo, ano 89, v. 779, set. 2000, pp.47/63: Se o Estado de Direito, iluminista e
racional, se mostrou insuficiente para proteger a coletividade frente ao totalitarismo mais abjeto,
tornou-se necessário abandonar a legalidade em sentido estrito, permissiva de arbitrariedades e
ditaduras, em direção a terrenos um pouco mais seguros, nos quais os princípios da democracia, da
liberdade e da solidariedade não possam jamais ser ignorados. Tais princípios, que consubstanciam
valores, tomam o lugar das norma jurídicas quando estas se mostram arbitrárias ou injustas,
modificando-as para que reflitam o valor sobre o qual se funda, na atualidade, grande parte dos
ordenamentos jurídicos contemporâneos, isto é, o da dignidade da pessoa humana.
53
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar; 1999.
54
BARBOZA, Heloisa Helena. Bioética x Biodireito: insuficiência dos conceitos jurídicos. In___;
BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar,
2001.
55
FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; Teoria Crítica do
Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp.175-330.
38
1988, é marco na legislação infraconstitucional. Sem embargo das críticas que
legitimamente se possa dirigir, entre as quais, a ausência de prévio debate dos
grupos sociais interessados e disposições normativas em desconformidade com a
orientação pacífica da jurisprudência dos Tribunais Superiores56, impõe-se a sua
compreensão em consonância com o discurso civil-constitucional, mormente em
virtude das várias normas abertas introduzidas pelo legislador (não-negociador).
Destarte, cabe ao intérprete promover a ligação da novel codificação civil com os
valores da Constituição. Entre as normas abertas que contêm uma vagueza
semântica do Código Civil de 2002, citem-se as cláusulas gerais dos artigos 113,
187, 421 e 422 que albergam, especialmente, os valores da função social e
econômica e da boa-fé objetiva.
A compreensão dessas normas abertas que adotaram a técnica legislativa
das cláusulas gerais faz-se pela sua leitura, a partir dos princípios constitucionais
informadores da atividade econômica privada, que permite revelar o verdadeiro
sentido transformador do preceito na teoria da interpretação dos negócios jurídicos.
Adverte Gustavo Tepedino57 que o dever de interpretar os negócios conforme a boafé objetiva encontra-se irremediavelmente informado pelos quatro princípios
fundamentais para a atividade econômica privada, quais sejam: (I) a dignidade da
pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF); (II) o valor social da livre iniciativa (artigo
1º, inciso IV, CF); (III) a solidariedade social (artigo 3º, inciso I, CF); e (IV) a
igualdade substancial (artigo 3º, inciso III, CF). Como visto anteriormente, esses
valores fundamentais estão contidos na norma do artigo 170 da CF que, por seu
turno, devem vincular-se à função social do contrato, como limitadores da liberdade
56
Para muitas outras críticas, confira-se FACHIN. Op. Cit., pp. 175-330 , nota 55.
TEPEDINO, Gustavo. Crises de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código
Civil de 2002. In____. (Coord.). A parte geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva CivilConstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. XXXI.
57
39
contratual. Daí a função social do contrato consistir no dever imposto aos
contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos
pelo regulamento contratual – a interesses extracontratuais socialmente relevantes
que se inferem do contrato ou que acabam sendo atingidos por ele, tais como a livre
concorrência, os consumidores, o meio ambiente, as relações de trabalho58. A
propósito do significado da função social do contrato, Teresa Negreiros59 esclarece
que, antes de qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, entende-se
que o contrato não deve ser concebido como uma relação que só interessa às
partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são
afetadas por ele próprio. Prossegue a citada doutrinadora:
[...] o princípio da função social encontra fundamento constitucional no
princípio da solidariedade, a exigir que os contratantes e os terceiros
colaborem entre si, respeitando as situações jurídicas anteriormente
constituídas, ainda que as mesmas não sejam providas de eficácia real,
mas desde que a sua prévia existência seja conhecida pelas pessoas
implicadas. Numa sociedade que o constituinte quer mais solidária, não
deve ser admitido um direito relativo, possa tal direito ser desrespeitado por
terceiros, que argumentam não ter consentido para a sua criação. Esta ótica
individualista e voluntarista deve ser superada diante do sentido de
60
solidariedade presente no sistema constitucional .
Por outro lado, cumpre lembrar que o contrato não deixa de exercer também
a sua função econômica e, agora em certa medida, não mais absoluta, continua
sendo uma expressão do reflexo patrimonial da liberdade individual da circulação de
bens. Nesse sentido, Arnoldo Wald61 pondera que, apesar do contrato ser um
instrumento de liberdade individual e de eficiência econômica, a liberdade de
contratar é qualificada na medida em que deve ser inspirada na lealdade e na
confiança entre os contratantes e a eficiência consiste na adaptação às
58
Ibid., p. XXXII.
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p.206.
60
Ibid., p.207.
61
WALD, Arnoldo. A dupla função econômica e social do contrato. In Revista Trimestral de Direito
Civil. Rio de Janeiro: Padma, Ano 5, vol. 17, jan/mar 2004, p.4.
59
40
necessidades do mercado. Portanto, a função social do contrato alberga também a
manutenção do equilíbrio do contrato e o bom funcionamento do mercado.
Ao lado da função social e econômica do contrato, a boa-fé objetiva atua
como princípio interpretativo (artigo 113 do CC), princípio de proibição do exercício
inadmissível de posição jurídica (artigo 118 do CC) e princípio fundamental do
regime contratual (artigo 422 do CC), com vistas a interpretar o negócio jurídico,
preservando o conteúdo econômico e social perseguido pelas partes. Inserem-se
aqui os deveres recíprocos da lealdade, da confiança62, da informação, da
transparência, tanto na fase das tratativas preliminares, quanto após a sua
conclusão, isto é, na fase pós-negocial.
O Direito Civil Constitucional consagra uma nova ordem de valores inerentes
à pessoa humana e aos direitos sociais, os quais se encontram no vértice do
ordenamento jurídico.
Portanto, o Código Civil de 2002 deve ser compreendido em consonância
com os valores eleitos pelo constituinte de 1988, com vistas à promoção nas
relações privadas das normas fundamentais da dignidade humana.
Passa-se a examinar a evolução histórica do Direito Comercial no plano da
legislação brasileira, com enfoque no instituto da empresa.
62
Sobre a tutela da confiança e a proibição de comportamento contraditório no direito brasileiro,
confira-se SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Tutela da
Confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
41
2.6
BREVES NOTAS
COMERCIAL
SOBRE
A
EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
DO
DIREITO
Na Antiguidade, destacam-se as normas de comércio marítimo, onde
predominavam os usos e os tratados, os quais prestigiavam o cumprimento das
convenções pactuadas, a boa-fé e a confiança entre os comerciantes.
Das velhas instituições comerciais oriundas das relações entre Creta, Egito,
Síria, Palestina, Grécia, a ilha de Rhodes, relações intensificadas pelos fenícios,
uma delas chegou aos dias atuais, através da lex Rhodia de jactu, que a codificação
de Justiniano fixou e transmitiu ao direito moderno. É a prática do alijamento de
mercadorias quando, por excesso de carga ou outro motivo, a medida seja
necessária para salvar o restante da mercadoria ou do navio. O prejuízo causado ao
dono da mercadoria lançada ao mar, em proveito de todos, reparte-se entre todos,
como avaria grossa (art. 764, nº 2). Graças à sabedoria e à equidade de suas
normas, a lex Rhodia teve acolhimento geral no comércio marítimo de todos os
povos.
Os gregos foram grandes comerciantes e o principal legado deles ao
comércio e ao direito mercantil é uma forma de empréstimo, criado ou aperfeiçoado
por eles, para o fim de facilitar as expedições marítimas. É a instituição, acolhida no
Digesto, sob o nome de nauticum foenus, um misto de empréstimo e de seguro, é a
origem do seguro marítimo e, através deste, do seguro terrestre, disciplinado no
Código Comercial sob o nomen juris de contrato de dinheiro (art. 633 a 665).
No império romano não se encontra qualquer separação entre o direito
comum e um direito especial relativo às trocas econômicas, podendo-se afirmar a
inexistência, no direito romano, de um direito comercial distinto das outras partes
dos jus civile.
42
Há consenso na doutrina de que foi na Idade Média que o Direito Comercial
assume feição própria, com o objetivo de dar maior segurança à atividade mercantil.
Num período de forte movimento de união, os comerciantes criaram suas
corporações, que tinham como função ditar normas aplicáveis ao comércio e julgar
os possíveis conflitos decorrentes dessa aplicação, dando origem ao jus
mercatorum.
O Direito Comercial, em sua origem, assumiu um caráter consuetudinário
(baseado nos costumes dos mercadores) e corporativo (surgido no seio das
corporações de mercadores)63, sendo aplicável somente aos comerciantes
associados à corporação.
É nessa fase histórica que começa a se cristalizar o direito comercial,
deduzido das regras corporativas e, sobretudo, dos assentos jurisprudenciais das
decisões dos cônsules, juízes designados pela corporação para dirimirem as
disputas entre comerciantes. Tal foi o sucesso desses juízes, que julgavam pelos
usos e costumes sob a inspiração da equidade, e o poder político e social da
corporação de mercadores, que de Tribunais “fechados” com competência para
julgar e dirimir disputas entre comerciantes, foram atraindo para seu âmbito as
demandas existentes de comerciantes para não-comerciantes.
Tem-se, nessa fase, o período estritamente subjetivista do direito comercial
a serviço do comerciante, um direito corporativo, de classe, profissional, especial,
autônomo, em relação ao direito territorial e civil.
Porém, a determinação da competência judiciária dos cônsules, pelo
exercício da profissão comercial, não era suficiente, pois nem toda a vida e atividade
do comerciante eram absorvidas pela sua profissão, impondo-se a necessidade de
63
BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003.
43
delimitar o conceito de matéria de comércio. Começa, então, a delimitar e expandirse o conceito objetivista decalcado sobre ato de comércio.
As grandes feiras, nas quais se reuniam periodicamente mercadores de
todas as partes, tiveram papel predominante na elaboração e difusão do jus
mercatorum. As feiras eram dirigidas por uma autoridade central, composta de
representantes dos interessados. Nelas se aperfeiçoaram a letra de câmbio, a
compensação, o protesto por falta de aceite ou pagamento. Diversos processos de
execução severa, base do processo de falência e da repressão às fraudes e à
barataria, nasceram nas feiras64.
Na época moderna, as corporações perderam poder em razão da
centralização monárquica, cuja conseqüência foi a redução do prestígio das
corporações como criadoras de normas jurídicas. A classe dos mercadores não
detinha mais o poder de criação do Direito Comercial, haja vista que o Estado
passou a disciplinar e a exercer o controle sobre as corporações.
As fontes do Direito Comercial que prevaleceram no período medieval,
especialmente os usos e os costumes, cedem lugar às leis estatais.
A Revolução Francesa pôs um fim aos privilégios das corporações, pela lei
Le Chapelier, de 14 de junho de 1791. Pretendeu-se, com isso, assegurar a plena
liberdade profissional, extinguindo todos os privilégios que as corporações
acumularam através dos séculos a favor do comerciante. O Código de Comércio
francês, de 1807, marcou uma nova fase do Direito Comercial, inspirada pelos
princípios da liberdade e da igualdade perante a lei, os quais eram inconciliáveis
64
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969,
p.28.
44
com os direitos dos comerciantes, passando, assim, a ser aplicado na jurisdição
objetiva, pois perdeu sua característica de direito de classe.
Dessa forma, a noção de comerciante cedeu à noção de ato de comércio, de
maneira que o comerciante foi identificado como aquele que simplesmente praticava
profissionalmente atos de comércio (art. 1º do Código Francês).
2.6.1 Teoria dos Atos de Comércio – Sistema Francês
Assim como o Código Civil, o Código Comercial francês tinha a pretensão de
regular todas as situações comerciais, eis que visava indicar exaustivamente os atos
de comércio em um sistema fechado (art. 632 e 633). As regras claras e simples
facilitariam a compreensão por todos do Direito e, por conseguinte, o
desenvolvimento do comércio e da indústria. Note-se que os próprios comerciantes
vinham definidos a partir dos atos de comércio.
Na esteira do Código Civil de 1804, que influenciou os códigos civis
oitocentistas, tributa-se também ao Código francês a mesma influência sobre as
codificações comerciais da época, como os Códigos espanhol e italiano, com
exceção do Código Comercial alemão de 1897, que adotou uma concepção mista,
objetiva e subjetiva, de Direito Comercial.
A teoria dos atos de comércio resume-se a uma relação de atividades
econômicas, sem que entre elas se possa encontrar qualquer elemento interno de
ligação, o que acarreta indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas
delas. Embora haja quem considere a imprecisão inerente à teoria dos atos de
comércio, vários comercialistas dedicaram-se à tentativa de localizar o seu elemento
de identidade no próprio elenco de atos mercantis. Vale mencionar uma delas, de
45
menor inconsistência, a de Alfredo Rocco, para quem os atos de comércio são os
que realizam ou facilitam uma interposição na troca.
Partindo da análise do artigo 3º do Código Comercial italiano, Rocco
inicialmente os distingue como atos intrinsecamente comerciais, para, em seguida,
classificá-los em quatro categorias: compra para revenda, operações bancárias,
empresas e seguros. E nessas quatro espécies de atos identifica o elemento comum
da troca indireta, isto é, a interposição na efetivação da troca. Na compra para
revenda, dinheiro é cambiado com bens ou títulos; nas operações bancárias,
permuta-se dinheiro presente por dinheiro futuro; nas empresas, resultados do
trabalho são trocados por dinheiro e outros benefícios econômicos; e nos seguros, o
risco individual se troca pela cota-parte do risco coletivo. Dessa forma o elo entre as
diversas atividades abrangidas pelo elenco dos atos de comércio não se encontra
senão externamente. Chega, assim, Alfredo Rocco à definição: “É ato de comércio
todo ato que realiza ou facilita uma interposição na troca”65.
Passou desse modo, o direito comercial a ser aplicável aos atos de
comércio, ficando a sua aplicação mais objetiva. Mas a verdade é que, se a
caracterização do comerciante ficou a depender da prática habitual de certos atos de
comércio, nem todas as pessoas que praticam atos de comércio são consideradas
comerciantes. Isso em virtude de serem reputadas comerciais, por disposição legal,
certas espécies de atos que amparam seus agentes com a lei comercial, ainda que
essas pessoas não sejam consideradas comerciantes, exemplo desses atos é a
emissão de letra de câmbio. Dada a inexistência de um critério exato ou científico
para se dizer que este ou aquele ato é comercial, difícil é admitir-se cientificamente o
65
Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito comercial. Vol.1. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
46
direito comercial como o direito que ampara os atos de comércio, pois não se tem
uma limitação dos atos que podem ser caracterizados como comerciais.
Vale ressaltar a classificação dos atos de comércio proposta por José Xavier
Carvalho de Mendonça66, que baseado nas disposições do Título Único do Código
Comercial e nas do Regulamento n.º 737, classificou-os em três categorias: 1) atos
de comércio por natureza ou profissionais, que correspondem à enumeração do art.
19 do Regulamento 737, que considera mercancia a compra e venda ou troca para
vender a grosso ou a retalho, as operações de câmbio, banco e corretagem,
empresas de fábrica, de comissões, de depósito etc.; 2) atos de comércio por
dependência ou conexão, que são os atos que visam promover, facilitar ou realizar o
exercício do comércio, praticados em razão da profissão do comerciante, mantendo
estreita relação com o exercício do comércio; 3) atos de comércio por força ou
autoridade da lei, os quais decorrem simplesmente da arbitrária declaração de
comercialidade resultante da lei, independente das pessoas que os pratica. O
próprio José Xavier Carvalho de Mendonça previamente reconhecia como criticável
a classificação proposta.
2.6.2 Teoria da Empresa - Sistema Italiano
Ensina Aldo Fiale67, que o Direito Comercial na Itália afirmou-se como um
sistema de normas autônomo em relação ao Direito Civil, caracterizado pela sua
especialidade e pela incidência de princípios gerais próprios nas relações
comerciais.
66
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol.v, livro III,
parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963.
67
FIALE, Aldo. Diritto Commerciale. Edizione Napoli: Esselibri-Simone, 1994, p.7.
47
O desenvolvimento das técnicas comerciais e industriais impuseram uma
especialização e uma organização na atividade comercial. Assim, a noção de ato de
comércio perdeu relevo prático e cedeu passo à noção de atividade como série
coordenada de atos e, depois, à noção de empresa.
O Código Civil italiano de 1942 unificou parcialmente o Direito Comercial e o
Direito Civil, inaugurando uma nova fase no Direito privado nos países de tradição
romanística. Representando, segundo Aldo Fiale68, um retorno à tradicional base
subjetiva, estendendo os próprios princípios e normas a todo o direito unificado das
obrigações e dos contratos, e traz uma teoria substitutiva à dos atos do comércio.
Trata-se da teoria da empresa, esta mais adequada à realidade do capitalismo
operante à época. Em verdade, a teoria da empresa cuida de uma disciplina privada
da atividade econômica. Alberto Asquini69 identifica na expressão empresa no novel
Código Civil italiano quatro perfis na empresa: (I) o subjetivo (a empresa vista como
o empresário); (II) o funcional (identifica a empresa à própria atividade); (III) o
objetivo (ou patrimônio, azienda ou estabelecimento); e (IV) o corporativo (vê na
empresa uma instituição, eis que reúne empresário e empregados com fins
comuns). Doutrina, ainda, que, a partir da idéia de profissionalidade, o fim de lucro
não é elemento essencial, mas, sim, elemento natural.
Sem embargo, Giuseppe Ferri70 afirma que a empresa é necessariamente
reconduzida à pessoa do empresário. O empresário, pessoa natural ou jurídica, é
caracterizado por dois elementos essenciais em relação aos demais sujeitos
interessados na empresa (ex. empregados): (I) a iniciativa e (II) o risco. A iniciativa
consiste no poder de determinar a fase organizativa das bases estruturais da
68
Ibid., p. 7.
ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. Fábio Koder Compado. In Revista de Direito
Mercantil, São Paulo, n. 104/109, 1983, pp. 109 e ss.
70
FERRI, Giuseppe. Manuale di Diritto Commerciale. 5ª ed., Torino: UTET, 1983, p.7.
69
48
empresa, o exercício e o endereço da sua atividade. O risco diz respeito ao suporte
de todos os ônus inerentes à organização da empresa e assunção dos riscos
favoráveis e desfavoráveis relativos à atividade exercida.
Por seu turno, Francesco Galgano71 assevera que o conceito de empresa é,
antes de um conceito jurídico, um conceito econômico, porquanto foi elaborado na
época moderna (capitalismo) para identificar um dos sujeitos da cadeia da produção
e da distribuição de riqueza. No sistema jurídico italiano, foi introduzido um conceito
de empresário no artigo 2082 do Código Civil de 1942, que o identifica como aquele
que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada com a finalidade
de produção e de circulação de bens ou de serviços. A figura do empresário, que
pode ser um ente privado ou público, delineada na codificação civil italiana, o
apresenta como um produtor, o qual, profissionalmente, produz bens ou serviços ou
se interpõe na circulação de bens, ou seja, desenvolve uma atividade criativa de
riqueza que está centrada na utilidade dos bens preexistentes. Na linguagem
jurídica, a expressão “profissionalmente” designa a estabilidade ou freqüência do
exercício da atividade econômica e que tem por escopo o lucro.
2.7 O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO COMERCIAL NO BRASIL E A TEORIA
DA EMPRESA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Durante o período colonial, aplicava-se às relações jurídicas a legislação
portuguesa vigente à época (Ordenações Filipinas). Com a vinda da família real
portuguesa, foi promulgada a Lei de Abertura de Portos de 1808. Com a
independência, em 07 de setembro de 1822, conforme determina a Assembléia
71
GALGANO, Francesco. Diritto Privato. 11ª ed. Milani: CEDAM, 2001, pp. 453-460.
49
Constituinte e Legislativa de 1823, a Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, foi
invocada como subsídio para a resolução de conflitos comerciais.
O Código Comercial brasileiro inspirou-se diretamente no Code de
Commerce e, assim, trouxe para o direito nacional o sistema francês de disciplina
privada da atividade econômica.
O projeto de Código Comercial foi sancionado em 02 de maio de 1850,
promulgado pela Lei nº 556, de 25 de junho de 1850 e publicado em 1º de julho, com
vacância de seis meses. Em seguida, foram editados os Regulamentos 737 e 738
(tribunais do comércio e o processo de quebras), ambos também, com vigência a
partir de 1º de janeiro de 1851, os quais, além das normas processuais, continham
dispositivos que completavam o Código Comercial.
Segundo Rubens Requião72, o sistema do Código de 1850 é subjetivo, pois
assenta na figura do comerciante, não evitando, porém, o tempero objetivo,
enumeração legal dos atos do comércio, para esclarecer o que seja mercancia,
elemento radical na conceituação do comerciante. Destarte o legislador brasileiro de
1850 abandonou a técnica enumerativa dos atos do comércio e adotou a teoria
mista dos atos do comércio, isto é, o Direito Comercial é ao mesmo tempo o direito
do comerciante (concepção subjetiva) e dos atos do comércio (concepção
objetiva)73.
Não obstante, o Direito Comercial disciplina todas as relações jurídicas
decorrentes da atividade profissional do comerciante, dos atos e contratos a ela
relacionados. Além disso, regula o estatuto dos comerciantes (direitos e deveres
profissionais)
72
e
das
sociedades
mercantis
(constituição,
organização,
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 1, 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp 1517.
73
Ibid., p.42.
50
funcionamento, relações com terceiros e entre sócios), das pessoas e institutos
auxiliares do comércio etc.
A partir da década de 50, iniciaram-se no Brasil, os debates sobre a nova
feição do Direito Comercial, que seria o Direito da empresa, mormente com vistas à
sua conceituação jurídica e a fixação dos elementos caracterizadores.
A inclusão da expressão “empresa”, na Constituição de 1988 e na legislação
ordinária que a sucedeu, espelha a fase da conversão, podendo o Direito Comercial
ser considerado como o direito específico da empresa, porquanto o ordenamento
contém regras que ordenam as estruturas, estabelecem a condição daqueles que
possuem, criam e dirigem a empresa74.
O Código Civil de 2002 acolheu definitivamente a Teoria da Empresa no seu
Livro II da Parte Especial (Do Direito de Empresa). Portanto, razoável tributar ao
advento do novel Código Civil Brasileiro o marco da consagração da transformação
do Direito Comercial em função das novas realidades. Consoante lição de Waldírio
Bulgarelli75, a empresa está no centro do Direito Comercial, e é seu objeto
fundamental.
A empresa, na codificação, expressa-se através de 03 (três) conceitos
básicos: o empresário, o estabelecimento e a atividade, que em última análise,
acabou por se aproximar do sistema do Código Civil italiano de 194276.
74
Sobre a evolução da empresa perante o Direito e as fases (i) da ignorância, (ii) da descobertta, (iii)
da conversão e (iv) da mutação, confira-se BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais. 10ª ed.
São Paulo: Atlas, 2001, p. 296-297.
75
Ibid., pp. 296 -297.
76
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, pp.23-24.
51
2.8 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL
A carta de 1988 está no ápice do escalonamento do sistema jurídico
brasileiro e, por se tratar de fonte primária do ordenamento, subordina a
interpretação da legislação infraconstitucional, e aí está o Direito da empresa, em
consonância com a normatividade Constitucional.
Destarte, os institutos do Direito da Empresa, assim como no Direito Civil,
devem estar vinculados às normas fundamentais e setoriais constitucionais. Assim,
por exemplo, a iniciativa privada de situações jurídicas exclusivamente patrimoniais
deve ser funcionalizada a dos valores existenciais (não patrimoniais), sobretudo a
dignidade da pessoa humana e a solidariedade social, realizando, assim, a
promoção de uma justiça distributiva.
Tome-se, a título de ilustração, a livre iniciativa que está prevista no artigo
1º, inciso IV e na cabeça do artigo 170, da CF. Cabe salientar que, em ambos os
dispositivos constitucionais, a liberdade de iniciativa, da qual se infere a liberdade
contratual, é precedida do valor do trabalho humano, o qual está ligado
umbilicalmente aos Direitos Sociais, no Capítulo II da Constituição Federal.
Por outro lado, o legislador constituinte sanciona, no § 4º do artigo 173, o
poder econômico que se alcança, através da liberdade de iniciativa do empresário,
se exercido de modo abusivo ou anormal quando visar à dominação dos mercados,
à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Em última análise, o abuso do poder econômico implicará a subversão dos
princípios meio e fim previstos no artigo 170, sobre os quais se discorreu alhures.
52
Ensina Calixto Salomão Filho77 que a norma do § 4º do artigo 173 da CF
visa tutelar a defesa da concorrência que é uma garantia institucional expressa no
texto da Constituição. Essa norma tem um objetivo dúplice, pois, em primeiro lugar,
acaba por equiparar os deveres do detentor do poder econômico aos deveres do
agente estatal, ressaltando o seu caráter de direito-função; em segundo lugar, impõe
ao Estado o dever de intervenção com vistas à proteção dessa garantia institucional.
Portanto, o conteúdo da norma em comento revela a função social do poder
econômico. Nesse passo, impõe-se reconhecer que as empresas com posição
dominante, no mercado, devem exercer os seus poderes econômicos em
conformidade com os princípios meios e fins da ordem econômica.
Razoável dizer, então, que aí reside a função social e econômica da
empresa, eis que todos os agentes da ordem econômica deverão observar as
normas setoriais constitucionais, inseridos nos incisos I a IV do artigo 170, os quais
se voltam à dinâmica das relações produtivas.
Assim sendo, a propriedade privada deve ser exercida em consonância com
a sua função social (incisos II e III do artigo 170 da CF). Ora, é essencial o respeito à
propriedade privada dos meios de produção em um regime de livre empresa. A
propósito, Pedro Paulo Cristofaro78 aduz que:
[...] esse respeito implica necessariamente em que não se pode impedir a
utilização, a fruição e a disposição pelas empresas (empregue-se, aqui, o
termo em seu sentido subjetivo, como o faz em diversos dispositivos a
constituição) dos bens de propriedade delas para fins compatíveis com os
objetivos empresariais. O direito de propriedade das empresas sofre
limitações a que se sujeita a propriedade do cidadão comum. Contudo,
assim como este não pode ser impedido de dar aos seus bens destino
77
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial – As condutas. São Paulo: Malheiros, 2003,
pp. 108-117.
78
CRISTOFARO, Pedro Paulo Salles. O Princípio da Livre Iniciativa como um dos Fundamentos da
República. Conseqüências. In MOREIRA NETO, Diogo De Figueiredo (Coord.). Revista de Direito
da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2000, p. 27.
53
adequado às finalidades deles, também as empresas não poderão ser
obstadas de utilizar de seu patrimônio para atender aos fins empresariais.
Ressalta-se aqui que a empresa tem necessariamente fim lucrativo somente
sendo legítimo a seus administradores praticar excepcionalmente atos de
liberalidade de valor moderado em benefício dos empregados ou da
comunidade de que participe a empresa (Lei das S/A, art. 154, § 4º). Os
bens de que as empresas são proprietárias destinam-se, assim, à utilização
dentro do objeto visado pelo empresário – pessoa física ou jurídica – com o
propósito de lucro. Impedir as empresas de dar a seus bens utilização
compatível com a atividade empresarial e com a busca do lucro é violar o
direito de propriedade e o direito de exercer livremente a atividade
econômica. Compeli-las, por exemplo, a dar destinação gratuita a seus bens
ofenderá tanto à garantia constitucional ao direito de propriedade como o
princípio igualmente constitucional da livre empresa.
Por outro lado, não se pode esquecer que o respeito à livre iniciativa e à
propriedade privada nas relações entre agentes econômicos (empresário e o
consumidor) visam assegurar a existência digna conforme os ditames da justiça
social que é revelada de forma precípua nas normas fundamentais da dignidade
humana e da solidariedade.
Destarte, em um sistema capitalista de livre concorrência, indubitavelmente
o lucro do empresário é legítimo, mas este deve ser entendido como um prêmio
decorrente do cumprimento da sua função social, ou seja, do exercício da atividade
econômica de circulação de bens ou serviços com a observância das normas
setoriais constitucionais albergadas nos incisos I a VI do seu artigo 170.
A concepção do lucro como prêmio em virtude das normas constitucionais
setoriais é reforçada pela dicção da norma do § 4º, do seu artigo 173, que reprime o
abuso de poder econômico que vise ao aumento arbitrário dos lucros, isto é, sem
justificativa legítima (artigo 170 da CF). Nesse sentido, confira-se o precedente do
Supremo Tribunal Federal:
Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre
iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do
consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com
os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a
política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que
visa ao aumento arbitrário dos lucros. Logo, determinada lei não é
54
inconstitucional pelo só fato de dispor sobre critérios de reajustes das
79
mensalidades das escolas particulares .
Desta feita, a livre iniciativa e a propriedade privada (artigo 170, incisos II e
IV, da CF) devem ser exercidas na sua perspectiva funcional (artigos 170, inciso III,
e 173, § 4º, da CF), o que significa que a propriedade de bens de produção que
levará ao poder de controle empresarial deve ser utilizada em benefício de
terceiros80.
Infere-se, outrossim, da função social da propriedade (artigos 5º, inciso
XXXIII; no artigo 170, inciso III) o princípio (ou subprincípio) da preservação da
empresa, que consiste na garantia da sua continuidade, a defesa dela contra tudo o
que possa destruir o seu valor de organização, no interesse geral da economia e no
interesse dos participantes da sociedade. Sobre o valor da preservação da empresa,
anota Antônio José Avelãs Nunes81 que as empresas representam um valor
econômico de organização que é necessário conservar para salvaguardar do
esforço dos empresários, do direito dos empregados ao trabalho, dos direitos dos
sócios a ver frutificar o seu capital. Assim, a empresa pressupõe, em princípio, uma
certa duração e uma organização em vista de um resultado, por forma a sobrepor a
vontade coletiva aos interesses individuais, haja vista que sua desintegração implica
a perda de valores econômicos.
Ora, mas a preservação da empresa não pode ser compreendida em termos
absolutos, como uma salvaguarda para o descumprimento dos seus deveres
perante os demais agentes econômicos. O adimplemento dos deveres de crédito,
79
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RTJ 149/666.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial – As condutas. São Paulo: Malheiros, 2003,
p.114.
81
NUNES, Antônio José Avelãs. O Direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais.
Coimbra: Almedina, 2002, pp. 37-56.
80
55
como salienta Eloy Câmara Ventura82, é de importância para o desenvolvimento do
país e – acrescenta-se a redução das desigualdades sociais e regionais – além
disso, na concessão do crédito, faz-se presente o elemento confiança, o qual
permite a realização da operação, que tem um fundamento positivo, porquanto se
estabelece pela garantia do material que o devedor possa oferecer para o resgate
do empréstimo ou pelo conceito moral que ele goze.
Tanto em um quanto em outro, o tomador do empréstimo gera no credor
uma legítima expectativa do resgate do crédito. No plano constitucional, em apoio a
tais argumentos, é razoável entender pela incidência das normas constitucionais do
artigo 3º, incisos II e III e 170, inciso VII. O conflito entre os valores da preservação
da empresa e da tutela das legítimas expectativas deverá ser balanceado à luz das
circunstâncias e realizá-los ao máximo, se possível83. A propósito do balanceamento
dos aludidos valores, oportuna a transcrição do precedente da 16ª da Câmara Cível
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no Agravo de Instrumento nº 15887/2004,
da lavra do Des. Gerson Arraes, julgamento de 15/02/2005, registrado em
23/03/2005:
82
VENTURA, Eloy Câmara. A evolução do crédito. Da Antigüidade aos dias atuais. Curitiba: Juruá,
2000, pp. 64-66.
83
Essa possibilidade dependerá das conseqüências previstas na norma predeterminada pelo
legislador. Excepcionalmente, outras conseqüências poderão ser determinadas pelo julgador, em
regra, quando se estiver diante das normas abertas que contenham a técnica legislativa das
cláusulas gerais, cuja concretização fará a partir dos princípios constitucionais incidentes no caso
concreto. Mais excepcional será a hipótese de superação da conseqüência jurídica das regras que
poderá ocorrer através do postulado da razoabilidade conforme a doutrina de ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios. Op. Cit., p. 105: Em segundo lugar, a razoabilidade exige a consideração do
aspecto individual do caso nas hipóteses em que ele é sobremodo desconsiderado pela
generalização legal. Para determinadas especificidades, a norma geral não pode ser aplicável, por se
tratar de caso normal. [...] Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua
hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso, se, e somente se, suas condições
satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência
de um princípio que institua uma razão contrária. [...] Essas considerações motivadoras levam à
conclusão de que a razoabilidade serve de instrumento metodológico para demonstrar que a
incidência da norma é condição necessária, mas não suficiente para a sua aplicação. Para ser
aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma geral. A razoabilidade atua na
interpretação das regras gerais como decorrência do princípio da justiça.
56
Agravo de Instrumento. Falência. Impetração irregular de concordata.
