1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE - UNIFLU FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS - FDC MESTRADO EM DIREITO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: RELAÇÕES PRIVADAS E CONSTITUIÇÃO PATRÍCIA SCARDINI SILVEIRA SCHUCKERT A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO DA EMPRESA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E DO CÓDIGO CIVIL. Campos dos Goytacazes - RJ 2006 2 PATRÍCIA SCARDINI SILVEIRA SCHUCKERT A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO DA EMPRESA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E DO CÓDIGO CIVIL Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Faculdade de Direito de Campos, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Direito, na Área de Concentração Relações Privadas e Constituição, sob orientação do Professor Doutor Alexandre Ferreira de Assumpção Alves. Campos dos Goytacazes - RJ 2006 3 PATRÍCIA SCARDINI SILVEIRA SCHUCKERT A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO DA EMPRESA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E DO CÓDIGO CIVIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Faculdade de Direito de Campos, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito, na área de concentração Relações Privadas e Constituição. Aprovada em 20/10/ 2006 COMISSÃO EXAMINADORA __________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Ferreira de Assumpção Alves FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS Orientador ___________________________________________________ Profª. Rosangela Gomes FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS ___________________________________________________ Profª. Moema Augusta Soares de Castro UFMG 4 “A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu tamanho original”. Willian Shakespeare 5 Dedico esta dissertação ao meu filho João Felipe, parte inseparável da minha existência. Ao Marcelo, irmão amado, que mesmo ausente, por vontade Divina, continua presente em todos os nossos momentos. 6 Agradecimentos A Deus, nosso criador, detentor de todo conhecimento e sabedoria do universo, que nos deu vida para vivermos em abundância e plenitude. Aos meus pais, José (Silveirinha) e Léa, de quem recebi o melhor de tudo: Amor. Ao Marck, meu marido, companheiro dos meus sonhos e ideais. Ao Rodrigo e José Antônio, irmãos queridos, com os quais compartilho muito amor e união. Ao João Victor e Rodrigo Filho, sobrinhos queridos, esperando que meu exemplo lhes sirva de incentivo. A tia Eliana pelo incentivo em toda minha trajetória pessoal e acadêmica, por seus momentos de dedicação e amor incondicional. Aos professores, pela compreensão importante de minha vida: ser mãe. na escolha mais Aos meus familiares em geral e aos amigos pelo apoio e, principalmente, compreensão durante meus momentos de ausência. Ao meu Professor e orientador Dr. Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, pela oportunidade de mergulhar nessa pesquisa desafiadora. A todos que direta ou indiretamente contribuíram para que eu finalizasse com êxito essa jornada em busca do conhecimento. 7 RESUMO Vinculada ao projeto de pesquisa “O Novo Direito Empresarial” e à linha de pesquisa “Relações Privadas Contemporâneas”, a dissertação investiga a proibição de concorrência no contrato de alienação do estabelecimento empresarial – contrato de trespasse – em contexto que o exercício da empresa promova os valores axiológicos eleitos na Constituição de 1988 e proporcione à coletividade os benefícios decorrentes de sua função social. O fundamento e modo da aplicação das normas constitucionais entre particulares, chamada de eficácia horizontal, difere da sua aplicação na relação entre o Estado e o particular, eficácia vertical. Destarte, por se tratar de restrição à norma constitucional da livre concorrência (art. 170, IV, da CF) ajustada entre particulares (empresários), a proibição de concorrência contém elementos limitativos, os quais se inferem da norma do artigo 1147 do Código Civil. Além disso, a proibição de concorrência deve ser também justificada com vistas à realização da função social e econômica do contrato (art. 421 do CC) e das legítimas expectativas dos contratantes como expressão da boa-fé objetiva (arts. 187 e 422 do CC). Por outro lado, faz-se necessário o controle da legalidade dos elementos da cláusula de não concorrência por meio dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade para que se possa alcançar a justiça material e o bem estar social entre os contratantes e os interesses da coletividade (mercado). Ademais, a proibição de concorrência é suscetível de aplicação em algumas relações negociais entre empresários, mas comporta determinadas peculiaridades de acordo com a espécie contratual. Portanto, pretende-se apresentar uma nova compreensão da proibição de concorrência, a partir do discurso empresarial constitucional, com vistas à promoção da solidariedade social e de uma justiça material subordinada das situações jurídicas patrimoniais da livre iniciativa privada. PALAVRAS-CHAVE: Estabelecimento Empresa. Constituição. Código Civil. empresarial. Concorrência. Direito de 8 ABSTRACT Attached to the research project called “The new empresarial low” and the reaserch line “Comtemporany Private Relationships”, the project studies the proibition of competition in the contract of alienation of the empresarial establishment - crossing contract - in a context that the establishment promotes the elect axiology values elected in the Constitution of 1988 and permit the possibility of society to benefit of its social function. The fundamental and way of the application of the constitutional rules between particular, called horizontal effectiveness, differ from its application in the relation between the State and the particular one, vertical effectiveness. Destart, for treat from with restriction of the constitutional rules of the free competition (Brazilian Constitution art. 170, IV) adjusted between particular (builders man), the prohibition of competition contains limiting elements, which if they infer of the norm of article 1147 of the Civil Code. Furthermore, the prohibition of competition also must be justified with sights to the realization of the social function and economic of the contract (Civil Code, art. 421) and of you legitimize expectations to them of the contractors as expression of the objective good-faith (Civil Code, arts. 187 and 422). In another side, it makes necessary the control of the legality of the elements of the clause of not competition by means of the postulates of the razoability and the proportionality so that if it can reach material justice and the good state between the contractors and the interests of the collective (market). So, the prohibition of competition is susceptible of application in some business relations between business man, but comports determinates peliculiarits According with the contractual species. Therefore, it is intended to present a new understanding of the prohibition of competition from the constitutional enterprise speech, seeing the promotion of social solidarity and a subordinated material justice of the patrimonial from the free private starting. KEY-WORDS: Empresarial establishment, prohibition of competition, Corporate Law, Constitutional rules 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11 2 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL......................................................16 2.1 A EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS.......................................16 2.2 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL...........................................................20 2.3 OS VETORES AXIOLÓGICOS-TELEOLÓGICOS DA CONSTITUIÇÃO E A SUA CONEXÃO COM A ORDEM ECONÔMICA.........................................................24 2.4 NORMAS FUNDAMENTAIS E A ORDEM ECONÔMICA....................................29 2.5 DIREITO COMERCIAL.........................................................................................35 2.6 BREVES NOTAS SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO COMERCIAL........................................................................................................41 2.6.1 Teoria dos atos de comércio - sistema francês...........................................44 2.6.2 Teoria da empresa - sistema italiano.............................................................46 2.7 O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO COMERCIAL NO BRASIL E A TEORIA DA EMPRESA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002.......................................................48 2.8 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL....................................................51 3 O ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL..............................................................62 3.1 O CONCEITO JURÍDICO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL...............63 3.2 ESTABELECIMENTO PRINCIPAL, AGÊNCIAS, FILIAIS E SUCURSAIS..........66 3.3 NATUREZA JURÍDICA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL...................68 3.3.1 Teoria da personalidade jurídica...................................................................69 3.3.2 Teoria do patrimônio separado.....................................................................70 3.3.3 Teoria do bem imaterial..................................................................................71 3.3.4 Teoria das universalidades............................................................................71 3.3.4.1 Bens singulares e coletivos (universalidades).........................................72 3.3.4.2 Universalidades de fato e de direito...............................................................73 3.4 A COMPOSIÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA.....................................................................................75 3.5 O AVIAMENTO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL.............................100 3.6 A CLIENTELA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL...............................104 3.7 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL.............................................108 3.8 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL RURAL................................................110 4 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL – O TRESPASSE......................................114 4.1 O CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E A SUA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA....................................................................114 10 4.2 OS DEVERES PRINCIPAIS E SECUNDÁRIOS NAS FASES DO CONTRATO DE TRESPASSE.............................................................................................119 4.3 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE TRESPASSE.......122 4.3.1 Evolução da doutrina e da jurisprudência.................................................123 4.3.2 A proibição de concorrência do artigo 1.147 do Código Civil..................129 4.3.3 Os elementos limitativos da proibição de concorrência do artigo 1.147 do Código Civil................................................................................................130 4.3.4 O controle de legalidade dos elementos limitativos da proibição de concorrência através do postulado da razoabilidade............................133 4.3.5 O controle de legalidade dos elementos limitativos da proibição de concorrência através do postulado da proporcionalidade e sua revisão pelo Poder Judiciário................................................................................139 4.3.6 Eficácia subjetiva e a oponibilidade de proibição de concorrência.........142 4.3.7 Violação direta e indireta da proibição de concorrência...........................145 5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO DIREITO DA EMPRESA.............................................................................................................148 5.1APLICAÇÃO EXTENSIVA E INTEGRATIVA DO ARTIGO 1.147 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002...................................................................................................148 5.2 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DAS PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS REPRESENTATIVAS DO CONTROLE DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE PESSOAS E DE CAPITAL...........................152 5.3 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA CISÃO PARCIAL DA