Sentença de quebra ex-officio. Recurso. Contraposição entre o princípio da
preservação da empresa, e o instituto público do crédito. Não comprovação
dos requisitos legais de ordem formal; econômica e ética. Aspectos
objetivos e subjetivos que não recomendam a reforma da sentença da
falência, haja vista a falta de documentos imprescindíveis para o
aparelhamento e deferimento do favor legal, bem como, pela não
demonstração do elemento anímico acerca da vontade e viabilidade em
saldar os créditos e honrar compromissos, apesar das várias oportunidades
conferidas em primeiro e segundo graus. Manutenção da sentença,
Improvimento recurso. [...] A presente questão encerra matéria tormentosa e
de grande cunho social, eis que trata não só de aspectos jurídicos, mas
também, e em grande monta, de circunstância sócio-econômica, a envolver,
além dos responsáveis pela sociedade, todos os que em torno dela
gravitam, como os credores, funcionários e suas famílias. Assim é que a
decisão impugnada, da mesma forma que o julgamento do colegiado,
devem ser orientados não somente pelos aspectos jurídicos da questão,
mas também e primordialmente, deve-se projetar a decisão em seus efeitos,
a fim de saber quais conseqüências causará envolvidos. Contrapõe-se,
assim, no presente feito, dois valores de ordem e valores inversamente
proporcionais, determinando a orientação da decisão em tal ao qual direção,
conforme se prestigie um ou outro. São eles: o princípio da preservação da
empresa, de um lado, e o instituto público do crédito, do outro. Aliados ao
primeiro estão os interesses dos componentes da sociedade recorrente,
juntamente com todos os que dependem ou de qualquer forma retiram na
sua fonte de trabalho e sobrevivência. Em reforço ao segundo vetor, está à
manutenção da ordem instituída pelo regime jurídico empresarial-cambiário
que retira do crédito toda sua viabilidade e dinâmica de acontecimentos, ao
lado do interesse dos credores que já não mantêm relação de fidúcia,
descreditando no regimento da sociedade e na realização de seus créditos.
[...] De forma que, por mais trágico que sejam seus feitos, deve ser
confirmada a sentença de quebra; não se afigurando razoável e de boa
técnica, constranger os credores e todo o regime jurídico empresáriocambial a suportar a situação de insolvabilidade do recorrente, postergando
as necessárias e imprescindíveis agruras do processo falimentar, o que, de
84
resto, só acarretará em piores conseqüências [...] .
Ademais, a conexão das categorias do Direito da empresa às normas
constitucionais se verifica, a partir das normas abertas (cláusulas gerais) dos artigos
42185 e 42286 do Código Civil, as quais, segundo Claudia Lima Marques87, são
normas gerais e genéricas, aplicáveis a todos os contratos.
84
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 16ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº
15887/2004, Des. Gerson Arraes, julgamento de 15/02/2005, registrado em 23/03/2005.
85
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato.
86
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé.
87
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das
relações contratuais. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1999, p. 552-559.
57
Nesse passo, Carlyle Pop88 assevera que o Código Civil trouxe novos ares e
exegeses ao Direito Comercial, agora denominado Direito da Empresa, e os
empresários, se já se achavam fulminados pelo Código de Defesa do Consumidor,
agora, nos seus próprios negócios, terão alcance dos princípios da função social do
contrato (artigo 421 do CC) e da boa-fé objetiva (artigos113 e 422 do CC)89.
No Direito da Empresa, a função social e econômica do contrato (artigo 421
do CC) pode ser concretizada através do subprincípio da preservação da empresa
que, como visto anteriormente, infere-se do princípio da função social da
propriedade (artigos 5º, inciso XXIII; 170, inciso V). Foi a partir da eficácia
interpretativa do subprincípio da preservação da empresa que a norma do artigo 335
do antigo Código Comercial, que impunha a dissolução da sociedade comercial pela
saída do sócio, passou a ser compreendida na sua perspectiva funcional com vistas
a tutelar os fins sociais e econômicos da sociedade90. Assim, o sócio não tem o
direito absoluto de pedir a dissolução total da sociedade, sem motivos relevantes.
88
POP, Carlyle. Considerações sobre a Boa-fé objetiva no Direito Civil Vigente – efetividade, relações
empresariais e pós-modernidade. In GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.). Direito
empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 21
89
Na Itália, a boa-fé objetiva tem sido aplicada no Direito societário, especialmente na sua função
interativa com vistas a suprir as lacunas dos atos constitutivos (contratos sociais e estatutos)
estabelecidos com base na autonomia privada para resolver os conflitos de interesses não previstos
nos mesmos. Veja-se D’ANGELO, Andrea. II nuovo Diritto Societário e la clausula generale di buona
fede. In Principi nella Riforma del Dirito Societário. A curi di Vittorio Afferni e Giovanna Visintini.
Milano: Giuffrè, 2005, p. 109.
90
Consulte-se MARIANI, Irineu. O Principio da Preservação da Empresa e a Dissolução da
Sociedade por Cotas de Responsabilidade Limitada. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 630,
ano 77, abr. 1988, p. 59: Do exposto, e fiel à linha reitora do princípio da preservação da empresa,
podemos sumular as seguintes conclusões: 10.1. A dissolução e liquidação totais, quando postuladas
unilateralmente por sócio ou grupo de sócios, representem ou não capital majoritário, só acontecem
motivadamente (inexistente a denúncia vazia), por razões que inviabilizem a consecução dos fins, ou
quando todos os componentes concordarem com o término. 10.2. Quando alguém simplesmente
deseja sair, ou nos casos de desistências ou desinteligências irremovíveis, havendo alguém que
queira continuar, resolve-se o problema respeitando-se a vontade deste, retirando-se os demais, com
a apuração dos respectivos haveres. 10.3. No caso de morte, é irrelevante o que constar no contrato
sobre a dissolução ou não, pois a lei garante aos sócios sobrevivos o direito de deliberarem a
respeito. 10.4. Quando, pela retirada ou morte, restar um único sócio, embora, a rigor, dissolvida,
não se decreta a liquidação total desde que tal sócio queira dar continuidade (aproveitando o fundo
de comércio, empregados, experiência, clientela, etc.), hipótese em que poderá escolher entre seguir
como firma individual ou, com prazo previsto para a sociedade por ações, restabelecer a pluralidade.”
58
Nas palavras de José Waldecy Lucena91, a preservação da empresa trata-se
de um valor fundamental no moderno Direito Societário:
O princípio da preservação da empresa exsurge, no atual direito comercial,
como um dos mais caros, erigindo-se mesmo em princípio fundamental do
moderno direito societário. É que a dissolução social, como predicada no
direito romano e na doutrina individualista, acarreta a desintegração da
empresa, considerada esta como um núcleo de interesses econômicos e
uma organização dos fatores de produção, cuja manutenção não é de
interesse apenas dos sócios, mas também de empregados, clientes,
fornecedores, fisco, em suma, da própria comunidade em que atua se não
do próprio País. O que esse interesse público na manutenção da empresa
operou foi o rompimento da concepção romanística de que a exclusão
obrigaria necessariamente a dissolução da sociedade, então fornecendo o
fundamento a que a sociedade, como organização jurídica explorando uma
empresa, isto é, um centro de produção econômica, pudesse ter
continuidade, caso os demais sócios assim deliberassem.
Ora, mas o subprincípio da preservação da empresa não é um fim em si
mesmo, tem por escopo a realização dos princípios-fins da ordem econômica (artigo
170, incisos VII, VIII, IX), os quais, por sua vez, devem ser funcionalizados em
consonância com as normas fundamentais constitucionais, notadamente os valores
da dignidade humana, da justiça social e da solidariedade. Por isso, no cumprimento
da sua função social, é imperiosa a compreensão das sociedades como organização
(feixe de contratos e relações jurídicas) com vistas a tutelar os interesses envolvidos.
A partir dessa perspectiva, anota Calixto Salomão Filho92, o interesse da
empresa não pode ser mais identificado, como no contratualismo, ao interesse dos
sócios nem tampouco, como na fase institucionalista mais extremada, à
autopreservação. Deve ser relacionado à criação de uma organização capaz de se
estruturar de forma mais eficiente – e aqui a eficiência é distributiva e não alocativa –
nas relações jurídicas que envolvem a sociedade93.
91
LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
709.
92
SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 42.
93
Sobre a distinção entre as teorias do contratualismo, institucionalismo e organizacionista, e a
sugestão de um critério de concretização da cooperação (colaboração) societário, confira-se
SALOMÃO FILHO. Op. Cit., pp. 43-45, nota 92: É nesse ponto que deve ser vista a diferença
59
Por sua vez, a boa-fé objetiva, que encontra assento na solidariedade
prevista no artigo 3º, inciso I, da CF94, revela os valores da justiça contratual, da
colaboração (ou cooperação), da lealdade, da confiança nas relações jurídicas,
existenciais e patrimoniais. É verdade que a boa-fé já estava prevista no artigo 131
do antigo Código Comercial, mas era compreendida à luz da boa-fé subjetiva que
consiste na consciência individual de não lesar direito de outrem95.
Foi somente a partir do influxo dos valores constitucionais que efetivamente
a norma do artigo 131 do Código Comercial adquiriu feição objetiva. Hoje, no âmbito
subjetivo, a boa-fé encontra a sua verdadeira expressão na ética social, o que
significa, em última análise, honestidade e correção, valores estes que deverão
fundamental entre essa teoria e as anteriores. Identificando-se o interesse social e o interesse à
melhor organização possível do feixe de relações envolvidas pela sociedade, esse jamais poderá ser
identificado com um interesse à maximização dos lucros ou com o interesse de preservação da
empresa. Distingue-se, portanto, do contratualismo e institucionalismo integracionista, que tem nítido
caráter organizativo. Por esse caráter organizativo de ambas as teorias – teoria institucionalista e do
contrato de organização – muitas vezes, como se verá, muitos efeitos aplicativos de ambas as teorias
serão semelhantes. [...] É possível, de forma muito genérica, sugerir um critério traduzido por
literatura clássica sobre cooperação. Partes tendem normalmente a se comportar de forma
cooperativa e não conflitual quando três condições estão presentes: pequenos números (i.e., poucos
participantes), informação ampla e recíproca , e relação continuada. Esses elementos, que, ao criar
dependência recíproca sugerem, até intuitivamente, a cooperação, podem ser muito bem
aproveitados pelo direito societário. Sugerem uma internalização seletiva de interesses externos. No
primeiro grupo de internalizáveis, segundo esse critério, destacam-se interesses dos trabalhadores e
dos consumidores. Em um segundo grupo, de difícil internalização estariam por exemplo,
concorrentes e titulares de tutela pelo direito ambiental.
94
Registra-se que a boa-fé objetiva é, por sua vez, reconduzida à dignidade da pessoa humana por
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação do princípio da boa-fé. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998, pp. 22-223: [...] o princípio da boa-fé, como resultante necessária de uma
ordenação das relações intersubjetivas, patrimoniais ou não, como um parâmetro para a sua
funcionalização à dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões.
95
Sobre a evolução da boa-fé e sua compreensão, confira-se BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A
revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002,
pp. 116-117: A expressão “boa-fé” remonta o Direito Romano. Segundo Menezes Cordeiro, a
princípio o Direito Romano fez referência apenas a fides, que significa fé. Posteriormente, relata-se
que houve uma evolução tanto no que diz respeito à expressão como no que diz respeito a seu
significado: “da fides, passou-se à fides bona e à bona-fides”. Para esse autor, a boa-fé, ao longo dos
séculos, passou por vários processos de diluição e de difusão, razão pela qual possui uma
ambivalência e capacidade de renovação que permanece até nossos dias. Hodiernamente, a doutrina
divide a boa-fé em objetiva e subjetiva. Enquanto a boa-fé subjetiva se refere à consciência ou
convicção prática de um ato conforme o direito, a boa-fé objetiva se refere a uma regra de conduta
que impõe às partes determinado comportamento [...] A boa-fé objetiva é entendida como uma regra
de conduta imposta às partes que se relacionam, proporcionando um dever de cooperação que é de
suma importância ao se tratar de revisão contratual por excessiva onerosidade, decorrente de fatores
supervenientes à contratação, não desencadeados por ação ou omissão daquele que sofre em razão
dela.
60
permear todas as situações jurídicas. Já no âmbito objetivo, a boa-fé funciona como
critério interpretativo (e integrativo), bem como se traduz em regras ou padrões
objetivos de comportamento, como a lealdade e a confiança entre as partes96. Assim
sendo, a boa-fé objetiva tem profunda incidência no tráfico negocial, seja na sua
formação (fase pré-negocial), no seu conteúdo, na sua execução e, ainda, após o
seu cumprimento (fase pós-negocial). A propósito da leitura do artigo 131 do Código
Comercial, com supedâneo na boa-fé objetiva, transcreve-se adiante precedente da
4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 256.464-SP,
relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, data do julgamento de 22/03/2001, publicado
no DJ, de 07/05/2001, verbis:
COMPRA E VENDA. Laranja. Preço. Modificação substancial do mercado.
O contrato de compra e venda celebrado para o fornecimento de frutas
cítricas (laranja) não pode lançar despesas à conta de uma das partes, o
produtor, deixando a critério da compradora a fixação do preço. Modificação
substancial do mercado que deveria ser suportada pelas duas partes, de
acordo com a boa-fé objetiva (art. 131 do CComercial). Recurso conhecido
97
e provido .
96
vale registrar aqui a relação da causa do contrato e da boa-fé objetiva, na sua vertente da tutela da
legítima expectativa (confiança) desenvolvida por FORGIONI, Paula A. Contrato de distribuição.
São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 512-514: esse talho [...] da matéria comercial impregnada da práxis,
trouxe conseqüências teóricas relevantes: (I) a causa do negócio no direito comercial assume
importância, porque permite a objetivação do comportamento do comerciante no mercado e, com
isso, a possibilidade de seu cálculo pelo outro. A atenção à causa do negócio transforma-se em fator
intrinsecamente ligado à proteção da legítima expectativa da outra parte, da chamada boa-fé objetiva
e, como quer Roppo, à “gestão de uma economia capitalista”, ou às “regras de bom funcionamento
do mercado”; (II) a racionalidade econômica do empresário sempre foi considerada pelo direito
comercial e pela jurisprudência. Evita-se, a todo custo, a tomada de decisões judiciais que fujam da
racionalidade própria do agente, rebatida na boa-fé e na proteção da legítima expectativa. A previsão
do standard do homem “ativo e probo” nada mais é senão a assunção de uma racionalidade própria
aos empresários (socialmente típica) depurada pelo direito como padrão interpretativo; c) a proteção
da eficiência das decisões empresariais também é outra fonte em que há muito se fartam nossos
intérpretes autênticos e nosso ordenamento jurídico. A imposição de diretivas que comprometem a
segurança e a previsibilidade do mercado sempre causou preocupação, assim como decisões que
amafanhassem a lógica do sistema. Conclui a citada autora que, quanto elemento jurídico, passa pela
interpretação das avessas, dos direitos e das obrigações comerciais, reanimando conceitos clássicos
como boa-fé, proteção da legítima expectativa da outra parte e, por mais que soe estranho,
redimensionando e dando novo fôlego à teoria da causa do negócio jurídico.
97
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma. Recurso Especial n. 256.464-SP, relator Ministro
Ruy Rosado de Aguiar, data do julgamento de 22/03/2001, publicado no DJ, de 07/05/2001.
61
Assim como o Direito Civil, as relações privadas no Direito da Empresa
devem ser compreendidas à luz das normas fundamentais constitucionais,
notadamente da dignidade humana, da justiça social e da solidariedade.
Sem embargo das normas fundamentais influenciarem no âmbito das
relações privadas, cumpre anotar que a sua incidência e a sua extensão diferem
daquelas relações entre o Estado e os particulares (empresários).
62
3 O ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
O comércio, na Antigüidade, caracterizava-se pelo nomadismo. Os
comerciantes lançavam-se em viagens para obter mercadorias diferentes das que
existiam em sua região para revender. Assim, faziam o intercâmbio de mercadorias
entre as diferentes regiões.
O surgimento das feiras dá-se quando as rotas dos mercadores nômades
coincidem com os santuários de peregrinação. Com o tempo, as feiras passaram a
ser esperadas em determinadas festividades religiosas e adquiriram regularidade.
O comércio da Antigüidade foi praticamente abolido com o sistema feudal.
Com o fim do isolamento do sistema feudal, a população voltou a agrupar-se em
povoados que se transformaram em cidades, desenvolvidas pelo incentivo
comercial.
Com o desenvolvimento das cidades, os comerciantes sentiram a
necessidade de se estabelecerem em construções próprias. Os comerciantes
deixam de ser nômades e feirantes para montar o seu estabelecimento comercial
em ponto fixo, em imóvel. O comerciante passa a organizar uma estrutura que
atenda às suas necessidades no trabalho.
O estabelecimento, que é a reunião de bens promovida pelo comerciante
para o desenvolvimento de sua atividade, surge juntamente com o desenvolvimento
do comércio, quando este deixa de ser praticado apenas por viajante para ser
praticado por aqueles que se estabelecem montando uma estrutura para o seu
exercício.
É com a intensificação do comércio e o surgimento da concorrência que a
importância do estabelecimento comercial é destacada. A crescente concorrência
63
faz com que o comerciante aprimore os mecanismos para atrair a clientela. O
incremento do estabelecimento comercial foi um desses mecanismos.
Com o passar do tempo, o comércio foi assimilando técnicas disponíveis
para incrementá-lo. Tudo aquilo que tem relevância para o mundo do comércio pode
ser retratado num valor monetário. O estabelecimento comercial ou seus elementos
mais importantes passam a ser objetos de contratos, em razão do valor que
representam.
Com o desenvolvimento da teoria da empresa, o sentido conferido ao
estabelecimento comercial ampliou-se. O estabelecimento comercial passa a ser
estabelecimento empresarial. Admite-se também que o empresário, que explora
atividade civil, possua um complexo de bens organizados para o desenvolvimento
de sua atividade. Todo aquele que exerce atividade economicamente organizada
para a produção ou circulação de bens ou serviços é capaz de formar um
estabelecimento empresarial.
Deixa, portanto, o estabelecimento comercial de limitar-se às atividades
mercantis, abrangendo todas as atividades com fins lucrativos.
3.1 O CONCEITO JURÍDICO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
A noção jurídica do estabelecimento tem dado lugar a grandes dúvidas e
divergências, como acontece em relação a várias outras figuras jurídicas, a começar,
em quase todos os países, pelas próprias expressões empregadas para a sua
designação98.
98
MAGALHÃES, Barbosa de. Do Estabelecimento Comercial. Lisboa: Ática, 1951, p.9; Confira-se
BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial – Fundo de comércio ou fazenda
mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 65: O instituto do estabelecimento comercial apresenta-
64
A
propósito
dessa
diversidade
de
expressões
designativas
do
estabelecimento comercial no direito comparado, anota João Eunápio Borges99 que
são empregadas no direito francês, fonds de commerce, maison de commerce,
établissement commercial; no espanhol, hacienda, empresa; no anglo-americano,
goodwill, business; no holandês, zaak, handelszaak; no alemão, geschäft,
handelsgeschäft, haus, handlung, unternehmen.
De igual modo, no Direito brasileiro é possível relacionar algumas
expressões empregadas como sinônimas de estabelecimento comercial: casas de
comércio, casa comercial da sociedade, fundo comercial, negócio, fazenda mercantil
etc.100.
Tais expressões sinônimas do estabelecimento comercial são contradiças na
doutrina e, por diversas vezes, os textos legais fazem referência, porém foi a
expressão fundo de comércio que adquiriu importância, na medida em que foi
adotada pelo Decreto n. 24.150/34 (Lei de Luvas), porquanto este foi o primeiro texto
legal a reconhecer expressamente o valor do fundo de comércio.
A partir da leitura dos dispositivos que fazem referência ao estabelecimento,
a doutrina comercialista cunhou alguns conceitos de estabelecimento empresarial.
Vejamos.
Segundo José Xavier Carvalho de Mendonça101
[...] o estabelecimento, na acepção aqui empregada (tem outros
significados), designa o complexo de meios idôneos materiais e imateriais,
pelos quais o comerciante explora determinada espécie de comércio; é o
organismo econômico aparelhado para o exercício do comércio.
Caracteriza-se ele pela função técnica, tomando, ordinariamente, a
se em cada país, com caracteres intrínsecos e dimensões diferentes, de acordo com as
peculiaridades do direito nacional, o que torna difícil estabelecer uma perfeita equivalência entre as
várias expressões que servem para designá-lo.
99
BORGES. João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969,
p.185.
100
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol. V, livro III,
Parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963.
101
Ibid., pp.15-16.
65
designação de acordo com o seu objeto: um banco, uma fábrica, uma
agência etc.
Para Waldemar Ferreira102, o estabelecimento se tratava de uma
“universalidade de bens constituintes do organismo por via do qual o comerciante
exercita sua função medianeira entre a produção e o consumo”.
Por seu turno, João Eunápio Borges103 o definia como
[...] o complexo das várias forças econômicas e dos meios de trabalho que o
comerciante consagra ao exercício do comércio, impondo-lhes uma unidade
formal, em relação com a unidade do fim, para o qual ele as reuniu e
organizou. É o instrumento, é a máquina de trabalho do comerciante.
Como se pode inferir dos conceitos acima, essa divergência de expressões
designativas do estabelecimento comercial, na doutrina e nos textos legais, acabava
por dificultar a elaboração de um conceito inequívoco para este instituto, conforme
denuncia Oscar Barreto Filho104 que proclama, na ausência de um conceito legal e
tendo em vista as diversas acepções em nosso direito, a necessidade de
implementar método e ordem nesse emaranhado de noções difusas. Para tanto,
sugere que a formulação do conceito de estabelecimento há de atender às
características que se apresentam com maior constância nas várias acepções antes
examinadas.
Do consenso geral, extrai então o autor as seguintes proposições
acerca do estabelecimento comercial: (I) é um complexo de bens, corpóreos e
incorpóreos, que constituem os instrumentos de trabalho do comerciante, no
exercício de sua atividade produtiva; (II) não se configura como o complexo de
relações jurídicas do comerciante, no exercício do comércio, e, portanto, não
constitui um patrimônio comercial distinto do patrimônio civil; (III) é formado por bens
102
Apud MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol. V, livro III,
Parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, p. 53.
103
BORGES. Op.cit., p. 184, nota 99.
104
BARRETO FILHO. Op.cit., pp. 74/75, nota 98.
66
econômicos, ou seja, por elementos patrimoniais, sendo duvidoso se compreender
elementos pessoais; (IV) é uma reunião de bens ligados por uma destinação unitária
que lhe é dada pela vontade do comerciante; (V) apresenta um caráter instrumental
em relação à atividade econômica exercida pelo comerciante.
Ao cabo desses caracteres, apresenta o seguinte conceito: complexo de
bens, materiais e imateriais, que constituem o instrumento utilizado pelo comerciante
para a exploração de determinada atividade mercantil.
Com o advento do Código Civil de 2002, o Direito brasileiro passou a regular
o estabelecimento comercial no livro II, Título III (Do Estabelecimento), Capítulo
Único (Disposições Gerais), nos seus artigos 1.142 a 1.149.
O legislador definiu o estabelecimento no artigo 1.142 como todo o complexo
de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário ou sociedade
empresária.
À luz da teoria da empresa, adotada pelo Código Civil de 2002, Modesto
Carvalhosa105, Fábio Ulhoa Coelho106 e Sérgio Campinho107.
3.2 ESTABELECIMENTO PRINCIPAL, AGÊNCIAS, FILIAIS E SUCURSAIS
É possível que um empresário possua mais de um estabelecimento. Ter-seia, então, um único sujeito de direito, podendo ser empresário individual ou
sociedade empresária, com vários locais de exploração de sua atividade.
105
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003, p.
616.
106
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp.
96-102.
107
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004.
67
Estabelecimento principal é definido como o “lugar em que o comerciante
tem a sede de sua atividade ou, melhor, de onde governa e dirige seus negócios”108.
Já a filial é conceituada como “Estabelecimento auxiliar, fundado pela casa principal
ou matriz e dela dependente”109. A sucursal é tida como “estabelecimento auxiliar e
dependente da casa matriz, criado por esta para expansão dos seus negócios. É
subordinado à administração central, embora em certos casos goze de relativa
autonomia”110. A agência apresenta proporções menores. É um simples ponto de
conclusão de negócios com autonomia mínima.
Deve-se lembrar, todavia, que toda classificação deve visar a um objetivo.
Não há porque se conceituar estabelecimento principal e secundários, e ainda, filial,
sucursal e agência, se diferença alguma trouxer para o direito. Não há porque criar
classificações que não apresentem conseqüências práticas.
É
preciso
identificar
a
necessidade
de
classificar
os
diversos
estabelecimentos do empresário. Extrai-se da análise feita à legislação nacional que
a classificação dos diversos estabelecimentos empresariais, de um só sujeito de
direito, não é relevante para o Direito Processual Civil. Tal não ocorre com o Direito
Falimentar que se utiliza do conceito de estabelecimento principal para definir o foro
competente para o processo de falência (art. 3º, da Lei nº 11.101/05).
O conceito de estabelecimento principal é utilizado para a determinação do
juízo competente para a declaração da falência. Rubens Requião entende que o
domicílio real do empresário é aquele em que se concentram seus bens principais,
móveis e imóveis, todos os seus aparelhos e instalações, os seus negócios e
108
FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial, 2° vol., tomo1. São Paulo:
Saraiva, 1952, p. 34.
109
NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica, s.v. filial.
110
NUNES, Pedro. Dicionário de tecnologia, s.v. sucursal.
68
interesses111. Para Trajano de Miranda Valverde112, a sede administrativa da
empresa é o seu estabelecimento principal para efeitos da lei de falência.
Percebe-se que duas são as principais preocupações na definição de
estabelecimento principal. Uma corrente preocupa-se em declarar a falência no local
onde se encontra o maior número de bens do empresário. A facilidade na
arrecadação dos bens é a intenção desses. Na outra corrente, há preocupação em
identificar a sede administrativa com o intuito de obter o maior número de
informações sobre a atividade da empresa.
Tendo a falência o objetivo principal de arrecadar do falido o seu maior
número de bens, para que se consiga a satisfação dos credores, opta-se por adotar
o primeiro entendimento, ou seja, a falência deve ser declarada no local onde o
falido possui o maior volume de suas atividades e, consequentemente, o maior
número de bens. Assim, a classificação dos vários estabelecimentos de um só
empresário ou sociedade empresária interessa ao direito falimentar. Porém, não se
possui interesse na classificação dos vários estabelecimentos secundários em filiais,
agências e sucursais, sendo irrelevante para a presente pesquisa.
3.3 NATUREZA JURÍDICA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
Definir a natureza jurídica de um instituto é identificar o regime jurídico a ele
aplicável. Após o conhecimento das características do estabelecimento empresarial,
cabe identificar sua natureza jurídica, a fim de apontar o regramento jurídico a que
ele está submetido. O interesse prático na qualificação jurídica do estabelecimento
reside na circunstância de que os problemas relativos aos negócios jurídicos, feitos
111
112
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. Vol. 1, São Paulo: Saraiva, pp. 81-82.
Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. Vol. 1, São Paulo: Saraiva, pp. 81-82.
69
com ou sobre o estabelecimento, dependem – quanto à forma de realização e
quanto aos efeitos jurídicos – da natureza de que o mesmo se revista perante a
lei113.
Embora o estabelecimento empresarial seja um fenômeno comum em todos
os países, cada um possui um regramento próprio que a ele se aplica. A natureza
jurídica variará conforme o ordenamento jurídico de cada local. Importa identificar a
natureza jurídica do estabelecimento empresarial no direito brasileiro.
Predomina, hoje, na doutrina brasileira, o entendimento de que o
estabelecimento empresarial é uma universalidade de fato. Cabe, porém, discorrer
sobre as teorias mais relevantes a respeito do tema.
3.3.1 Teoria da Personalidade Jurídica
Segundo essa teoria, criada pelo proprietário, o estabelecimento adquire
vida própria e autônoma. Os bens e direitos, cuja organização deu origem ao
estabelecimento, passam a pertencer a este e não ao proprietário que, também ele,
sujeito ao estabelecimento, decai de sua qualidade de dono para transformar-se
apenas no primeiro empregado do estabelecimento.
A adoção dessa teoria teria por conseqüência conferir autonomia patrimonial
ao estabelecimento. Haveria um outro sujeito de direito, que seria titular dos direitos
e obrigações relativos à exploração da atividade empresarial; logo, as obrigações
contraídas pelo estabelecimento teriam como garantia apenas os seus bens
componentes.
113
BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial – Fundo de Comércio ou
Fazenda Mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
70
A teoria da personalidade jurídica, porém é incompatível com nosso direito
positivo pátrio. O direito brasileiro não reconhece outros entes com personalidade
jurídica senão aqueles elencados nos arts. 43 e 44 do Código Civil.
Quanto a essa teoria é interessante apontar que o Regulamento do Imposto
de Renda – Decreto 3000/99 – equipara a empresa individual à pessoa jurídica para
efeitos de imposto de renda. Assim, de acordo com o artigo 150, §1º, I, o empresário
individual passa a fazer duas declarações, separando dessa forma os bens e os
lucros referentes à sua atividade empresarial dos bens e rendimentos pessoais.
Essa separação, todavia, existe apenas para efeito de imposto de renda, não
gerando efeitos no patrimônio do empresário.
3.3.2 Teoria do Patrimônio Separado
Para os defensores dessa teoria o estabelecimento se constitui em
patrimônio autônomo, que se destaca dos demais bens integrados no patrimônio
geral do proprietário. Seguindo esse entendimento tem-se um único sujeito com dois
patrimônios distintos: o seu patrimônio civil e o patrimônio empresarial, ou seja, o
patrimônio que se destina à exploração de sua atividade lucrativa.
Essa teoria traz a mesma conseqüência da anterior, a autonomia patrimonial
do estabelecimento. As obrigações assumidas pelo empresário, no exercício de sua
atividade, teriam como garantia o patrimônio destinado à atividade empresarial. A
separação patrimonial constituiria para o comerciante individual a possibilidade de
limitar sua responsabilidade apenas àquela parcela patrimonial que destinou ao
comércio.
71
Essa teoria também não se adapta às regras de direito positivo brasileiro,
pois ele consagra a unicidade patrimonial. A separação patrimonial é uma exceção e
existe somente nos casos expressamente fixados por lei. Ademais, a sociedade
unipessoal de responsabilidade limitada ou empresa individual de responsabilidade
limitada não são permitidas pela legislação pátria, e este fato já seria um obstáculo
para a adoção dessa teoria.
3.3.3 Teoria do Bem Imaterial
Para os adeptos dessa teoria, o estabelecimento é um bem imaterial com
existência distinta dos demais elementos que o compõem. O estabelecimento
comercial constitui um bem incorpóreo, constituído de um complexo de bens que
não se fundem, mas mantêm unitariamente sua individualidade própria.
Oscar Barreto Filho114 contesta a teoria:
Não se pode, portanto, identificar o estabelecimento com a organização,
que é um conceito abstrato inferido do modo de ser dos elementos ou
fatores da produção, esquecendo a sua própria essência. Se o
estabelecimento pressupõe a organização, esta por sua vez pressupõe a
materialidade dos bens de produção em que se concretiza, e sem os quais
o estabelecimento não existe, porque não é possível a atividade produtiva.
3.3.4 Teoria das Universalidades
De acordo com o artigo 90 do Código Civil constitui universalidade de fato a
pluralidade de bens singulares que, pertinentes a mesma pessoa, tenham
destinação unitária. Os bens que formam essa universalidade pode ser objeto de
relações jurídicas próprias.
114
BARRETO FILHO, Op. cit., pp. 93-94, nota 113.
72
Quanto à universalidade de direito, disciplina o artigo 91 do Código civil
como o complexo de relações jurídicas de uma pessoa dotada de valor econômico.
3.3.4.1 Bens Singulares e Coletivos (Universalidades)
O estabelecimento comercial para essa teoria nada mais é que um objeto de
direito. É ele um complexo de bens. É um bem coletivo ou universal, ou seja, uma
universalidade de bens.
As coisas coletivas ou universais são as constituídas por várias coisas
singulares, consideradas em conjunto, formando um todo único, que passa a ter
individualidade própria, distinta da dos objetos componentes, que conservam sua
autonomia funcional. As universalidades nada mais são que coisas singulares
consideradas em conjunto. Vê-se, portanto, que se trata das mesmas coisas, e que
a distinção advém das diversas maneiras de encará-las. Se consideradas de per si,
serão singulares, ainda que estejam em grupo; se consideradas em conjunto, serão
coletivas, ainda que se mire uma delas individualmente. Coletivas ou universais são
as que, embora constituídas de duas ou mais coisas singulares, se consideram,
todavia, agrupadas num único todo. Esse todo que tem individualidade distinta das
unidades que o compõem, é geralmente designado por um nome genérico.
Nessa classificação pode-se encaixar o conceito de estabelecimento
empresarial. O estabelecimento empresarial nada mais é que a reunião de vários
bens singulares, que, em dado momento, são encarados em conjunto.
73
3.3.4.2 Universalidades de Fato e de Direito
A união em conjunto de bens singulares dá-se em função da lei ou da
vontade do titular dos bens. Surge daí a distinção entre universalidade de direito e
universalidade de fato. Tem-se a universalidade de direito quando o conjunto de
bens se forma por determinação legal; a universalidade de fato é formada por
vontade do titular de seus bens, que os reúne para determinado fim.
Reconhecendo a unidade do estabelecimento, José Xavier Carvalho de
Mendonça115 considera-o como uma universalidade de direito, ou seja, o
estabelecimento seria uma massa de coisas e direitos reunidos em virtude de lei.
Embora faça referência à lei, o autor afirma que a vontade do empresário organiza e
reúne os elementos integrantes do estabelecimento.
Porém, a lei trata do estabelecimento como uma unidade, mas não para
todas as relações, só para determinados fins. Assim sendo, não se pode adotar a
teoria da universalidade de direito, pois a lei deveria tratar o estabelecimento como
conjunto unitário, como faz com o patrimônio, a herança e a massa falida.
O estabelecimento é um conjunto de bens ligados pela destinação comum
de constituir o instrumento da atividade empresarial. Tal liame entre os bens que
compõem o estabelecimento permite tratá-lo de forma unitária, distinguindo-o dos
bens singulares que o compõem. O Código Civil permite que o estabelecimento seja
tratado como um todo objeto unitário de direitos e negócios jurídicos (artigo 1.143),
sem,
contudo,
proibir
a
negociação
isolada
dos
bens
integrantes
do
estabelecimento. A unidade deste encontra-se na destinação comum dos
componentes.
115
CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de Direito Comercial. Vol. 3, tomo I, p.28.
74
Os elementos que compõem o estabelecimento são unidos em prol do
negócio, porém na essência continuam cada um com suas características
autônomas, podendo inclusive ser reagrupados ou sofrer outras modificações a
critério do seu titular.
Estes elementos unificados representam o estabelecimento, que por sua vez
pode ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou
constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza. Assim, guardando
compatibilidade com sua natureza unitária, o estabelecimento pode ser objeto de
negócio jurídico próprio, ou seja, pode ser objeto de venda, alienação, cessão ou
arrendamento.
A natureza jurídica do estabelecimento não se confunde com a natureza da
empresa nem com a do empresário. O estabelecimento não é pessoa, nem atividade
empresarial, é uma universalidade de fato que integra o patrimônio do empresário.
O direito encontra-se diante de um valor econômico extremamente relevante
para o mundo empresarial. Esse valor, porém, não encontra objeto específico que
lhe dê origem. É um conjunto de bens e a organização desses bens é que faz surgir
esse valor. A fluidez do conceito de estabelecimento empresarial e a dificuldade de
delimitá-lo tornam o trabalho do jurista extremamente difícil.
Predomina, hoje, na doutrina brasileira o entendimento de que o
estabelecimento empresarial tem natureza jurídica de uma universalidade de fato.
Essa universalidade é formada pela vontade do seu titular, o empresário, que
organiza,
como
um
conjunto,
os
diversos
elementos
componentes
do
estabelecimento, tendo em vista o exercício de uma determinada atividade. Nesse
caso, como os elementos que compõem o estabelecimento formam uma unidade,
em virtude da destinação que lhes foi dada pelo seu titular, trata-se de uma
75
universalidade de fato, tal como definido expressamente na norma do artigo 90 do
Código Civil.
3.4
A
COMPOSIÇÃO
DO
ESTABELECIMENTO
EMPRESARIAL
E
SUA
PROTEÇÃO JURÍDICA
Inicialmente, cabe assinalar que não há consenso na doutrina brasileira,
assim como na estrangeira, a propósito dos elementos que compõem o
estabelecimento empresarial.
No Direito brasileiro, antes do advento do Código Civil de 2002, a imprecisão
jurídica do conceito de estabelecimento empresarial e a sua disciplina em leis
esparsas acabaram por deflagrar diferentes concepções a respeito dos seus
elementos constitutivos. A fim de ilustrar essa divergência doutrinária, será transcrita
nessa oportunidade a opinião de alguns doutrinadores.
Para
João
Eunápio
Borges116,
os
elementos
constitutivos
do
estabelecimento são três: capital, trabalho e organização. Por seu turno, o elemento
capital se desdobra em dois grupos: os das coisas corpóreas ou materiais e o das
coisas incorpóreas ou direitos. Para o doutrinador, as coisas corpóreas são as
instalações, as mercadorias, vitrines, mostruários, máquinas, móveis, imóvel,
utensílios, livros de contabilidade, material de escritório etc. As coisas incorpóreas
ou direitos são, entre outros, os créditos ou dívidas ativas, o direito de exclusividade
para o uso do título ou nome de estabelecimento e respectiva insígnia, marcas de
indústria e de comércio, patentes de invenção, de modelos de utilidade, de modelos
industriais etc. No que concerne ao elemento trabalho, este é representado pelos
116
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969,
pp. 187-192.
76
serviços de quantos dedicam sua atividade à vida do estabelecimento, desde o
proprietário até o mais modesto empregado. A propósito do elemento organização,
este é o principal fator de eficiência de um estabelecimento, combinando
adequadamente bens e serviços. É o elemento que vai conferir ao estabelecimento
um valor econômico como um todo organizado.
Segundo Rubens Requião117, que prefere empregar a expressão fundo de
comércio para designar o estabelecimento empresarial, este
[...] compõe-se de elementos corpóreos e incorpóreos, que o empresário
comercial une para o exercício de sua atividade. Na categoria de bens, por
outro lado, é classificado como bem móvel. Não é consumível nem fungível,
malgrado a fungibilidade de muitos elementos que o integram. Sendo objeto
de direito constitui propriedade do empresário, que é o seu dono, sujeito de
direito. Os bens corpóreos e incorpóreos conjuntados no fundo de comércio
não perdem cada um deles sua individualidade singular, embora todos
unidos integrem um novo bem. Cada um mantém sua categoria jurídica
própria.
Para o jurista paranaense, os bens corpóreos, que se caracterizam por
ocupar espaço no mundo exterior, compreendem: (I) as mercadorias; (II) as
instalações e; (III) máquinas e utensílios. Já os incorpóreos, que são as coisas
imateriais que não ocupam espaço no mundo exterior, consistem em: (IV) ponto
comercial
–
contrato
de
locação
comercial;
(V)
créditos;
(VI)
título
do
estabelecimento; (VII) os privilégios de invenção; (VIII) de modelo de utilidade; (IX)
de modelo e desenho industriais.
Fran Martins118, por sua vez, assenta que
[...] os elementos que integram o fundo de comércio podem ser divididos em
dois grupos distintos: elementos incorpóreos e elementos corpóreos. Do
primeiro fazem parte a (I) propriedade comercial; (II) o nome comercial, ou
seja, a firma ou denominação; (III) os acessórios do nome comercial, tais
como o título do estabelecimento e as expressões e sinais de propaganda;
(IV) a propriedade industrial, isto é, as de invenção, assim como as patentes
117
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 198-213.
MARTINS, Fran. Curso de Direito comercial: empresa comercial, empresários individuais,
microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 25 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2000, p. 344.
118
77
dos modelos de utilidade e dos desenhos e modelos industriais e; (V) as
garantias de uso das marcas de indústria, de comércio e de serviços; (VI) e
a propriedade imaterial, caracterizada pelo aviamento. Os elementos
corpóreos são os bens (VII) móveis e os (VIII) imóveis pertencentes aos
comerciantes e por eles utilizados no exercício do seu comércio.
Ao enfrentar a questão, Oscar Barreto Filho119, acompanhado por Waldírio
Bulgarelli120, parte da seguinte premissa: sendo o estabelecimento um complexo de
bens, este somente pode compreender elementos do ativo do empresário, de
maneira que o passivo não está contemplado na sua composição. Por conseguinte,
aponta que os seus elementos, de natureza heterogênea, compreendem duas
principais categorias: (I) os bens materiais e; (II) os bens imateriais. Estes abrangem:
(II.a) os bens que, sendo tutelados como objetos de direito, têm existência
meramente ideal, e não subsistem por si, independentemente da forma concreta
pela qual se exteriorizam (as criações intelectuais); (II.b) as prestações decorrentes
de direitos obrigacionais, dentre as quais sobressaem os serviços. Já aqueles
correspondem às coisas corpóreas, que podem ser objeto de domínio (propriedade
em sentido estrito).
A doutrina majoritária, após o Código Civil de 2002, entre outros, Fábio
Ulhoa Coelho121, Sergio Campinho122, Marcelo M. Bertoldi123, cingiu-se, com
pequenas variações acerca da inclusão de determinados elementos nas respectivas
categorias, a repetir a classificação comumente empregada, que distingue os
119
BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial – Fundo de comércio ou
fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp.154-155.
120
BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais: sociedades civis e sociedades
cooperativas; empresas e estabelecimento comercial: estudo das sociedades comerciais e
seus tipos, conceitos modernos de empresa e estabelecimento, subsídios para o estudo do
direito empresarial, abordagem às sociedades civis e cooperativas. 10ª ed. São Paulo: Atlas,
2001, pp.320-321.
121
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp.
100-102.
122
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p.309.
123
BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 109.
78
elementos do estabelecimento empresarial, os bens corpóreos e os bens
incorpóreos.
Outros, porém, como Modesto Carvalhosa124, influenciados pela doutrina
italiana, incluem, ao lado das categorias bens corpóreos e incorpóreos, a categoria
“atividade laboral”, necessária à operacionalização dos bens que compõem o
estabelecimento empresarial estranho. Explica o referido autor que, sem o fator
trabalho (relações jurídicas de trabalho), os bens não adquirem a unidade funcional
que os caracteriza como elementos do estabelecimento, e muito menos possibilitam
o exercício da empresa. Ao final, conclui que o
[...] estabelecimento compreende um conjunto mais amplo de elementos, e
não só os bens corpóreos e incorpóreos, pois nele se incluem também os
serviços do empresário ou de seus empregados, reunidos por aquele com o
propósito de exercer determinada atividade empresarial.
Com efeito, o critério para a inclusão dos elementos do estabelecimento
empresarial parece estar na coerência dos seus fatores jurídico e funcional125.
O fator jurídico é revelado pelo tratamento dispensado pelo sistema jurídico,
isto é, a realidade que foi apreendida pelo Direito. No Direito brasileiro, sem
embargo das disposições em leis esparsas (artigo 448 da CLT; artigo 133 do CTN;
etc.), o estabelecimento empresarial foi apreendido, especialmente, no capítulo
único – disposições gerais (artigo 1.142 a 1.149) do Título III, do Livro II, do Código
Civil, donde se inferem as seguintes premissas que conferem suporte ao fator
jurídico:
1ª – não há enumeração legal dos elementos que integram o
estabelecimento empresarial. A Lei Argentina nº 11.867, em seu artigo 1°126 e o
124
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003, pp.
616-617.
125
Os fatores jurídico e funcional são sugeridos como critério por CORDEIRO, Antônio Menezes. Op.
Cit., p.241-243
79
artigo 516 do Código de Comércio Colombiano enumeram os bens que compõem o
estabelecimento empresarial. Essa enumeração é exemplificativa, na medida em
que se presta para definir apenas os elementos que serão objetos de transferência
por ocasião do trespasse do estabelecimento. Para Paula Castelo Miguel127, a
diversidade de bens que compõem o estabelecimento e a variedade que estes
podem adquirir, em função dos diferentes ramos de atividade desenvolvidos, tornam
a enumeração falha. A enumeração feita por certas legislações tem como única
vantagem indicar os elementos envolvidos no negócio da alienação do
estabelecimento, não pretendendo abranger a sua totalidade de bens.
2ª – O estabelecimento empresarial é definido como o complexo de bens
organizados para o exercício da empresa (artigo. 1.142). A expressão bens pode ser
reconduzida àqueles bens considerados em si mesmos ou em relação à sua própria
natureza e classificam-se em: a) corpóreos (tangíveis ou materiais) e incorpóreos
(intangíveis e imateriais); b) móveis e imóveis. Tradicionalmente, emprega-se a
distinção entre corpóreos e incorpóreos para classificar os bens que compõem o
estabelecimento empresarial. Outrossim, a partir de uma análise funcional
determinada pelo ciclo econômico, Fábio Konder Comparato128 propõe a
classificação entre bens de produção e bens de consumo. Essa distinção é a que
melhor se adequa ao sistema capitalista. Na primeira categoria, incluem-se móveis,
imóveis, mercadorias, terra, dinheiro (moeda e crédito), todos estes expressam a
126
Art. 1º Declarase elementos constitutivos de um estabelecimiento comercial o fondo de comercio,
a los efectos de su transmisión por cualquier título: lãs instalaciones, existências em mercaderías,
nombre y enseña comercial, la clientela, el direcho al local, lãs patentes de invención, lãs marcas de
fábrica, los dibujos y modelos industriales, lãs distinciones honoríficas y todos los demás derechos
derivados de la propriedad comercial e industrial o artística.
127
MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São
Paulo: R. T., n. 118, 2000, pp.29-30.
128
COMPARATO, Fábio Konder. As cláusulas de não-concorrência nos “Shopping Centers”. In
Revista de Direito Mercantil, São Paulo, p. 23-28, n. 97, jan./mar. 1995.
80
idéia de capital produtivo. Na segunda categoria, encontram-se os bens cuja
utilidade é obtida pela sua concomitante extinção.
3ª - O estabelecimento empresarial pode ser objeto unitário de direitos e de
negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua
natureza (artigo 1.143 do CC). Infere-se desse dispositivo que o Direito brasileiro
garante a circulação do estabelecimento empresarial com vistas a impedir que este
se desagregue por fato voluntário ou involuntário do seu titular.
3ª.1
–
O
trespasse
do
estabelecimento
empresarial
importa
na
responsabilidade do adquirente pelo pagamento dos débitos anteriores à
transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor
primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de 1 (um) ano, a partir, quanto aos
créditos vencidos, da publicação e, quanto aos outros, da data do vencimento (art.
1.146). Essa transferência de débitos trata-se de verdadeira assunção da dívida, por
disposição legal e exerce função econômica social na medida em que facilita o
acerto de contas sem o deslocamento de numerário, dinamizando a circulação de
bens e permitindo a continuidade das relações econômicas129. Note-se que essa
assunção da dívida, na modalidade cumulativa ou de reforço, prevista no referido
dispositivo, transmuta-se, após o prazo legal, em liberatória, quando encerra a
responsabilidade solidária do cedente.
129
TEPEDINO, Gustavo (coord.) et. Al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da
República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp.583-584: Sua conveniência é evidente em situações
como a transferência do estabelecimento comercial com a assunção do passivo; [...]. A assunção
pode ser cumulativa ou de reforço, que se verifica quando o terceiro assume a dívida sem excluir o
devedor; ou liberatória, também chamada de cumprimento, hipótese em que há efetiva transferência
do débito, colocando-se o terceiro no lugar do devedor, que se libera. Em relação ao dispositivo do
artigo 299, restou assentada na 1º jornada de direito civil do STJ no enunciado nº 16 que o Código
Civil não exclui a possibilidade da assunção cumulativa da dívida quando dois ou mais devedores se
tornam responsáveis pelo débito com a concordância do credor. Sem embargo, observe-se que, para
efeito da transferência do estabelecimento empresarial, no artigo 1.146 o legislador suprimiu o
requisito do consentimento do credor previsto no artigo 299.
81
3ª.2 – A transferência do estabelecimento empresarial enseja, salvo
disposição em contrário, à sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados
para a exploração do estabelecimento, se não tiveram caráter personalíssimo,
podendo os terceiros rescindir o contrato em 90 (noventa) dias, a contar da
publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a
responsabilidade do alienante (artigo 1.148). Esse dispositivo trata de cessão da
posição contratual do alienante, titular do estabelecimento, em favor do adquirente,
nos negócios jurídicos necessários à sua exploração. Contudo, não se opera a
cessão da posição contratual naqueles negócios de caráter personalíssimo, isto é,
quando a consideração da pessoa de um dos contratantes é, para o outro, o
elemento determinante de sua conclusão. Faculta-se, ainda, a possibilidade do
alienante e do adquirente dispor de forma diversa, ou seja, observe-se que essa
faculdade deve ser exercida com certo temperamento, pois determinados contratos
têm um nexo estreito e econômico com bens componentes do estabelecimento e as
prestações derivadas daquelas relações devem seguir o destino do conjunto, sob
pena de frustrar a ratio do artigo 1.143. São as hipóteses dos contratos de locação
do imóvel onde está localizado o estabelecimento, de fornecimento de mercadorias
e aqueles de trabalho130.
3ª.3 – A circulação do estabelecimento empresarial acarretará também a
cessão dos créditos a ele atinentes, cuja eficácia de sua transmissão perante os
devedores será a da data da publicação da sua transferência (artigo 1.144); contudo,
se o devedor pagar de boa-fé, o cedente ficará exonerado (artigo 1.149). Ao
contrário da transmissão dos débitos prevista no artigo 1.146, a transferência dos
130
Os exemplos são de FRANCO, Vera Helena de Mello. Op. Cit., p.137. A autora assevera que, com
o novo Código Civil, todas as relações acompanharão o destino do estabelecimento empresarial,
encampando o fenômeno da acessoriedade legal.
82
créditos não é uma conseqüência direta da circulação do estabelecimento
empresarial. Destarte, para que ocorra a transmissão dos créditos, impõe-se a
vontade do titular do estabelecimento e se a isso não se opuser a natureza da
obrigação, a lei, ou o ajuste com o devedor (artigo 286 do CC).
O fator funcional está relacionado à exigência da realidade da própria vida
do comércio. O estabelecimento empresarial não pode ser reduzido a determinados
elementos apenas para facilitar o seu enquadramento em categorias jurídicas
preexistentes.
Essa concepção estática do estabelecimento empresarial acaba por
desprezar elementos outros, cuja necessariedade deve ser aferível a partir da
respectiva organização feita pelo empresário e conforme a destinação para o escopo
produtivo.
Assim,
por
exemplo,
pode-se
encontrar,
excepcionalmente,
um
estabelecimento empresarial praticamente sem nenhum bem ou direito, como as
agências de negócios, os escritórios de representação, as empresas de corretagem,
que para as suas atividades não precisam mais do que um local próprio ou alugado,
um cadastro de clientes e uma linha telefônica.
Não se pode olvidar que a empresa, como realidade econômica, está em
constante evolução, por conseguinte, impõe-se acolher uma concepção dinâmica do
estabelecimento empresarial, visto que este também está autonomizado pelo
comércio.
Na perspectiva da organização funcional do estabelecimento, os elementos
que compõem sua estrutura e configuração estão em conformidade com a atividade
de determinado segmento mercadológico e com a ordenação promovida pelo
83
empresário. Por tal razão, não se pode ter a pretensão de estipular previamente
todos os elementos do estabelecimento empresarial.
Afigura-se viável fazer referência sobre os elementos potencialmente
constitutivos do estabelecimento empresarial e as respectivas categorias jurídicas,
examinadas a seguir e, concomitantemente, serão tecidas algumas considerações
acerca da inclusão dessas categorias, com exceção do aviamento e da clientela, os
quais se investigarão em item específico para melhor compreensão em virtude das
inúmeras controvérsias existentes.
a) mercadorias, máquinas, matéria-prima, mobiliários, veículos, etc. Esses
elementos podem ser conduzidos às categorias de bens móveis e corpóreos.
b) imóvel: trata-se do local físico onde se encontra instalado o
estabelecimento empresarial. Esse elemento é compreendido nas categorias dos
bens imóveis e corpóreos. Na esteira da doutrina francesa, Rubens Requião131
sustenta que o imóvel pode ser elemento da empresa, mas não o é do
estabelecimento. Em sentido contrário posiciona-se a doutrina brasileira majoritária,
entre eles João Eunápio Borges132 e Fran Martins133. Desde há muito, Francisco
Cavalcanti Pontes de Miranda134 critica a concepção francesa que tradicionalmente
pré-excluía o imóvel do estabelecimento, afirmando ser obsoleta a restrição.
Explicava o jurista que o conceito de fundo (estabelecimento) de hoje não é só o “de
131
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 208: Ora,
se considerarmos o estabelecimento, na sua unidade, uma coisa móvel, claro está, desde logo, que o
elemento imóvel não o pode constituir. É preciso, e é de bom aviso frisar, que não se deve confundir
fundo de comércio com patrimônio. O fundo de comércio não constitui todo o patrimônio, mas é parte
ou parcela do patrimônio do empresário. A empresa, que é o exercício da atividade organizada pelo
empresário, conta com vários outros elementos patrimoniais, por este organizados, para a produção
ou troca de bens ou serviços que não integram o estabelecimento comercial.
132
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969,
pp.174-175.
133
MARTINS, Fran. Curso de Direito comercial: empresa comercial, empresários individuais,
microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 25 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2000. p.418.
134
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo
XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p.371.
84
comércio” e sim de qualquer empresa. Argumenta, por outro lado, que os
patrimônios podem ser objeto de negócios jurídicos e usufruto de patrimônio em que
haja imóvel. Mais recentemente, a partir da relevância da alienação do
estabelecimento empresarial, Paula Castello Miguel135 assevera que é nesse
momento que se torna imprescindível identificar os bens que mudarão de
titularidade, de tal sorte que sendo o imóvel alienado, em conjunto com os demais
bens, ante a sua importância na exploração da atividade empresarial, tem-se o
imóvel como componente do estabelecimento. A propósito da localização do
estabelecimento empresarial, Fábio Ulhoa Coelho136 sugere alguns critérios para a
escolha do local, como o vulto do empreendimento, o tipo de atividade e o perfil da
clientela potencial.
c) Ponto empresarial e sua clientela: o ponto empresarial é considerado bem
incorpóreo pela doutrina. Quando o empresário não é proprietário do imóvel onde se
localiza o estabelecimento empresarial, mas sim, locatário ou inquilino deste, e
desde que observados os respectivos requisitos legais previstos atualmente na Lei
nº 8.245/91, o direito brasileiro dispensa-lhe tutela mediante a renovação
compulsória do contrato de locação e a indenização, se acolhida a defesa de
retomada suscitada pelo locador. No que concerne à tutela da renovação
compulsória, essa remonta ao Decreto nº 24.150/34 (Lei de Luvas). Na legislação
vigente, os seus requisitos estão insculpidos no artigo 51 da Lei nº 8.245/91. Cabe
indagar se a cessão do estabelecimento empresarial tem o condão de conferir ao
adquirente também à posição contratual do alienante-locatário.
135
MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São
Paulo: R. T., n. 118, 2000, p.32.
136
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005,
p.102.
85
Como visto alhures, o local do estabelecimento empresarial pode constituir
elemento essencial para exploração da atividade empresarial. Todavia, o artigo 13
da Lei n° 8.245/91 estabelece que a cessão da locação, a sublocação e o
empréstimo do imóvel, total ou parcialmente, dependem do consentimento prévio e
escrito do locador.
Assim, em caráter de excepcionalidade, a transferência do estabelecimento
empresarial como objeto unitário, assentada na norma do artigo 1.143, afastaria a
incidência da regra do artigo 13 da Lei n° 8.245/91, que trata da simples e pura
cessão da locação, de modo que o adquirente assumiria a posição do locatárioalienante no contrato de locação, ressalvada a possibilidade de o locador opor as
objeções por justa causa com vistas à rescisão do contrato conforme previsão do
artigo 1.148 do CC.
Cabe anotar que o fundamento racional da norma do artigo 1.143 do CC
encontra-se no subprincípio da preservação da empresa (perfil finalístico do negócio
jurídico do trespasse) que, por sua vez, alberga um feixe de interesses interno
(titular do estabelecimento) e externo (empregado, consumidor, etc.). Já o artigo 13
da Lei n°. 8.245 encontra assento nos princípios constitucionais da propriedade
(artigo 5°, XXI) e da autonomia da vontade (artigo 5°, II) do proprietário-locador.
Destarte, a colisão dessas normas deve ser resolvida à luz da leitura
funcionalizada das categorias jurídicas da propriedade e autonomia da vontade
(artigo 5°, XXIIII c/c 170, III, ambos da CF, e artigo 421 do CC), de maneira que ao
artigo 1.143 deve ser dispensado tratamento de norma excepcional em relação à
regra do artigo 13 da Lei n° 8.245/91 que não incidirá na hipótese de transferência
do estabelecimento empresarial. Nesse sentido, confira-se a ementa do julgado da
13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, nos autos do
86
Agravo de Instrumento n°. 1997.002.02273, da lavra do Des. Nametala Machado
Jorge, julgado em 15/12/1997, registro de 06/05/1998, fls. 7284/7290:
Locação comercial. Ação Revisional. Legitimação. Destinando-se o imóvel à
atividade comercial do locador (pessoa física) ou de empresa por ele constituída,
afigura-se lícito, face à letra e ao espírito do contrato, que, mudando-se de local a
pessoa jurídica por aquele fundada, outra, também por ele constituída, se instale
no imóvel. A cessão das cotas que representam à integralidade do capital social
dessa segunda empresa, que a rigor passou a ser a locatária, e face ao princípio
da autonomia da pessoa jurídica em relação a de seus sócios, não importa
modificação subjetiva do contrato de locação. Ademais, somente a cessão pura e
simples da locação comercial é que depende do consentimento do locador. Não
aquela que ocorre com a transferência do fundo do comércio, do qual é a locação
um dos seus elementos incorpóreos. Recurso desprovido. (PLD) Vencido o Des.
137
Julio César Paraguassu que dava provimento ao recurso .
O empresário-locatário do ponto poderá ter rejeitado o seu pleito de
renovação compulsória do contrato de locação na hipótese de acolhimento das
objeções do locador previstas no artigo 52 da Lei n° 8.245/91. Assim sendo, com
vistas a compatibilizar o direito da propriedade do locador e coibir o enriquecimento
indevido de outro negociante que venha ocupar o referido ponto empresarial, o
legislador ordinário prevê mecanismos de compensação. Destarte, o empresário
locatário fará jus à indenização pela perda do ponto se presentes os pressupostos:
(I) caracterização da locação como empresarial, com o atendimento aos requisitos
formal, temporal e material; (II) ajuizamento da ação renovatória dentro do prazo; (III)
acolhimento da exceção de retomada. Uma vez presentes tais pressupostos, impõese a indenização do ponto em quaisquer das seguintes situações: (a) se a exceção
de retomada foi a existência de proposta melhor de terceiro; (b) se o locador
demorou mais de 3 meses, contados da entrega do imóvel para dar o destino
alegado ou iniciar as obras determinadas pelo Poder Público ou que declare
pretender realizar; (c) se caracterizada a insinceridade da exceção da retomada.
137
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 13ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n°.
1997.002.02273, do Des. Nametala Machado Jorge, julgado em 15/12/1997, registro de 06/05/1998,
fls. 7284/7290.
87
As duas primeiras situações decorrem da regra do § 3° do artigo 52 da Lei n.
8.245/91, enquanto, segundo lição de Fábio Ulhoa Coelho138, as demais exsurgem
dos princípios de boa-fé e da proibição do enriquecimento indevido.
d) direitos de propriedade industrial: esses direitos de propriedade industrial
são bens móveis, consoante o artigo 6° da Lei nº 9.279/96. A natureza dos direitos
de propriedade industrial no Brasil é objeto de imensa controvérsia. Sem embargo,
na doutrina há predileção pela classificação desses direitos como bens móveis
incorpóreos ou imateriais. Os direitos de Propriedade Industrial estão arrolados no
artigo 2° da Lei nº 9.279/96 e se referem: (I) à invenção e aos modelos de utilidade;
(II) ao desenho industrial; (III) às marcas.
e) título e a insígnia do estabelecimento empresarial: tratam-se de
propriedade intelectual, mais precisamente de bens móveis incorpóreos. O primeiro
é a designação nominal que o empresário empresta ao local do exercício de sua
atividade, ao qual se dirigirá o público consumidor. A segunda constitui uma
designação figurativa ou mista. Estes só podem ser transmitidos em conjunto com o
estabelecimento ou parte de estabelecimento a que estejam ligados.
O Direito brasileiro dispensou proteção a estes bens móveis incorpóreos
através do Decreto nº 24.507/34 e dos primeiros Códigos de Propriedade Industrial.
O Código de Propriedade Industrial de 1972 (Lei nº 5.771/72) previa que não era
suscetível de registro como marca, o título de estabelecimento ou o nome
empresarial. A Lei nº 9.279/96 acabou por limitar a proteção ao elemento
característico (artigo 124, inciso V), bem como tipifica como crime de concorrência
desleal o uso indevido de título de estabelecimento (artigo 195, inciso V).
138
COELHO, Op. Cit., p. 111, nota 137.
88
f) nome empresarial – para parte da doutrina tem natureza de bem móvel
incorpóreo; trata-se de elemento de identificação do empresário com vistas a
individualizá-lo perante o poder público e os demais empresários.
A legislação brasileira dispensa proteção ao nome empresarial através da
Lei nº 8.934/94 (artigos 33 e 34) e o Decreto nº 1.800/96 e instrução normativa do
DNRC 99/2005, que garante a exclusividade do seu uso, observados os requisitos
legais. Ademais, o artigo 8° da Convenção União de Paris (Decreto nº 75.572/75)
também lhe conferia proteção sem condicioná-la ao prévio registro na Junta
Comercial ou qualquer outro registro.
Tendo em vista a função do nome empresarial, a doutrina brasileira diverge
se este estaria albergado entre os bens que compõem o estabelecimento
empresarial. Negando a sua inclusão entre os elementos do estabelecimento
empresarial, estão Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda139, João Eunápio
Borges140 e Rubens Requião141. Defendendo a sua inclusão entre os elementos do
estabelecimento empresarial, cite-se, entre outros, Oscar Barreto Filho142 e Paula
Castello Miguel143. Atualmente, o Código Civil de 2002 disciplinou-o nos artigos
1.155 a 1.168 do Capítulo II (Do nome Empresarial), do Título IV (Dos Institutos
139
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo
XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p. 372: O nome civil e o nome comercial não são elementos
componentes do fundo de empresa. O que é elemento componente, incorpóreo, do fundo de empresa
é o valor que do nome civil ou comercial resultou para a empresa, como sugestão de crédito e de
clientela.
140
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969,
pp. 187-188: Em nosso direito, a firma ou nome comercial não se inclui entre os elementos
componentes do estabelecimento. Porque, como vimos no capítulo XIII, o nome comercial (firma ou
denominação) designa a pessoa do comerciante e não o seu estabelecimento. E, a não ser para o fim
restrito ao adquirente declarar-se sucessor do vendedor, nos termos do artigo 7°, parágrafo único, do
Decreto n°. 916, a firma é inalienável.
141
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.213. O
autor não inclui o nome empresarial entre os elementos incorpóreos do estabelecimento. Logo, a
contrario sensu, entende que este não constitui seu elemento componente.
142
BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial – Fundo de comércio ou
fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 158.
143
MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São
Paulo: R. T., n. 118, 2000, pp. 35-36.
89
Complementares), do Livro II (Direito da Empresa). Nesse passo, cumpre anotar que
a cabeça do artigo 1.164 preceitua que o nome empresarial não pode ser objeto de
alienação. Modesto Carvalhosa144 explica o sentido da referida norma:
[...] o nome é um direito inerente à sociedade, ou à empresa, personificada.
[...] A vedação existente no art. 1.164 do Código Civil de 2002 não incide,
portanto, nos casos em que a titularidade da empresa, ou seja, de suas
quotas ou ações é transferida. Incide apenas para a transferência isolada do
nome empresarial. Estando o nome ligado à personalidade jurídica da
empresa, proibe-se que seja dela destacado e alienado, para que não
venha a designar outra empresa, sob pena de se gerar grande confusão no
público em geral e naqueles que contratam com a sociedade.
Essa norma leva a ilação de que o nome empresarial não integraria o
estabelecimento empresarial, na medida em que não poderia ser alienado. Todavia,
o parágrafo único do referido dispositivo abre uma exceção ao estabelecer que o
adquirente do estabelecimento, por ato entre vivos, pode, se o contrato permitir, usar
o nome do alienante, precedido do seu próprio, com a qualificação de sucessor.
Antes de qualquer coisa, incumbe investigar a natureza jurídica do nome
empresarial. Parcela da doutrina sustenta tratar-se de direito pessoal, expressão da
personalidade, agregado à pessoa do empresário e, consequentemente, inalienável
e impenhorável. Essa tese encontraria embasamento legal nos artigos 11, 48 e
1.167; este último dispositivo estabelece que a pretensão de anulação da inscrição
do nome empresarial feita com violação da lei ou do contrato não estaria sujeita a
prazo.
Em sentido diametralmente oposto, está a tese do nome empresarial como
direito patrimonial, preconizada por Clóvis Beviláqua.
Há uma terceira corrente, capitaneada por João da Gama Cerqueira145, que
busca conciliar as duas anteriores ao fazer a distinção entre o nome comercial
144
CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003, p.
731.
90
subjetivo, atributo da personalidade do empresário, e objetivo, elemento de
identificação da própria atividade. É na função objetiva que o nome empresarial
torna-se objeto autônomo, um bem patrimonial.
Fábio Ulhoa Coelho146 corrobora a opinião acerca da natureza patrimonial do
nome empresarial, sob a seguinte argumentação:
Na verdade, a doutrina do nome do empresário como direito pessoal não se
reveste de operacionalidade, não auxilia a composição jurídica de
interesses. Deve-se, com efeito, levar em conta que o mercado de fato
atribui ao nome empresarial um valor, como intangível da empresa. Ora, se
há quem, em determinadas circunstâncias, paga pela utilização do nome
empresarial criado pelo exercente de atividade econômica, então negar-lhe
as condições de bem do patrimônio desse último é irreal. Se o direito não
reconhecer a natureza patrimonial do nome adotado pelo empresário, os
conflitos ligados à sua negociação não poderão ser convenientemente
equacionados, na medida em que a própria juridicidade do negócio poderia
ser equacionada.