SOCIEDADE......................................................................................................159 5.4 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA AO SÓCIO RETIRANTE E EXCLUÍDO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA................................................161 5.5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE FRANQUIA (FRANCHISING)............................................................................165 5.6 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE COOPERAÇÃO EMPRESARIAL (JOINT VENTURE).......................................168 5.7 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE SHOPPING CENTER........................................................................................170 6 CONCLUSÃO.......................................................................................................174 7 REFERÊNCIAS....................................................................................................183 11 1 INTRODUÇÃO O estabelecimento é figura antiqüíssima, que surge juntamente com o comércio. O estabelecimento, que é a reunião de bens promovida pelo comerciante para o desenvolvimento de sua atividade, surge juntamente com o desenvolvimento do comércio, quando este deixa de ser praticado apenas por viajante para ser praticado por aqueles que se estabelecem montando uma estrutura para o seu exercício. É, ao mesmo tempo, figura de atualidade patente, pois o instrumento de trabalho do empresário adquire importância cada vez maior. Se, nos tempos remotos, a figura do comerciante era motivo de atração de clientela, ou seja, se o conceito e o carisma pessoal tinham influência na captação de clientela, hoje esse fator tem cada vez menos relevância. O marketing, as marcas, o bom treinamento do pessoal, o produto de qualidade ou o produto conhecido são os maiores fatores de atração em uma sociedade de consumo de massa. A relação de consumo perde seu caráter pessoal; o mercado utiliza-se de armas mais poderosas que o contato humano através das várias técnicas de publicidade. A importância do estabelecimento empresarial, nos dias atuais, faz que se estude mais detidamente as regras de concorrência desleal. É pelas regras de concorrência desleal que se protege o estabelecimento empresarial enquanto conjunto. A proteção ao estabelecimento empresarial é realizada por meio da proteção da clientela, que é o seu objetivo final. Proteger a clientela de determinado empresário é impedir que ela seja desviada por meios desleais. Não há garantia absoluta de manutenção da clientela, uma vez que se convive com o regime da livre concorrência, impede-se, apenas, que sejam usados meios desleais para a sua captação. 12 Além da proteção ao estabelecimento empresarial, numa concepção unitária, cada um dos seus elementos componentes possui sua proteção específica. O empresário possui proteção, oferecida pelo direito de propriedade, para cada um dos bens que formam o seu estabelecimento. Trata-se da proteção indireta ao estabelecimento empresarial, ou seja, a proteção conferida aos seus elementos. Compreender a figura do estabelecimento empresarial é fundamental num momento em que a forma de consumo se utiliza desse instrumento como fator fundamental para a atração da clientela. A importância desse instituto é demonstrada pelo interesse que surge por parte do empresário em negociá-lo cada vez mais. O estudo do estabelecimento empresarial, enquanto complexo de bens do empresário, vem proporcionar ao jurista base para que se estabeleçam negócios jurídicos tendo ele como objeto. Entendê-lo juridicamente é imprescindível para que os negócios jurídicos que o circundam sejam feitos com segurança. Após o conhecimento das características do estabelecimento empresarial, cabe identificar sua natureza jurídica, a fim de apontar o regramento jurídico a que ele está submetido. O interesse prático na qualificação jurídica do estabelecimento reside na circunstância de que os problemas relativos aos negócios jurídicos, feitos com ou sobre o estabelecimento, dependem – quanto à forma de realização e quanto aos efeitos jurídicos – da natureza de que o mesmo se revista perante a lei. Nesse contexto, o Código Civil Brasileiro de 2002 consagrou, em seu Livro II (Do Direito de Empresa), Título III (Do Estabelecimento), artigo 1.147, a proibição de concorrência do empresário alienante no prazo de 05 (cinco) anos subseqüentes à alienação do estabelecimento empresarial, que se opera por meio do contrato de trespasse. 13 Os institutos do Direito da Empresa, assim como no Direito Civil, devem estar vinculados às normas fundamentais e setoriais constitucionais. Assim, por exemplo, a iniciativa privada de situações jurídicas exclusivamente patrimoniais deve ser funcionalizada a dos valores existenciais (não patrimoniais), sobretudo a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social, realizando, assim, a promoção de uma justiça distributiva. Tome-se, a título de ilustração, a livre iniciativa que está prevista no artigo 1º, inciso IV e na cabeça do artigo 170, da CF. Cabe salientar que, em ambos os dispositivos constitucionais, a liberdade de iniciativa, da qual se infere a liberdade contratual, é precedida do valor do trabalho humano, o qual está ligado umbilicalmente aos Direitos Sociais, no Capítulo II da Constituição Federal. Os benefícios dessa investigação estão revelados na fixação dos elementos de validade da proibição de concorrência e dos seus respectivos limites em bases racionais para cada caso na parte dedicada ao Direito Empresarial Constitucional, que consiste na aplicação da metodologia civil-constitucional ao direito de empresa. Com a presente pesquisa será examinada a proibição de concorrência estipulada em determinados contratos celebrados entre empresários que tenham efeitos concorrenciais e a sua sujeição à aprovação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE. A proibição de concorrência constitui uma limitação na esfera da liberdade de iniciativa do empresário alienante e, portanto, o seu exercício deve estar em conformidade com os fins eleitos pelo legislador constituinte com vistas à realização de uma justiça social e distributiva. Portanto, a funcionalização da liberdade de iniciativa revela uma nova dimensão do poder de contratar e estabelecer o seu conteúdo. 14 Daí porque se entender que as justificativas ético-jurídicas e econômicas da proibição de concorrência, bem como dos seus elementos de validade, devem ser encontrados na leitura funcionalizada pelos valores constitucionais pertinentes às disposições legais previstas no Direito de Empresa (Lei nº 10.406/02) e do Direito da Concorrência (Lei nº 8.884/94), guiados pela função social e econômica do contrato de trespasse e pela boa-fé objetiva (artigos 421 e 422 do CC). A seguir, buscou-se analisar critérios de controle da legalidade da proibição de concorrência em determinadas espécies contratuais no Direito de Empresa, como na cisão parcial da sociedade, na transferência do controle das participações societárias, na retirada e exclusão de sócio do contrato de sociedade, na franquia, na joint venture, no shopping center. Para tanto foram analisados dados doutrinários e jurisprudenciais no decorrer do trabalho. Em pesquisa exploratória, foi constatada a relevância social e econômica da proibição de concorrência no Direito de Empresa e no Direito da Concorrência, conforme será destacado ao longo do trabalho. Do ponto de vista acadêmico, embora o estudo não tenha intenção de servir como um referencial e nem de incorporar uma revisão exaustiva da literatura sobre o estabelecimento empresarial, sua alienação e a proibição de concorrência, pretendese expor didaticamente as principais características e abordagens do tema, trazendo uma contribuição àqueles que desejarem aprofundar estudos nessa área. Para a consecução desse objetivo, a presente pesquisa é composta de 4 (quatro) capítulos. O primeiro trata do Direito Empresarial Constitucional, fazendo um estudo das normas empresariais em consonância com a Constituição Federal; o segundo refere-se ao estabelecimento empresarial abordando o conceito, os elementos que o compõe e a natureza jurídica, bem como a clientela e o aviamento; 15 no terceiro, elucidou-se questões polêmicas quanto aos elementos limitativos da cláusula de proibição de concorrência na alienação do estabelecimento empresarial, inclusive com a citação de julgados; já no quarto, analisou-se a possibilidade de se aplicar às situações valoráveis como equivalentes, a proibição de concorrência como no contrato de franquia. 16 2 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL Com efeito, o Direito Comercial, como espécie de direito privado, também deve ser compreendido à luz da Constituição de 1988, mormente após a promulgação do Código Civil de 2002 que unificou as obrigações privadas e incorporou a noção de empresa, de modo que não se sustenta mais a distinção entre atividade mercantil ou civil como critério de aplicação das normas. 2.1 A EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS A história do Direito Constitucional brasileiro é marcada por constantes ilegalidades, conforme denuncia Luís Roberto Barroso1. A ilegitimidade do poder no passado representava os interesses de uma elite de visão estreita, patrimonialista, que não tinha um projeto de vida para as demais camadas sociais do país. Aliás, essa elite aproveitava-se do espaço público como se fosse direito privado seu. Ademais, a carência de efetividade do rol de Constituições brasileiras ao longo da história imputa-se a duas razões. A primeira consubstanciada no fato da ausência de reconhecimento da força normativa dos seus enunciados. A segunda razão é tributada à falta de vontade política para conferir aplicabilidade direta e imediata às suas disposições. Portanto, em última análise, as Constituições eram marcadas por promessas endereçadas ao povo, ao qual, no descumprimento delas, não lhes era reconhecido o direito de invocá-las, nem tampouco detinha 1 BARROSO, Luis Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In____. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp.04-05. 17 mecanismos de ordem procedimental para compelir o Estado a efetivá-las no mundo dos fatos. E, por fim, o desrespeito à legalidade constitucional, que se sucedia desde que a primeira Assembléia Constituinte foi dissolvida por D. Pedro I, seguida de golpes de Estado, cujo ápice da ilegalidade pode ser tributado aos Atos Institucionais. “O marco zero de um recomeço, uma perspectiva de uma nova história”2 constitui contribuição da Constituição de 1988. Sem embargo das inúmeras emendas que sofreu, perdura o respeito à legalidade constitucional por mais de dezessete anos. Ao lado da vontade política do poder constituinte de empreender mudanças com vistas a promover uma justiça distributiva à sociedade, que contou com a participação de diversas forças3, essa certa estabilidade também contribuiu para que as normas constitucionais fossem alçadas à categoria de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, suscetíveis de proteger direta e imediatamente todas as situações jurídicas que albergam. A efetividade está ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição e ao reconhecimento de sua força normativa, visto que as normas constitucionais são dotadas de imperatividade e sua inobservância deve deflagrar os mecanismos próprios de cumprimento forçado. Dessa forma, a efetividade é a realização concreta, no mundo dos fatos, dos comandos abstratos contidos na norma. 2 A frase é de BARROSO. O começo da história, 2005, p.5. Confira-se CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça distributiva. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p.234: após duas décadas de autoritarismo e governos militares, a reconstrução do processo político democrático também significava a reconstrução do Estado de Direito. Nesse sentido, o movimento de retorno ao direito no Brasil teve a sua mais perfeita tradução no processo constituinte. A constituição de 1988, elaborada através de um processo de participação no qual estiveram presentes as mais variadas forças, é reveladora de como o retorno ao direito pode significar uma valorização do espaço público da política. 