Cabe anotar que é comum o nome empresarial ser reproduzido no título de
estabelecimento (ex: nome empresarial: “Banco Itaú S/A”; título do estabelecimento
“Itaú”) e, nesse caso, o nome empresarial acaba por emprestar elevado valor ao
título de estabelecimento empresarial a configurar um fator atrativo do público
consumidor. É por isso que o parágrafo único do artigo 1.164 do CC dispõe sobre a
possibilidade de o empresário alienante licenciar ou permitir o uso, de forma gratuita
ou onerosa, o seu nome empresarial com vistas a ser empregado como referência
ou
identificação
complementar
ao
nome
do
empresário
adquirente
do
145 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1 e 2, 2ª ed. Revista e
atualizada por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa Neto. São Paulo: RT, 1982, p.
1198: Quando versamos esta matéria, no início deste capítulo, tivemos ocasião de mostrar que o
nome comercial exerce duas funções diversas, a que denominamos subjetiva e objetiva, deixando
clara a fundamental distinção que entre elas existe. Vimos, então, que, em sua função subjetiva,
como o nome sob o qual a pessoa física ou jurídica exerce o comércio e se assina nos atos a ele
relativos, o nome comercial é objeto da disciplina do Direito Comercial, e, de modo particular, da
matéria relativa ao registro de comércio. Somente em sua função objetiva, como projeção da
individualidade do comerciante ou do complexo do estabelecimento no campo da concorrência, o
nome comercial, em suas várias modalidades, tem entrada no campo da propriedade industrial,
podendo constituir objeto da proteção das suas leis de Direito interno e das convenções e tratados
internacionais.
146 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.
177.
91
estabelecimento, mas não à sua alienação ou transferência definitiva. Note-se que a
parte final do referido dispositivo condiciona o uso do nome empresarial precedido
do nome do adquirente acrescido da expressão sucessor, de modo a tutelar, a um
só tempo, o princípio da distintividade previsto no parágrafo único do artigo 1.163 e o
direito básico do consumidor que não será induzido em erro por utilização indevida
do nome empresarial e outros signos distintivos, este proclamado no artigo 4°, inciso
VI, da Lei nº 8.078/90.
Extraída a verdadeira ratio da norma do artigo 1.164, convém agora
enfrentar a questão acerca da possibilidade de inclusão do nome empresarial – bem
patrimonial incorpóreo – como elemento do estabelecimento empresarial. Já foi dito
alhures que a cessão do estabelecimento empresarial (objeto unitário – artigo 1.143)
não implicará necessariamente na transferência da propriedade dos seus elementos
ao adquirente, eis que o alienante, titular do estabelecimento, poderá deter apenas
um título legal que lhe confira suporte para a respectiva utilização (v.g., contrato de
alienação fiduciária).
Destarte, quando o empresário alienante do estabelecimento empresarial
licenciar o uso do seu nome para o adquirente nas condições previstas no parágrafo
único do artigo 1.164 do CC, forçoso será reconhecer que este direito passará a ser
elemento imaterial do estabelecimento empresarial.
g) Direitos de propriedade intelectual: entre os direitos intelectuais
componentes do estabelecimento empresarial, cumpre destacar o direito autoral, o
software e a tecnologia. Segundo Newton Silveira147, os direitos intelectuais são
bens de natureza imaterial que são concebidos como um direito de propriedade.
Portanto, estes são objetos de bens imateriais.
147
Silveira, Newton. A propriedade intelectual e as Novas Leis Autorais. 2ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1998, p.14.
92
O direito autoral está regulado pela Lei n° 9.610/98, que em seu artigo 49
dispõe sobre a transferência dos direitos patrimoniais do autor, por meio de
licenciamento, concessão ou cessão. Sem embargo da possibilidade de transmissão
integral dos direitos de autor – e não direitos autorais - prevê o inciso IV do referido
artigo que a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato.
No que respeita ao estabelecimento empresarial, este poderá guardar estrita
pertinência com a atividade empresarial explorada ou até constitui o elemento
principal, como é o caso dos editores.
A Lei n° 9.609/98 dispensa tratamento ao programa de computador, os
softwares, o qual, em si, não pode ser tutelado por meio de patentes (artigo 10,
inciso VI, da Lei n° 9.279/96). O artigo 1° define o programa de computador como
sendo “a expressão de um conjunto de instruções em linguagem natural ou
codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário
em máquinas automáticas de tratamento de informação, dispositivos, instrumentos
ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou analógica, para fazê-los
funcionar de modo e para fins determinados.” Ao programa de computador é
conferido o regime de proteção às obras literárias, pela legislação de direitos
autorais e conexos (Lei n° 9.610/98) observadas as disposições específicas na Lei
do Software (artigo 2° da Lei n° 9.609/98). Destarte, aplicam-se as regras de
transferência da Lei n° 9.610/98 aos programas de computador. A propósito dos
contratos de licença de uso de software, de comercialização e de transferência de
tecnologia, quando da cessão do estabelecimento empresarial, o adquirente
assumirá a posição contratual consoante à regra do artigo 1.148, respeitadas as
disposições específicas (Lei n° 9.609/98 c/c Lei n° 9.610/98).
93
No que concerne à tecnologia, segundo a definição de Elizabeth Kasznar
Fekete148 abrange um conjunto de conhecimentos, sigilosos ou não, patenteados ou
não, sendo usado também, em sentido mais amplo ainda, universal, para significar
todo o estado da arte, o estágio de desenvolvimento técnico e comercial dos setores
em geral. O seu conceito é suficiente para albergar o saber-fazer (Know-how) e o
segredo industrial. Este seria espécie do saber-fazer e este, por sua vez, estaria
incluído no gênero tecnologia. Saber-fazer, na definição proposta por Denis Borges
Barbosa149, é o corpo de conhecimentos, técnicos e de outra natureza, necessários
para dar a um empresário acesso, manutenção ou vantagem no seu próprio
mercado. Pode-se dizer que o saber-fazer está ligado ao modelo de produção
específico, que possibilitará uma vantagem concorrencial para o empresário em face
dos seus demais competidores. O saber-fazer diferencia-se do segredo na medida
em que este se guarda e protege-se contra “ataques”, enquanto aquele possui uma
conotação mais dinâmica, de algo que não somente se guarda e se protege, mas
também algo que se transmite, se comunica, mediante remuneração. O saber-fazer
constitui elemento transmissível na cessão do estabelecimento empresarial. Ao
contrário da patente, que se trata de direito de propriedade industrial, conferido
exclusivamente na sua exploração, o saber-fazer e o segredo industrial são uma
situação de fato tutelados pela vedação de concorrência desleal e por contrato que
institua uma obrigação de não fazer com vistas a proibir uma das partes a divulgar
esse conjunto de conhecimentos.
148
FEKETE, Elizabeth Kasznar. O regime jurídico do segredo de indústria e comércio no Direito
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 56-60.
149
BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2003, p. 650.
94
h) contratos de trabalho e de serviço: por força do artigo 448150 da CLT,
determina que a mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não
afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados. Infere-se desse
preceito o princípio da continuidade do emprego ou da permanência do contrato de
trabalho. Sem embargo das críticas de terminologia que se possa fazer ao referido
preceito, mormente quanto aos dizeres “alteração na estrutura jurídica da empresa”,
a expressão “contrato de trabalho” contida, no preceito, revela uma relação jurídica
entre o empregado e o empregador. O artigo 448 da CLT deve ser compatibilizado
com o artigo 1.148151 do Código Civil. Portanto, constitui elemento do
estabelecimento empresarial e será transferido juntamente com este na hipótese de
cessão, de maneira que o adquirente assumirá a posição contratual do empresário
alienante.
Por outro lado, não apenas o empregado é fonte de energia laborativa, mas
também todos os demais sujeitos que atuam no estabelecimento empresarial são
seus colaboradores, como os administradores não sócios, os trabalhadores
autônomos, os profissionais intelectuais e os auxiliares estáveis e temporários
(representantes comerciais, intermediadores, mandatários, etc.).
Discute-se na doutrina nacional e estrangeira, se o trabalho humano e os
trabalhadores podem fazer parte do estabelecimento empresarial como elemento
deste. No Brasil, Rubens Requião152 é contra a sua inclusão entre os seus
elementos, ao passo que João Eunápio Borges153 é a favor. Mais recentemente,
150
Artigo 448. A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os
contratos de trabalhos dos respectivos empregados.
151
Artigo 1148. Salvo disposição em contrário, a transferência importa a subrogação do adquirente
nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal,
podendo terceiros rescindir o contrato em 90 dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer
justa causa, ressalvada, neste caso a responsabilidade do alienante.
152
REQUIÃO, op. cit., p. 242, nota 143.
153
BORGES, op. cit., pp. 191-192, nota 142.
95
Modesto Carvalhosa154 também alude que a atividade laboral é necessária à
operacionalização desses bens (corpóreos e incorpóreos), eis que para o sucesso
da empresa de nada adiantaria ao empresário reuni-los sem adicionar o fator
trabalho, através do qual os bens adquirem a unidade funcional que os caracteriza
como elementos do estabelecimento e, por conseguinte, com o fito de possibilitar o
exercício da empresa.
Essa concepção encontra respaldo da expressão “complexo de bens
organizado” contida na norma do artigo 1.142 do CC. A propósito da sua natureza,
Oscar Barreto Filho155 insere os contratos de trabalho e de serviços no gênero
serviços de pessoal e os remete à categoria de bens incorpóreos, sob o argumento
de que essas energias aplicadas ao trabalho configuram prestações de fazer que
aderem
ao
estabelecimento
independentemente
da
vontade
das
partes,
caracterizando-se como obrigações reais propter rem. António Menezes Cordeiro156
também adota a mesma posição ao incluir entre as coisas incorpóreas os direitos
provenientes de posições contratuais, como os contratos de trabalho, contratos de
prestação de serviço, contratos com fornecedores, contratos de agência, contratos
de distribuição, etc.
Na esteira da lição de Mario Casanova157, tais contratos de trabalho e de
serviço não estão albergados nas categorias de bens corpóreos e incorpóreos, os
quais podem ser remetidos à categoria das relações jurídicas obrigacionais (artigo
48, II c/c artigo 91). De qualquer forma, os contratos de trabalho e de serviço
indubitavelmente são elementos componentes do estabelecimento empresarial.
154
CARVALHOSA, op. cit., pp.617-618, nota 146.
BARRETO FILHO, op. cit., p. 159, nota 144.
156
CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001, p.
240.
157
CASANOVA, Mario. Verbete Azienda. In Digesto delle Discipline Privatistiche. 4ª ed. Vol. 1,
Torino: UTET, 1998.
155
96
i) direitos e créditos: há controvérsia a propósito da inclusão dos créditos e
direitos como elementos do estabelecimento empresarial. Em sentido desfavorável à
sua inclusão, argumenta-se que os direitos pertencem apenas ao titular do
estabelecimento empresarial, isto é, o empresário, que é sujeito de direito capaz de
ser titular de direitos e obrigações. O estabelecimento empresarial, como objeto de
direito, não possui personalidade jurídica e, por conseguinte, não poderá ser titular
de direitos. Não obstante, há direitos que ficam aderidos ao estabelecimento
empresarial por força de lei, quando se puder inferir do sistema jurídico ou por
convenção das partes (ex. cessão de crédito – artigos 286 a 298 do CC). Já se disse
alhures que o artigo 1.148 versa sobre a cessão da posição contratual (direitos) do
alienante, titular do estabelecimento, em favor do adquirente, nos negócios jurídicos
necessários à sua exploração (artigo 1.142), de tal sorte que os direitos e créditos
poderão constituir elementos imprescindíveis. É o caso da sociedade empresária
que explora a atividade de fomento mercantil, conhecida como factoring. Explica
Fábio Ulhoa Coelho158 que, no contrato de fomento mercantil, um empresário
(faturizador) presta a outro (faturizado) serviços de administração do crédito
concedido e garante o pagamento das faturas emitidas (maturity factoring); é
comum, também, o contrato abranger a antecipação do crédito, numa operação de
financiamento (conventional factoring). Destarte, quando da circulação do
estabelecimento empresarial (artigo 1.143), opera-se a transferência de tais direitos
e créditos. Impõe-se, portanto, reconhecer que estes também são elementos do
estabelecimento empresarial.
j) débitos e obrigações: de igual modo, débitos (dívidas) e obrigações são
refutados como elementos do estabelecimento a partir da argumentação supra
158
COELHO, op. cit., pp. 134-135, nota 148.
97
transcrita. Quanto aos débitos tributários, o artigo 133 do CTN estabelece que a
pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer
título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e
continuar a respectiva exploração, sob a mesma razão ou outra razão social ou sob
firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou
estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato: I - integralmente, se o
alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade; II subsidiariamente, com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar
dentro de 06 (seis) meses, a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo
ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão. Se o credor for o fisco,
aplicar-se-á a regra do artigo 133 CTN que permanece vigente. No direito do
trabalho a responsabilidade por sucessão é interpretada de forma ampla para se
assegurar a solvência do crédito do empregado. A compra do estabelecimento
empresarial e a manutenção das atividades e do contrato de trabalho anterior são
condições suficientes, porém não imprescindíveis, para responsabilizar o adquirente.
Como já foi dito alhures, o artigo 1.146 do CC versa sobre assunção da
dívida (cumulativa e liberatória), cuja regra aplica-se a todos os demais credores.
Apesar das dívidas indubitavelmente serem transmitidas por ocasião da cessão do
estabelecimento empresarial (artigo 1.143), estas não se prestam ao exercício da
atividade empresarial (artigo 1.142). Parece que a sua inclusão quando da
transferência do estabelecimento se deve à política legislativa que visa dar
efetividade às normas dos artigos 677159 e 678160 do CPC, que tutelam os interesses
159
Art. 677 - Quando a penhora recair em estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, bem
como em semoventes, plantações ou edifício em construção, o juiz nomeará um depositário,
determinando-lhe que apresente em 10 (dez) dias a forma de administração.
§ 1º - Ouvidas as partes, o juiz decidirá.
§ 2º - É lícito, porém, às partes ajustarem a forma de administração, escolhendo o depositário; caso
em que o juiz homologará por despacho a indicação.
98
e credores. Segundo os referidos preceitos, o estabelecimento pode ser objeto de
apreensão judicial, sujeitando-se à penhora. Contudo, ao contrário da medida de
expropriação, esta medida impõe a função de guarda e providências de
administração que assegurem a incolumidade dos bens penhorados, conservando,
destarte a unidade funcional do estabelecimento (artigo 1.143). Esse é o
entendimento perfilhado por Celso Neves161, ao afirmar que o intuito do legislador
está em que se mantenham as atividades próprias das empresas e outros
estabelecimentos. Por tais razões, os débitos não estão inclusos entre os elementos
componentes do estabelecimento empresarial, eis que não desempenham papel
essencial no funcionamento do estabelecimento (artigo 1.142), apesar de serem
transmitidos com este quando da sua circulação (artigo 1.143 c/c artigo 1.146).
Em relação aos débitos, fundamental é mencionar que o passivo não integra
o estabelecimento do empresário, ou seja, o passivo não compõe o objeto
transacionado quando o adquirente efetua o trespasse. A regra do direito brasileiro é
a de que o adquirente não se obriga pelas dívidas de seu antecessor, isto é, os
credores do alienante não são credores do adquirente. Não há sub-rogação em
decorrência do trespasse. Não obstante, a regra geral da não responsabilização não
é absoluta, ou seja, independentemente de acordo, o adquirente é sucessor legal do
alienante, em relação às obrigações trabalhistas e tributárias. Ensina Rubens
Requião162 que os débitos não são bens pertencentes ao empresário, mas gravam
160
Art. 678 - A penhora de empresa, que funcione mediante concessão ou autorização, far-se-á,
conforme o valor do crédito, sobre a renda, sobre determinados bens ou sobre todo o patrimônio,
nomeando o juiz como depositário, de preferência, um dos seus diretores.
Parágrafo único - Quando a penhora recair sobre a renda, ou sobre determinados bens, o depositário
apresentará a forma de administração e o esquema de pagamento observando-se, quanto ao mais, o
disposto nos arts. 716 a 720; recaindo, porém, sobre todo o patrimônio, prosseguirá a execução os
seus ulteriores termos, ouvindo-se, antes da arrematação ou da adjudicação, o poder público, que
houver outorgado a concessão.
161
NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 7. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, p. 74.
162
REQUIÃO, op. cit., pp. 287-288, nota 143.
99
ao seu patrimônio, que por eles responde. Desta forma, os débitos do empresário,
embora decorrentes da manutenção do estabelecimento empresarial, nele não se
integram. Para tanto, é necessário compreender, como acentuou Ascarelli, que o
conceito de azienda (complexo de bens) não se identifica com o de patrimônio
(complexo de relações jurídicas ativa e passiva), e, sobretudo de patrimônio
autônomo. O patrimônio é do empresário e não do estabelecimento. Pode o
proprietário do patrimônio, o empresário, dispor dele para integrá-lo no
estabelecimento. São bens de que tem a mais completa disposição. Dá o destino
que bem entender aos seus bens. Para ele embora as dívidas não integrem o
estabelecimento empresarial, a lei visou impedir a venda ou transferência do
estabelecimento sem que fossem elas liquidadas.
De qualquer modo, deve-se frisar que, à luz da perspectiva do critério
funcional, os elementos componentes do estabelecimento empresarial serão
aqueles que mantêm a identidade do projeto empresarial e as características
qualitativas do processo produtivo.
Assim sendo, no sistema jurídico brasileiro, os elementos potencialmente
constitutivos de um estabelecimento empresarial supra mencionado podem ser
reconduzidos às categorias de bens corpóreos (materiais) e incorpóreos (imateriais)
e das relações jurídicas (contratos de trabalho e serviços, créditos).
Diante disso, parece que melhor seria entender a locução complexo de bens
organizados, prevista no artigo 1.142, como instrumentos de produção. Dessa
forma, para formar o seu estabelecimento empresarial, o empresário identificará os
bens que são necessários para o desenvolvimento de sua atividade, promovendo a
sua reunião com a organização que considerar mais conveniente e funcional.
100
3.5 O AVIAMENTO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
O aviamento é expressão preferida da doutrina italiana, à qual aderiu a
brasileira. A tal respeito, ensina Aldo Fiale163 que do fato do estabelecimento
empresarial ser caracterizado como um complexo de bens organizados em função
de um escopo produtivo infere-se que os bens singulares dele componentes têm um
valor determinado e que, ao contrário, se organizados para o exercício do
estabelecimento, os mesmos bens têm um valor superior em relação àquele
individual. A esse valor a maior ou sobrevalor que tais bens adquirem quando são
organizados dá-se o nome de aviamento do estabelecimento.
O aviamento, em síntese, é conceituado pela doutrina como a capacidade
do estabelecimento de produzir lucros. Essa capacidade de produzir lucros tem
origem no conjunto de bens selecionados pelo empresário e na organização a eles
oferecida, sendo uma conseqüência do trabalho intelectual do empresário ao
organizar os seus bens. A expressão aviamento traduz essa idéia: organização
eficiente que resulta na atração de clientela que se reflete na capacidade lucrativa
do estabelecimento.
A
expressão
aviamento
vem
justificar
o
sobrevalor
pago
pelo
estabelecimento quando este é objeto de algum negócio jurídico. Quando se paga
pelo estabelecimento empresarial mais que a soma dos bens que o compõem, pagase pelo seu aviamento.
Esse sobrevalor a que corresponde o aviamento, que decorre dos elementos
do estabelecimento, pelo fato dos bens que o compõem serem organizados e
coordenados para atingir o mesmo fim, existe, então, um fundamento subjetivo –
163
FIALE, Aldo. Diritto Commerciale. Edizione Napoli: Esselibri-Simone, 1994, pp.74-75.
101
aviamento subjetivo - em razão da capacidade e da qualidade do empresário; e um
fundamento objetivo – aviamento objetivo - que decorre dos elementos do
estabelecimento e do lugar no qual a atividade se desenvolve.
Entre as características do aviamento subjetivo, pode-se mencionar a
relação com os fornecedores, bancos e demais instituições de crédito, a confiança
que têm os clientes num determinado empresário, do conhecimento que este tem
nos seus hábitos e nos seus gostos, na sua capacidade, honestidade, jeito, zelo,
prudência e certeza nas deliberações.
No que concerne ao aviamento objetivo, citem-se as características
provenientes da reunião dos elementos do estabelecimento empresarial e da sua
organização.
A clientela, representada pelo fluxo constante de pessoas dispostas a
contratar com o estabelecimento, é resultado do aviamento, este compreendido na
sua perspectiva subjetiva e objetiva. Fala-se, assim, de aviamento-clientela.
Anota Mario Casanova164 que o aviamento não se exaure na clientela. Com
efeito, um estabelecimento é bem aviado quando a gestão pode contar com uma
durável e fiel clientela. Mas a clientela é apenas um dos fatores e dos aspectos do
aviamento do estabelecimento empresarial. Deve-se ter em conta, para uma
avaliação do grau de aviamento, também os outros fatores, entre os quais, as
relações com os colaboradores, os fornecedores, e os auxiliares do empresário.
Deve-se, portanto, ter presente, ao lado da clientela, que determina o volume dos
produtos e serviços, também estes outros fatores que, por sua vez, influenciam
sobre o montante dos custos. Por conseguinte, a baixa incidência dos custos e o alto
nível dos produtos, proporcionam como resultado o lucro. Ambos interessam para a
164
CASANOVA, Mario. Verbete Azienda. In Digesto delle Discipline Privatistiche. 4ª ed. Vol. 1,
Torino: UTET, 1998, p. 79.
102
obtenção dos escopos econômicos que se conseguem graças à organização do
estabelecimento. Trata-se, então, de aviamento-organização.
A partir desses múltiplos aspectos, define-se, mais precisamente, o
aviamento como a atuação objetiva que o estabelecimento se propõe a atingir ao fim
que lhe é próprio. O aviamento é imprescindível no estabelecimento empresarial,
não existe estabelecimento sem aviamento, por mais rudimentar que seja. Por tal
razão, afirma Ângelo de Martini165 que, em conformidade com a intensidade e a
colocação das características qualitativas (aviamento subjetivo e objetivo), pode
haver um estabelecimento muito ou bem aviado e um estabelecimento pouco ou mal
aviado. Assim, tem-se o aviamento positivo (goodwill) e o aviamento negativo
(goodwill negativo ou badwill) ou desviamento166.
O bom aviamento, cuja função primacial é captar e fixar clientela, passa a
constituir
uma
mais
valia,
a
ser
considerada
quando
da
alienação
do
estabelecimento.
Discute-se em doutrina se o aviamento é apenas uma qualidade ou se
constitui, por si, um elemento do estabelecimento comercial, um bem imaterial da
natureza dos demais elementos incorpóreos integrantes do estabelecimento.
Cumpre destacar algumas concepções a respeito da natureza do aviamento.
A primeira é aquela que reconhece o aviamento como um bem imaterial. Segundo
essa teoria, a organização dos bens do estabelecimento constitui um típico e
essencial bem imaterial do estabelecimento, porquanto, em certo sentido, é uma
criação e invenção do empresário. O aviamento é identificado como o resultado
165
MARTINI, Ângelo de. Corso di Diritto Commerciale. Volume primo. Milano: Giuffrè, 1983, p.198199.
166
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol.1. São Paulo: Malheiros.
2004, p. 255: E tal valor pode ser negativo, denominado badwill ou goodwill negativo, na hipótese de
deságio e/ou relacionado à expectativa de prejuízos futuros, ao qual acima se chamou desviamento.
103
organizativo do estabelecimento. Logo, este também deve ser reconhecido como
bem imaterial.
A segunda concepção, capitaneada por Francesco Carrara167, identifica os
conceitos de aviamento e estabelecimento, afirmando que
[...] existe um só elemento essencial do estabelecimento, é a combinação
dos fatores da produção; este elemento não é uma universalidade de coisas
ou de direitos e não pode classificar-se na categoria de coisas; nem é um
modo de ser do estabelecimento: vamos ainda além e afirmamos que o
aviamento é o próprio estabelecimento.
Essa concepção não sustenta antes as objeções supramencionadas,
mormente porque se o aviamento é concebido como uma força ou energia latente,
este não se confunde com o estabelecimento no qual se manifesta, “assim como a
vida se distingue do ser que anima e a energia não se confunde com a matéria
sobre que se aplica”168.
Uma terceira concepção defendida por João Eunápio Borges169, sustenta
que o aviamento é uma qualidade, um atributo do estabelecimento, não um
elemento autônomo que se possa considerar isoladamente como os demais de que
se compõe o estabelecimento. Para ele, o aviamento é, em síntese, uma resultante
dos elementos organizados que compõem o estabelecimento. Ao mesmo tempo,
constitui o aviamento a verdadeira medida do valor de um estabelecimento
comercial. Se a finalidade econômica deste é produzir e dar lucros e se o aviamento
é precisamente a capacidade de produzir e de dar lucros, a eficiência do
estabelecimento é decorrência de seu aviamento.
Pelo simples fato de existir, e por mais rudimentar que seja sua organização,
todo estabelecimento tem seu aviamento. A diferença será apenas de grau, mas o
aviamento é atributo necessário e essencial de qualquer estabelecimento.
167
Apud BARRETO FILHO, op. cit., p.172, nota 144.
BARRETO FILHO, op. cit., p.172, nota 144.
169
BORGES, Op. Cit., p. 193, nota 142.
168
104
Essa teoria é suficiente para explicar o aviamento objetivo, mas por outro
lado, é incompleta, pois deixa de considerar o aviamento subjetivo.
Com efeito, o aviamento não decorre apenas dos fatores de produção e da
sua organização, mas também, da capacidade e das qualidades do titular do
estabelecimento empresarial.
Destarte, a concepção que vê no aviamento um fator resultante dos fatores
do estabelecimento e da pessoa do titular é a que parece mais adequada a explicálo.
Por fim, cabe anotar que, na transferência do estabelecimento empresarial,
são transmitidos apenas os fatores ligados à sua organização e o complexo de bens
componentes, isto é, o aviamento objetivo.
Por sua vez, o aviamento, isto é, a atitude que tem o estabelecimento,
enquanto organização, de produzir lucros futuros, não se realiza senão através da
clientela ou freguesia do estabelecimento, que será, a seguir, estudada.
3.6 A CLIENTELA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
Conforme assinalado anteriormente, discute-se em doutrina se a clientela ou
o seu direito constitui ou não elemento essencial componente do estabelecimento
empresarial.
Pode-se dizer que todo o trabalho desempenhado pelo empresário ao
aparelhar-se, produzir bens de boa qualidade, oferecer um bom atendimento, entre
outras preocupações, tem por objetivo conquistar para si uma clientela, que é de
extrema importância para o estabelecimento empresarial. Para a clientela vive o
estabelecimento.
105
A clientela compreende os destinatários dos bens e serviços produzidos pelo
empresário e o fluxo constante de demanda desses bens e serviços que estão
dispostos a contratar com o estabelecimento. Ela não tem deveres em relação à
empresa e nem pode ser objeto de direito real. Para o direito em vigor a clientela é
insuscetível de apropriação.
A clientela traduz uma probabilidade, uma expectativa. Essa probabilidade e
expectativa decorrem da exploração da atividade do estabelecimento empresarial.
Quanto à sua composição, a clientela pode ser certa e virtual. Será certa
quando resultar de relações contratuais com alguma estabilidade ou quando a
própria natureza da atividade assegurar que os clientes renovarão as suas
encomendas. Haverá uma clientela virtual, correspondente às expectativas ou
possibilidades de que novos clientes se dirijam à empresa.
Assim, necessário se faz identificar a posição da clientela no estudo da
estrutura jurídica do estabelecimento empresarial. Alguns autores consideram a
clientela elemento integrante do estabelecimento empresarial. Jozé Cândido
Sampaio de Lacerda170 doutrina que a freguesia ou clientela constitui o elemento
essencial, a alma do estabelecimento empresarial.
De fato, a presença de clientela é fundamental para o estabelecimento
empresarial, mas não se chega à conclusão de que a clientela é bem incorpóreo que
compõe juntamente com os demais, corpóreos e incorpóreos, o estabelecimento
empresarial.
Possuir
autonomia,
ou
seja,
constituir
uma
entidade
econômica
independente, possuir valor economicamente apreciável e ser capaz de subordinar-
170
LACERDA, Jozé Cândido Sampaio de. Lições de Direito Comercial Terrestre. p. 112.
106
se juridicamente a um titular são características dos bens jurídicos. O bem imaterial
deverá, também, ser reconhecido pela ordem jurídica para caracterizar-se como tal.
A impossibilidade de a clientela subordinar-se juridicamente ao titular do
estabelecimento empresarial é patente. Não há como dispor da clientela, não há
como impedir que esta abandone o estabelecimento.
A clientela á apenas resultado de contingências criadas ou não pelo
empresário, mas nunca um bem pertencente a ele ou integrante do conjunto de seus
bens. Assim, pode-se dizer que a clientela é, apenas, um efeito do dinamismo
(aviamento) empresarial. Pelo seu fluxo e refluxo a clientela não oferece o requisito
de fixação para se constituir em elemento estável da empresa.
A clientela também carece de autonomia. Ela existe somente enquanto os
elementos do estabelecimento estiverem a seu serviço. A clientela não sobrevive
sem a figura do estabelecimento, pois a situação de pessoas que consomem
habitualmente só é possível quando se refere a um determinado estabelecimento.
A clientela não recebe uma regulamentação específica do direito que a torne
suscetível de ser objeto deste. As normas legais que se referem à clientela são as
regras de concorrência desleal. Essas normas não conferem a um determinado
sujeito de direito, poderes sobre a clientela. Elas apenas impedem que os
concorrentes se utilizem de meios fraudulentos para atrair clientela alheia.
Vê-se, dessa forma, que a clientela não se enquadra no conceito de bem
jurídico, não integrando o estabelecimento na qualidade de elemento componente. A
clientela é apenas um objetivo do estabelecimento empresarial, ou seja, desenvolvese a estrutura do estabelecimento empresarial para que ele seja capaz de atrai-la e
fixá-la.
107
Assim, tendo em vista que, a clientela não é uma coisa suscetível de
apropriação, e, portanto, não pode ser objeto de direito, é possível razoavelmente
afirmar que, na transferência do estabelecimento empresarial, o que sucede é
apenas a possibilidade atribuída ao adquirente de aceder a uma posição similar
àquela que o alienante anteriormente ocupava.
No que concerne ao regime jurídico, o direito à clientela estaria assentado
no: (I) regime da concorrência desleal, cuja tônica preponderante é a proteção da
integridade da clientela, como elemento da empresa; (II) nos contratos de alienação
e cessão de exploração do estabelecimento que, através da cláusula implícita de
não-concorrência, é vedado ao alienante ou locador a captação da clientela do
estabelecimento (artigo 1147 do CC) e; (III) no contrato de agência, ao conferir ao
agente o direito a uma indenização de clientela, de caráter compensatório, se e na
medida em que tenha angariado para a outra parte.
Com efeito, em um sistema capitalista, baseado no princípio da livre
iniciativa, predomina a existência de uma pluralidade de sujeitos econômicos
diferenciados que atuam num mercado com uma pluralidade de consumidores com
vistas à obtenção do lucro. A idéia de concorrência, portanto, é subjacente à de livre
iniciativa.
Consoante
Carlos
Olavo171,
a
concorrência
caracteriza-se
pela
possibilidade de flutuação de escolha por parte dos consumidores e representa a
competição entre os vários agentes econômicos com vistas a atingirem a
supremacia no mercado em relação aos demais. Daí se infere a possibilidade de
que a prevalência de um empresário possa corresponder ao sacrifício do outro.
Por conseguinte, aceita-se que um empresário que atue honestamente
possa criar e expandir sua clientela às custas de clientela alheia. Destarte, não se
171
OLAVO, Carlos. Propriedade industrial. Coimbra: Almedina, 1997, pp. 5-23.
108
pode falar em um direito sobre a clientela (em potencial). Também não se pode
sustentar um direito de clientela (real), sob pena de submeter o consumidor a um
regime de contratação obrigatória, retirando-lhe a liberdade de escolha (artigo 6º,
inciso II, e artigo 39, inciso I, da Lei nº 8.078/90).
As regras de concorrência, tanto a liberdade quanto a lealdade são
direcionadas à tutela institucional do mercado. Os concorrentes, através da proibição
de concorrência desleal que coíbe os comportamentos reprováveis (dever genérico
de lealdade), têm os seus interesses tutelados de forma secundária. O interesse
primário é o interesse da coletividade sobre a concorrência em si, isto é, na sua
perspectiva como instituição.
Quanto ao direito à clientela, decorrente da cláusula implícita de não
concorrência
nos
contratos
de
alienação
e
cessão
de
exploração
do
estabelecimento, este constitui o núcleo do presente trabalho, de modo que se
tratará especificamente dessa questão ao examinar a qualificação jurídica do
contrato de trespasse.
3.7 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL
O desenvolvimento da Internet, que é um sistema global de rede de
computadores, possibilitou a comunicação e a transferência de arquivos de uma
máquina a qualquer outra máquina conectada na rede. Com isso, tornou-se possível
um intercâmbio de informações sem precedentes na história, de maneira rápida,
eficiente e sem limitações de fronteiras, culminando na criação de mecanismos de
relacionamento, conforme lição de Gustavo Testa Corrêa172.
172
CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.8.
Explica o autor que a internet não é a World Wide Web, também chamada de WWW, pois, justamente
109
Anota ainda o autor que:
a utilização da Grande Rede cresce assustadoramente, constituindo um
verdadeiro fenômeno mundial, representando um mercado superior à marca
de 50 bilhões de dólares até 2005. Isso se deve ao grande número de
pessoas proprietárias de microcomputadores pessoais, conectando-se aos
serviços públicos da Rede, por meio da inscrição junto aos provedores de
acesso, e estes, as várias empresas responsáveis pela distribuição do sinal
da internet.
O sucesso da Internet acabou por também atrair organizações empresariais
que passaram a exercer a sua atividade no ambiente virtual, mediante a oferta de
produtos e serviços aos clientes conectados à rede de computadores.
É possível, então, falar em um novo ambiente de negócios, o mercado
virtual, nas palavras de Modesto Carvalhosa173.
Assim, além do ponto comercial “físico”, sobre o qual se tratará
especificamente mais adiante, o empresário passou a ofertar seus produtos e
serviços num site, identificado na Internet pelo usuário por meio de um endereço
eletrônico, também chamado de nome de domínio.
A doutrina brasileira, entre outros, Fábio Ulhoa Coelho174, Modesto
Carvalhosa175, Maria Tereza Lynch de Moraes176, sustenta que este site, onde o
empresário exerce a sua atividade no ambiente da Internet, é um estabelecimento
virtual.
Assim como ocorre no estabelecimento empresarial físico, no que concerne
ao ponto empresarial, o titular do estabelecimento virtual não precisa ser o titular
(proprietário) do nome de domínio, pois este poderá licenciá-lo àquele.Todavia, a
propósito de estender a tutela de renovação compulsória do contrato de locação
devido a sua extensão e amplitude, aquela significa o meio pelo qual o correio eletrônico, os
servidores FTP, a WWW, o Usenet e outros serviços trafega.
173
CARVALHOSA, op.cit., p. 624, nota 146.
174
COELHO, op. cit., p. 98, nota 148.
175
CARVALHOSA, op.cit., p. 625, nota 146.
176
MORAES, Maria Tereza Lynch de. O Trespasse: A alienação do Estabelecimento Empresarial e a
Cláusula de Não Restabelecimento. In Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 90, n. 792, pp. 116-128,
out. 2001.
110
empresarial ao contrato de licença de nome de domínio, Maria Tereza Lynch de
Moraes177 assevera que:
[...] não impera quando o estabelecimento é virtual, posto que, nessas
novas casas de comércio, não ocorre a formação do ponto comercial ‘físico’,
já que, na maioria das vezes, o consumidor nem sequer sabe onde se
localiza geograficamente o estabelecimento nem precisa ter esta ciência,
porque as transações comerciais eletrônicas dispensam o deslocamento
dos consumidores até o imóvel onde está situado o estabelecimento. Desse
modo, em se tratando de empresa virtual, não é necessário se preocupar
com a renovação do contrato de locação do imóvel onde se instala a
empresa virtual para garantir a efetividade econômica do trespasse.
3.8 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL RURAL
A empresa rural compreende todas as atividades que têm, na terra, o fator
principal de sua realização. Nesse gênero encontram-se a agricultura, a pecuária, a
silvicultura, o extrativismo, a caça. As atividades conexas, tais como as de
beneficiamento dos produtos rurais, promovidas localmente, a fim de adequá-los à
comercialização, também se integrariam nesse mesmo contexto.
As atividades rurais no Brasil são exploradas em dois tipos radicalmente
diferentes de organizações econômicas. Tomando-se a produção de alimentos, por
exemplo, encontra-se na economia brasileira, de um lado, a agroindústria ou
agronegócio e, de outro, a agricultura familiar. Naquela, emprega-se tecnologia
avançada e mão de obra assalariada (permanente e temporária), há especialização
de culturas em grandes áreas de cultivo; na familiar, trabalham o dono da terra e
seus parentes, um ou outro empregado, e são relativamente mais diversificadas as
culturas e menores as áreas de cultivo. Convém registrar que, ao contrário de outros
países, principalmente na Europa, em que a pequena propriedade rural sempre teve
e continua tendo importância econômica no encaminhamento da questão agrícola,
177
Ibid., pp. 116-128.
111
no Brasil, a produção de alimentos é altamente industrializada e concentra-se em
grandes empresas rurais.
Sabe-se que a atividade rural, tradicionalmente, não estava submetida ao
pálio do Direito Comercial por não ser considerada mercancia, nos termos do art. 4º
do Código Comercial e arts. 19 e 20 do Decreto nº 737/1850. Apenas as sociedades
anônimas que exploravam atividades rurais possuíam natureza mercantil em razão
da forma societária adotada (cf. art. 2º, § 1º da Lei nº 6.404/76).
O Código Civil, nos artigos 971 e 984, permitiu que o empresário rural e a
sociedade empresária rural pudessem optar entre o regime estabelecido para os
empresários sujeitos a registro e à submissão ao regime não empresarial. A
possibilidade de opção justificou-se diante da diversidade de organização entre os
pequenos produtores e a grande empresa rural.
Em vista dessas características da agricultura brasileira, o Código Civil de
2002 reservou para o exercente de atividade rural um tratamento específico nos
artigos 971 e 984. Esse tratamento diferenciado, assegurado pelo Código Civil,
confere ao empresário rural a opção de requerer a inscrição no Registro de
Empresas, e, uma vez inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao
empresário sujeito a registro.
Ora, se uma vez inscrito no Registro de Empresas, ficará equiparado ao
empresário sujeito a registro, enquanto não inscrito desfrutará das condições
próprias do não-empresário. Por conseguinte, segundo a dicção do art. 1142 do
Código Civil, o estabelecimento é um complexo de bens utilizado para o exercício da
empresa e, como tal, prende-se necessariamente à figura do empresário. Somente é
possível aplicar as disposições referentes ao estabelecimento à pessoa física ou
jurídica que exerça a opção do registro na Junta Comercial, pois é com essa
112
providência que ocorrerá a equiparação, para todos os fins legais, ao empresário
regular.
No entanto, em relação ao empresário rural, é necessário verificar a
existência ou não de inscrição no Registro de Empresas, porque somente o
empresário rural registrado estará sujeito à Lei de Falências e Recuperação de
Empresas (cf. art. 1º da Lei nº 11101/05).
Não devem ser aplicadas ao empresário individual e à sociedade as sanções
pela falta de inscrição de firma, ou a não aquisição da personalidade jurídica pelo
arquivamento do contrato no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Somente com o
registro na Junta Comercial é que a pessoa natural ou a sociedade serão reputadas
empresárias para fins de direito. Por conseguinte, é vedada a decretação da falência
do empresário ou da sociedade, antes do arquivamento da firma ou do contrato na
Junta Comercial.
A sociedade com atividade rural, se não for empresária – vale dizer, se não
contar com uma organização – será necessariamente uma sociedade simples.
Dotada de organização, poderá optar, livremente, entre a condição de sociedade
simples e a condição de sociedade empresária.
A sociedade rural desfruta, pois, de uma situação singular. Mesmo sendo
uma empresa, cabe-lhe escolher o seu status jurídico, de sociedade simples ou
empresária, para tanto bastando optar, respectivamente, pelo Registro Civil das
Pessoas Jurídicas ou pelo Registro Público de Empresas Mercantis.
Pode-se, então, assentar que o empresário individual rural não se encontra
sujeito a registro, mas poderá promovê-lo, passando a ser tratado formalmente
como empresário, e que a sociedade empresária rural, independentemente de seu
porte ou patrimônio, poderá optar entre inscrever-se no Registro Civil das Pessoas
113
Jurídicas, assumindo a condição de uma sociedade simples, ou no Registro Público
de Empresas Mercantis, assumindo a condição formal de sociedade empresária.
114
4 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO
ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL – O TRESPASSE
A livre concorrência no campo das atividades econômicas é manifestação da
liberdade de iniciativa, constituindo um fenômeno natural, legítimo e indispensável
ao progresso e bem estar da sociedade.
Situação diversa, contudo é a concorrência desleal, que pelo seu caráter
ilícito, deve ser e é reprimida, pois ao direito constitucional de explorar atividade
econômica, expresso no princípio da livre iniciativa, corresponde o dever, imposto a
todos, de respeitá-lo.
No caso da alienação do estabelecimento empresarial a observância aos
princípios da livre iniciativa e da livre concorrência manifesta-se, através de uma
limitação, que consiste no impedimento do restabelecimento da parte alienante.
Tem-se, portanto, que a continuidade do exercício da atividade econômica do
comerciante-alienante fica adstrita a determinadas condições que têm o intuito de
evitar que essa prática mercantil assuma as características de concorrência desleal.
Assim, a doutrina e a jurisprudência admitem a estipulação de convenções
impedientes ou restritivas de liberdade econômica, visando preservar a clientela.
4.1 O CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E A
SUA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
O estabelecimento empresarial pode ser objeto unitário de negócios
jurídicos, translativos ou constitutivos, inter vivos ou mortis causa, em consonância
115
com a sua natureza jurídica que, como visto, é de uma universalidade de fato. O art.
1.143 do CC dá suporte legal à sua transmissão.
Trata-se, nas palavras de E. Santos Júnior178, do aspecto dinâmico do
estabelecimento empresarial a que o Direito garante a sua circulação, justamente,
para impedir que ele desagregue quando o seu titular deixe, queira ou tenha de
deixar de estar à sua frente.
Na doutrina brasileira, Oscar Barreto Filho179 elenca esses negócios nas
seguintes categorias: (I) negócios jurídicos de alienação, inter vivos, a título oneroso
(cessão ou trespasse, permuta, conferência de sociedade, dação em pagamento) ou
a título gratuito (doação); (II) negócios de alienação mortis causa (sucessão legítima
ou testamentária); (III) negócios de gestão para fim de desfrute (arrendamento,
usufruto, comodato, constituição de dote) ou de garantia (penhor).
Para a presente investigação, interessa a primeira categoria, mais
especificamente o negócio jurídico de trespasse do estabelecimento empresarial.
Etimologicamente trespasse significa, entre outra, transmissão, transferência
e alienação. Essa expressão é tradicionalmente empregada pela doutrina
portuguesa para designar a transferência do estabelecimento empresarial a título
oneroso, consoante lição de Barbosa Magalhães180, António Menezes Cordeiro181,
Fernando de Gravato Morais182 e Miguel J. A. Pupo Correia183. Este último afirma
categoricamente que ficam excluídos do âmbito do conceito os casos de
transmissão mortis causa.
178
SANTOS JÚNIOR, E. Sobre o Trespasse e a Cessão de Exploração do Estabelecimento
Comercial. In ASCENÇÃO, José de Oliveira (Org.). As operações comerciais. Coimbra: Almedina,
1988, p.407.
179
BARRETO FILHO, op. cit., p. 206, nota 144.
180
MAGALHÃES, Barbosa de. Do Estabelecimento Comercial. Lisboa: Ática, 1951, p. 211.
181
CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001, p.
248.
182
MORAIS, Fernando de Gravato. Alienação e oneração de estabelecimento comercial. Coimbra:
Almedina, 2005, pp. 79-80.
183
CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial. 8ª ed. Lisboa: Ediforum, 2003, p. 322.
116
No Direito português, há várias disposições legais que empregam a
expressão trespasse, sendo certo que o § 4º do art. 33 do Decreto, de 12/11/1910,
dispôs que os prédios, em que estivessem instalados os estabelecimentos
comerciais ou industriais, só podiam ser sublocados sem autorização do senhorio
em caso de trespasse do mesmo negócio. Já o Alvará, de 16 de Dezembro de 1757,
empregara o termo sinônimo traspasso para designar situação similar àquela.
Os contornos do trespasse, nos moldes acima, foram inicialmente acolhidos
pela doutrina brasileira conforme se infere da lição de Waldemar Ferreira184:
Trespasso é o ato de trespassar, passar além, passar a outrem, dar, ceder,
alheiar, a título oneroso ou gratuito. Também se diz traspasso. As duas
figuras são correntes na vida mercantil. Quando se diz que certo
comerciante trespassou seu estabelecimento, o que se afirma é que este foi
transferido.
Todavia, Oscar Barreto Filho185 dispensou tratamento mais restrito ao
negócio jurídico de trespasse, excluindo a transmissão do estabelecimento a título
gratuito, sob o argumento de que o trespasse refere-se especificamente à
transferência do estabelecimento que se opera por efeito de venda ou cessão.
Sustenta que é preferível empregar o termo cessão, visto que a venda se refere à
transferência do domínio das coisas corpóreas (artigo 1.222 do CC/1916). Assim,
por empregar o termo mais restrito de cessão, aplica-se, então, às demais
modalidades de negócios jurídicos a título oneroso (artigos 996 e 1.146 do CC/1916;
artigo 4º e seguintes do Decreto-lei nº 2.627/1940).
Deve-se falar de trespasse do estabelecimento somente quando o negócio
se refere ao complexo unitário de bens instrumentais que servem à atividade
empresarial, necessariamente caracterizado pela existência do aviamento objetivo.
O princípio geral que inspira toda a disciplina jurídica do trespasse, como vem
184
FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial. 2° vol., tomo1. São Paulo:
Saraiva, 1952, p. 207.
185
BARRETO FILHO, op. cit., p. 208, nota 144.
117
expressa nas várias legislações, é sempre o de resguardar a integridade do
aviamento, por ocasião da mudança de titularidade da casa comercial.
A doutrina mais recente como Waldírio Bulgarelli186, Modesto Carvalhosa187,
Marcelo M. Bertoldi188 e Maria Tereza Lynch de Moraes189, inclina-se na adoção da
concepção do trespasse como ato negocial de venda do estabelecimento
empresarial.
A nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101, de
09/02/2005) empregou a expressão trespasse no inciso VII, do artigo 50, como uma
das modalidades de recuperação para designar a venda do estabelecimento
empresarial, portanto, negócio jurídico oneroso.
No trespasse, o alienante ou vendedor do estabelecimento é denominado de
trespassante, enquanto o adquirente ou comprador chama-se trespassário.
O contrato de trespasse tem por objetivo a transmissão do estabelecimento
empresarial, que dada a sua natureza de universalidade, os elementos componentes
(fatores de produção) podem compreender bens corpóreos (materiais) e incorpóreos
(imateriais), relações jurídicas (contratos de trabalho e de serviços, etc.) e créditos.
Afigura-se imperioso que no trespasse o estabelecimento seja alienado
como um todo unitário, albergando os elementos que compõem a sua
universalidade. Todavia, é possível que algum ou alguns desses elementos sejam
especificamente subtraídos, com o consentimento do adquirente, de maneira que,
ainda assim, restará caracterizado o negócio de trespasse, desde que mantida a
186
BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas;
empresas e estabelecimento comercial: estudo das sociedades comerciais e seus tipos, conceitos
modernos de empresa e estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagem
às sociedades civis e cooperativas. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 336.
187
CARVALHOSA, OP. CIT., p. 636, nota 146.
188
BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 115.
189
MORAES, op. cit., p. 119, nota 176.
118
estabilidade da organização do estabelecimento e se mantenha apto ao exercício da
atividade empresarial.
No tocante à classificação do contrato de trespasse, Modesto Carvalhosa190
sustenta tratar-se de um negócio oneroso, sinalagmático, comutativo e documentado
(escrito).
Dada à peculiaridade de estar-se transferindo uma universalidade, que é o
seu objeto, o contrato de trespasse é uno, de maneira que possibilita a inclusão, em
um único instrumento, de todas as cláusulas e condições necessárias para a
transferência dos bens e direitos considerados na sua individualidade. Nada obsta,
porém, que o trespasse do estabelecimento empresarial opere-se mediante a
celebração de vários contratos representativos de cada bem e direito componente,
desde que visem ao mesmo fim191.
O contrato de trespasse deve ser classificado como um contrato misto pelo
fato de resultar da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos
distintos. Além disso, pode ser incluído na categoria dos contratos mistos de
modalidade múltipla, visto que uma das partes obriga-se a várias prestações
principais, próprias de outras tantas categorias de contratos, e a outra parte promete
uma remuneração global.
Assim, em havendo duas prestações para uma das partes, é preciso saber
se entre elas há relação de dependência para a resolução do contrato. A resolução
por descumprimento da principal implica a da obrigação definida como acessória.
Por outro lado, a inexecução da obrigação acessória poderá levar à resolução da
principal, se a sua falta impossibilitar ou tornar extraordinariamente difícil a principal,
ou se determinar a perda do interesse do credor em recebê-la.
190
191
CARVALHOSA, op.cit., p. 636, nota 146.
BARRETO FILHO, op. cit., p. 211, nota 144.
119
Nesse particular, o perfil finalístico do contrato de trespasse assume especial
relevância para determinação da utilidade da prestação que restou inadimplida pelo
alienante. De acordo com a finalidade econômica do contrato de trespasse, o
interesse do alienante está no recebimento do preço ajustado. Por seu turno, o
interesse do adquirente reside na aquisição do complexo organizado dos fatores de
produção, ou seja, os mesmos bens e direitos idôneos e coordenados com vistas ao
desenvolvimento da atividade empresarial, que, em sua unidade, confere ao
estabelecimento empresarial um sobrevalor (aviamento), do qual decorre também a
capacidade de atração da clientela.
Para salvaguardar essa legítima expectativa do adquirente (artigo 422 do
CC) e o resultado econômico (aviamento objetivo) normalmente desejado com a
celebração do contrato de trespasse (artigo 421 do CC), mister se faz a proibição de
concorrência do alienante, com vistas a assegurar a capacidade lucrativa do
estabelecimento (aviamento subjetivo).
4.2 OS DEVERES PRINCIPAIS E SECUNDÁRIOS NAS FASES NO CONTRATO
DE TRESPASSE
No contrato de alienação do estabelecimento empresarial, o alienante e o
adquirente assumem deveres principais e secundários que decorrem do processo
negocial segundo a boa-fé objetiva (artigos 187 e 422 do CC).
Na lição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva192, os deveres secundários ou
anexos ou laterais comportam tratamento que abranja toda a relação jurídica, de
modo que se inferem previamente, durante o curso ou o desenvolvimento da relação
192
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushastky,
1976, p.113.
120
jurídica negocial e, em certas hipóteses, também posteriormente ao adimplemento
da prestação principal do contrato. Tais deveres traduzem preponderantemente em
um “fazer” ou “não fazer”, como as declarações de ciência, atos de indicação e
comunicações, e também às vezes um “dar”.
Os deveres anexos ou secundários nascem em momentos distintos no
processo negocial, na celebração e a prestação principal efetiva, com a sua
extinção.
Como bem salienta Regis Fichtner Pereira193, na fase pré-contratual, tais
deveres que incidem ao lado do dever jurídico principal não terão caráter acessório a
este, já que esse dever principal não existe nessa fase do contrato. Portanto,
acabam por assumir o papel principal não na regulação da conduta dos
contratantes, haja vista, que serão os próprios que definirão as exigências de
comportamento de cada um em relação ao contrato. Antes da celebração do
contrato, a boa-fé objetiva é revelada nos seguintes deveres: (I) dever de
informação; (II) dever de lealdade ou correção; (III) deveres de proteção e cuidado;
(IV) deveres de segredo ou sigilo.
A informação é necessária para que as partes interessadas em contratar
possam efetivar o negócio em vista. Daí, as partes têm o dever de prestar as
informações que sejam juridicamente exigíveis em conformidade com cada tipo
contratual e as circunstâncias do caso que possibilitará aferir a extensão das
legítimas expectativas geradas para elas.
No tocante ao dever de lealdade e correição, diz respeito ao efetivo
interesse no objetivo do contrato e que tenham condições legais e econômicas para
suportar os termos do negócio pretendido.
193
PEREIRA, Regis Fichtner. A responsabilidade Civil Pré-Contratual. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 88.
121
Já o dever de proteção e cuidado impõe para as partes, durante as
negociações preparatórias, que as mesmas tomem determinadas medidas de
segurança para evitar danos ao outro ou ao seu patrimônio.
Por fim, para a deliberação da contratação ou não e a fixação do seu
conteúdo importa que as partes transmitam informações que estarão resguardadas
pelo dever de sigilo ou segredo, de modo que não poderão ser usadas para
finalidades outras.
Assim, na fase preliminar da celebração do contrato de trespasse, a exibição
ao adquirente, pelo alienante, dos livros contábeis do estabelecimento implica ao
adquirente, nessa fase interessado, o dever de sigilo, pois os livros não são
acessíveis ao público em geral e sua não-divulgação é justificada pelo interesse
legítimo e econômico do empresário.
Outrossim, o dever de sigilo alcança também o sigilo técnico (patentes) e o
sigilo comercial (lista dos nomes dos clientes).
Na execução do contrato, a lealdade de comportamento acarreta deveres
acessórios à obrigação principal e, na fase pós-contratual, ensina Mauricio Jorge
Mota194 que, com o término do contrato, surgem deveres post pactum finitum, como
de guarda de documentos, fornecimento de material de reposição ou informações
sobre os negócios firmados. Realizada a prestação principal, os deveres anexos
impostos pela boa-fé objetiva serão aqueles que visam realizar o próprio fim do
contrato.
Na fase pós-contratual, Enéas Costa Garcia195 cita os seguintes deveres
anexos: (I) informação; (II) sigilo; (III) proteção; (IV) cooperação. O dever anexo de
194
MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A pós-eficácia das obrigações. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.)
Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: renovar, 2000, p.196.
195
GARCIA, Enéas Costa. Responsabilidade pré e pós contratual à luz da boa-fé. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2003, pp. 231-241.
122
informação, após o adimplemento da prestação principal, pode implicar à parte a
necessidade de acompanhar e instruir a contraparte a respeito do uso correto dos
bens envolvidos no contrato, até, de certo modo, fornecer algum tipo de treinamento.
Quanto ao sigilo, este alberga não apenas a esfera íntima da vida privada da parte,
mas também todos os fatos desta que são conhecidos por força da relação
contratual, inclusive aqueles de cunho preponderantemente patrimonial, como os
segredos industriais e comerciais e as invenções. A proteção, como dever anexo,
consiste no cuidado que a parte deve ter com relação à pessoa da contraparte e os
seus bens. Por fim, o dever anexo de cooperação impõe à parte um comportamento
com vistas a atingir o bom resultado da relação contratual.
4.3 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE TRESPASSE
A proibição de concorrência que exsurge do contrato de alienação do
estabelecimento empresarial é empregada em sistemas jurídicos de inúmeros
países.
Com efeito, a sua incidência em cada sistema jurídico apresenta
características particulares, especialmente quanto ao seu fundamento legal e aos
seus elementos.
No Brasil, a proibição de concorrência no contrato de trespasse foi tema de
um intenso debate da doutrina e da jurisprudência, porquanto inexistia, até o
advento do Código Civil de 2002, qualquer disciplina legal regulando o contrato de
alienação do estabelecimento e seus efeitos.
123
Assim, na prática contratual, discutia-se a possibilidade de imposição da
proibição implícita de concorrência ao alienante do estabelecimento, se as partes
não a convencionassem expressamente.
4.3.1 Evolução da Doutrina e da Jurisprudência
A corrente doutrinária liderada por José Xavier Carvalho de Mendonça196
defende a posição de que entre as garantias devidas ao adquirente pelo alienante
no trespasse, está a de fazer boa a coisa vendida, o que importa não o perturbar em
sua posse e, por conseguinte, a clientela que lhe foi transmitida com o
estabelecimento. Essa garantia estava assegurada pelo artigo 214 do Código
Comercial que estabelece que o vendedor é obrigado a fazer boa a coisa vendida,
ainda que, no contrato, estipule-se que não fica o vendedor sujeito à
responsabilidade alguma; salvo se o comprador, conhecendo o perigo ao tempo da
compra, declarar expressamente no instrumento do contrato que toma sobre si o
risco.
Por isso, dispensa-se a convenção formal da cláusula de não concorrência,
haja vista ser uma obrigação implícita e acessória ao contrato de trespasse.
Acrescenta, ainda, que a norma do artigo 214 do Código Comercial seria cogente,
de maneira que as partes não poderiam dispor de forma diversa.
Em sentido oposto, está a corrente liderada por Rui Barbosa que pode ser
sintetizada nas seguintes proposições formuladas por Francisco Morato197.
196
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito Comercial Brasileiro. Vol.v, livro III,
parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, pp. 157-159.
197
BARBOSA, Rui. As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de
estabelecimentos comerciais e industriais. In Obras Completas. Prefácio de Francisco Morato. Vol.
XL, Rio de Janeiro: [s.n.], 1948, pp. XXIX-XXXII.
124
Em primeiro lugar, na transferência do estabelecimento comercial ou
industrial, não se deve presumir a renúncia ao direito do alienante de se
restabelecer, através de novo estabelecimento igual ou similar; esta deve ser
expressa ou resultar peremptoriamente dos termos do contrato. Caso contrário,
estar-se-ia violando o princípio supremo da livre concorrência.
A segunda proposição esclarece a posição doutrinária majoritária, à época,
que era oposta à lição de Aubry e Rau198 de que na alienação de um
estabelecimento se entende implícita a cessão da clientela, e, por conseguinte,
proibido estaria o vendedor de abrir na vizinhança do estabelecimento transferido
outro da mesma natureza em prazo próximo à data da venda.
A terceira proposição está assentada na idéia de que a clientela não
constitui elemento do fundo de comércio, sem embargo de consistir num valor à
parte e poderem as partes ajustar expressamente convenção independente sobre
ela.
A quarta proposição diz respeito à ressalva feita na doutrina de Aubry e Rau
no sentido de que a vedação de restabelecimento do vendedor limita-se à hipótese
de alienação de fundos de comércio e não se estende aos estabelecimentos
industriais, usinas ou fábricas, por serem coisas que se distinguem no conceito e
efeitos.
A quinta proposição refere-se a ser nula a proibição de concorrência, ainda
que expressa, caso seja irrestrita ao tempo ou ao lugar.
No sistema anglo-saxão, as convenções de não concorrência absolutas e
irrestritas são nulas se não limitadas ao tempo e ao espaço, bem como não podem
ser desarrazoadas. No sistema continental, tais convenções que afetam a liberdade
198
Apud Ibid., pp. XXIX-XXXII.
125
comercial ou industrial devem ser limitadas no tempo, no objeto e no espaço, sob
pena de nulidade. Estas são, respectivamente, a sexta e a sétima proposição.
Em 1913, sucedeu o primeiro caso sobre a proibição de concorrência do
alienante por força do contrato de trespasse submetido à apreciação do Supremo
Tribunal Federal. Trata-se da ação proposta pela Companhia Nacional de Tecidos
Juta contra o conde Antônio Álvares Penteado e a Companhia Paulista de Aniagens,
os quais eram patrocinados, respectivamente, por José Xavier Carvalho de
Mendonça e Rui Barbosa. A autora aduziu que o conde violou o contrato de
trespasse ao realizar a venda de estabelecimento industrial e, logo após, instalar-se
no mesmo mercado, desviando assim, a sua clientela. Postulou a responsabilidade
do conde por evicção, conforme disposto no artigo 215 do Código Comercial. Na
instância ordinária, entendeu-se não serem aplicáveis os artigos 214 e 215 do
Código Comercial, pois não se podia presumir a renúncia ao direito de exercer
determinado ramo de comércio e indústria, salvo estipulação expressa. A Suprema
Corte Federal proveu recurso de apelação interposto pela autora para julgar
procedente o pedido, cuja motivação acolheu a tese de José Xavier Carvalho de
Mendonça. Rui Barbosa, então, opôs embargos, sustentando a tese diversa,
encampando as proposições, acima citadas, que foram desenvolvidas a partir da
análise desse caso concreto. Os embargos foram providos, por maioria, para julgar
improcedente o pleito da autora, acolhendo notadamente a orientação da limitação
tripartite da convenção de não concorrência e da sua expressa previsão no contrato
de trespasse199.
199
Veja-se a síntese de: PAES. P. R. Tavares. Da Concorrência do Alienante do Estabelecimento
Comercial. São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 59-60.
126
Sem embargo do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, que adotou
uma posição liberal sobre a matéria, subsistia na doutrina e jurisprudência forte
divergência, a qual passa-se a elucidar.
Nesse passo, para Waldemar Ferreira200, que prestigia a posição de Rui
Barbosa, não se pode presumir a renúncia do direito ao exercício de determinado
ramo de comércio e indústria. Portanto, além de ser restrita no tempo, no espaço e
no objeto, a renúncia deve ser expressa, ou pelo menos resultar de maneira
inequívoca dos termos do contrato, para que na solução de conflitos não prevaleça
contra o princípio da livre concorrência. Para o autor somente a concorrência desleal
deve ser evitada, eis que a ilicitude não está no fato do comerciante se restabelecer.
Por seu turno, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda201, que prefere a
expressão “cláusula de não restabelecimento igual”, entende que a sua inserção no
contrato de transferência do estabelecimento é útil, pois com ela se precisa até onde
se considera restabelecimento igual a abertura de outra empresa ou a constituição
de outro fundo de empresa para a mesma que alienou. Ela não deve ser perpétua,
deve ser limitada ao gênero de indústria ou comércio, bem como restrita ao tempo e
ao espaço.
A infringência da cláusula contratual não tem nada a ver com deslealdade
concorrencial, pois naquele caso é vedada negocialmente, o que é mais do que ser
desleal.
Opina João Eunápio Borges202 que alguém pode ceder a sua clientela, mas
essa cessão é reduzida a uma obrigação de não fazer, assumida pelo alienante
consistente em não se estabelecer novamente com o mesmo ramo do negócio
200
FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial. 2° vol., tomo1. São Paulo:
Saraiva, 1952, p. 226.
201
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo
XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p. 378.
202
BORGES, Op. Cit., pp. 195-196, nota 142.
127
vendido, durante certo tempo e espaço. Pode ser expressa ou implícita, desde que
se possa inferir de maneira inequívoca das circunstâncias do negócio e da intenção
das partes.
Já para João da Gama Cerqueira203, a violação da interdição da
concorrência, no caso de trespasse do estabelecimento, refere-se à violação de
contratos e constitui uma modalidade de concorrência desleal. Ressalta que essa
interdição não poderia ser absoluta no tempo e no espaço. Quando não for expressa
poderá ser inferida do próprio negócio de trespasse, com arrimo nos artigos 214 e
215 do Código Comercial.
Após o célebre leading case, o Supremo Tribunal Federal reviu a posição
anteriormente adotada e acabou por encampar a tese de José Xavier Carvalho de
Mendonça, baseada no artigo 214 do Código Comercial, mas, por outro lado,
acolheu a orientação doutrinária de Pontes de Miranda ao qualificar o ato do
alienante do estabelecimento como deslealdade concorrencial, senão vejamos:
Ementa: Quem vende um estabelecimento comercial não está, em
regra, proibido de instalar ou adquirir outro. Certas circunstâncias
porém, que ocorrem na sucessão desses fatos, podem caracterizar
concorrência desleal. Relatório: [...] não negou o réu-apelante o fato de
que, decorridos poucos meses da venda ao autor-apelado do
estabelecimento comercial “chaveiro N. S. do Carmo”, instalou-se na
Rua Venceslau Brás, menos de cinqüenta metros distante, como
“Chaveiro Real”, explorando, assim, ramo de comércio idêntico ao do
autor. Evidentemente não podia o réu ter esse comportamento, que
traduz autêntica concorrência desleal. Não importa que no contrato de
venda do estabelecimento não constasse cláusula proibitiva a respeito,
pois ensinava Carvalho de Mendonça que não há necessidade de
estipulação formal expressa pela qual se obrigue a não se restabelecer.
É decorrência natural da obrigação assumida pelo vendedor de fazer
boa ao comprador a coisa vendida. Código Comercial, art. 214.
prevalece o princípio mesmo sendo o contrato de venda omisso sobre
este pacto, diz cunha Gonçalves – Da compra e venda n° 138, p. 410.
Indubitáveis os prejuízos do autor oriundos desse procedimento ilícito
do réu. Manifestou o réu, achar de que, com o assim decidir, interpretou
a veneranda Câmara o art. 214 do C. Comercial em desacordo com o
art. 141, § 14 da Constituição. [...] Voto. Preliminar. Não vejo infringido o
203
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1 e 2, 2ª ed. Revista e
atualizada por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa Neto. São Paulo: RT, 1982, p.
1283-1285.
128
art. 141, § 14 da Constituição. É exato que não se pode privar alguém
de exercer a sua profissão. Quem vende um estabelecimento comercial
não está proibido de, posteriormente, instalar ou adquirir outro. [...] São
as circunstâncias que revelam se houve ou não concorrência desleal.
Na hipótese achou o Tribunal, provada essa concorrência. [...] Tratandose de pequena indústria, natural era que a venda fosse feita tendo mais
em vista a freguesia que os objetos realmente transferidos. O recorrente
poderia exercitar sua profissão, naturalmente. Por que, porém, fazê-lo a
50 metros da casa que pouco antes transferira a outrem? A sentença
204
está correta. Não conheço do recurso .
Por
seu
turno,
Oscar
Barreto
Filho205
crê
que
o
trespasse
do
estabelecimento comercial autoriza estipulação expressa da cláusula de não
concorrência e, se não ajustada, implica virtualmente, a proibição de restabelecer-se
com o mesmo gênero de negócio, em circunstâncias de tempo e de lugar que
impossibilitem manter a integridade do fundo de comércio. Não se deve distinguir
estabelecimentos comerciais e industriais, visto que o desvio de clientela pode
verificar-se em ambos.