3 18 Além disso, a Constituição de 1988, como fonte primária do sistema jurídico, na medida em que reside no ápice do escalonamento normativo do ordenamento jurídico brasileiro, subordina a interpretação da legislação infraconstitucional em consonância à normatividade constitucional. Em última análise, a compreensão das normas infraconstitucionais pressupõe a sua leitura à luz da supremacia constitucional. A supremacia constitucional é tributária da idéia de superioridade do poder constituinte sobre as instituições jurídicas vigentes. Isso faz com que o produto do seu exercício, a Constituição, esteja situado no topo do ordenamento jurídico, servindo de fundamento de validade de todas as demais normas. Essa supremacia somente se verifica onde exista Constituição rígida. Aliás, a rigidez interage, em uma relação recíproca de causa e efeito, com outro fenômeno que contribui para a primazia da ordem constitucional: a vocação maior de permanência e estabilidade que acompanha a Lei fundamental, em contraste com a mutabilidade da legislação ordinária. A Constituição é a primeira entre as normas do ordenamento inteiro, a norma fundamental4. Em primeiro lugar, é a Constituição que define o sistema de fontes formais do Direito, de tal sorte que a validade de uma Lei está sujeita à sua compatibilidade com a norma constitucional. Em segundo lugar, a pretensão de permanência da Constituição é revelada pela chamada rigidez da norma constitucional, que lhe assegura uma superlegalidade formal, visto que impõe formas reforçadas de modificação ou alteração constitucional em relação aos procedimentos legislativos infraconstitucionais. 4 Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: civitas,1991, p. 50. 19 Nesse passo, cumpre destacar que a tipologia das normas constitucionais constitui um relevante critério que está a influenciar a sua efetividade. José Afonso da Silva5 enunciou a célebre divisão das normas constitucionais, no que diz respeito à sua eficácia e aplicabilidade, em três categorias: (I) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; (II) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição; e (III) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, em regra, dependentes de integração da normativa infraconstitucional para realizarem a totalidade dos seus efeitos. Essa última é subdividida em declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e declaratórias de princípio programático. Essa classificação foi empregada de forma subvertida, de modo que, por carência de vontade política, com freqüência deixava-se de conferir efetividade à norma constitucional sob a justificativa de que a sua eficácia era limitada, condicionando as diretrizes traçadas pelo poder constituinte ao legislador infraconstitucional. De acordo com essa formulação, normas de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata e independem de providência normativa ulterior para sua aplicação. Normas de eficácia contida são as que receberam, igualmente, normatividade suficiente para reger os interesses de que cogitam, mas prevêem meios normativos que lhes podem reduzir a eficácia e aplicabilidade. Por último, normas de eficácia limitada são as que não receberam do constituinte normatividade suficiente para sua aplicação, o qual deixou ao legislador ordinário a tarefa de completar a regulamentação das matérias nelas traçadas em princípio ou esquema. 5 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000, pp.81- 87. 20 Já a classificação das normas constitucionais, sugerida por Luís Roberto Barroso6, está assentada em três espécies: (I) normas constitucionais de organização, que têm por objeto organizar o exercício do poder político: (II) normas constitucionais definidoras de direito, que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos (direitos subjetivos); e (III) normas constitucionais programáticas, que têm por objetivo traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado. Essa proposta é mais coerente com o conteúdo e alcance das normas constitucionais, notadamente para além dos direitos fundamentais que, à luz da norma do parágrafo 1° do artigo 5°, gozam expressamente de eficácia imediata, como é a hipótese do direito à educação, previsto no art. 205. A seguir, passa-se a tratar do pressuposto da interpretação constitucional na perspectiva dos contornos do sistema jurídico vigente. 2.2 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL A interpretação constitucional serve-se de alguns princípios próprios e apresenta especificidades e complexidades que lhe são inerentes. Mas isso não a retira do âmbito da interpretação geral do direito, de cuja natureza e características partilha. O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de 6 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 93-120. 21 interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie7. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas disposição8. Estas, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já aquelas, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema. Luís Roberto Barroso9 enquadra os princípios constitucionais, quanto ao seu conteúdo, na tipologia adotada para as normas constitucionais em geral. Com efeito, existem princípios constitucionais de organização, como os que definem a forma de Estado, a forma, o regime e o sistema de governo. Existem, também, princípios constitucionais cuja finalidade precípua é estabelecer direitos, isto é, resguardar situações jurídicas individuais, como os que asseguram o acesso à justiça, o devido processo legal, a irretroatividade das leis etc. Por igual, existem princípios de caráter programático, que estabelecem certos valores a serem observados – livre iniciativa, função social da propriedade - ou fins a serem perseguidos como a justiça social. Aos princípios calha a peculiaridade de se irradiarem pelo sistema normativo, repercutindo sobre outras normas constitucionais e daí se difundindo para os escalões normativos infraconstitucionais. Nem todos os princípios, no entanto, possuem o mesmo raio de atuação; eles variam na amplitude de sua 7 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 8 Vejam-se Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1998, p. 14 e s.; Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentals, 1993, p. 83; J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 1986, p.172; Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição – interpretação e crítica, 1990, p.122 e ss. 9 Ibid., pp. 155-158. 22 aplicação e mesmo na sua influência. Dividem-se, assim, em princípios fundamentais, gerais e princípios setoriais ou especiais10. Princípios fundamentais são aqueles que contêm as decisões políticas estruturais do Estado, exprimem a ideologia política que permeia o ordenamento jurídico, constituem, também, o núcleo imodificável do sistema, servindo como limite às mutações constitucionais. Já os princípios constitucionais gerais se irradiam por toda a ordem jurídica, como desdobramentos dos princípios fundamentais e se aproximam daqueles que se identificam como princípios definidores de direitos. E por fim, os princípios setoriais ou especiais, que são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da Constituição. Feita essa sistematização, é preciso destacar o papel prático dos princípios dentro do ordenamento jurídico constitucional, enfatizando sua finalidade ou destinação. Cabe-lhes, em primeiro lugar, embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e expressar os valores superiores que inspiraram à criação ou reorganização de um dado Estado. Em segundo lugar, aos princípios se reserva a função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do texto constitucional, dando unidade ao sistema normativo. Um documento marcadamente político como a Constituição abriga normas à primeira vista contraditórias. Compete aos princípios compatibilizá-las, integrando-as à harmonia do sistema. A unidade constitucional, uma característica da concepção atual de sistema jurídico, que, segundo Noberto Bobbio11, cabe à norma fundamental o papel unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. A norma 10 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp.156-158. 11 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. Brasília: UNB, 1999, p.49. 23 fundamental é a Constituição, que constitui o eixo central do sistema jurídico e lhe confere unidade interior. Outra característica do sistema jurídico é a ordem que corresponde à adequação axiológica ou teleológica com vistas à realização de finalidades e de valores eleitos pelo constituinte12. Portanto, compreende-se o sistema jurídico como sistema de ordem de valores. Pode-se falar que a constituição é a tábua axiológica do sistema jurídico. A supremacia da Constituição é pressuposto de todo o Direito Constitucional moderno e deve orientar fundamentalmente toda a interpretação do ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional. Ensina Eduardo García de Enterría13 que a supremacia da Constituição sobre todas as normas e seu caráter central na construção e na validade do ordenamento em seu conjunto impõem a sua interpretação, em qualquer momento da sua aplicação, tanto os órgãos públicos quanto os privados, em consonância do que resultam os princípios e as regras constitucionais. Esse princípio é uma conseqüência derivada do caráter normativo da Constituição e de seus status supremo que está reconhecido nos sistemas que fazem desse caráter um postulado básico. No sistema jurídico brasileiro que tem a Constituição, no seu ápice, de modo a lhe conferir ordem interior e unidade, inferem-se vetores axiológicos-teleológicos eleitos pelo poder originário. A seguir, procede-se a seu exame e investigação e a sua relação direta com a ordem econômica. 12 CANARIS, Claus-wilhelm, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 66-81. 13 Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: civitas,1991, p. 95. 24 2.3 OS VETORES AXIOLÓGICOS-TELEOLÓGICOS DA CONSTITUIÇÃO E A SUA CONEXÃO COM A ORDEM ECONÔMICA As normas constitucionais previstas14 no Título I, “Dos Princípios Fundamentais”, da Constituição de 1988, gozam de um peso de normas-matrizes em virtude da sua localização topológica15. Na classificação de Luís Roberto Barroso16, as normas matrizes acima são: 14 “Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o pluralismo político. Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2° São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4° A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- auto determinação dos povos; IV- não-intervenção; V- igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. 15 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.99: temos que distinguir entre princípios constitucionais fundamentais e princípios gerais do Direito Constitucional. Vimos já que os primeiros integram o Direito Constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas sínteses ou normas-matriz, que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, normas que contém as decisões políticas fundamentais que acolheu no documento constitucional. Os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do Direito Constitucional, por envolver conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional. 16 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 25 [...] princípios constitucionais fundamentais, exprimindo a ideologia política que permeia o ordenamento jurídico, constituem, também, o núcleo imodificável do sistema, servindo como limites às mutações constitucionais. Sua superação exige um novo momento constituinte originário. Nada obstante, esses princípios são dotados de natural força de expansão, comportando desdobramentos em outros princípios e em ampla integração infraconstitucional. Conforme se infere do artigo 1º, o legislador constituinte elegeu o regime político de Estado Democrático de Direito17 assentado nos seguintes fundamentos: (I) a soberania; (II) a cidadania; (III) a dignidade da pessoa humana; (IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (V) e o pluralismo político. Sem embargo para os fins da presente investigação, interessa aqui alguns princípios fundamentais, os quais serão examinados pontualmente. Por soberania, entende-se tratar de um atributo essencial do Estado, o qual possui uma dupla perspectiva. No plano do direito internacional, a soberania traduz a idéia de igualdade, de não subordinação. Já no tocante ao plano interno, revela o valor da supremacia da Constituição e da lei e a superioridade jurídica do Poder Público na sua interpretação e aplicação18. A dignidade da pessoa humana é o primeiro direito fundamental assegurado na Constituição e, por conseguinte, tem uma importância diferencial para a ordem e unidade da Lei Fundamental. É possível dizer então que a dignidade da pessoa 17 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.129: Democracia é conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhe o conteúdo a cada etapa do evolver social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse aspecto, a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história. [...] Podemos, assim, admitir que a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes. 18 BARROSO, Luis Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 56. 26 humana tem a finalidade suprema de todo e qualquer direito e vincula funcionalmente as outras normas jurídicas19. Cabe agora delimitar a noção de dignidade da pessoa humana, por ser uma expressão fluída e com imprecisão semântica, eis que a sua concretização está relacionada a uma dimensão temporal. Jesús Gonzáles Pérez20 indica critérios gerais para apreciar quando se comete um atentado a ela. O primeiro critério está assentado na idéia de que são indiferentes as circunstâncias pessoais (nascimento, raça, sexo, idade, grau de inteligência) do sujeito. O segundo critério revela que atentado à dignidade da pessoa humana não requer intenção ou finalidade. E, por isso mesmo, o terceiro critério estabelece que é irrelevante a vontade da pessoa afetada. Por derradeiro, o quarto critério de aferição da violação aponta que, ao qualificar em concreto uma determinada conduta, devem ser valoradas as distintas circunstâncias concorrentes, de maneira que não pode prescindir de lugar, tempo e situações em que se produz. Ao fim, tendo em vista que não seria possível formular um catálogo das possíveis violações à dignidade da pessoa humana, Jesús González Pérez21 indica que as formas mais comuns são em suas relações com outras pessoas, em suas relações com o mundo exterior e pela atividade que se impõe a realizar. 19 A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ilumina a interpretação da lei ordinária (STJ, HC 9.892-RJ, Rel. orig. Min. Hamilton Carvalhido, Rel. para redação Min. Fontes de Alencar, DJU de 26/03/2001, p.473). Vivemos o momento de valorização da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF) e todo o esforço interpretativo da legislação infraconstitucional é canalizado para a vitória deste princípio, que é sustentáculo da felicidade existencial do homem. (TJSP, AC 115978-4/0, Rel. Dês. Ênio Santarelli Zuliani, publicado na ADV. 19-01/299, n. 97046). 20 PÉREZ, Jesús González. La Dignidad de la Persona. Madrid: Civitas, 1986, pp.111-114. 21 PEREZ, 1986, pp.115-116. 27 Por sua vez, Maria Celina Bodin de Moraes22 sugere que a noção de dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como uma cláusula geral da tutela da pessoa humana que dá prevalência a uma situação jurídica existencial em relação a uma situação jurídica patrimonial. Essa cláusula geral de tutela da pessoa humana tem por finalidade garantir os direitos das pessoas, notadamente o valor da personalidade humana. A sua concretização se realiza através dos princípios da igualdade, da integridade física, da liberdade e da solidariedade. É o valor essencial do ser humano, que em termos gerais, significa que as pessoas tenham uma vida digna, é capaz de agasalhar diversas concepções e eficácias23. Daí, Ana Paula de Barcellos24 sustenta que a sua fração nuclear se encontra no mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas para a existência, dotada de eficácia jurídica positiva ou simétrica. Os elementos materiais são: (I) a educação fundamental; (II) a saúde básica; (III) a assistência aos desamparados; e (IV) o acesso à justiça. Com efeito, as lições de Jesús González Pérez, Humberto Ávila, Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Paula de Barcelos não se excluem, ao contrário, são complementares, na medida em que examinam as diversas perspectivas da 22 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O conceito de Dignidade Humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In SARLET, Ingo Wolfang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto alegre: Livraria dos Advogados, 2003, pp. 105-147. Vale registrar a observação final da autora acerca da sua aplicação nos casos difíceis: “Quando, nos chamados casos difíceis, se põe a necessidade de ponderar os interesses conflitantes quer-se com isso dizer ser cabível examinar, em cada hipótese, a qual princípio deva ser dada prioridade no caso concreto: à liberdade ou à solidariedade? À integridade psicofísica ou à liberdade? À igualdade ou à solidariedade? Os casos difíceis, no dizer de P. Ricoeur, constituem um desafio à provação do julgamento reflexivo. O objetivo a ser alcançado, contudo, é único e não admite relativizações. [...] a dignidade da pessoa humana, onde quer que ela, ponderados os interesses contrapostos, se encontre. 23 Sobre as espécies de eficácia dos princípios, confira-se Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.78-82; e BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In____. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 42-45. 24 BARCELLOS. Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 103, 247-308. 28 dignidade da pessoa humana – elementos externos e internos (núcleo fundamental), eficácia jurídica, critérios de violação etc., sem se afastarem da sua compreensão maior e intangível, como o valor supremo da ordem jurídica. No que concerne aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, este está relacionado aos direitos de liberdade (artigo 5º da CF), enquanto aquele diz respeito aos direitos sociais (artigo 6º da CF), mais especificamente aos direitos dos trabalhadores, das associações profissionais e sindicatos, e ao de greve (artigos 7º, 8º e 9º)25. São também fundamentos da ordem econômica previstos no artigo 170 da Constituição Federal. No que concerne à divisão dos poderes prevista no artigo 2º da CF, cabe aqui esclarecer que a Constituição, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado democrático de Direito. O artigo 3º da CF dita as finalidades primordiais da República, vale dizer: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de ouras formas de discriminação. A Constituição assinalou, não todos, mas os 25 ZIMMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, pp. 202-203: Nesta questão o poder público deve respeitar a livre iniciativa, assim valorizando o livre empreendedor, conferindo-lhe a oportunidade ao esforço e à iniciativa própria, que nunca são substituíveis por pesadas máquinas burocráticas guiadas pelo espírito da conservação, repetição e até mesmo ineficiência. Este valor, enfim, completa-se com o valor social do trabalho, que requer a garantia dos direitos trabalhistas e a justa remuneração do trabalhador. 29 fundamentais objetivos do Estado brasileiro, e, entre eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana. Será estudada agora a conexão das normas fundamentais com a ordem econômica, especificamente a norma do art. 170 da CF. 2.4 NORMAS FUNDAMENTAIS E A ORDEM ECONÔMICA Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a ordem econômica ou, como preferem alguns, a Constituição econômica, cuida-se de um componente do conjunto da Constituição geral. Segundo Washington Peluso Albino de Souza26, “apresenta-se na tessitura estrutural desta, não importa se na condição de Parte, Título, Capítulo ou em artigos esparsos. Sua caracterização baseia-se tão somente na presença do econômico no texto constitucional”. Em segundo lugar, o papel do Estado na Constituição de 1988 corresponde à fase da pós-modernidade, iniciada na quadra final do século XX, a qual é caracterizada por um novo tempo, o da desregulamentação, o da privatização e o das organizações não governamentais27. Nessa fase, ensina Luís Roberto Barroso28 26 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.23. 27 Sobre a atuação do Estado na ordem econômica e as respectivas fases, consulte-se BARROSO, Luís Roberto. Modadidades de intervenção na ordem econômica. Regime jurídico das sociedades de economia mista. Inocorrência de abuso de poder econômica. In___. Temas de Direito Constitucional. Tomo I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 390/391: O Estado atravessa, ao longo deste século, três fases bem definidas. A primeira delas, identificada como a pré-modernidade ou Estado Liberal, exibe de funções reduzidas, confinadas à segurança, justiça e serviços essenciais. É o estado da virada do sec. XIX para o XX. Nele vivia-se a afirmação, ao lado dos direitos de participação política, dos direitos individuais cujo objeto precípuo era o de traçar uma esfera de proteção das pessoas em face do Poder Público. Estes direitos, em sua expressão econômica mais nítida, traduziam-se na liberdade do contrato, na propriedade privada e na livre iniciativa. Na segunda fase, referida como modernidade ou Estado social (Welfare state), iniciada com a segunda década deste século, o Estado assume diretamente alguns papeis econômicos, tanto como condutor do desenvolvimento, como outros de cunho distributivista, destinados a atenuar certas distorções do mercado e a amparar os contigentes que ficavam à margem do progresso econômico. Novos e 30 que o Estado encontra-se sob crítica cerrada, densamente identificado com a idéia de ineficiência, desperdício de recursos, morosidade, burocracia e corrupção. Perdeu, então, o Estado, protagonista do processo econômico, político e social, o charme redentor, passando-se a encarar com ceticismo o seu potencial como instrumento do progresso e da transformação. Ressalte-se, ainda, na perspectiva da cidadania, os direitos transindividuais que consistem em uma pluralidade de titulares e a indivisibilidade de seu objeto. Entre eles, citem-se a tutela do consumidor (artigos 5º, inc. LXXIII, 170, inciso V; e 48 do ADCT), a proteção do meio ambiente e dos bens e valores históricos, artísticos e paisagísticos (artigo 5º, inciso LXXIII, 170, inciso VI; 225). O atual rol dos princípios que informam a ordem econômica pátria é bem mais amplo do que o contemplado na Constituição anterior. O desenvolvimento econômico continua sendo o alvo principal que todos os Estados procuram atingir. O próprio desenvolvimento social, cultural e educacional, dependem de um substrato econômico. Sem o desenvolvimento dos meios e dos produtos postos à disposição do consumidor, aumentando destarte o seu poder aquisitivo, não há forma para se atingirem objetivos também nobres, mas que dependem dos recursos econômicos para sua satisfação. O legislador constituinte remete a cabeça do artigo 170 aos seus artigos 1º, incisos II e III, e 3º, inciso I, todos da CF, o que significa que a atuação do Estado e dos particulares, nos processos de produção, circulação, distribuição e consumo das importantes conceitos são introduzidos, como os de função social da propriedade e da empresa, assim como se consolidam os chamados direitos sociais, tendo por objeto o emprego, as condições de trabalho e certas garantias aos trabalhadores. [...] A modernidade teria começado com a Revolução de 30, institucionalizando-se com a Constituição de 1934 – que abriu um título para a ordem econômica e social – e se pervertindo no golpe do Estado Novo, de 1937. Reviveu, fugazmente, no período entre 1946/1964, mas sofreu o desfecho melancólico do golpe militar de 1964. Findo o ciclo ditatorial, que teve, ainda, como apêndice, o período entre 1985-1990, chegou-se à pós-modernidade, que enfrentou, logo na origem, a crise existencial de ter nascido associada ao primeiro governo constitucionalmente deposto da história do país. 28 BARROSO, pp.390-391. 31 riquezas do país, têm como finalidade última a existência e desenvolvimento da pessoa humana, que será efetivada em consonância com a justiça social29. A valorização do trabalho humano e a livre iniciativa são os fundamentos da ordem econômica. Segundo lição de Ricardo Lobo Torres30, entende-se por fundamento, a causa, origem ou fonte do ordenamento jurídico. Assim, fundamento do ordenamento jurídico é a fonte de onde promanam as normas. A ordem econômica é constituída por princípios setoriais ou especiais, que são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas ao capítulo I – Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, do Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira da Constituição Federal31. Eles se irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos. Na lição de Luís Roberto Barroso32, os princípios setoriais do art. 170 da CF possuem diversidade funcional e podem ser agrupados em dois grupos: (I) princípios de funcionamento da ordem econômica; e (II) princípios fins. São os princípios de funcionamento que estabelecem parâmetros de convivência básicos que os agentes da ordem econômica deverão observar. Tais princípios, que se referem à dinâmica das relações produtivas, são aqueles inseridos nos incisos I a VI do art. 17033. A propriedade privada e a função social da propriedade, respectivamente previstas nos incisos II e III, estão umbilicalmente conectadas, na medida em que, 29 BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 55. 