A propósito do limite temporal, que até então carecia de um critério para sua
fixação, sugeriu a duração pelo prazo de 05 (cinco) anos, que é o geralmente aceito
pela legislação e jurisprudência de outros países e que é também fixado pelo
Decreto nº 24.150/34, como o bastante para estabilizar o aviamento do fundo em
relação ao seu titular.
Por derradeiro, consoante Paulo Roberto Tavares Paes206, o trespasse do
estabelecimento comercial acarreta para o vendedor o impedimento de se
restabelecer, desde que, seja com o mesmo gênero de negócio, atendidas as
circunstâncias de tempo e lugar, porquanto é impossível a proibição absoluta ao
restabelecimento do alienante.
204
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 23.003-SP, relator Ministro Mário
Guimarães. Julgamento de 06/08/1953, publicado no DO de 19/01/1954.
205
BARRETO FILHO, op. cit., pp. 252-253, nota 144.
206
Apud CERQUEIRA, op. cit., pp. 34-36, nota 205.
129
4.3.2 A Proibição de Concorrência do Artigo 1.147 do Código Civil
A proibição de concorrência está prevista no artigo 1.147 do Código Civil que
dispõe que, não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não
pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes à
transferência.
Com efeito, uma nova fase para compreensão da proibição de concorrência
na alienação do estabelecimento infere-se com o advento do Código Civil de 2002
que, além de revogar a Parte Primeira do Código Comercial consoante à norma do
artigo 2.045, deve realizar como visto alhures, os valores das normas fundamentais
constitucionais.
A previsão expressa da cláusula de não concorrência no artigo 1.147 pelo
legislador ordinário de 2002 consiste em uma restrição legal à liberdade de
concorrência entre empresários (artigo 1º, inciso IV e 170, caput e IV, todos da
Constituição Federal).
Essa limitação legal pressupõe a vontade querida pelas partes por ocasião
da celebração do contrato de trespasse. Sem embargo, a primeira parte da norma
do artigo 1.147 confere às partes a faculdade de dispor de forma diversa, desde que
o façam expressamente.
Portanto, trata-se de uma norma que contém uma limitação de natureza
dispositiva que será aplicada supletivamente à vontade das partes se não
convencionarem de forma diversa, o que não lhe retira a característica de
imperativa. Assim, a proibição de concorrência, no artigo 1.147 do Código Civil,
constitui uma norma dispositiva imperativa negativa.
130
4.3.3 Os Elementos Limitativos da Proibição de Concorrência do Artigo 1.147 do
Código Civil
O legislador considerou a proibição de concorrência sob um dúplice aspecto.
De um lado, fixando o dever legal de não concorrência ao estabelecer os limites e,
por outro, prevendo que as partes poderão ajustar contratualmente a possibilidade
de o alienante concorrer ou determinar os limites da cláusula de não concorrência.
A proibição de concorrência na alienação do estabelecimento não pode ser
irrestrita e, por isso, pressupõe elementos limitativos, são eles: material, temporal e
territorial.
O
elemento
material
corresponde
à
atividade
desenvolvida
no
estabelecimento empresarial considerado em seu todo unitário, por isso o alienante
fica proibido de fazer concorrência que consista no exercício da mesma ou de similar
atividade desenvolvida no estabelecimento alienado, no fornecimento de produtos
e/ou serviços idênticos, complementares ou sucedâneos, destinados à satisfação
das necessidades de um determinado setor de mercado que poderá ser o
empresário ou consumidor. Também encerra a proibição do alienante de concorrer
total ou parcialmente se a atividade desenvolvida no estabelecimento empresarial
albergar diversos segmentos mercadológicos207.
O elemento territorial ou espacial importa ao alienante não concorrer no local
de operação do estabelecimento empresarial. Doutrina João Eunápio Borges208 que,
nos grandes centros comerciais, uma parcela mínima da clientela é que se prende
ao estabelecimento por amor ao proprietário, em geral desconhecido do grande
207
208
CARVALHOSA, op. cit., p. 651, nota 146.
BORGES, op. cit., p. 196, nota 142..
131
público. Assim sendo, parte substancial dos clientes é atraída pelo ponto
empresarial, ou seja, a localização do estabelecimento.
Insere-se, ainda, no elemento territorial, a proibição de o alienante iniciar
uma nova empresa concorrente, isto é, que seja idônea para afetar o aviamento
objetivo consubstanciado na capacidade de gerar lucro.
Por outro lado, entende-se que o alienante poderá legitimamente prosseguir
com a atividade empresarial idêntica ou similar que antes da alienação do
estabelecimento já desenvolvia em empresa diversa, desde que dê ciência ao
adquirente da sua existência. Para a proibição deverá ser ajustado expressamente
com o alienante.
Outra questão é saber se a determinação da extensão material e territorial
deve ter em conta apenas a efetiva atividade do estabelecimento alienado ou
também a sua potencial expansão. Assim, se pouco antes da alienação do
estabelecimento pretendia-se lançar uma campanha publicitária de novos produtos
em uma localidade, o alienante não poderá produzir ou vender produtos
concorrentes na mesma zona alcançada pelo lançamento publicitário, no qual o
custo possivelmente o adquirente suportou. O alienante também estará sujeito à
proibição de concorrência na hipótese de existência de estudos técnicos de novos
produtos com vistas a buscar novos mercados em locais diversos da atividade
produtiva do estabelecimento alienado.
Quanto ao elemento temporal, a proibição de concorrência do alienante é
limitada ao prazo de 05 (cinco) anos subseqüentes à transferência do
estabelecimento. Nesse período, o adquirente tende a constituir uma nova relação
de confiança entre a empresa e a clientela.
132
Esse prazo pode ser justificado como o período no qual o empresário
consolida a universalidade dos elementos que compõem o estabelecimento para
atingir a capacidade lucrativa esperada (aviamento objetivo) e presume-se a
cessação da periculosidade da atração do alienante (aviamento subjetivo).
Durante esse prazo, Mario Casanova209 defende a posição de que a mera
suspensão da atividade do empresário não será suficiente, sendo necessária a
dissolução do estabelecimento para cessar efetivamente a possibilidade de perigo
de concorrência ilícita pelo alienante.
Não obstante, Eros Roberto Grau e Paula Forgioni210 fazem a ressalva de
que, salvo expressa disposição no contrato de trespasse, isso não obsta que o
alienante possa praticar atos preparatórios para o exercício de sua atuação
concorrencial, como a construção de uma nova fábrica apta à produção de produtos
ou da prestação de serviços iguais ou afins da atividade desenvolvida no
estabelecimento alienado.
A proibição de concorrência no contrato de trespasse consiste em uma
limitação à liberdade de concorrência do alienante. Como visto, a sua validade
dependerá a priori dos elementos temporal, territorial e material.
Numa perspectiva funcionalizada, a acessoriedade constitui o quarto
elemento de validade da proibição de concorrência no contrato de trespasse. Com
efeito, tal proibição tem por escopo tutelar as legítimas expectativas do adquirente
em conformidade com a função social e econômica do contrato de trespasse e de
acordo com as tratativas estabelecidas pelas partes durante a fase de negociação
(artigos 421 e 422 do CC).
209
CASANOVA, op. cit., p. 491, nota 157.
GRAU. Eros Roberto; FORGIONI, Paula A. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo:
Malheiros, pp. 297-298.
210
133
Não obstante, na apreciação da validade da proibição de concorrência o
objetivo primário deverá ser sempre a preservação do equilíbrio do mercado, sob
pena de causar um impacto negativo, como o exercício abusivo de posição
dominante por limitar ou impedir o acesso de novos empresários ao mercado
(artigos 20, IV e 21, IV, da Lei nº 8.884/94).
4.3.4 O Controle de Legalidade dos Elementos Limitativos da Proibição de
Concorrência Através do Postulado da Razoabilidade
Em certas circunstâncias, as partes podem ajustar limites mais amplos do
que aqueles da norma do artigo 1.147 do CC, como fixação de prazo superior ao
período de 05 (cinco) anos, que será possível mediante a aplicação do postulado da
razoabilidade.
O postulado da razoabilidade é aplicado em vários contextos, como a
razoabilidade de sua interpretação, a razoabilidade do fim legal, a razão de uma
restrição.
Humberto Ávila211 extrai três acepções do postulado da razoabilidade:
Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das
normas gerais com as individuais do caso concreto, quer mostrando sob
qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais
hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de
se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada
como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo
ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte
empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma
relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende
atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a
relação de equivalência entre duas grandezas.
211
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2004, p. 102-111.
134
Assim, no tocante ao elemento temporal, a norma do artigo 1.147 do CC
estabelece que a proibição de concorrência do alienante do estabelecimento
empresarial é limitada ao prazo de 05 (cindo) anos.
Esse prazo encerra uma situação-tipo que atende à generalidade dos
negócios jurídicos de alienação do estabelecimento. Em virtude de situações
especiais, como os elementos do estabelecimento que são transferidos ou outra
circunstância específica do negócio, é razoável que o prazo legal seja ampliado à
realização de uma justiça material ou eqüitativa.
A prescrição contida em uma regra jurídica geral e abstrata encerra uma
previsão decorrente de experiências que já fazem parte do conhecimento. A
dinâmica das relações sociais e as mudanças nas instituições acabam por gerar
novas experiências, o que permite concluir pela insuficiência da previsibilidade da
prescrição contida na norma jurídica geral e abstrata. Destarte, admite-se a
superação da regra em razão de circunstâncias ou particularidades especiais
desconhecidas do ser humano que justificavam a formulação da prescrição contida
na norma ou em decorrência das transformações do mundo. Desse modo, não é
razoável a incidência de uma regra geral e abstrata numa situação fática permeada
de circunstâncias excepcionais. Interpreta-se a norma geral, por meio da
razoabilidade, alcançando-se a justiça do caso concreto, cujo fundamento está no
preâmbulo e no artigo 3° da Constituição Federal212.
Assim, diante de certas circunstâncias específicas, o limite temporal de 05
(cinco) anos poderá ser insuficiente para assegurar a função social e econômica do
objeto principal do contrato de trespasse e as legítimas expectativas das partes,
212
Ibid., p. 102-111.
135
podendo as partes estipular um limite temporal superior justificado pelas
especificidades do caso concreto.
Nesse sentido, traz-se à colação o seguinte precedente213:
Declaratória. Cessão de cotas. Proibição de concorrência. Prazo
determinado. Se no contrato em que ocorre a transferência, por cessão de
quotas de sociedade anônima, resta consignado a proibição de os
cedentes, durante prazo limitado e local determinado, se estabelecerem,
ainda que em nome de terceiros, com negócios do mesmo ramo de
atividade, essa vedação não se apresenta como ilegítima ou ilegal e muito
menos inconstitucional. E' que, ainda que não escrita, inegável a admissão
nos negócios de cessão de controle acionário, da cláusula implícita de não
concorrência, por parte do cedente, que não proíbe o trabalho, este,
assegurado pela Carta Magna, mas, sim, a desleal concorrência. [...]
Narram os autores que em 20/04/94 alienaram à ré suas cotas em
sociedade industrial, tendo constado do contrato de venda cláusula que os
impedia de exercer pelo prazo de 10 anos, por si ou pessoa interposta,
atividade industrial ou comercial igual, similar ou correlata a da sociedade
cujas cotas foram alienadas. [...] estando longe de influir na liberdade de
trabalho.
Infere-se do julgado que a cláusula de não-concorrência contém os
elementos acessoriedade, material, territorial e temporal. Quanto a este último, foi
fixado pelas partes em 10 (dez) anos, portanto, superior ao prazo legal. Justifica-se
a superação deste na circunstância de o preço recebido pelos alienantes representar
três vezes o valor do patrimônio da sociedade. O magistrado recorreu à
razoabilidade na sua acepção eqüitativa para julgar como sendo legítimo o prazo de
10 anos.
Por ocasião da edição do Aviso nº 188/5 de 2001, a Comissão Européia de
concorrência estabeleceu que os limites da cláusula de não concorrência devem
estar de acordo com a sua natureza (acessória), duração (tempo), bem objeto do
ajuste (corpóreo e/ou incorpóreo), o campo geográfico (territorial) da sua prestação,
e que períodos superiores àqueles, geralmente determinados, podem ser ajustados
213
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 3° Câmara Cível. Apelação cível n°
1996.001.02289. Relator Dês. Oscar Silvares. Registro de 21/08/1996.
136
desde que seja justificado de acordo com as circunstâncias específicas do caso
concreto.
No Direito brasileiro a Concorrência é considerado na trilogia Secretaria de
Acompanhamento Econômico – SEAE, a Secretaria de Direito Econômico – SDE e
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.
A Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE, tem por função
auxiliar a Secretaria de Direito Econômico – SDE, notadamente quanto aos aspectos
econômicos dos atos de concentração. Esse auxílio dá-se através da emissão de
um parecer de caráter obrigatório nos casos de concentração e, quando se tratarem
de condutas anticoncorrenciais, este parecer é facultativo, cabendo ao Conselho
Administrativo de Defesa da Concorrência – CADE, ou Secretaria de Direito
Econômico – SDE, a sua solicitação (vide artigos 38 e 54, §6°, da Lei nº 8.884/94).
Por seu turno, a Secretaria de Direito Econômico – SDE, é um órgão
integrante do Ministério da Justiça, cuja atribuição é prevista nas Leis n° 8.078/90, n°
8.884/94 e n° 9.021/95. A função da SDE cinge-se a formular, implementar e
supervisionar as políticas de proteção e defesa da ordem econômica, no âmbito da
concorrência e do consumidor (artigo 14 da Lei nº 8.884/94).
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, foi elevado à
categoria de autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede no
Distrito Federal e galgou status de principal órgão tutelar da concorrência. O CADE é
composto por um presidente e seis conselheiros escolhidos com mais de trinta anos
de idade, de notório saber jurídico ou econômico e reputação ilibada, nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovados pelo Senado Federal. Registre-se
que o CADE é um órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional.
Portanto, as suas decisões administrativas passaram a ser finais no âmbito do
137
Executivo, podendo ser judicialmente executadas (artigo 3° e 7°, inciso XIII, da Lei n°
8.884/94).
O CADE exerce basicamente três papéis: (I) preventivo; (II) repressivo; (III)
pedagógico.
No que concerne ao papel pedagógico, o CADE tem atribuição de difundir a
cultura da concorrência consoante prevê a regra do artigo 7°, inciso XVIII, da Lei n°
8.884/94.
Quanto ao papel repressivo, o CADE tem a atribuição de analisar as
condutas anticoncorrenciais previstas no artigo 20 e seguintes da referida lei. Nesse
caso, o exame cinge-se à verificação de práticas de infração à ordem econômica,
tais como: cartéis, vendas casadas, preços predatórios, acordos de exclusividade
etc.
No seu papel preventivo, o CADE tem a atribuição de analisar atos de
concentração,
isto
é,
fusões,
incorporações,
associações
entre
empresas
suscetíveis de causar prejuízo à concorrência (artigo 54 da Lei nº 8.884/94).
No Direito da Concorrência deve-se, ainda, distinguir entre a cláusula vazia
de restrição (naked restraint) e cláusula acessória de restrição (ancillary restraint). A
primeira ocorre quando o contrato versa apenas sobre proibição de concorrência, ao
passo que a segunda é acessória à finalidade principal do contrato.
A doutrina estrangeira e a brasileira assinalam que possivelmente o primeiro
caso decidido pelos tribunais sobre a restrição de concorrência acessória foi o caso
Mitchel vs. Reynolds, apreciado em 1711. Nesse caso, Reynolds vendeu a sua
panificadora a Mitchel, havendo ajustado cláusula no contrato de venda que aquele
não poderia se restabelecer no mesmo ramo de atividade comercial pelo prazo de
05 (cinco) anos. Sob o argumento de que aquela era a única atividade profissional
138
que sabia desempenhar e que não poderia sobreviver sem ela, Reynolds montou
uma nova panificadora. O juiz Parker entendeu que a cláusula contratual de não
concorrência ajustada no referido negócio de venda da panificadora era válida ante
a sua razoabilidade.
Contudo, a chamada doutrina das cláusulas de não concorrência deve-se ao
voto proferido pelo juiz Taft, do 6° Circuit, em 1898, no caso United States vs
Addyston Pippe & Steel Co., 85 Fed. 271, que versava sobre o dever de não
competir assumido pelos sócios de uma sociedade. Extrai-se da argumentação do
magistrado que a cláusula de não concorrência foi considerada acessória e
fundamental para a existência e o funcionamento da sociedade alienada. No seu
voto, o juiz Taft identificou cinco espécies do gênero cláusula de não concorrência, a
saber: (I) o dever assumido pelo vendedor de uma empresa de não competir com o
adquirente de forma a diminuir o valor da empresa adquirida; (II) o dever do sócio
retirante de não competir com a sociedade; (III) o dever do sócio de não competir
com a sociedade; (IV) o dever do comprador de uma propriedade de não a usar para
competir com o empregador depois da expiração de seu tempo de trabalho.
O postulado da razoabilidade como eqüidade é aplicado pelo CADE para
flexibilizar o elemento temporal de cinco anos, a fim de viabilizar a realização da
própria transação principal (função social e econômica) quando presentes
circunstâncias justificadoras, como as particularidades do próprio mercado ou, ainda,
o grau de experiência do adquirente no respectivo ramo de negócio.
Além dos critérios das particularidades do próprio mercado e o grau de
experiência do adquirente no respectivo ramo, vale notar que os elementos Knowhow e segredo de negócio que compõem os ativos transferidos podem constituir
139
uma circunstância justificadora para a redução do prazo convencionados pelas
partes para o limite temporal padrão de 05 (cinco) anos.
Assim, pode-se concluir que o postulado da razoabilidade é aplicável aos
elementos limitativos da proibição de concorrência com a finalidade de realização da
justiça material no caso concreto, considerando os interesses e as expectativas das
partes (artigos 3°, 5°, caput, e 170, caput, da CF c/c 421 e 422 do CC).
4.3.5 O Controle de Legalidade dos Elementos Limitativos da Proibição de
Concorrência Através do Postulado da Proporcionalidade e a sua Revisão
pelo Poder Judiciário
O postulado da proporcionalidade é também aplicado no controle dos
elementos da cláusula de proibição de concorrência. Humberto Ávila214 ensina que a
proporcionalidade, como postulado estruturador da aplicação de princípios que
concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre um meio
e um fim, não possui aplicabilidade irrestrita. Sua aplicação depende de elementos
sem os quais não pode ser aplicada. Sem um meio, um fim concreto e uma relação
de causalidade entre eles, não há aplicabilidade do postulado da proporcionalidade.
O artigo 1° da Lei n° 8.884/94 guarda correspondência com os princípios de
funcionamento da ordem econômica previstos no artigo 170, incisos II a V, e artigo
173, § 4°, ambos da Constituição Federal, estabelecendo que a prevenção e a
repressão às infrações contra a ordem econômica devem ser orientadas pelos
ditames constitucionais da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função
214
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2004, p. 113.
140
social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do
poder econômico.
Assim sendo, verifica-se que no controle repressivo e preventivo exercido
pelo CADE os princípios orientadores poderão se imbricar numa relação de
causalidade entre um meio e um fim.
Para resolver a imbricação dos princípios, o CADE utiliza-se dos seguintes
elementos de fundo: (I) existência de impactos estruturais, que implica: (a) na
identificação e delimitação dos mercados relevantes, (b) a identificação das
sociedades participantes e (c) o cálculo dos efeitos da operação sobre a estrutura de
cada um dos mercados relevantes identificados215; (II) dinâmica do mercado e
efeitos potencialmente nocivos da operação, que tem por fito saber em que medida
a operação eleva a probabilidade de conluio ou abuso de posição dominante por
parte das participantes através: (a) da estrutura de incentivos da sociedade, (b) da
intenção entre as sociedades, (c) da capacidade de produção das sociedades, e (d)
das tendências do mercado; (III) análise das condições de entrada, isto é, do grau
de contestabilidade de cada mercado relevante; (IV) análise das eficiências, que são
os ganhos de bem-estar oriundos do ato de concentração (ganhos de eficiência ou
eficiências compensatórias); (V) motivo preponderante da economia nacional e do
bem comum.
Cumpre-se destacar, três importantes aspectos: os efeitos do ato de
concentração devem ser avaliados para cada um individualmente; a identificação
dos impactos concorrenciais mediante a separação dos mercados relevantes não
devem impedir a percepção das estratégias empresariais e seus efeitos globais
sobre o conjunto de mercados identificados ou mesmo sobre a economia; o próprio
215
OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e Economia da concorrência. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004, p. 119.
141
conjunto de mercados a ser estudado não pode restringir-se àqueles nos quais se
verificam relações horizontais entre as sociedades requerentes.
Quando o CADE exerce o controle dos elementos limitativos da cláusula de
proibição de concorrência aplica o postulado da proporcionalidade, ainda que de
forma implícita, através dos elementos de fundo, como a existência de impactos
estruturais e a análise das condições de entrada216.
Nesse passo, cabe examinar em que medida a decisão do CADE sobre a
legalidade dos elementos limitativos da proibição de concorrência poderá ser revista
pelo Poder Judiciário e quais são os critérios para determinar a gradação do referido
controle jurisdicional.
O princípio da legalidade é basilar na existência do Estado de Direito,
determinando a Constituição Federal sua garantia, sempre que houver violação do
direito, mediante lesão ou ameaça (artigo 5, XXXXV). Dessa forma, será chamado a
intervir o Poder Judiciário, que, no exercício da jurisdição, deverá aplicar o direito ao
caso concreto. Assim conforme salienta Nelson Nery Júnior217 podemos verificar que
o direito de ação é um direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo à
sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde
que preenchidas as condições da ação.
Importante, igualmente, salientar que o Poder Judiciário, desde que haja
plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação
judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação
judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um
216
Cabe consignar o voto do Conselheiro Fernando de Oliveira Marques, no ato de Concentração nº
08012.0042240/2001-45, que, a partir dos referidos elementos de fundo, analisou a legalidade da
cláusula de proibição de concorrência ajustada nos negócios jurídicos celebrados pelos requerentes
no ato de concentração.
217
NERY JR., Nelson e Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado e
Legislação Civil Extravagante. 5º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
142
direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a
outorgue.
Embora a lei antitruste mencione ser o CADE órgão judicante com jurisdição
em todo o território nacional (LAT art. 3), na verdade essas expressões foram
empregadas impropriamente, porque a atividade da autarquia é administrativa e
seus julgamentos têm natureza administrativa. Como todo ato administrativo, as
decisões do CADE podem ser sindicadas pelo Poder judiciário, a quem cabe
examinar sua constitucionalidade e legalidade, como, por exemplo, se houve correta
aplicação dos princípios constitucionais da mínima intervenção pública na atividade
privada (artigo 170 da CF), do devido processo legal administrativo (artigo 5º, inciso
LIV da CF), do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV da CF) etc. O
que o judiciário não pode fazer é aplicar as sanções e multas que a lei prevê como
atividades do CADE, substituindo-se à autarquia, pois estaria invadindo a esfera de
competência do Poder Executivo, em desrespeito à harmonia e à independência
entre os poderes do Estado (artigo 2º da CF).
4.3.6 Eficácia Subjetiva e a Oponibilidade da Proibição de Concorrência
O sucessor a título universal de um contrato acaba por também assumir a
posição jurídica derivada das partes, salvo se o contrato for intuito personae. Assim,
sem embargo de não ter participado na formação do contrato, o sucessor a título
universal, em princípio, não é terceiro, mas parte no contrato.
No Brasil, entende-se que a proibição de concorrência não alcança os
sucessores do alienante, salvo disposição contratual expressa.
143
Outra questão tormentosa acerca da proibição de concorrência é saber se
ela alcança os sócios ou acionistas da sociedade alienante, pois como é cediço, as
obrigações da sociedade não se estendem aos seus sócios ou acionistas, porquanto
aquela goza de personalidade jurídica distinta (artigo 45 do CC).
Sucede que o princípio da relatividade dos contratos é relativo e, por
conseguinte, comporta exceções, as quais são definidas, a partir da idéia de
terceiro, que é aquele considerado totalmente estranho ao contrato ou à relação
sobre a qual ele estende os seus efeitos.
Assim, prevalece, prima facie, o entendimento de que a proibição de
concorrência não é oponível automaticamente aos sócios da sociedade ou
acionistas da companhia.
Contudo, não se pode olvidar que o sócio ou acionista da sociedade
alienante poderá desenvolver uma concorrência perigosa idônea a afetar o
aviamento objetivo adquirido quando, por exemplo, ele era pessoalmente o
conhecedor da estrutura organizacional do estabelecimento ou, ainda, quando
representava a sociedade diretamente perante os seus clientes, os seus
fornecedores e os seus colaboradores. Ademais, será possível também opor a
proibição de concorrência quando, aos olhos do público, aquele sócio ou acionista
personaliza a sociedade alienante, ou seja, a sua pessoa acaba por se confundir
com esta.
Inicialmente, deve-se fazer a distinção entre terceiro concorrente e não
concorrente que interfere na esfera do alienante com o fim de induzi-lo ao
descumprimento da proibição de concorrência.
Quando se tratar de terceiro concorrente que contrata com alienante
induzindo-o à violação da proibição de concorrência, tal conduta consiste em ato
144
tendente a prejudicar negócio alheio e, por conseguinte, qualificada imediatamente
como ato de concorrência desleal previsto no artigo 209 da Lei nº 9.279/96218.
Note-se que o referido dispositivo não afasta a possibilidade de enquadrar a
questão de forma mediata no campo da ilicitude e, portanto, no campo do abuso do
direito de liberdade de iniciativa por frustrar as legítimas expectativas do adquirente
e a função social e econômica do contrato de trespasse (artigos 187219, 421220 e
422221 do CC).
Se o terceiro não for concorrente, a sua conduta deve ser imediatamente
qualificada como abusiva por violar as legítimas expectativas do adquirente e a
função social do contrato de trespasse.
Com relação ao valor da indenização a ser paga ao adquirente, o terceiro
não concorrente responderá com fundamento no critério genérico da legislação civil
previsto no artigo 402 do CC, e o terceiro concorrente será responsabilizado com
base nos artigos 208222 e 210223 da Lei nº 9.279/96.
De qualquer forma, será necessário que o terceiro, seja concorrente ou não,
tenha conhecimento da existência da proibição de concorrência.
218
Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de
prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência
desleal não previstos nesta lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar
confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviços, ou entre os
produtos e serviços postos no comércio.
219
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
220
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato.
221
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé.
222
Art. 208. A indenização será determinada pelos benefícios que o prejudicado teria auferido se a
violação não tivesse ocorrido.
223
Art. 210. Os lucros cessantes serão determinados pelo critério mais favorável ao prejudicado,
dentre os seguintes:
I-os benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; ou
II-os benefícios que foram auferidos pelo autor da violação do direito; ou
III- a remuneração que o autor da violação teria pago ao titular do direito violado pela concessão de
má licença que lhe permitisse legalmente explorar o bem.
145
O registro do contrato de trespasse produz efeitos quanto a terceiros, depois
de averbado à margem da inscrição do empresário ou da sociedade empresária, no
Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial (artigo
1.144 do CC). Nesse caso, a presunção do seu conhecimento por terceiro é
absoluta, mas nos limites da Junta Comercial de cada Estado (artigo 1.150 do CC).
4.3.7 Violação Direta e Indireta da Proibição de Concorrência
A quebra da proibição de concorrência pode ocorrer direta ou indiretamente.
Há violação direta quando efetuado pelo próprio empresário alienante,
detentor do aviamento subjetivo. O empresário pode ser individual quando se tratar
de pessoa física, titular da empresa, ou coletivo quando diz respeito a uma pessoa
jurídica (sociedade).
Ocorre a violação indireta da proibição de concorrência quando o alienante
associa-se a terceiro para explorar o mesmo fim ou segmento mercadológico do
estabelecimento empresarial alienado.
A atração pessoal do empresário não é a única forma de violação da
proibição de concorrência. Sem embargo da ocultação do nome do alienante, em se
tratando de empresas de grande porte, pretende-se coibir a possibilidade de utilizar
as informações sobre a organização do estabelecimento e sobre a clientela.
Na violação indireta pelo empresário, Oscar Barreto Filho224 esclarece que o
terceiro colaborador pode ser o seu cônjuge, filho ou genro.
A violação indireta será caracterizada na hipótese de o empresário,
individual ou coletivo, atuar também através de uma sociedade controlada por ele na
224
BARRETO FILHO, op. cit., p. 254, nota 144.
146
qualidade de acionista majoritário. A proibição de concorrência subsiste também no
caso de o empresário exercer relevante função administrativa responsável pela
gestão de sociedade concorrente, inclusive se esta for preexistente, se for possível
empregar o seu conhecimento acerca da organização sobre o estabelecimento
alienado e da sua clientela ou, ainda, o aproveitamento das relações com os
clientes.
Assim não haverá nenhuma violação da proibição de concorrência se o
alienante limitar-se a entrar como sócio de uma sociedade nova ou preexistente,
sem, contudo, assumir função de gestão, regular ou oculta, e sem colocar à
disposição o seu conhecimento sobre o estabelecimento ou suas relações com a
clientela. Também não poderá emprestar o seu nome para a razão social ou
denominação da sociedade, porquanto isso consiste em elemento de atração da
clientela alienada.
Cabe ao adquirente o ônus da prova da violação indireta da proibição de
concorrência para a obtenção da tutela inibitória e/ou ressarcitória em face do
alienante, pois se trata de fato constitutivo do seu direito.
Uma vez comprovada a violação, direta ou indiretamente, da proibição de
concorrência pelo alienante, o adquirente poderá obter a resolução do contrato de
trespasse e a reparação por perdas e danos. Esses prejuízos albergam o que
efetivamente o adquirente perdeu e o que razoavelmente deixou de lucrar conforme
o disposto no artigo 402225 do Código Civil. Por outro lado, o adquirente poderá
postular, além da reparação dos prejuízos causados, o cumprimento da proibição de
225
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor
abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
147
concorrência e lançar das tutelas previstas nos artigos 461226 e 645227 do Código de
Processo Civil com vistas à remoção do ilícito.
Não obstante, o adquirente não precisa aguardar a violação da proibição de
concorrência para se socorrer judicialmente com vistas a impedir preventivamente a
concorrência indevida. O remédio processual apto a tutelar preventivamente o
interesse do alienante é a ação de inibição de descumprimento contratual que
também encontra guarida no artigo 461 do CPC. Por fim, o adquirente poderá
demandar o alienante, visando ao adimplemento dos deveres secundários ou
anexos.
226
Art. 461 - Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz
concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que
assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1º - A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível
a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
§ 2º - A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (Art. 287).
§ 3º - Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do
provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado
o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão
fundamentada
§ 4º - O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu,
independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe
prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5º - Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o
juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa
por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e
impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se
tornou insuficiente ou excessiva.
227
Art. 645 - Na execução de obrigação de fazer ou não fazer, fundada em título extrajudicial, o juiz,
ao despachar a inicial, fixará multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação e a data a partir
da qual será devida.
Parágrafo único - Se o valor da multa estiver previsto no título, o juiz poderá reduzi-lo se excessivo.
148
5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO DIREITO DA
EMPRESA
Cabe agora examinar se o preceito da proibição da concorrência da norma
do artigo 1.147 impõe apenas como conseqüência exclusiva da alienação do
estabelecimento empresarial ou também se pode aplicar às situações valoráveis
como equivalentes, ou seja, que contém uma correspondência com o fato-tipo
(Tatbesttand, em alemão; fattispecie, em italiano) da norma228.
5.1 APLICAÇÃO EXTENSIVA E INTEGRATIVA DO ARTIGO 1.147 DO CÓDIGO
CIVIL DE 2002
No Brasil, a aplicação da proibição de concorrência à hipótese valorável
conforme o fato-tipo do contrato de trespasse não recebeu um tratamento
metodológico adequado, embora a doutrina já tenha admitido a sua incidência em
algumas situações como se verá mais adiante.
Com efeito, a proibição de concorrência comporta aplicação em dois âmbitos
com fundamentos (pressupostos) distintos e, a partir daí, conseqüências específicas.
O primeiro âmbito é o da aplicação extensiva por meio da interpretação
teleológica que corresponde diretamente ao fundamento da razão da norma (ratio
legis) de proibição de concorrência, isto é, dos objetivos pretendidos pelo legislador
228
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 100: A previsão
do legislador raro é de um fato ou evento particular e único, mas sim de uma ‘espécie de fato’, ou um
‘fato-tipo’, ao qual poderão corresponder, com maior ou menor rigor, múltiplos fatos concretos.
Quando, na experiência social, se verifica uma correspondência razoável entre um fato particular e o
fato tipo F (Se F é, C deve ser), previsto na norma, o responsável por aquele fato particular (em geral,
o agente ou o autor daquilo que resultou de seu ato) goza ou suporta as conseqüências prédeterminadas no dispositivo ou preceito).
149
com a sua edição e, indiretamente, à coerência normativo-material do sistema
considerado, o caso concreto (ratio iuris)229.
Na interpretação extensiva, o domínio de aplicação do sentido da norma é
ampliado para integrar um caso, ainda que circunstâncias nele existentes não
pertençam ao fato-tipo conceitual previsto (pelo menos ao núcleo da hipótese
normativa)230.
O sentido da norma (regra) é apreendido através da sua recondução e pelo
menos um princípio, porquanto o comportamento descrito e valorado na norma é um
meio de realização do princípio que lhe é conexo231. Portanto, uma vez identificado o
princípio realizado na regra, afigurar-se-á possível estender a sua aplicação a uma
determinada situação jurídica não prevista na sua moldura. O princípio, então,
desempenhará um papel de unificação dessas situações jurídicas, fazendo incidir na
espécie a regra que realiza o seu valor232.
229
NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra,
1993, pp. 152-153: Se a decisão, como a manifestação de uma auctoritas imperativa, traduz o acto
prescritivo da solução jurídica, a sua justificação terá de procurar-se no motivo-fim que a determinou
– na sua teleologia praticamente motivante (ratio legis). Diferentemente quanto ao juízo, porquanto
sendo este o acto intencional (normativo-juridicamente intencional) da solução, os seus fundamentos
terão de procurar-se na própria normatividade fundamentadamente constitutiva do sistema jurídico
(ratio iuris). [...] Ora, perante esta análise, conduzida pela intenção de compreendermos a norma
como critério normativo do juízo concreto, logo nos damos conta de que o seu núcleo está no
momento problemático: o momento histórico converge nele e o momento teleológico-sistemático é
por ele exigido.
230
A aplicação extensiva não se confunde com a interpretação extensiva, que é a mera divergência
entre a expressão verbal e o pensamento normativo. Nesse sentido, NEVES, A. Op. Cit, p. 171.
231
PERLINGIERE. Manuale di Diritto Civile. Op. Cit., p. 10: Ogni regola è riconducibile almeno ad
um princípio. La regola riguarda um comportamento e lo valuta; questo, valuato positivamente,
constituisce um modo di realizzare il principio. La regola è quindi uma scelta tra le molteplici
opportunità di realizzare il princípio.
232
ÁVILA. Teoria dos princípios. Op. Cit., p. 78: Os princípios atuam sobre outras normas de forma
direta e indireta. A eficácia direta traduz-se na atuação sem intermediação ou interposição de um
outro (sub-princípio) ou regra. Dentro do âmbito da aptidão das normas para produzir efeitos as
normas exercem diferentes funções, dentre as quais algumas se destacam e merecem ser analisadas
separadamente. No plano da eficácia direta, os princípios exercem função integrativa, na medida em
que um elemento inerente ao fim que deve ser buscado não esteja previsto, ainda assim o princípio
irá garanti-lo. [...] Outro exemplo: se não há regra expressa garantindo a proteção da expectativa de
direito – mas ela é necessária à implementação de um estado de confiabilidade e de estabilidade
para o cidadão -, ela deverá ser resguardada com base direta no princípio da segurança jurídica.
Nesses casos, há princípios que atuam diretamente.
150
Pois bem. O contrato de trespasse compreendido na sua função social e
econômica (artigo 421 do CC) visa, em última análise, à realização do subprincípio
da preservação da empresa. Nesse passo, o objetivo pretendido pelo legislador com
a previsão da proibição de concorrência é tutelar as legítimas expectativas do
adquirente (artigo 422 do CC) quanto ao aviamento (sobrevalor) transmitido em
razão da finalidade econômica do contrato de trespasse (artigo 421 do CC). Daí, nos
negócios jurídicos no Direito da Empresa que têm uma correspondência mediata
com o contrato de trespasse, isto é, que importem à transmissão indireta do
estabelecimento empresarial geradora de um sobrevalor, aplica-se extensivamente à
proibição de concorrência nos moldes do artigo 1.147 do CC. Nesse caso, a
proibição de concorrência também se presume querida pelo adquirente e, portanto,
é implícita, ou seja, dispensa a previsão expressa.
O segundo âmbito de aplicação da proibição de concorrência é por meio da
analogia233, que é entendida pela transposição de uma regra, dada na lei para a
hipótese legal, ou várias hipóteses semelhantes, numa outra hipótese, não regulada
233
Sobre a diferença entre a analogia e a interpretação extensiva, confira-se MAXIMILIANO, Carlos.
Hermenêutica a Aplicação do Direito. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 215: A analogia
ocupa-se com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em nenhum dispositivo, e
resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins: a interpretação extensiva completa
a norma existente, trata de espécie já regulada pelo Código, enquadrada no sentido de um preceito
explícito, embora não se compreenda na letra deste. Os dois efeitos diferem, quanto aos
pressupostos, ao fim e ao resultado: a analogia pressupõe a falta de dispositivo expresso, a
interpretação pressupõe a existência do mesmo; a primeira tem por escopo a pesquisa de uma idéia
superior aplicável também ao caso não contemplado no texto; a segunda busca o sentido amplo de
um preceito estabelecido; aquela de fato revela uma norma nova, esta apenas esclarece a antiga;
numa o que se entende é o princípio; na outra, na interpretação, é a própria regra que se dilata. Em
resumo: a interpretação revela o que a regra legal exprime, o que da mesma decorre diretamente, se
a examinam com inteligência e espírito liberal; a analogia serve-se dos elementos do dispositivo e
com o seu auxílio formula preceito novo, quase nada diverso do existente, para resolver hipótese não
prevista de modo explícito, nem implícito, em norma alguma. Identificam-se a analogia e a exegese
ampla, quanto a uma particularidade, têm um ponto em comum: uma e outra servem para resolver
casos não expressos por palavras da lei.
151
por lei, semelhante àquela. A propósito da distinção entre a interpretação extensiva
e a analogia, ensina José de Oliveira Ascenção234 que:
Em princípio, a distinção dos dois processos é muito simples. A
interpretação dirige-se à determinação das regras, trabalhando sobre a
fonte. Pelo contrário, para haver interpretação tem de se partir da
verificação de que não há nenhuma regra, conclusão esta que pressupõe
uma tarefa de interpretação das fontes, como vimos. O critério pode ser
delineado com precisão, o que não quer dizer que na prática não surjam
problemas da maior complexidade. A interpretação extensiva pressupõe
que dada hipótese, não estando compreendida na letra da lei, o que está,
todavia no seu espírito: há uma regra, visto que o espírito é que é o
decisivo. Quando há lacuna, porém a hipótese não está compreendida nem
na letra nem no espírito de nenhum dos preceitos vigentes [...] Mas
analogia, apesar das dificuldades de aplicação que dissemos já que se
suscitam quando em concreto desejamos saber se estamos perante uma ou
outra situação. O critério é em si seguro. Num caso estamos ainda a extrair
a regra, implícita num texto imperfeito; no outro nada encontramos implícito,
porque há uma lacuna.
Portanto, tendo em vista a ausência de uma norma geral sobre a convenção
de não concorrência no Direito brasileiro, a exemplo do artigo 2596235 do Codice
Civile italiano, os elementos da proibição de concorrência do preceito do artigo 1147
do CC poderão ser aplicados nos negócios jurídicos entre concorrentes com vistas à
consecução da sua finalidade social e econômica (artigo 421 do CC) e à tutela da
legítima expectativa dos contratantes (artigo 422 do CC).
Contudo, na aplicação, por analogia, a proibição de concorrência não é
presumida como querida pelo adquirente e, portanto, é necessária a sua previsão
expressa no contrato ajustado pelas partes.
À luz dos critérios acima propostos, passa-se a examinar a aplicação
extensiva nos negócios jurídicos empresariais.
234
ASCENÇÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e teoria geral: uma perspectiva luso-brasileira.
Rio de Janeiro: Renovar, 1994, pp. 349-351.
235
Art. 2596. limiti contrattuali della concorrenza. II ptto che limita la concorrenza debe essere provato
per iscritto [2725]. Esso è valido se circoscritto ad uma determinata zona o ad uma determinata
attività, e non può excederé la durata di cinque anni [2125, 2557].
152
5.2 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DAS
PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS REPRESENTATIVAS DO CONTROLE DE
SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE PESSOAS E DE CAPITAL
Irá se ver agora a aplicação da proibição de concorrência na alienação de
participações societárias representativas do controle de sociedade empresária, de
pessoas e de capital236.
Em doutrina, Tullio Ascarelli e Giorgio Ferrari237 adotam a orientação da tese
restritiva. A tese restritiva argumentava, em primeiro lugar, que a norma do artigo
2557238 do Codice Civile é excepcional, de maneira que não pode se estender por
analogia a sua aplicação. O outro argumento está baseado na diferença de objeto
do negócio translativo entre a alienação do estabelecimento e do contrato de
alienação de quotas sociais. O primeiro contrato é celebrado entre o titular do
estabelecimento e um estranho, em que a titularidade do estabelecimento é
transmitida a este; enquanto que, no segundo, é a própria empresa (sociedade) que
é transmitida.
236
Prefere-se a expressão alienação a cessão, visto que aquela está consagrada no artigo 254 da lei
n. 6.404/75, bem como guarda melhor correspondência com a realidade da influência do controle
sobre um patrimônio. Sobre essa questão terminológica, confira-se PEREIRA. Guilherme Döring
Cunha. Alienação do poder de controle acionário. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 74-77
237
Apud GUGLIELMETTI. Limiti Negoziali della Concorrenza. Op. Cit., pp. 256-257.
238
Art. 2557 Divieto di concorrenza Chi aliena l'azienda deve astenersi, per il periodo di cinque anni
dal trasferimento, dall'iniziare una nuova impresa che per l'oggetto, l'ubicazione o altre circostanze sia
idonea a sviare la clientela dell'azienda ceduta (2125, 2596).
Il patto di astenersi dalla concorrenza in limiti più ampi di quelli previsti dal comma precedente è
valido, purché non impedisca ogni attività professionale dell'alienante. Esso non può eccedere la
durata di cinque anni dal trasferimento.
Se nel patto è indicata una durata maggiore o la durata non e stabilita, il divieto di concorrenza vale
per il periodo di cinque anni dal trasferimento.
Nel caso di usufrutto o di affitto dell'azienda il divieto di concorrenza disposto dal primo comma vale
nei confronti del proprietario o del locatore per la durata dell'usufrutto o dell'affitto.
Le disposizioni di questo articolo si applicano alle aziende agricole solo per le attività ad esse
connesse (2135), quando rispetto a queste sia possibile uno sviamento di clientela.
153
La Gioia239 aduz que quem aliena a quota social, aliena a parte do
estabelecimento correspondente à sua quota e justo seria que o alienante se
sujeitasse às obrigações decorrentes da alienação do estabelecimento, exceto se o
estabelecimento estiver fechado (liquidado). Esclarece, ainda, que no valor da quota
estão compreendidos o valor dos bens singulares do estabelecimento e o valor do
complexo organizado, isto é, do respectivo aviamento, o que justificaria aplicação da
proibição de concorrência do artigo 2557240 do Codice Civile.
Acrescenta Giannantonio Guglielmentti241 que o motivo pelo qual o legislador
estabeleceu o dever de não concorrência do alienante está fundado na
periculosidade da atividade desenvolvida por este, após a transferência do
estabelecimento, em relação ao adquirente em virtude da possibilidade de retirada
da clientela. Nesse caso, o critério para definir a periculosidade da atividade do
cedente determina-se a partir do cotejo da sua atuação (cargo) na sociedade e das
relações constituídas com terceiros estranhos a mesma sociedade, os quais
constituíram e constituem a clientela, respectivamente da azienda sociale antes da
alienação da quota e, após este evento negocial, dos dois estabelecimentos, aquele
alienado que permaneceu em atividade e o novo que o cedente iniciou depois da
transferência da sua quota. Quando o sócio cedente for praticamente o deus ex
machina da sociedade, evidentemente que o início por este de uma nova empresa
239
Ibid., p. 257.
Art. 2557 Divieto di concorrenza.
[I]. Chi aliena l'azienda deve astenersi, per il periodo di cinque anni dal trasferimento, dall'iniziare una
nuova impresa che per l'oggetto, l'ubicazione o altre circostanze sia idonea a sviare la clientela
dell'azienda ceduta [2125, 2229 ss., 2596].
[II]. Il patto di astenersi dalla concorrenza in limiti più ampi di quelli previsti dal comma precedente é
valido, purché non impedisca ogni attività professionale dell'alienante. Esso non può eccedere la
durata di cinque anni dal trasferimento [2596].
[III]. Se nel patto é indicata una durata maggiore o la durata non é stabilita, il divieto di concorrenza
vale per il periodo di cinque anni dal trasferimento [1339, 2125].
[IV]. Nel caso di usufrutto [2561] o di affitto [2562] dell'azienda il divieto di concorrenza disposto dal
primo comma vale nei confronti del proprietario o del locatore per la durata dell'usufrutto o dell'affitto.
[V]. Le disposizioni di questo articolo si applicano alle aziende agricole solo per le attività ad esse
connesse [2135 comma 2], quando rispetto a queste sia possibile uno sviamento di clientela.
241
Op. Cit., p. 258.
240
154
concorrente será idôneo a determinar o deslocamento da clientela, impondo-se,
nesse caso, o dever de não concorrência com vistas a tutelar a posição do alienante.
No caso de sociedade de capital, a aplicação do dever de não concorrência
ao alienante do bloco acionário far-se-á quando este detiver o controle da
sociedade, e disso também tenham conhecimento terceiros, de modo que se possa
inferir do comportamento e dos poderes do controlador uma identificação com a
própria sociedade, isto é, quando sociedade e sócio sejam um quid unicum. O
encargo probatório dessa situação fática incumbirá ao adquirente. Tanto na
alienação das quotas sociais como do bloco acionário permite-se a estipulação
expressa do dever de não concorrência.
A respeito da superação formal do objeto dos negócios de cessão do
estabelecimento e da alienação de quotas sociais ou de ações, para alguns
doutrinadores não se deve dar excessivo peso a este aspecto formal do negócio e
deve-se, ao contrário, considerar a efetiva posição revestida do cedente no
estabelecimento societário.
Giovanni E. Colombo242 sustenta que o dever de não concorrência do artigo
2557 do Codice Civile deve ser aplicado extensivamente ao alienante das quotas
(sociedade de pessoas) ou das ações (sociedade de capital).
Atualmente, a Suprema Corte italiana acolhe a tese da aplicação extensiva
do dever de não concorrência previsto no artigo 2557 do Codice Civile (a primeira
decisão é de 20.01.1997, n. 549, in RDI, 1998, II, p. 9; a segunda é de 16.02.1998, n
Gco, 1998, II, p. 577)243, a partir da interpretação da norma com base no perfil
teleológico244.
242
COLOMBO, Giovanni E. Trattado di Dirito Commerciale e di Dirito Pubblico Dell’Economia. Vol.
Terzo. (L’Azienda e il Mercato). Diretto da Francesco Galgano. Padova: CEDAM, 1979, p. 194.
243
A primeira decisão assentou que a disposição do artigo 2557 do Codice Civile não tem caráter de
excepcionalidade na medida em que o legislador não teve a intenção de conceber uma norma que
155
Mais recentemente, a Suprema Corte italiana (Cass. N. 9682, de 2000, in
Giust. Civ., 2001, I, p. 1031) pronunciou-se novamente favorável à tese extensiva da
norma do artigo 2557 do Codice Civile toda vez que se realizar a mesma função
jurídica tutelada no dispositivo, na qual se verifica uma mesma situação
concorrencial, como é caso da cessão de quotas de participação da sociedade titular
de estabelecimento.
Em Portugal, são favoráveis à aplicação extensiva do dever de não
concorrência à alienação das participações sociais (quotas e ações) Jorge Manuel
Coutinho de Abreu245 e Fernando de Gravato Morais246.
Jorge Manuel Coutinho de Abreu247 bem explica a distinção entre a
alienação da empresa social da alienação das participações desta:
A alienação de participações (ou partes ou quotas) sociais – mesmo
tratando-se da totalidade das participações numa sociedade – não se
identifica com a alienação da empresa social. Objeto da primeira são as
quotas – permanecendo a empresa na esfera jurídica da sociedade; objeto
da segunda é a própria empresa, transferida da sociedade para outro
sujeito.
Com efeito, a realidade do trespasse (alienação do estabelecimento) é
diversa da transmissão das participações sociais, eis que os sócios não têm direitos
sobre os bens componentes do patrimônio da sociedade, mas apenas esta.
derroga o princípio da livre iniciativa, mas disciplinar de maneira coerente o resultado daqueles
mesmos efeitos que as partes explicitam ou que se devem presumir co-naturais á relação negocial
das partes; aplicando-se, via analógica, a norma do referido dispositivo à cessão de quotas sociais.
Caberá ao juiz realizar rigoroso exame e levar em consideração as circunstâncias e a periculosidade
do caso, constatando se a cessão do caso concreto trata-se de um caso similar à alienação do
estabelecimento, isto é, que implique a substituição de um sujeito por outro no estabelecimento. A
segunda decisão conclui que a fattispecie da alienação das quotas sociais está sujeita ao dever de
não concorrência da norma do artigo 2557 do Codice Civile quando as circunstâncias concretas
efetivadas conduzirem o juiz à conclusão de que constituiu verdadeira proteção à alienação
propriamente dita, com vistas a preservar o aviamento e a sua produtividade, características
determinantes no ajuste de transferência.
244
LATELLA. Dario. II Divieto di Concorrenza dell”Alienante. In GUERRERA, Fabrizio (Coord.). I
Transferimenti di Azienda. Milano: Giufrè, 2000, pp. 476-477.
245
ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de Direito Comercial. 5ª ed. Coimbra: Almedina,
2005, p. 297.
246
MORAIS, Fernando de Gravato. Alienação e oneração de estabelecimento comercial. Coimbra:
Almedina, 2005, pp. 122-124.
247
ABREU, 2005, p. 297.
156
Sem embargo dessa distinção e de outras que se podem também inferir248,
a doutrina portuguesa tem defendido que, quando a cessão de participações sociais
for em bloco e representar a sua maioria, pode-se dizer que o estabelecimento é
transmitido jurídica e indiretamente249 ou, ainda, segundo Jorge Manuel Coutinho de
Abreu250, opera-se uma transmissão indireta da empresa que é instrumento de uma
transferência substancial do estabelecimento.
Destarte, se a alienação das participações sociais for total ou parcial que
represente a sua maioria, esta deverá ser equiparada à alienação do
estabelecimento, de modo que nesse caso incidirá também o dever de não
concorrência do cedente251.
Entende Fernando de Gravato Morais252 ser suficiente o critério da
transmissão da totalidade ou da maioria (parte considerável) das participações, ao
passo que Jorge Manuel Coutinho de Abreu253, o qual se aproxima da posição de
Giovanni Colombo, limita a incidência do dever de não concorrência apenas se o
alienante (ou alienantes) das partes sociais, dada à posição de controle que tinha na
sociedade, for capaz de exercer uma concorrência particularmente qualificada ou
diferencial; ficará então obrigado a não concorrer perante o(s) adquirente(s) das
quotas.
248
MORAIS. Op. Cit., p. 123, nota 251: Cumpre, no entanto, questionar se a transferência de
participações sociais pode fazer operar resultados práticos semelhantes ao trespasse (e, em que
termos), sendo certo que inexiste qualquer alteração ao nível da titularidade da pessoa jurídica, que
permanece proprietária do(s) estabelecimento(s) que integra(m) o seu patrimônio, embora os sócios
da sociedade sejam agora outros. Por isso, e incidindo apenas o nosso olhar nos problemas
inerentes à transmissão da organização mercantil, deve referir-se que, apesar da cessão da(s)
quota(s), v.g., os contratos ligados ao estabelecimento permanecem intocados, assim como não se
pode falar de qualquer transmissão de créditos. Desta sorte, não cabe aludir à necessidade de
consentimento do contraente cedido para que ocorra a cessão da posição contratual, nem à
imposição da notificação dos devedores, dado que não foram transmitidos quaisquer créditos.
249
Ibid., p.124.
250
ABREU, op. cit., p. 298, nota 250.
251
Ibid., p. 298; MORAIS, op. cit., p. 124: […] para efeito da aplicação do regime legal atinente à
responsabilidade por vícios do bem transmitido.
252
MORAIS, op. cit., p. 124, nota 251.
253
ABREU, op. cit., p. 298, nota 250.
157
No Brasil, contrato de trespasse também não se confunde estruturalmente
com o contrato de alienação de quotas ou ações.
No contrato de trespasse, transfere-se o estabelecimento empresarial como
unidade jurídica, o complexo dos fatores de produção, acrescido dos débitos, se
existentes.
Como bem esclarece Modesto Carvalhosa254, no contrato de trespasse
ocorre a transferência da titularidade do estabelecimento empresarial.
No caso da alienação de quotas ou de ações representativas do poder de
controle da sociedade empresária, ensina Fábio Konder Comparato255 que o seu
objeto é a própria sociedade empresária que se realiza por intermédio imediato da
titularidade das quotas, tendo em vista certas circunstâncias (ex. conhecimento das
características organizativas da empresa, relações pessoais com fornecedores,
financiadores e clientes, etc.)256.
Fábio Konder Comparato257, R. P. Tavares Paes258 e Guilherme Döring
Cunha Pereira259 sustentam que na alienação do bloco acionário de controle há uma
obrigação implícita do alienante de não fazer concorrência ao adquirente, isto é, de
não lhe desviar, dificultar ou retirar a clientela.
Nesse sentido, cite-se o julgado da 6ª Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos do agravo de instrumento n. 277.0064/9-00, relator Des. Sebastião Amorim, julgamento de 06/02/2003:
EMENTA: Ação de Abstenção de Atividade Comercial e Indenização.
Decisão que concedeu a tutela antecipada. Manutenção com base nas
254
CARVALHOSA, op. cit., p. 635, nota 146.
COMPARATO, Fábio Konder. A Cessão de Controle Acionário é negócio mercantil? Revista
Forense, n. 273, ano 77, jan - mar. 1981, p. 41.
256
Os exemplos são de ABREU. Jorge Manuel Coutinho de. Da Empresarialidade. As empresas no
Direito. Coimbra: Almedina, 1999, p. 356.
257
COMPARATO. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. Op. Cit., pp. 230-231, nota 260.
258
PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Alienação do Poder de Controle Acionário. São Paulo:
Saraiva, 1995, p. 38.
259
Ibid., pp.102-103.
255
158
provas já existentes nos autos. Cessão na qual está implícito que a
recorrente não poderá exercer o mesmo ramo de comércio da referida
sociedade comercial. Recurso Improvido. [...] Silvana Regina Mirisola Soda,
por seus advogados, irresignada com a r. decisão que concedeu a tutela
antecipada formulada nos autos da ‘Ação de Abstenção de Atividade
Comercial e Indenização’, ajuizada por Vero Verdi Comércio e Paisagismos
Ltda., contra ela se insurge postulando a sua reforma. Informa a agravante,
inicialmente, em breve síntese, que a agravada alega que adquiriu as
quotas da sociedade à qual pertencia e que, pelo preço pago, adquiriu
também a clientela, motivo pelo qual estaria impedida de exercer a atividade
de paisagista. Sustenta, portanto, o desacerto do entendimento esposado
no decisum guerreado, eis que o mesmo não está amparado por
fundamento legal, ferindo o direito elementar de exercer suas atividades
profissionais livremente, o que não pode subsistir. Afirma que a transação
comercial, nos termos do documento que junta a este recurso, abrangeu,
única e exclusivamente, o patrimônio do estabelecimento, não havendo
conseqüentemente qualquer menção sobre a proibição ou renúncia, que
deveria ser expressa, da ora recorrente de atuar [...]. Quanto ao mérito,
porém, melhor sorte não socorre a agravante, pelo que improcedem as suas
razões recursais. Com efeito, Silvana Regina Mirisola Soda cedeu suas
quotas sociais que possuía na empresa Vero Verdi Comércio e Paisagismos
Ltda., nova denominação da empresa ‘SS Comércio e Paisagismo Ltda. ME’
e, em sendo assim, está implícito, nessa cessão que não poderá exercer o
mesmo ramo de comércio da referida sociedade comercial. Conforme
ensina Carlos Alberto Bittar no livro “Teoria e Prática da Concorrência
Desleal’, páginas 64/65, que se encontra referida na petição inicial proposta:
Questão debatida a propósito é a prevalência, ou não, da vedação em caso
de não existência de pacto expresso”. Existem opiniões divergentes na
doutrina, a partir de antigo precedente jurisprudencial, em que se previa a
necessidade de estipulação expressa. Em função do princípio da boa-fé, a
melhor doutrina tem assentado, no entanto, que a cláusula de cessão de
clientela está implícita na alienação do estabelecimento, razão pela qual,
com o trespasse, não pode o vendedor montar negócio que venha a
absorver antiga clientela’. Assim, pois, entendo que, no caso, pelo menos
numa cognição sumária, está com a razão a empresa agravada, sendo,
pois, correta a decisão judicial proferida, com suporte na prova já existente
260
nos autos [...] .
Destarte, a proibição de concorrência é aplicável extensivamente, por
interpretação teleológica, à alienação das participações societárias representativas
do controle de sociedade empresária de pessoas e de capital261, e, por conseguinte,
imputa-se ao alienante um dever implícito de não concorrência.
No tocante à eficácia subjetiva da proibição de concorrência, esta alcançará
diretamente os alienantes e, caso se tratar de sociedade alienante, poderá ser
260
Tribunal de Justiça de São Paulo, 6ª câmara, Agravo de Instrumento n. 277.006-4/9-00, relator
Des. Sebastião Amorim, julgamento 06/02/2003.
261
SANTOS JÚNIOR, E. Sobre o Tresoasse e a Cessão de Exploração do Estabelecimento
Comercial. In ASCENÇÃO, José de Oliveira (Org.). As operações comerciais. Coimbra: Almedina,
1988, p. 415.
159
oponível ao quotista ou acionista se este exercia uma relevante função na empresa
que lhe possibilitasse o conhecimento da sua organização ou, ainda, se tinha
prestígio no respectivo segmento de mercado perante os clientes, os fornecedores e
os colaboradores.
5.3 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA CISÃO PARCIAL DA
SOCIEDADE
No direito italiano, o debate doutrinário sobre a aplicação extensiva da
cláusula de não concorrência na cisão parcial da sociedade está concentrado em
duas correntes. A primeira corrente sustenta o entendimento de que a cisão constitui
uma mera situação modificativa dos atos constitutivos das sociedades participantes
e não participantes e não implica na transferência dos bens e das relações jurídicas
da sociedade cindida à sociedade beneficiária. A segunda corrente defende a
orientação de que o momento translativo seja coexistencial à hipótese da alienação
do estabelecimento, sem embargo de não excluir o fato da modificação
estatutária262.
Em Portugal, Fernando de Gravato Morais263 informa que um setor da
doutrina configura a cisão como um trespasse, baseando-se na noção ampla e
262
LATELLA, Dario. Il Divieto di Concorrenza dell”Alienante. In GUERRERA, Fabrizio (Coord.). I
Transferimenti di Azienda. Milano: Giufrè, 2000, p. 480.
263
MORAIS, op. cit., p. 123, nota 251: Cumpre, no entanto, questionar se a transferência de
participações sociais pode fazer operar resultados práticos semelhantes ao trespasse (e, em caso
afirmativo, em que termos), sendo certo que inexiste qualquer alteração ao nível da titularidade da
pessoa jurídica, que permanece proprietária do(s) estabelecimento(s) que integra(m) o seu
patrimônio, embora os sócios da sociedade sejam agora outros. Por isso, e incidindo apenas o nosso
olhar nos problemas inerentes à transmissão da organização mercantil, deve referir-se que, apesar
da cessão da(s) quota(s), v.g., os contratos ligados ao estabelecimento permanecem intocados,
assim como não se pode falar de qualquer transmissão de créditos. Desta sorte, não cabe aludir à
necessidade de consentimento do contratante cedido para que ocorra a cessão da posição
contratual, nem à imposição da notificação dos devedores, dado que não foram transmitidos
quaisquer créditos.
160
flexível do negócio, independente, portanto, da causa do ato translativo. Outro setor
distingue tais operações do trespasse, pelo fato de se tratar de uma transmissão a
título universal, ou seja, os direitos e obrigações transferem-se em globo, em
conjunto, sem necessidade de preenchimento dos requisitos exigíveis para cada ato.
O patrimônio passa de uma sociedade para outra, mantendo na esfera jurídica da
sociedade adquirente a mesma fisionomia. A segunda orientação é a que prevalece,
afastando, portanto, a possibilidade de aplicação extensiva da proibição de
concorrência.
No Brasil, o artigo 229 da Lei das S/A caracteriza a cisão como uma
operação pela qual a sociedade anônima transfere parcelas do seu patrimônio para
uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se
a companhia cindida, se houver versão de todo o patrimônio, ou dividindo-se o seu
capital, se a versão for parcial.
Alex Prandini Jr.264 defende que a cisão parcial tem pontos de contato com o
contrato de trespasse. Enquanto a venda do estabelecimento empresarial se propõe
ao fim da substituição de ativos – bens por dinheiro – através da celebração do
contrato de trespasse, a finalidade da cisão parcial é, similarmente, a de permitir a
realocação de riquezas, por meio da organização societária. Assim, tanto um quanto
outro acolhe em si o escopo de transferência de riquezas. Por outro lado, sabe-se
que o patrimônio vertido na cisão parcial implica a transferência de patrimônio
funcional destinado à consecução de uma atividade econômica, aproximando-se do
trespasse, que é caracterizado pela alienação de bens constitutivos do
estabelecimento empresarial. Nesse passo, em princípio, o trespasse e a cisão
podem classificar-se como movimentos concentradores, sempre que o cessionário,
264
PRANDINI JR, Alex. Trespasse e Cisão Parcial – Similitudes. In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de;
ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.). Reorganização Societária. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.
378-380.
161
para quem a parcela do patrimônio deságua, seja um ente de polarização. Conclui,
então, afirmando que
Muito embora em suas estruturas jurídicas, o trespasse e cisão parcial
repercutem inexoravelmente nos mesmos ramos do direito obrigacional e
contratual, no que tange à substituição necessária das posições jurídicas do
alienante/empresa cindida por adquirente e empresa resultante da cisão,
respectivamente, ocorrendo o mesmo quanto aos contratos de trabalho; no
direito societário e registrário, por trazerem reflexos na estrutura patrimonial
das sociedades, exigindo-se assim a devida publicidade de tais atos; no
direito econômico e concorrencial, quando acarretarem em atos de
concentração que impactem nos princípios de política econômica. Por conta
disso, resta evidente que, do ponto de vista prático, ressalvadas as nuances
abordadas no parágrafo precedente, tanto cisão parcial quanto trespasse
podem fazer as vezes de um do outro, sendo certo que escolha duma ou
doutra via variará em razão das situações de fato que permearem a
265
atividade de determinada empresa .
Com efeito, a aplicação extensiva, por interpretação teleológica, da proibição
de concorrência na operação da cisão parcial da empresa tem cabimento quando
esta
corresponder,
indiretamente,
ao
contrato
de
trespasse,
isto
é,
o
estabelecimento seja alienado como um todo unitário, ou se subtraído algum ou
alguns dos seus elementos, seja mantida a estabilidade da organização do
estabelecimento e se mantenha apto ao exercício da atividade empresarial266. Dessa
maneira, a proibição de concorrência é implícita à operação de cisão.
5.4 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA AO SÓCIO RETIRANTE
E EXCLUÍDO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Nesse tópico, investiga-se a aplicação da proibição de concorrência ao sócio
que se retira de sociedade empresária para constituir ou participar de sociedade
concorrente.
265
266
PRANDINI JR, op. cit., p. 382, nota 269.
SANTOS JÚNIOR, op. cit., p. 415, nota 266.
162
Na doutrina italiana, Giovanni E. Colombo267 defende que os mesmos
princípios relativos à alienação de quotas resolvem a questão sobre a aplicação
extensiva da proibição de não concorrência ao sócio retirante.
No caso de sociedade de capitais, dificilmente será possível a aplicação
extensiva da proibição de concorrência e impensável no caso do direito de recesso
previsto no artigo 2437 do Codice Civile.
A aplicação da proibição de concorrência será, ao contrário, menos rara nas
sociedades de pessoas, mormente quando o sócio retirante puder exercer uma
concorrência diferencial.
De outra banda, o valor do aviamento (objetivo) que influencia a liqüidação
das quotas de titularidade e a respectiva importância que caberá ao sócio retirante,
justificaria a imposição da obrigação de não concorrência.
No Brasil, Oscar Barreto Filho268 sustenta que a proibição de concorrência
pode ser inserta no contrato social para impedir que sócio retirante possa abrir
concorrência ao estabelecimento explorado pela sociedade de pessoas de que
participava.
Cumpre esclarecer que a alienação da participação societária difere do
direito de recesso quanto à natureza do ato, isto é, a estrutura da relação jurídica
correspondente e a funcionalmente.
Na alienação da participação societária, o ato tem natureza de uma
negociação, acordo, tratativa, evidenciando-se uma relação negocial de compra e
venda quando se tratar de alienação do poder de controle.
No caso de o empresário pretender desligar-se da sociedade mediante a
alienação da sua participação societária, este deverá compor seus interesses com
267
COLOMBO, Giovanni E. Trattado di Dirito Commerciale e di Dirito Pubblico Dell’Economia. Vol.
Terzo. (L’Azienda e il Mercato). Diretto da Francesco Galgano. Padova: CEDAM, 1979, p. 194.
268
BARRETO FILHO, op. cit., p. 254, nota 144.
163
os da pessoa que tem a intenção de ingressar na sociedade ou deseja ampliar a
participação na hipótese de já figurar como sócio.
No tocante ao exercício pelo sócio do direito da retirada, esse ato tem
natureza de uma simples manifestação de sua vontade, condicionada à existência
de certos pressupostos. Trata-se de um ato unilateral do sócio que tem o condão de
liberá-lo do vínculo contratual.