30 TORRES, Ricardo Lobo. A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade. In___(org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.401. 31 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp.156-158. 32 Idem. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 56. 33 Ibid., pp.55-56. 32 simultaneamente, é assegurado aos agentes que atuam ou pretendem atuar a possibilidade de apropriação privada dos bens meios de produção34. Assim, lhes é imposto um dever de utilizar as faculdades inerentes à propriedade (uso, gozo, fruição, disposição), também em consonância com os interesses exteriores, isto é, dos não-proprietários35. Cabe anotar que a propriedade privada e a sua função social estão também previstas nos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º da CF. Encartada no inciso IV, a livre concorrência é expressão do direito de liberdade de iniciativa dos agentes econômicos e, em regra, a competição entre eles36. A liberdade de escolha da atividade econômica pelo empreendedor está compreendida na idéia de livre iniciativa (artigo 170, parágrafo único) e isso equivale ao direito que todos têm de se lançarem ao mercado da produção de bens e serviços por sua conta e risco. Consoante Gastão Alves de Toledo37, a livre iniciativa pressupõe também a limitação do Estado na atividade econômica, de maneira que este ficará adstrito às normas delimitadoras de sua atuação no campo econômico. Sem embargo, esse princípio não tem caráter absoluto, de tal sorte que o Estado, em certos segmentos mercadológicos e com respaldo nas diretrizes do constituinte, poderá intervir legitimamente. A liberdade de iniciativa sugere a opção do regime econômico capitalista38, que, de uma forma geral, está fundado em um modelo de eficiência com vistas ao interesse do consumidor. Por tal razão, o legislador originário foi coerente ao inserir, no inciso V, a defesa do consumidor, que, aliás, também encontra guarida no artigo 34 Ibid., p.57. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, pp.285-287. 36 BARROSO, Luis Roberto, A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 58. 37 TOLEDO, Gastão de. O Direito Constitucional Econômico e sua Eficácia. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 175 38 BARROSO, op. cit., p. 147, nota 31. 35 33 5º, inciso XXXII e no artigo 48 do ADCT. No segmento de mercado de livre competição, a liberdade de escolha do consumidor orienta a atuação dos agentes de produção, pautada na qualidade dos bens e serviços e no respectivo preço justo39. Por derradeiro, a defesa do meio ambiente, prevista no inciso VI, consiste na sua preservação, no exercício das atividades econômicas em geral, seja pelo agente público, seja pelo agente privado40. Anote-se que a preservação do meio ambiente recebeu minucioso tratamento no Capítulo VI, do Título VIII Da Ordem Social, notadamente em seu artigo 22541. O agente econômico, público ou privado, não pode destruir o meio ambiente a pretexto de exercer seu direito constitucionalmente tutelado da livre iniciativa. Um ambiente saudável é o limite ao livre exercício da atividade econômica e, para defendê-lo e garantir a sadia qualidade de vida da população, o Estado tem o poderdever de intervir na atuação empresarial, mediante a edição de leis e regulamentos que visem a promover o desenvolvimento sustentado. Por sua vez, os princípios-fim descrevem realidades materiais que o constituinte deseja que sejam alcançadas42. São os objetivos últimos da ordem econômica. O primeiro princípio-fim é a existência digna de todos, o qual se infere da própria cabeça do artigo 170 e está relacionado ao princípio fundamental da pessoa humana. 39 Na legislação ordinária, registre-se que a liberdade de escolha do consumidor tem guarida no artigo 6º, inciso II, da lei nº 8078/90. Nos mercados em que não há livre competição, isto é, aqueles regulados pelo Estado, caberá a este impor diretrizes de planos de metas com vistas ao atendimento do consumidor, especialmente o fornecimento do produto ou do serviço de qualidade e preço justo. Nesse sentido, confira-se o artigo 22 da lei 8078/90. 40 BARROSO, op. cit., p. 59, nota 36. 41 Artigo 225. Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, impondo ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 42 BARROSO, op. cit., p. 56, nota 36. 34 A redução das desigualdades regionais e sociais, prevista no inciso VII do artigo em questão, está em harmonia com o objetivo fundamental delineado no inciso III, do artigo 3º da Carta. No plano da ordem econômica, pode-se dizer, com arrimo na lição de Celso Ribeiro Bastos43, que o desenvolvimento econômico deve observar uma justa retribuição dos benefícios do processo, isto é, compartilhado por todos, mormente em virtude dos acentuados desníveis de renda. A busca do pleno emprego constitui o terceiro princípio-fim, previsto no inciso VIII, do artigo 170 e guarda íntima relação com a valorização do trabalho humano. O pleno emprego é uma situação utópica e, portanto, inalcançável44. Por isso, entende-se que esse dispositivo visa à promoção do acesso ao trabalho. Por último, o inciso IX do artigo 170, versa o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras cuja sede e administração sejam no país. De início, cabe anotar que, no cenário brasileiro, as pequenas e as microempresas são responsáveis pelo maior número de empregos. Além disso, ensina Celso Ribeiro Bastos45 que são o instrumento útil para a democratização do capital e criação de estímulos para que um maior número de pessoas se lance à atividade empresarial. Ademais, o aludido dispositivo encontra respaldo no princípio da igualdade (substancial), dispensando tratamento diferenciado na exata medida de suas desigualdades. Esse princípio setorial tem-se efetivado de forma precípua, através da liberação de deveres burocráticos e da concessão de incentivos fiscais, eis que as pequenas e microempresas detêm o 43 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 7º volume. São Paulo: Saraiva, 1990, pp.32/33. 44 BASTOS, MARTINS. Op.Cit., p. 34 45 Ibid, p. 36 35 mesmo poder de mercado das macro-empresas, o que lhes confere facilitações na obtenção de recursos e capacidade para suportar encargos tributários46. Com efeito, pode-se constatar que a ordem econômica deve ser compreendida através do filtro das normas fundamentais da Constituição de 1988, vetores axiológicos-teleológicos que conferem ordem interior e unidade ao sistema jurídico. Por tais razões é que se impõe também a leitura da legislação infraconstitucional à luz da Carta de 1988, de modo que as suas normas fundamentais interpenetram-se por todo o ordenamento, como o direito comercial que será examinado a seguir. 2.5 DIREITO COMERCIAL Direito Comercial é correntemente definido como conjunto de normas, conceitos e princípios jurídicos que regem, no domínio privado, os fatos e as relações jurídicas comerciais47 ou, ainda, como o Direito Privado especial do comércio ou dos comerciantes48. Segundo António Menezes Cordeiro49, o “Direito Comercial não pode ser compreendido se não ponderarmos as suas origens, a sua evolução e o papel que, 46 Limites de emolumentos em favor de microempresas. Afirmada em decisão recente (ADIN-MC 1800) a validade em princípio da isenção de emolumentos relativos a determinados registros por lei federal fundada no artigo 236, §2º, da Constituição, com mais razão parece legítima a norma legal da União que, em relação a determinados protestos, não isenta, mas, submete a um limite os respectivos emolumentos, mormente quando o conseqüente benefício às microempresas tem o respaldo no artigo 170, inciso IX, da Lei Fundamental.” (STF, RTJ174/782, ADIN-MC 1790-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). 47 CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial. 8ª ed. Lisboa: Ediforum, 2003, p.13. 48 MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 28ªed. Atual. Jorge Lobo. Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.3. 49 CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001, p. 22. 36 mau grado inúmeros constrangimentos, ainda hoje se lhe atribui”. O Direito Comercial não provém de qualquer definição lógica pré-elaborada, visto ser fruto de condicionamentos histórico-culturais complexos e por se tratar de uma disciplina jurídico-privada. Embora se reconheça a importância de se conhecer as origens e a evolução do Direito Comercial, por outro lado, a sua lógica, assim como toda a legislação infraconstitucional, deve ser buscada nos vetores axiológicos contidos nas normas fundamentais constitucionais. A sociedade contemporânea é caracterizada pela interpenetração do direito público e do direito privado. As diferenças entre um e o outro deixam de ser qualitativas para ser, quando possível a sua identificação, quantitativa. A exemplo disso, a submissão da atividade da administração pública ao direito privado assumiu múltiplas expressões, seja no campo da atividade lícita, seja naquele da atividade ilícita. Afigura-se pertinente registrar a lição de Michelli Giorgianni: A nova feição é perfeitamente adequada à função assumida pelo Direito Privado na sociedade atual, função que se revela prepotentemente nas relações com o Direito Público, ainda que com as incertezas que acompanham a “crise” da summa divisio do direito. Assiste-se, assim, ao lento declínio da concepção, própria da publicística do final do século XIX, da supremacia do Direito Público sobre o Direito Privado, a qual ceda a formulações menos extremadas ou mais agnósticas, enquanto se fazem cada vez mais insistentes e menos tímidas as tentativas de reavaliação da autonomia privada. Nisto, aliás, se deveria perceber uma ulterior contradição com o afirmado clima de publicização do direito Privado, se não se tratasse de dois fenômenos que se movem sobre dois planos diversos, como visto acima. Em particular, aquela reavaliação da autonomia privada constitui simplesmente uma manifestação de alinhamento à reação generalizada contra o positivismo normativista. Cabe à doutrina privatística a gravosa, mas ao mesmo tempo estimulante tarefa de adequar os próprios instrumentos teóricos à nova feição do Direito Privado, de modo a expor aos estudiosos e aos práticos – as linhas de um sistema verdadeiro, isto é, 50 adequado ao momento atual . 50 GIOGIANNI, Michelli. Direito Privado e as suas atuais fronteiras. In Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 747 [separata], jan.1998, p.55. 37 A Constituição de 1988 abriu caminho para a leitura do Direito Civil e Comercial, conforme as normas fundamentais constitucionais. Essa nova perspectiva da legislação civil é tributada, inicialmente, a Gustavo Tepedino51 e Maria Celina Bodin de Moraes52 que, fortemente inspirados nas lições de Pietro Perlingieri53, proclamam a constitucionalização do Direito Civil no Brasil, de maneira que as normas fundamentais constitucionais, especialmente os valores existenciais da solidariedade social, a igualdade substancial e a dignidade da pessoa humana, espraiam-se por toda a legislação infraconstitucional civil. Registre-se que, posteriormente, entre outros, Heloisa Helena Barboza54 e Luiz Edson Fachin55 aderiram ao discurso civil-constitucional e contribuíram com preciosos trabalhos, sobretudo no biodireito e nas relações familiares. O constitucionalismo solidário, expressão de Carlos Roberto de Siqueira Castro, funda-se na justiça distributiva e no binômio, dignidade humana e solidariedade social, permitindo-se uma maior aplicação principiológica do direito e uma razoável e programática utilização da justiça plural. O Código Civil de 2002, promulgado em 11 de janeiro de 2002, com vacatio legis de 01 (um) ano, cujo projeto é da década de 70, anterior à Constituição de 51 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In___. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 1-22. 52 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Constituição e Direito Civil. Tendências. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 89, v. 779, set. 2000, pp.47/63: Se o Estado de Direito, iluminista e racional, se mostrou insuficiente para proteger a coletividade frente ao totalitarismo mais abjeto, tornou-se necessário abandonar a legalidade em sentido estrito, permissiva de arbitrariedades e ditaduras, em direção a terrenos um pouco mais seguros, nos quais os princípios da democracia, da liberdade e da solidariedade não possam jamais ser ignorados. Tais princípios, que consubstanciam valores, tomam o lugar das norma jurídicas quando estas se mostram arbitrárias ou injustas, modificando-as para que reflitam o valor sobre o qual se funda, na atualidade, grande parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, isto é, o da dignidade da pessoa humana. 53 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar; 1999. 54 BARBOZA, Heloisa Helena. Bioética x Biodireito: insuficiência dos conceitos jurídicos. In___; BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 55 FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; Teoria Crítica do Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp.175-330. 38 1988, é marco na legislação infraconstitucional. Sem embargo das críticas que legitimamente se possa dirigir, entre as quais, a ausência de prévio debate dos grupos sociais interessados e disposições normativas em desconformidade com a orientação pacífica da jurisprudência dos Tribunais Superiores56, impõe-se a sua compreensão em consonância com o discurso civil-constitucional, mormente em virtude das várias normas abertas introduzidas pelo legislador (não-negociador). Destarte, cabe ao intérprete promover a ligação da novel codificação civil com os valores da Constituição. Entre as normas abertas que contêm uma vagueza semântica do Código Civil de 2002, citem-se as cláusulas gerais dos artigos 113, 187, 421 e 422 que albergam, especialmente, os valores da função social e econômica e da boa-fé objetiva. A compreensão dessas normas abertas que adotaram a técnica legislativa das cláusulas gerais faz-se pela sua leitura, a partir dos princípios constitucionais informadores da atividade econômica privada, que permite revelar o verdadeiro sentido transformador do preceito na teoria da interpretação dos negócios jurídicos. Adverte Gustavo Tepedino57 que o dever de interpretar os negócios conforme a boafé objetiva encontra-se irremediavelmente informado pelos quatro princípios fundamentais para a atividade econômica privada, quais sejam: (I) a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF); (II) o valor social da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, CF); (III) a solidariedade social (artigo 3º, inciso I, CF); e (IV) a igualdade substancial (artigo 3º, inciso III, CF). Como visto anteriormente, esses valores fundamentais estão contidos na norma do artigo 170 da CF que, por seu turno, devem vincular-se à função social do contrato, como limitadores da liberdade 56 Para muitas outras críticas, confira-se FACHIN. Op. Cit., pp. 175-330 , nota 55. TEPEDINO, Gustavo. Crises de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In____. (Coord.). A parte geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva CivilConstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. XXXI. 57 39 contratual. Daí a função social do contrato consistir no dever imposto aos contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual – a interesses extracontratuais socialmente relevantes que se inferem do contrato ou que acabam sendo atingidos por ele, tais como a livre concorrência, os consumidores, o meio ambiente, as relações de trabalho58. A propósito do significado da função social do contrato, Teresa Negreiros59 esclarece que, antes de qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, entende-se que o contrato não deve ser concebido como uma relação que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são afetadas por ele próprio. Prossegue a citada doutrinadora: [...] o princípio da função social encontra fundamento constitucional no princípio da solidariedade, a exigir que os contratantes e os terceiros colaborem entre si, respeitando as situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que as mesmas não sejam providas de eficácia real, mas desde que a sua prévia existência seja conhecida pelas pessoas implicadas. Numa sociedade que o constituinte quer mais solidária, não deve ser admitido um direito relativo, possa tal direito ser desrespeitado por terceiros, que argumentam não ter consentido para a sua criação. Esta ótica individualista e voluntarista deve ser superada diante do sentido de 60 solidariedade presente no sistema constitucional . Por outro lado, cumpre lembrar que o contrato não deixa de exercer também a sua função econômica e, agora em certa medida, não mais absoluta, continua sendo uma expressão do reflexo patrimonial da liberdade individual da circulação de bens. Nesse sentido, Arnoldo Wald61 pondera que, apesar do contrato ser um instrumento de liberdade individual e de eficiência econômica, a liberdade de contratar é qualificada na medida em que deve ser inspirada na lealdade e na confiança entre os contratantes e a eficiência consiste na adaptação às 58 Ibid., p. XXXII. NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.206. 60 Ibid., p.207. 61 WALD, Arnoldo. A dupla função econômica e social do contrato. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, Ano 5, vol. 17, jan/mar 2004, p.4. 59 40 necessidades do mercado. Portanto, a função social do contrato alberga também a manutenção do equilíbrio do contrato e o bom funcionamento do mercado. Ao lado da função social e econômica do contrato, a boa-fé objetiva atua como princípio interpretativo (artigo 113 do CC), princípio de proibição do exercício inadmissível de posição jurídica (artigo 118 do CC) e princípio fundamental do regime contratual (artigo 422 do CC), com vistas a interpretar o negócio jurídico, preservando o conteúdo econômico e social perseguido pelas partes. Inserem-se aqui os deveres recíprocos da lealdade, da confiança62, da informação, da transparência, tanto na fase das tratativas preliminares, quanto após a sua conclusão, isto é, na fase pós-negocial. O Direito Civil Constitucional consagra uma nova ordem de valores inerentes à pessoa humana e aos direitos sociais, os quais se encontram no vértice do ordenamento jurídico. Portanto, o Código Civil de 2002 deve ser compreendido em consonância com os valores eleitos pelo constituinte de 1988, com vistas à promoção nas relações privadas das normas fundamentais da dignidade humana. Passa-se a examinar a evolução histórica do Direito Comercial no plano da legislação brasileira, com enfoque no instituto da empresa. 62 Sobre a tutela da confiança e a proibição de comportamento contraditório no direito brasileiro, confira-se SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Tutela da Confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 41 2.6 BREVES NOTAS COMERCIAL SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO Na Antiguidade, destacam-se as normas de comércio marítimo, onde predominavam os usos e os tratados, os quais prestigiavam o cumprimento das convenções pactuadas, a boa-fé e a confiança entre os comerciantes. Das velhas instituições comerciais oriundas das relações entre Creta, Egito, Síria, Palestina, Grécia, a ilha de Rhodes, relações intensificadas pelos fenícios, uma delas chegou aos dias atuais, através da lex Rhodia de jactu, que a codificação de Justiniano fixou e transmitiu ao direito moderno. É a prática do alijamento de mercadorias quando, por excesso de carga ou outro motivo, a medida seja necessária para salvar o restante da mercadoria ou do navio. O prejuízo causado ao dono da mercadoria lançada ao mar, em proveito de todos, reparte-se entre todos, como avaria grossa (art. 764, nº 2). Graças à sabedoria e à equidade de suas normas, a lex Rhodia teve acolhimento geral no comércio marítimo de todos os povos. Os gregos foram grandes comerciantes e o principal legado deles ao comércio e ao direito mercantil é uma forma de empréstimo, criado ou aperfeiçoado por eles, para o fim de facilitar as expedições marítimas. É a instituição, acolhida no Digesto, sob o nome de nauticum foenus, um misto de empréstimo e de seguro, é a origem do seguro marítimo e, através deste, do seguro terrestre, disciplinado no Código Comercial sob o nomen juris de contrato de dinheiro (art. 633 a 665). No império romano não se encontra qualquer separação entre o direito comum e um direito especial relativo às trocas econômicas, podendo-se afirmar a inexistência, no direito romano, de um direito comercial distinto das outras partes dos jus civile. 42 Há consenso na doutrina de que foi na Idade Média que o Direito Comercial assume feição própria, com o objetivo de dar maior segurança à atividade mercantil. Num período de forte movimento de união, os comerciantes criaram suas corporações, que tinham como função ditar normas aplicáveis ao comércio e julgar os possíveis conflitos decorrentes dessa aplicação, dando origem ao jus mercatorum. O Direito Comercial, em sua origem, assumiu um caráter consuetudinário (baseado nos costumes dos mercadores) e corporativo (surgido no seio das corporações de mercadores)63, sendo aplicável somente aos comerciantes associados à corporação. É nessa fase histórica que começa a se cristalizar o direito comercial, deduzido das regras corporativas e, sobretudo, dos assentos jurisprudenciais das decisões dos cônsules, juízes designados pela corporação para dirimirem as disputas entre comerciantes. Tal foi o sucesso desses juízes, que julgavam pelos usos e costumes sob a inspiração da equidade, e o poder político e social da corporação de mercadores, que de Tribunais “fechados” com competência para julgar e dirimir disputas entre comerciantes, foram atraindo para seu âmbito as demandas existentes de comerciantes para não-comerciantes. Tem-se, nessa fase, o período estritamente subjetivista do direito comercial a serviço do comerciante, um direito corporativo, de classe, profissional, especial, autônomo, em relação ao direito territorial e civil. Porém, a determinação da competência judiciária dos cônsules, pelo exercício da profissão comercial, não era suficiente, pois nem toda a vida e atividade do comerciante eram absorvidas pela sua profissão, impondo-se a necessidade de 63 BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 43 delimitar o conceito de matéria de comércio. Começa, então, a delimitar e expandirse o conceito objetivista decalcado sobre ato de comércio. As grandes feiras, nas quais se reuniam periodicamente mercadores de todas as partes, tiveram papel predominante na elaboração e difusão do jus mercatorum. As feiras eram dirigidas por uma autoridade central, composta de representantes dos interessados. Nelas se aperfeiçoaram a letra de câmbio, a compensação, o protesto por falta de aceite ou pagamento. Diversos processos de execução severa, base do processo de falência e da repressão às fraudes e à barataria, nasceram nas feiras64. Na época moderna, as corporações perderam poder em razão da centralização monárquica, cuja conseqüência foi a redução do prestígio das corporações como criadoras de normas jurídicas. A classe dos mercadores não detinha mais o poder de criação do Direito Comercial, haja vista que o Estado passou a disciplinar e a exercer o controle sobre as corporações. As fontes do Direito Comercial que prevaleceram no período medieval, especialmente os usos e os costumes, cedem lugar às leis estatais. A Revolução Francesa pôs um fim aos privilégios das corporações, pela lei Le Chapelier, de 14 de junho de 1791. Pretendeu-se, com isso, assegurar a plena liberdade profissional, extinguindo todos os privilégios que as corporações acumularam através dos séculos a favor do comerciante. O Código de Comércio francês, de 1807, marcou uma nova fase do Direito Comercial, inspirada pelos princípios da liberdade e da igualdade perante a lei, os quais eram inconciliáveis 64 BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p.28. 44 com os direitos dos comerciantes, passando, assim, a ser aplicado na jurisdição objetiva, pois perdeu sua característica de direito de classe. Dessa forma, a noção de comerciante cedeu à noção de ato de comércio, de maneira que o comerciante foi identificado como aquele que simplesmente praticava profissionalmente atos de comércio (art. 1º do Código Francês). 