Ademais, outra distinção entre o direito de retirada de sócio e a alienação da
participação societária está na atribuição de valores diferentes das participações.
Leciona Fabio Ulhoa Coelho269 que:
As tratativas para a alienação da participação societária conduzem em
torno do valor de negociação da participação, e o direito de retirada garante
ao retirante o valor patrimonial desta. São importes diferentes, sob o ponto
de vista conceitual e sob o aspecto de sua medida econômica. O preço da
participação societária, pago pelo adquirente ao alienante, não é igual ao
reembolso, devido pela sociedade ao dissidente. Antes de eleger um ou
outro caminhar para o seu desligamento, o sócio deve levar em conta o
valor que a sua participação societária terá em cada contexto.
Destarte, a proibição de concorrência não se aplica, em regra, ao sócio
retirante da sociedade, pois a retirada se trata de um ato unilateral praticado no seu
exclusivo interesse e que no valor correspondente à participação societária não está
embutido um sobrevalor.
Quanto ao sócio excluído, ele também poderá exercer concorrência com a
sociedade da qual foi desligado, desde que a sua atuação não caracterize
deslealdade concorrencial, como empregar meio fraudulento para desviar clientela
(artigo 195, inciso lll, da lei n. 9.279/96).
Excepcionalmente,
afiguram-se
legítimas
determinadas
restrições
à
liberdade de iniciativa ao sócio retirante e ao excluído, seja por conta da posição que
nela exercia lhe permitindo adquirir o conhecimento das características organizativas
269
COELHO, op. cit., p. 300, nota 148.
164
da empresa e dados confidenciais, ou, ainda, seja porque a sociedade lhe permitiu
estabelecer uma relação especial e pessoal com os clientes, fornecedores e
financiadores, exercendo sobre estes uma atração diferencial270.
No primeiro caso, a proibição do sócio retirante ou excluído consistirá no
dever de não revelar as características organizativas e dados confidenciais da
sociedade. Não se trata de proibição de concorrência propriamente dita, mas de um
dever de sigilo ou de confidencialidade. Os seus requisitos de validade são: (I)
descrição do que são considerados informações ou dados confidenciais da
sociedade; e (II) declaração de que os dados e informações confidenciais serão
utilizados única e exclusivamente no interesse da sociedade271.
No segundo caso, a sociedade poderá pactuar com o sócio a proibição de
concorrer por conta própria ou de participar da sociedade concorrente, desde que
seja condicionada aos elementos: (I) material; (II) territorial; (III) temporal; (IV)
acessoriedade; (V) retribuição. Os elementos material, territorial, temporal e
acessoriedade devem ter os mesmos contornos já analisados anteriormente. Já
quanto ao elemento compensatório, tem-se que a situação do ex-sócio que se retira
ou é excluído da sociedade se aproxima daquela do ex-empregado, de maneira que,
enquanto perdurar a proibição de concorrência, lhe será devido pela sociedade uma
retribuição paga a titulo de compensação financeira. Essa remuneração poderá ser
270
O investimento financeiro realizado pela sociedade no sócio para melhor atender ou estreitar a sua
relação com os determinados clientes, fornecedores e financiadores (cursos de formação e
capacitação, viagens para o exterior ou outras localidades do país, etc.), com vistas a incrementar os
negócios da empresa, não impõe uma restrição à liberdade de iniciativa do sócio retirante ou
excluído, mas tão somente um dever de restituir à sociedade essas despesas extraordinárias caso
tenha se desligado antes de um prazo razoável para recuperação de tais valores.
271
JOÃO, Regiane Teresinha de Mello. Cláusula de não concorrência no contrato de trabalho.
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 50. A autora acrescenta, ainda, um terceiro elemento, o período no qual
o sócio se obriga a não revelar os segredos.
271
REDECKER, Ana Cláudia. Franquia Empresarial. São Paulo: Memória Jurídica, 2002, pp.99-106.
165
paga integralmente ao término da relação societária ou mensalmente em relação ao
período em que o empregado não puder exercer atividade concorrente.
5.5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE
FRANQUIA (FRANCHISING)
No Brasil, o contrato de franquia empresarial é regulado pela Lei nº
8.955/94. O artigo 2º define franquia empresarial como o sistema pelo qual um
franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao
direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e,
eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e
administração de negócios ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo
franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique
caracterizado vínculo empregatício.
Ana Cláudia Redecker272 doutrina no sentido da incidência da boa-fé no
contrato de franquia, enfatizando a necessária observância dos deveres acessórios
da boa-fé na fase pós-contratual (culpa post factum finitum). Sob o influxo do dever
acessório da lealdade, a autora sustenta que o franqueado estaria proibido de
praticar atividade concorrente à do franqueador, utilizando o Know-how dele
adquirido, após a extinção do contrato.
Ocorre que a norma do artigo 3º, XIV, “a” e “b”, da Lei n.º 8.955/94, dispõe
sobre a possibilidade de o contrato de franquia disciplinar a situação do franqueado,
após a expiração do contrato de franquia, no tocante: a) ao Know-how ou segredo
272
REDECKER, Ana Cláudia. Franquia Empresarial. São Paulo: Memória Jurídica, 2002, pp.99-106.
166
de indústria a que venha ter acesso em função da franquia; b) à implantação de
atividade concorrente da atividade do franqueador.
Sem embargo, a jurisprudência tem flexibilizado o rigor da aplicação da
cláusula de não concorrência prevista no contrato de franquia, notadamente quando
a atividade explorada na franquia for comum no local onde se encontrava instalado o
franqueado.
Cabe anotar que a proibição de concorrência contida no contrato de franquia
poderá se sujeitar ao controle do CADE (artigo 54 da Lei n.º 8.884/94) conforme já
decidiu o Conselheiro Ruy Afonso de Santa Cruz Lima, no Ato de Concentração n.º
100/96, de 24 de março de 1999, Requerentes: Frenesius Laboratórios Ltda., NMC
do Brasil Ltda. e Maria de Almeida Indústria
e Comércio Ltda., in DOU de
14/04/1999:
CONTRATO DE FRANQUIA – OBRIGATORIEDADE DE APRESENTAÇÃO
AO CADE NOS TERMOS DO ART. 54 DA Lei nº 8.884/94 –
RECONHECIMENTO. Os contratos de franquia, bem como os de
administração, consultoria ou qualquer outro entre fornecedores, devem ser
273
submetidos ao CADE nos termos do artigo 54 da Lei de Concorrência .
No Direito português, a fixação de uma proibição de não concorrência no
contrato de franquia é defendida por parte da doutrina desse país, com as
necessárias adaptações, por aplicação analógica do artigo 9º do Decreto-Lei nº
178/86, relativo ao contrato de agência, desde que preenchidos os seguintes
requisitos: necessidade de documento escrito a prever essa obrigação; limitação da
liberdade do franqueado unicamente no que toca às atividades concorrentes com a
do franqueador; duração máxima de dois anos após a cessação do contrato;
circunscrição da obrigação à zona confiada ao franqueado; compensação do
franqueado.
273
Ato de Concentração n.º 100/96. Requerentes: Frenesius Laboratórios Ltda., NMC do Brasil Ltda.
e Maria de Almeida Indústria e Comércio Ltda. DOU 14/04/1999.
167
Todavia, Maria de Fátima Ribeiro274 sustenta que por se tratar o contrato de
franquia de um contrato de adesão, deve-se considerar que a cláusula de não
concorrência é abusiva. Argumenta, ainda, que o mecanismo legal mais adequado
para resolver, no âmbito da concorrência, estes eventuais conflitos é o recurso às
normas que proíbem e sancionam a concorrência desleal.
Na perspectiva do Direito da Concorrência da Comunidade Européia, L.
Miguel Pestana de Vasconcelos275 salienta que o Tribunal de Justiça reconheceu,
num conjunto de decisões, que algumas restrições acessórias necessárias à
viabilidade de uma transação não restringem, por si só, a concorrência:
especialmente aquelas necessárias para induzir o investimento. Relativamente à
atividade do franqueado, este poderá ficar vinculado a não concorrer com o outro
membro da rede franqueada, incluindo o franqueador, no período da vigência do
contrato ou mesmo na fase pós-contratual, pelo período máximo de um ano, no
território onde explorou a franquia (artigo 3º, alínea “c” do Regulamento nº 4087/88).
Posteriormente, em 1999, o Regulamento nº 2790 estabeleceu no artigo 5º,
alínea “b”, que a cláusula de não concorrência só pode dizer respeito a bens e
serviços que concorram com os bens ou serviços contratuais; deve ser limitada às
instalações e terrenos, a partir dos quais o franqueado operou durante o período do
contrato e ser indispensável para proteger o saber-fazer transferido pelo
franqueador, desde que o período de vigência dessa proibição de concorrência seja
limitado a um período de um ano após o termo de acordo; esta obrigação não
prejudica a possibilidade de impor uma restrição ilimitada no tempo à utilização e
divulgação do saber-fazer que não seja ainda do domínio público, nos termos do
mesmo preceito.
274
RIBEIRO, Maria de Fátima. O Contrato de Franquia. Coimbra: Almedina, 2001, pp. 287-296
VASCONCELOS, L. Miguel Pestana de. O Contrato de Franquia (franchising). Coimbra:
Almedina, 200, p.142.
275
168
Conclui-se que, no Direito brasileiro, a proibição de concorrência no contrato
de franquia deve ser expressamente ajustada entre franqueador e franqueado, bem
como deve conter os elementos temporal, material, territorial e acessório. Com
relação ao elemento temporal, o prazo standart de 05 (cinco) anos do artigo 1.147
do Código Civil pode ser aplicado por analogia, mas nada obsta que seja ajustado
um prazo superior, desde que justificado pelas circunstâncias decorrentes da
relação contratual.
5.6 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE
COOPERAÇÃO EMPRESARIAL (JOINT VENTURE)
A proibição da concorrência tem sido aplicada nos contratos de joint venture.
O contrato de joint venture ou cooperação empresarial tem como característica
essencial a realização de um projeto comum, empreendimento cuja duração pode
ser curta ou longa. Trata-se de um simples contrato de parceria ou cooperação sem
a presença de afectio societatis no momento da sua celebração. Além da execução
do projeto, há, entre outras, previsões como aportes para a realização do
empreendimento, a partilha dos lucros ou prejuízos e o controle e a participação na
gestão.
Essa cooperação empresarial pode ocorrer em diversos mercados, como de
exploração de recursos naturais, a realização de projetos industriais e, mais
comumente, na aplicação de investimentos. Ensina Maristela Basso276 que o fator
tempo é extremamente importante para escolha da forma da joint venture mais
adequada e o modo de contribuição dos co-ventures (participantes) para o
276
Basso, Maristela. Joint Ventures. Manual Prático das associações empresariais. 3ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, pp.39-41.
169
empreendimento. Na joint venture, os projetos como de implantação de uma
indústria,
requerem
investimentos
em
bens
do
ativo
fixo
(construção
e
equipamentos) de amortização a longo prazo. Já os projetos de investimentos de
capital durante curto espaço de tempo e de sua recuperação, acrescida de lucros,
costumam ser por um breve período.
Maristela Basso277 salienta que os participantes têm o dever de lealdade uns
para com os outros, porém, relativamente a operações abrangidas pelo ajuste,
podem ser competidores entre si. É nesse dever de lealdade que a proibição de
concorrência incide no contrato de cooperação empresarial, com vistas a assegurar
a sua realização e a proteção das legítimas expectativas dos participantes do
empreendimento.
Na Comunidade Européia, segundo noticia Pedro Paulo Cristófaro278, a
jurisprudência admite como ancilares as cláusulas de não concorrência dos sócios
com o empreendimento comum e que, em se tratando de joint venture, estas eram
admitidas por todo o prazo de vigência da cooperação empresarial ou até mesmo
por um período que ultrapassa a vigência da joint venture.
Contudo, o Aviso nº 188/5 de 2001, da Comissão Européia de Concorrência,
estabeleceu que o limite temporal da cláusula de não concorrência no contrato de
joint venture deve ser justificado e poderá ser de até 05 (cinco) anos, assentando
que as cláusulas restritivas de concorrência por período superior à duração da
cooperação empresarial não serão consideradas auxiliares.
Cabe destacar, no que tange ao elemento temporal da cláusula de não
concorrência no contrato de joint venture, que este, ao contrário do padrão de 05
(cinco) anos aplicável às situações negociais gerais, deverá corresponder ao tempo
277
Ibid., p.181.
CRISTOFARO, Pedro Paulo. As Cláusulas de Raio em Shoping Center e a Proteção à livre
Concorrência. Revista IBRAC, vol. 10, n.º 3, 2001, p.93.
278
170
de duração para a execução do projeto ou prazo menor se assim dispuserem os
participantes279.
Portanto, o artigo 1.147 do Código Civil é aplicado, por analogia, para
regular a proibição de concorrência dos participantes da joint venture, desde que os
seus elementos sejam razoavelmente delimitados com vistas à consecução da
finalidade da operação.
5.7 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE
SHOPPING CENTER
O shopping center constitui verdadeiro centro global de interesses,
econômica e juridicamente distinto das empresas nele estabelecidas, de modo que o
centro comercial é em si mesmo, objeto de proteção do direito concorrencial, não
apenas em relação a terceiros, mas também nas relações entre os próprios
comerciantes com estabelecimentos nele localizados.
Nesse passo, ensina Fábio Konder Comparato280 que as regras de
concorrência estabelecidas nos regimentos internos dos centros comerciais,
correspondem a uma limitação convencional indireta de concorrência, isto é, uma
obrigação acessória em contrato que não tem por objetivo principal a regulação da
concorrência. Além dos limites estabelecidos nas áreas do próprio centro comercial,
ajusta-se um limite externo em relação ao centro como um todo. Tais limitações
constituem um efeito natural do contrato com vistas à colaboração das partes e não
da competição entre elas. Com efeito, a legitimidade da cláusula de não
279
Nesse sentido, confira-se o voto do conselheiro relator Marcelo Procópio Calliari, no ato de
Concentração n.º 08012.004804/98-54, requerentes: Lucent Technologies Internacional Inc. e
Telessis Sistemas em Telecomunicações Ltda., in DOU de 14/01/1999.
280
COMPARATO, Fabio Konder. As cláusulas de não-concorrência nos “shoppings Centers”. In
Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n.° 97, jan./mar. 1995, pp. 23-28.
171
concorrência depende dos limites precisos de objeto, de tempo e de espaço, tendo
em vista o princípio da liberdade de concorrência albergado no artigo 170, inciso IV,
da Constituição Federal.
Em se tratando de shopping center, esclarece, ainda, Fabio Konder
Comparato281 que, com vistas à proteção da clientela do centro comercial, a cláusula
de não concorrência é estipulada de forma a cobrir todas as modalidades de
comércio e serviços localizados no centro comercial. Não basta, porém, que se
defina o objeto dessa obrigação de não concorrer. No dizer do referido autor282:
Importa, ainda, que ela seja limitada no tempo, ou no espaço, [...]. Estas
duas podem ser cumuladas, mas é indispensável que exista pelo menos
uma. Quando a causa da interdição de concorrência refere-se à pessoa do
empresário, é normal que se estabeleça uma limitação no tempo, pois a
clientela pessoal tende a dispersar no curso dos anos. Mas se a razão de
ser da estipulação é a concorrência espacial entre estabelecimentos, o que
importa é a fixação de uma distância mínima de separação entre eles, a
prevalecer sem limitação de tempo.
A propósito do limite espacial, Pedro Paulo Salles Cristófaro283 adota a
denominação de “cláusula de raio”, que é válida na medida em que esteja adstrita
aos limites necessários para atingir os fins legítimos do contrato de shopping center,
os quais se revelam na preservação do empreendimento e dos interesses entre seus
participantes, na manutenção da força atrativa do tenant mix e na coibição do desvio
de clientela resultante dos esforços comuns. No que tange aos critérios para a
fixação da distância da cláusula de raio, leciona o citado autor que:
o raio propriamente dito em que a concorrência estaria proibida deverá ser
limitado ao estritamente necessário para que o poder de atração da loja
localizada no interior do shopping não seja aviltado. A distância cabível,
naturalmente, dependerá de diversos fatores, que fazem parte dos próprios
estudos de viabilidade para a composição do tenant mix. Em um shopping
de vizinhança, cujo mix é formado para atender às necessidades básicas
de consumidores vizinhos, o raio de proteção será menor; em um shopping
regional, que visa atender a toda sorte de clientes, o raio poderá ser maior.
No interior, em que o deslocamento entre grandes distâncias se faz em
281
Ibid., pp. 23-28.
Ibid., p. 28.
283
CRISTOFARO, op. cit., pp. 95-97, nota 283.
282
172
curto espaço de tempo, o raio poderá ser maior, nos grandes centros,
marcados por engarrafamentos, etc.
Pedro Paulo Salles Cristófaro284 defende que a proibição de concorrência é
auxiliar no contrato de locação e que, portanto, deve vigorar pelo prazo da locação,
ressalvando, contudo, que a sua apreciação deverá observar a razoabilidade e as
condições específicas de um determinado mercado.
Acrescenta o referido autor, ainda, que a imposição ao lojista de uma
abstenção permanente de se estabelecer em outro local, nas proximidades do
shopping, sem apontar qualquer limite temporal, fere profunda e gravemente o
direito do lojista de exercer livremente a atividade econômica, a todos garantidas
pela Constituição Federal, pois implicaria na renúncia definitiva ao exercício de um
direito irrenunciável, ainda que relativamente a uma restrita localidade.
Em recente livro sobre o Shopping Center, João Augusto Basílio285 opina no
sentido de que a cláusula de não concorrência deve conter em sua redação os
limites de objeto, tempo e espaço, sob pena de configurar infração à ordem
econômica286.
Apesar do conselheiro Roberto Augusto Castellanos Pfeifer ter qualificado a
convenção de não restabelecimento no shopping center como cláusula de
exclusividade, percebe-se que os elementos da norma do artigo 1.147 do Código
Civil (material, temporal, territorial e acessório) foram aplicados por analogia para
apreciação da validade da referida convenção, tendo concluído, no caso concreto,
pelos seus efeitos anti-competitivos.
284
Ibid., p. 100.
BASÍLIO, João Augusto. Shopping Centers. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 139.
286
Essa questão foi submetida à apreciação do CADE, no Processo Administrativo n.°
08012.009991/98-82, Representante: Participações Morro Vermelho Ltda. e Representadas:
Condomínio Shopping Center Iguatemi e Shopping Centers Reunidos do Brasil Ltda., tendo o
conselheiro Roberto Augusto Castellanos Pfeifer, tecido importantes considerações acerca dos
elementos no caso concreto e sobre o mercado relevante em apreço.
285
173
Destarte, aplica-se, por analogia, a norma do artigo 1.147 do CC para
disciplinar a proibição de concorrência dos lojistas nos contratos de shopping center,
desde que não resulte no mercado qualquer impacto negativo.
174
6 CONCLUSÃO
De todo o exposto nesta dissertação, pode-se inferir as seguintes
proposições:
(I) a Constituição de 1988, como fonte primária do sistema jurídico, na
medida em que reside no ápice do escalonamento normativo do ordenamento
jurídico brasileiro, subordina a interpretação da legislação infraconstitucional em
consonância à normatividade constitucional. Em última análise, a compreensão das
normas infraconstitucionais pressupõe a sua leitura à luz da supremacia
constitucional;
(II) conforme se infere do artigo 1º, o legislador constituinte elegeu o regime
político de Estado Democrático de Direito assentado nos seguintes fundamentos: (I)
a soberania; (II) a cidadania; (III) a dignidade da pessoa humana; (IV) os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; (V) e o pluralismo político;
(III) o legislador constituinte remete ao caput do artigo 170 aos seus artigos
1º, incisos II e III, e 3º, inciso I, todos da CF, o que significa que a atuação do Estado
e dos particulares, nos processos de produção, circulação, distribuição e consumo
das riquezas do país, têm como finalidade última a existência e desenvolvimento da
pessoa humana, que será efetivada em consonância com a justiça social;
(IV) o Direito Comercial é correntemente definido como conjunto de normas,
conceitos e princípios jurídicos que regem, no domínio privado, os fatos e as
relações jurídicas comerciais ou, ainda, como o Direito Privado especial do comércio
ou dos comerciantes;
(V) a Constituição de 1988 abriu caminho para a leitura do Direito Civil e
Comercial conforme as normas fundamentais constitucionais. Proclamando-se a
175
constitucionalização do Direito Civil no Brasil, de maneira que as normas
fundamentais constitucionais, especialmente os valores existenciais da solidariedade
social, a igualdade substancial e a dignidade da pessoa humana, espraiam-se por
toda a legislação infraconstitucional civil;
(VI) o desenvolvimento das técnicas comerciais e industriais impuseram uma
especialização e uma organização na atividade comercial. Assim, a noção de ato de
comércio perdeu relevo prático e cedeu passo à noção de atividade como série
coordenada de atos e, depois, à noção de empresa;
(VII) foi com a intensificação do comércio e o surgimento da concorrência
que a importância do estabelecimento comercial ganhou relevo. A crescente
concorrência faz com que o comerciante aprimore os mecanismos para atrair a
clientela. O incremento do estabelecimento comercial foi um desses mecanismos;
(VIII) as cláusulas gerais da função social do contrato e da boa-fé objetiva,
reveladas nos artigos 113, 187, 421 e 422 do Código Civil de 2002, reclamam
concretização de acordo com os critérios interpretativos coerentes com os valores
existenciais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade
substancial, os quais constituem a ratio do sistema jurídico brasileiro;
(IX) na perspectiva constitucionalizada, a empresa há de ser compreendida
como organização que engloba também feixe de contratos e de relações com vistas
a tutelar os interesses nela envolvidos à luz das normas fundamentais
constitucionais;
(X) A empresa exerce a sua função social e econômica ao observar as
normas setoriais constitucionais inseridas no artigo 170 da CF. A livre iniciativa e a
propriedade privada (artigo 170, incisos II e IV, da CF) devem ser exercidas na sua
perspectiva funcional e não abusiva (artigos 170, inciso III e 173, § 4° da CF), de
176
maneira que a propriedade de bens de produção deve ser também e prioritariamente
utilizada em benefício de terceiros;
(XI) a preservação da empresa consiste na garantia da sua continuidade no
interesse geral do mercado, coletividade e no interesse dos participantes da
sociedade, concretizando o princípio da função social da propriedade (artigo 5°,
inciso XXXIII; artigo 170, inciso III da CF);
(XII) o exercício da liberdade de concorrência entre os particulares comporta
restrições de ordem legal e convencional. A primeira diz respeito àquela situação na
qual o exercício pelo particular de uma determinada atividade foi previamente
condicionado pelo legislador à autorização de outro particular, como a exploração de
patentes de invenção. Quanto à segunda, restrições convencionais, são as
estipuladas pelos contratantes no exercício da sua autonomia privada (artigos 1°,
inciso IV, e 170, caput, da CF), exemplo desta é a cláusula de exclusividade em
contrato de representação comercial;
(XIII) a proibição de concorrência imposta ao alienante do estabelecimento
empresarial (artigo 1.147 do CC) é uma espécie de restrição legal à liberdade de
concorrência (artigo 170, inciso IV, da CF);
(XIV)
no
sistema
jurídico
brasileiro,
os
elementos
potencialmente
constitutivos de um estabelecimento empresarial podem ser reconduzidos às
categorias de bens corpóreos (materiais) e incorpóreos (imateriais) e das relações
jurídicas (contratos de trabalho e serviços, créditos);
(XV) à luz da perspectiva do critério funcional, os elementos componentes
do estabelecimento empresarial serão aqueles que mantêm a identidade do projeto
empresarial e as características qualitativas do processo produtivo, assim, para
formar o seu estabelecimento empresarial, o empresário identificará os bens que
177
são necessários para o desenvolvimento de sua atividade, promovendo a sua
integração com a organização que considerar mais conveniente e funcional;
(XVI) o aviamento é a capacidade do estabelecimento produzir lucros, tendo
origem no conjunto de bens selecionados pelo empresário e na organização a eles
oferecida, sendo uma conseqüência do trabalho intelectual do empresário ao
organizar os seus bens. A capacidade de atrair clientela é possibilidade de lucro
para o estabelecimento. A expressão aviamento traduz essa idéia: organização
eficiente que resulta na atração de clientela que se reflete na capacidade lucrativa
do estabelecimento;
(XVII) a clientela compreende os destinatários dos bens e serviços
produzidos pelo empresário e o fluxo constante de demanda desses bens e serviços
que estão dispostos a contratar com o estabelecimento. Ela não tem deveres em
relação à empresa e nem pode ser objeto de direito real. Para o direito em vigor a
clientela é insuscetível de apropriação;
(XVIII)
de
fato,
a
presença
de
clientela
é
fundamental
para
o
estabelecimento empresarial, mas não se chega à conclusão de que ela é bem
incorpóreo que compõe juntamente com os demais, corpóreos e incorpóreos, o
estabelecimento empresarial;
(XIX) predomina, hoje, na doutrina brasileira, o entendimento de que o
estabelecimento empresarial tem natureza jurídica de uma universalidade de fato;
(XX) essa universalidade é formada pela vontade do seu titular, o
empresário, que organizou os diversos elementos componentes, tendo em vista o
exercício de uma determinada atividade. Nesse caso, como os elementos que
compõem o estabelecimento formam uma unidade em virtude da destinação que
178
lhes foi dada pelo seu titular, trata-se de uma universalidade de fato, tal como
definido expressamente na norma do artigo 90 do código civil;
(XXI) no contrato de trespasse, o alienante e o adquirente assumem deveres
decorrentes da boa-fé objetiva (artigos 187 e 422 do CC), como o dever de
informação, de lealdade, de proteção e de segredo ou sigilo;
(XXII) no sistema jurídico brasileiro, a evolução do tratamento dispensado à
proibição de concorrência no contrato de trespasse pode ser dividida em quatro
fases com contornos específicos em conformidade com a ideologia vigente à época;
(XXIII) na 1ª fase, caracterizada pela ideologia liberal que prestigiava a
vontade absoluta das partes, a proibição de concorrência deveria ser expressamente
pactuada e limitada no tempo, no espaço e no objeto. O descumprimento da
cláusula de não concorrência consistia em uma violação ao contrato e gerava
apenas um dever de reparação;
(XXIV) na 2ª fase, por força da interpretação do artigo 214 do Código
Comercial Brasileiro, a proibição de concorrência era entendida como implícita no
contrato de trespasse e tinha por escopo tutelar a clientela do estabelecimento
alienado. Nesse período, a violação da proibição de concorrência era qualificada
como ato de concorrência desleal;
(XXV) na 3ª fase, a proibição de concorrência inferia-se implicitamente do
contrato de trespasse, contudo, o seu fundamento decorreria do princípio da boa-fé
objetiva do artigo 131 do Código Comercial, já sob o influxo da Constituição de 1988,
com vistas a tutelar o aviamento do estabelecimento (capacidade de gerar lucros).
Todavia a proibição de concorrência estava sujeita às limitações material, temporal e
espacial;
179
(XXVI) a 4ª fase é inaugurada com o artigo 1.147 do Código Civil de 2002,
quando é concedido um tratamento de proibição legal de concorrência pressuposta
pelo legislador da vontade querida pelas partes;
(XXVII) toda restrição à liberdade de concorrência deve ser sempre
justificada com vistas, em primeiro lugar, a não prejudicar os interesses da
coletividade (artigo 170, caput, da CF c/c 421 do CC) e, em segundo lugar, realizar
as legítimas expectativas das partes e o resultado econômico (aviamento objetivo)
do contrato de trespasse (artigos 421 e 422 do CC). Em última análise, a ratio da
norma de proibição de concorrência do alienante (artigo 1.147 do CC) reconduz à
proibição de venire contra factum proprium (artigo 187 do CC);
(XXVIII) o período de 05 (cinco) anos, previsto no artigo 1.147 do CC,
constitui um limite temporal padrão e poderá ser superado por meio do postulado da
razoabilidade, na sua acepção como eqüidade, para assegurar a função social e
econômica do contrato de trespasse e as legítimas expectativas dos contratantes, e
assim promover a realização da justiça material (artigos 3°, 5°, caput, e 170, caput,
da CF c/c artigos 421 e 422 do CC). A estipulação de um prazo superior ao padrão
de 5 anos é suscetível de controle pelo CADE (artigo 170, § 4° da CF e artigos 20 e
54 da Lei 8.884/94) e pelo Poder Judiciário (artigo 1°, inciso III, e 5° caput, inciso
XXXV da CF);
(XXIX) para flexibilizar o elemento temporal de cinco anos, a fim de viabilizar
a realização da própria transação principal (função social e econômica), quando
presentes circunstâncias justificadoras, como as particularidades do próprio mercado
ou, ainda, o grau de experiência do adquirente no respectivo ramo de negócio, tem
sido aplicado pelo CADE, no controle desse elemento, o postulado da razoabilidade;
180
(XXX) o postulado da proporcionalidade é aplicado pelo CADE para resolver
a imbricação dos princípios da ordem econômica (artigo 170 da CF e artigo 1° da Lei
n° 8.884/94) e tutelar, em primeiro lugar, os interesses da coletividade (artigo 1°,
parágrafo único, da Lei n° 8.884/94 c/c 421 do CC) e, em segundo lugar, os
legítimos interesses dos contratantes (artigo 421 e 422 do CC), visando assegurar,
respectivamente, o bem estar social e a justiça material (artigos 3°, 5°, caput, e 173,
§ 4°, da CF c/c artigo 1°, parágrafo único, da Lei n° 8.884/94 e artigos 421 e 422 do
CC);
(XXXI) a proibição de concorrência tem a sua eficácia subjetiva (efeitos
internos) restrita aos contratantes, alienantes e adquirentes, e ao subadquirente;
(XXXII) a quebra da proibição de concorrência pode ocorrer direta ou
indiretamente. A violação será direta quando for praticada pelo empresário alienante
e, indireta quando o alienante associar-se a terceiro, concorrente ou não, para
explorar o mesmo fim ou segmento mercadológico do estabelecimento empresarial
alienado;
(XXXIII) a proibição de concorrência do artigo 1.147 do CC comporta
aplicação extensiva por meio da interpretação teleológica e aplicação integrativa por
meio da analogia. A primeira corresponde diretamente ao fundamento da razão da
norma de proibição de concorrência, isto é, dos objetivos pretendidos pelo legislador
com a sua edição e, indiretamente, à coerência normativo-material do sistema
considerando o caso concreto. Na interpretação extensiva, o domínio de aplicação
do sentido da norma é ampliado para integrar um caso, ainda que circunstâncias
nele existentes não pertençam ao fato-tipo conceitual previsto, nesse caso, a
proibição de concorrência presume-se querida pelos contratantes.
181
(XXXIV) a aplicação integrativa por meio da analogia, que é entendida pela
transposição de uma regra, dada na lei para a hipótese legal, ou várias hipóteses
semelhantes, numa outra hipótese, não regulada por lei, semelhante àquela. Nesta,
a proibição de concorrência não é presumida, é necessária a sua previsão expressa
no contrato;
(XXXV)
no
contrato
de
alienação
das
participações
societárias
representativas do controle de sociedade empresária de pessoas e de capital, a
proibição de concorrência é aplicável extensivamente;
(XXXVI) a proibição de concorrência é aplicada extensivamente na operação
societária de cisão parcial da empresa quando esta corresponder, indiretamente, ao
contrato de trespasse, isto é, quando o estabelecimento for alienado como um todo
unitário ou subtraídos alguns de seus elementos, seja mantida a estabilidade da sua
organização e o estabelecimento se mantenha apto ao exercício da atividade
empresarial. Se a cisão da empresa não corresponder ao contrato de trespasse,
admite-se a aplicação integrativa da proibição de concorrência com a finalidade de
assegurar a consecução da operação em razão dos elementos que compõem a
parcela do patrimônio transferido;
(XXXVII) a proibição de concorrência aplica-se ao sócio retirante ou excluído
somente se este exercia uma função que lhe permitia adquirir o conhecimento das
características organizativas da empresa e dados confidenciais, ou se estabeleceu
uma relação especial e pessoal com os clientes, fornecedores e financiadores,
exercendo sobre estes uma atração diferencial. Nesse caso, os elementos de
validade da proibição de concorrência são: material, territorial, temporal,
acessoriedade e retribuição;
182
(XXXVIII) nos contratos de franquia, de joint venture (artigo 3°, inciso XIV, da
Lei 8.955/94) e de shopping center, a proibição de concorrência é aplicada
integrativamente e, por isso, deve ser expressamente ajustada entre os
contratantes, bem como deve conter os elementos temporal, material, territorial e
acessório, e não resultar impactos negativos no mercado em prejuízo da
coletividade (artigo 1°, parágrafo único, da Lei 8.884/94).
(XXXIX) infere-se do presente trabalho que pela primeira vez tem-se a
positivação da cláusula de não concorrência no ordenamento jurídico brasileiro. No
entanto, a regulação dessa cláusula no artigo 1.147 somente faz restrição ao tempo,
não trazendo qualquer restrição com relação ao espaço e ao gênero de comércio,
que era entendimento jurisprudencial. A proibição absoluta do restabelecimento do
alienante do fundo sem restrições é incompatível com a Constituição Federal
(princípio da livre iniciativa e livre concorrência), sendo imperioso o princípio da
razoabilidade e proporcionalidade ao se tratar da questão.
183
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