2.6.1 Teoria dos Atos de Comércio – Sistema Francês Assim como o Código Civil, o Código Comercial francês tinha a pretensão de regular todas as situações comerciais, eis que visava indicar exaustivamente os atos de comércio em um sistema fechado (art. 632 e 633). As regras claras e simples facilitariam a compreensão por todos do Direito e, por conseguinte, o desenvolvimento do comércio e da indústria. Note-se que os próprios comerciantes vinham definidos a partir dos atos de comércio. Na esteira do Código Civil de 1804, que influenciou os códigos civis oitocentistas, tributa-se também ao Código francês a mesma influência sobre as codificações comerciais da época, como os Códigos espanhol e italiano, com exceção do Código Comercial alemão de 1897, que adotou uma concepção mista, objetiva e subjetiva, de Direito Comercial. A teoria dos atos de comércio resume-se a uma relação de atividades econômicas, sem que entre elas se possa encontrar qualquer elemento interno de ligação, o que acarreta indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas delas. Embora haja quem considere a imprecisão inerente à teoria dos atos de comércio, vários comercialistas dedicaram-se à tentativa de localizar o seu elemento de identidade no próprio elenco de atos mercantis. Vale mencionar uma delas, de 45 menor inconsistência, a de Alfredo Rocco, para quem os atos de comércio são os que realizam ou facilitam uma interposição na troca. Partindo da análise do artigo 3º do Código Comercial italiano, Rocco inicialmente os distingue como atos intrinsecamente comerciais, para, em seguida, classificá-los em quatro categorias: compra para revenda, operações bancárias, empresas e seguros. E nessas quatro espécies de atos identifica o elemento comum da troca indireta, isto é, a interposição na efetivação da troca. Na compra para revenda, dinheiro é cambiado com bens ou títulos; nas operações bancárias, permuta-se dinheiro presente por dinheiro futuro; nas empresas, resultados do trabalho são trocados por dinheiro e outros benefícios econômicos; e nos seguros, o risco individual se troca pela cota-parte do risco coletivo. Dessa forma o elo entre as diversas atividades abrangidas pelo elenco dos atos de comércio não se encontra senão externamente. Chega, assim, Alfredo Rocco à definição: “É ato de comércio todo ato que realiza ou facilita uma interposição na troca”65. Passou desse modo, o direito comercial a ser aplicável aos atos de comércio, ficando a sua aplicação mais objetiva. Mas a verdade é que, se a caracterização do comerciante ficou a depender da prática habitual de certos atos de comércio, nem todas as pessoas que praticam atos de comércio são consideradas comerciantes. Isso em virtude de serem reputadas comerciais, por disposição legal, certas espécies de atos que amparam seus agentes com a lei comercial, ainda que essas pessoas não sejam consideradas comerciantes, exemplo desses atos é a emissão de letra de câmbio. Dada a inexistência de um critério exato ou científico para se dizer que este ou aquele ato é comercial, difícil é admitir-se cientificamente o 65 Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito comercial. Vol.1. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000. 46 direito comercial como o direito que ampara os atos de comércio, pois não se tem uma limitação dos atos que podem ser caracterizados como comerciais. Vale ressaltar a classificação dos atos de comércio proposta por José Xavier Carvalho de Mendonça66, que baseado nas disposições do Título Único do Código Comercial e nas do Regulamento n.º 737, classificou-os em três categorias: 1) atos de comércio por natureza ou profissionais, que correspondem à enumeração do art. 19 do Regulamento 737, que considera mercancia a compra e venda ou troca para vender a grosso ou a retalho, as operações de câmbio, banco e corretagem, empresas de fábrica, de comissões, de depósito etc.; 2) atos de comércio por dependência ou conexão, que são os atos que visam promover, facilitar ou realizar o exercício do comércio, praticados em razão da profissão do comerciante, mantendo estreita relação com o exercício do comércio; 3) atos de comércio por força ou autoridade da lei, os quais decorrem simplesmente da arbitrária declaração de comercialidade resultante da lei, independente das pessoas que os pratica. O próprio José Xavier Carvalho de Mendonça previamente reconhecia como criticável a classificação proposta. 2.6.2 Teoria da Empresa - Sistema Italiano Ensina Aldo Fiale67, que o Direito Comercial na Itália afirmou-se como um sistema de normas autônomo em relação ao Direito Civil, caracterizado pela sua especialidade e pela incidência de princípios gerais próprios nas relações comerciais. 66 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol.v, livro III, parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963. 67 FIALE, Aldo. Diritto Commerciale. Edizione Napoli: Esselibri-Simone, 1994, p.7. 47 O desenvolvimento das técnicas comerciais e industriais impuseram uma especialização e uma organização na atividade comercial. Assim, a noção de ato de comércio perdeu relevo prático e cedeu passo à noção de atividade como série coordenada de atos e, depois, à noção de empresa. O Código Civil italiano de 1942 unificou parcialmente o Direito Comercial e o Direito Civil, inaugurando uma nova fase no Direito privado nos países de tradição romanística. Representando, segundo Aldo Fiale68, um retorno à tradicional base subjetiva, estendendo os próprios princípios e normas a todo o direito unificado das obrigações e dos contratos, e traz uma teoria substitutiva à dos atos do comércio. Trata-se da teoria da empresa, esta mais adequada à realidade do capitalismo operante à época. Em verdade, a teoria da empresa cuida de uma disciplina privada da atividade econômica. Alberto Asquini69 identifica na expressão empresa no novel Código Civil italiano quatro perfis na empresa: (I) o subjetivo (a empresa vista como o empresário); (II) o funcional (identifica a empresa à própria atividade); (III) o objetivo (ou patrimônio, azienda ou estabelecimento); e (IV) o corporativo (vê na empresa uma instituição, eis que reúne empresário e empregados com fins comuns). Doutrina, ainda, que, a partir da idéia de profissionalidade, o fim de lucro não é elemento essencial, mas, sim, elemento natural. Sem embargo, Giuseppe Ferri70 afirma que a empresa é necessariamente reconduzida à pessoa do empresário. O empresário, pessoa natural ou jurídica, é caracterizado por dois elementos essenciais em relação aos demais sujeitos interessados na empresa (ex. empregados): (I) a iniciativa e (II) o risco. A iniciativa consiste no poder de determinar a fase organizativa das bases estruturais da 68 Ibid., p. 7. ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. Fábio Koder Compado. In Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 104/109, 1983, pp. 109 e ss. 70 FERRI, Giuseppe. Manuale di Diritto Commerciale. 5ª ed., Torino: UTET, 1983, p.7. 69 48 empresa, o exercício e o endereço da sua atividade. O risco diz respeito ao suporte de todos os ônus inerentes à organização da empresa e assunção dos riscos favoráveis e desfavoráveis relativos à atividade exercida. Por seu turno, Francesco Galgano71 assevera que o conceito de empresa é, antes de um conceito jurídico, um conceito econômico, porquanto foi elaborado na época moderna (capitalismo) para identificar um dos sujeitos da cadeia da produção e da distribuição de riqueza. No sistema jurídico italiano, foi introduzido um conceito de empresário no artigo 2082 do Código Civil de 1942, que o identifica como aquele que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada com a finalidade de produção e de circulação de bens ou de serviços. A figura do empresário, que pode ser um ente privado ou público, delineada na codificação civil italiana, o apresenta como um produtor, o qual, profissionalmente, produz bens ou serviços ou se interpõe na circulação de bens, ou seja, desenvolve uma atividade criativa de riqueza que está centrada na utilidade dos bens preexistentes. Na linguagem jurídica, a expressão “profissionalmente” designa a estabilidade ou freqüência do exercício da atividade econômica e que tem por escopo o lucro. 2.7 O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO COMERCIAL NO BRASIL E A TEORIA DA EMPRESA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Durante o período colonial, aplicava-se às relações jurídicas a legislação portuguesa vigente à época (Ordenações Filipinas). Com a vinda da família real portuguesa, foi promulgada a Lei de Abertura de Portos de 1808. Com a independência, em 07 de setembro de 1822, conforme determina a Assembléia 71 GALGANO, Francesco. Diritto Privato. 11ª ed. Milani: CEDAM, 2001, pp. 453-460. 49 Constituinte e Legislativa de 1823, a Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, foi invocada como subsídio para a resolução de conflitos comerciais. O Código Comercial brasileiro inspirou-se diretamente no Code de Commerce e, assim, trouxe para o direito nacional o sistema francês de disciplina privada da atividade econômica. O projeto de Código Comercial foi sancionado em 02 de maio de 1850, promulgado pela Lei nº 556, de 25 de junho de 1850 e publicado em 1º de julho, com vacância de seis meses. Em seguida, foram editados os Regulamentos 737 e 738 (tribunais do comércio e o processo de quebras), ambos também, com vigência a partir de 1º de janeiro de 1851, os quais, além das normas processuais, continham dispositivos que completavam o Código Comercial. Segundo Rubens Requião72, o sistema do Código de 1850 é subjetivo, pois assenta na figura do comerciante, não evitando, porém, o tempero objetivo, enumeração legal dos atos do comércio, para esclarecer o que seja mercancia, elemento radical na conceituação do comerciante. Destarte o legislador brasileiro de 1850 abandonou a técnica enumerativa dos atos do comércio e adotou a teoria mista dos atos do comércio, isto é, o Direito Comercial é ao mesmo tempo o direito do comerciante (concepção subjetiva) e dos atos do comércio (concepção objetiva)73. Não obstante, o Direito Comercial disciplina todas as relações jurídicas decorrentes da atividade profissional do comerciante, dos atos e contratos a ela relacionados. Além disso, regula o estatuto dos comerciantes (direitos e deveres profissionais) 72 e das sociedades mercantis (constituição, organização, REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 1, 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp 1517. 73 Ibid., p.42. 50 funcionamento, relações com terceiros e entre sócios), das pessoas e institutos auxiliares do comércio etc. A partir da década de 50, iniciaram-se no Brasil, os debates sobre a nova feição do Direito Comercial, que seria o Direito da empresa, mormente com vistas à sua conceituação jurídica e a fixação dos elementos caracterizadores. A inclusão da expressão “empresa”, na Constituição de 1988 e na legislação ordinária que a sucedeu, espelha a fase da conversão, podendo o Direito Comercial ser considerado como o direito específico da empresa, porquanto o ordenamento contém regras que ordenam as estruturas, estabelecem a condição daqueles que possuem, criam e dirigem a empresa74. O Código Civil de 2002 acolheu definitivamente a Teoria da Empresa no seu Livro II da Parte Especial (Do Direito de Empresa). Portanto, razoável tributar ao advento do novel Código Civil Brasileiro o marco da consagração da transformação do Direito Comercial em função das novas realidades. Consoante lição de Waldírio Bulgarelli75, a empresa está no centro do Direito Comercial, e é seu objeto fundamental. A empresa, na codificação, expressa-se através de 03 (três) conceitos básicos: o empresário, o estabelecimento e a atividade, que em última análise, acabou por se aproximar do sistema do Código Civil italiano de 194276. 74 Sobre a evolução da empresa perante o Direito e as fases (i) da ignorância, (ii) da descobertta, (iii) da conversão e (iv) da mutação, confira-se BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 296-297. 75 Ibid., pp. 296 -297. 76 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, pp.23-24. 51 2.8 DIREITO EMPRESARIAL CONSTITUCIONAL A carta de 1988 está no ápice do escalonamento do sistema jurídico brasileiro e, por se tratar de fonte primária do ordenamento, subordina a interpretação da legislação infraconstitucional, e aí está o Direito da empresa, em consonância com a normatividade Constitucional. Destarte, os institutos do Direito da Empresa, assim como no Direito Civil, devem estar vinculados às normas fundamentais e setoriais constitucionais. Assim, por exemplo, a iniciativa privada de situações jurídicas exclusivamente patrimoniais deve ser funcionalizada a dos valores existenciais (não patrimoniais), sobretudo a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social, realizando, assim, a promoção de uma justiça distributiva. Tome-se, a título de ilustração, a livre iniciativa que está prevista no artigo 1º, inciso IV e na cabeça do artigo 170, da CF. Cabe salientar que, em ambos os dispositivos constitucionais, a liberdade de iniciativa, da qual se infere a liberdade contratual, é precedida do valor do trabalho humano, o qual está ligado umbilicalmente aos Direitos Sociais, no Capítulo II da Constituição Federal. Por outro lado, o legislador constituinte sanciona, no § 4º do artigo 173, o poder econômico que se alcança, através da liberdade de iniciativa do empresário, se exercido de modo abusivo ou anormal quando visar à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Em última análise, o abuso do poder econômico implicará a subversão dos princípios meio e fim previstos no artigo 170, sobre os quais se discorreu alhures. 52 Ensina Calixto Salomão Filho77 que a norma do § 4º do artigo 173 da CF visa tutelar a defesa da concorrência que é uma garantia institucional expressa no texto da Constituição. Essa norma tem um objetivo dúplice, pois, em primeiro lugar, acaba por equiparar os deveres do detentor do poder econômico aos deveres do agente estatal, ressaltando o seu caráter de direito-função; em segundo lugar, impõe ao Estado o dever de intervenção com vistas à proteção dessa garantia institucional. Portanto, o conteúdo da norma em comento revela a função social do poder econômico. Nesse passo, impõe-se reconhecer que as empresas com posição dominante, no mercado, devem exercer os seus poderes econômicos em conformidade com os princípios meios e fins da ordem econômica. Razoável dizer, então, que aí reside a função social e econômica da empresa, eis que todos os agentes da ordem econômica deverão observar as normas setoriais constitucionais, inseridos nos incisos I a IV do artigo 170, os quais se voltam à dinâmica das relações produtivas. Assim sendo, a propriedade privada deve ser exercida em consonância com a sua função social (incisos II e III do artigo 170 da CF). Ora, é essencial o respeito à propriedade privada dos meios de produção em um regime de livre empresa. A propósito, Pedro Paulo Cristofaro78 aduz que: [...] esse respeito implica necessariamente em que não se pode impedir a utilização, a fruição e a disposição pelas empresas (empregue-se, aqui, o termo em seu sentido subjetivo, como o faz em diversos dispositivos a constituição) dos bens de propriedade delas para fins compatíveis com os objetivos empresariais. O direito de propriedade das empresas sofre limitações a que se sujeita a propriedade do cidadão comum. Contudo, assim como este não pode ser impedido de dar aos seus bens destino 77 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial – As condutas. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 108-117. 78 CRISTOFARO, Pedro Paulo Salles. O Princípio da Livre Iniciativa como um dos Fundamentos da República. Conseqüências. In MOREIRA NETO, Diogo De Figueiredo (Coord.). Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 27. 53 adequado às finalidades deles, também as empresas não poderão ser obstadas de utilizar de seu patrimônio para atender aos fins empresariais. Ressalta-se aqui que a empresa tem necessariamente fim lucrativo somente sendo legítimo a seus administradores praticar excepcionalmente atos de liberalidade de valor moderado em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa (Lei das S/A, art. 154, § 4º). Os bens de que as empresas são proprietárias destinam-se, assim, à utilização dentro do objeto visado pelo empresário – pessoa física ou jurídica – com o propósito de lucro. Impedir as empresas de dar a seus bens utilização compatível com a atividade empresarial e com a busca do lucro é violar o direito de propriedade e o direito de exercer livremente a atividade econômica. Compeli-las, por exemplo, a dar destinação gratuita a seus bens ofenderá tanto à garantia constitucional ao direito de propriedade como o princípio igualmente constitucional da livre empresa. Por outro lado, não se pode esquecer que o respeito à livre iniciativa e à propriedade privada nas relações entre agentes econômicos (empresário e o consumidor) visam assegurar a existência digna conforme os ditames da justiça social que é revelada de forma precípua nas normas fundamentais da dignidade humana e da solidariedade. Destarte, em um sistema capitalista de livre concorrência, indubitavelmente o lucro do empresário é legítimo, mas este deve ser entendido como um prêmio decorrente do cumprimento da sua função social, ou seja, do exercício da atividade econômica de circulação de bens ou serviços com a observância das normas setoriais constitucionais albergadas nos incisos I a VI do seu artigo 170. A concepção do lucro como prêmio em virtude das normas constitucionais setoriais é reforçada pela dicção da norma do § 4º, do seu artigo 173, que reprime o abuso de poder econômico que vise ao aumento arbitrário dos lucros, isto é, sem justificativa legítima (artigo 170 da CF). Nesse sentido, confira-se o precedente do Supremo Tribunal Federal: Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros. Logo, determinada lei não é 54 inconstitucional pelo só fato de dispor sobre critérios de reajustes das 79 mensalidades das escolas particulares . Desta feita, a livre iniciativa e a propriedade privada (artigo 170, incisos II e IV, da CF) devem ser exercidas na sua perspectiva funcional (artigos 170, inciso III, e 173, § 4º, da CF), o que significa que a propriedade de bens de produção que levará ao poder de controle empresarial deve ser utilizada em benefício de terceiros80. Infere-se, outrossim, da função social da propriedade (artigos 5º, inciso XXXIII; no artigo 170, inciso III) o princípio (ou subprincípio) da preservação da empresa, que consiste na garantia da sua continuidade, a defesa dela contra tudo o que possa destruir o seu valor de organização, no interesse geral da economia e no interesse dos participantes da sociedade. Sobre o valor da preservação da empresa, anota Antônio José Avelãs Nunes81 que as empresas representam um valor econômico de organização que é necessário conservar para salvaguardar do esforço dos empresários, do direito dos empregados ao trabalho, dos direitos dos sócios a ver frutificar o seu capital. Assim, a empresa pressupõe, em princípio, uma certa duração e uma organização em vista de um resultado, por forma a sobrepor a vontade coletiva aos interesses individuais, haja vista que sua desintegração implica a perda de valores econômicos. Ora, mas a preservação da empresa não pode ser compreendida em termos absolutos, como uma salvaguarda para o descumprimento dos seus deveres perante os demais agentes econômicos. O adimplemento dos deveres de crédito, 79 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RTJ 149/666. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial – As condutas. São Paulo: Malheiros, 2003, p.114. 81 NUNES, Antônio José Avelãs. O Direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 37-56. 80 55 como salienta Eloy Câmara Ventura82, é de importância para o desenvolvimento do país e – acrescenta-se a redução das desigualdades sociais e regionais – além disso, na concessão do crédito, faz-se presente o elemento confiança, o qual permite a realização da operação, que tem um fundamento positivo, porquanto se estabelece pela garantia do material que o devedor possa oferecer para o resgate do empréstimo ou pelo conceito moral que ele goze. Tanto em um quanto em outro, o tomador do empréstimo gera no credor uma legítima expectativa do resgate do crédito. No plano constitucional, em apoio a tais argumentos, é razoável entender pela incidência das normas constitucionais do artigo 3º, incisos II e III e 170, inciso VII. O conflito entre os valores da preservação da empresa e da tutela das legítimas expectativas deverá ser balanceado à luz das circunstâncias e realizá-los ao máximo, se possível83. A propósito do balanceamento dos aludidos valores, oportuna a transcrição do precedente da 16ª da Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no Agravo de Instrumento nº 15887/2004, da lavra do Des. Gerson Arraes, julgamento de 15/02/2005, registrado em 23/03/2005: 82 VENTURA, Eloy Câmara. A evolução do crédito. Da Antigüidade aos dias atuais. Curitiba: Juruá, 2000, pp. 64-66. 83 Essa possibilidade dependerá das conseqüências previstas na norma predeterminada pelo legislador. Excepcionalmente, outras conseqüências poderão ser determinadas pelo julgador, em regra, quando se estiver diante das normas abertas que contenham a técnica legislativa das cláusulas gerais, cuja concretização fará a partir dos princípios constitucionais incidentes no caso concreto. Mais excepcional será a hipótese de superação da conseqüência jurídica das regras que poderá ocorrer através do postulado da razoabilidade conforme a doutrina de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Op. Cit., p. 105: Em segundo lugar, a razoabilidade exige a consideração do aspecto individual do caso nas hipóteses em que ele é sobremodo desconsiderado pela generalização legal. Para determinadas especificidades, a norma geral não pode ser aplicável, por se tratar de caso normal. [...] Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso, se, e somente se, suas condições satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária. [...] Essas considerações motivadoras levam à conclusão de que a razoabilidade serve de instrumento metodológico para demonstrar que a incidência da norma é condição necessária, mas não suficiente para a sua aplicação. Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma geral. A razoabilidade atua na interpretação das regras gerais como decorrência do princípio da justiça. 56 Agravo de Instrumento. Falência. Impetração irregular de concordata. Sentença de quebra ex-officio. Recurso. Contraposição entre o princípio da preservação da empresa, e o instituto público do crédito. Não comprovação dos requisitos legais de ordem formal; econômica e ética. Aspectos objetivos e subjetivos que não recomendam a reforma da sentença da falência, haja vista a falta de documentos imprescindíveis para o aparelhamento e deferimento do favor legal, bem como, pela não demonstração do elemento anímico acerca da vontade e viabilidade em saldar os créditos e honrar compromissos, apesar das várias oportunidades conferidas em primeiro e segundo graus. Manutenção da sentença, Improvimento recurso. [...] A presente questão encerra matéria tormentosa e de grande cunho social, eis que trata não só de aspectos jurídicos, mas também, e em grande monta, de circunstância sócio-econômica, a envolver, além dos responsáveis pela sociedade, todos os que em torno dela gravitam, como os credores, funcionários e suas famílias. Assim é que a decisão impugnada, da mesma forma que o julgamento do colegiado, devem ser orientados não somente pelos aspectos jurídicos da questão, mas também e primordialmente, deve-se projetar a decisão em seus efeitos, a fim de saber quais conseqüências causará envolvidos. Contrapõe-se, assim, no presente feito, dois valores de ordem e valores inversamente proporcionais, determinando a orientação da decisão em tal ao qual direção, conforme se prestigie um ou outro. São eles: o princípio da preservação da empresa, de um lado, e o instituto público do crédito, do outro. Aliados ao primeiro estão os interesses dos componentes da sociedade recorrente, juntamente com todos os que dependem ou de qualquer forma retiram na sua fonte de trabalho e sobrevivência. Em reforço ao segundo vetor, está à manutenção da ordem instituída pelo regime jurídico empresarial-cambiário que retira do crédito toda sua viabilidade e dinâmica de acontecimentos, ao lado do interesse dos credores que já não mantêm relação de fidúcia, descreditando no regimento da sociedade e na realização de seus créditos. [...] De forma que, por mais trágico que sejam seus feitos, deve ser confirmada a sentença de quebra; não se afigurando razoável e de boa técnica, constranger os credores e todo o regime jurídico empresáriocambial a suportar a situação de insolvabilidade do recorrente, postergando as necessárias e imprescindíveis agruras do processo falimentar, o que, de 84 resto, só acarretará em piores conseqüências [...] . Ademais, a conexão das categorias do Direito da empresa às normas constitucionais se verifica, a partir das normas abertas (cláusulas gerais) dos artigos 42185 e 42286 do Código Civil, as quais, segundo Claudia Lima Marques87, são normas gerais e genéricas, aplicáveis a todos os contratos. 84 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 16ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 15887/2004, Des. Gerson Arraes, julgamento de 15/02/2005, registrado em 23/03/2005. 85 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. 86 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 87 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1999, p. 552-559. 57 Nesse passo, Carlyle Pop88 assevera que o Código Civil trouxe novos ares e exegeses ao Direito Comercial, agora denominado Direito da Empresa, e os empresários, se já se achavam fulminados pelo Código de Defesa do Consumidor, agora, nos seus próprios negócios, terão alcance dos princípios da função social do contrato (artigo 421 do CC) e da boa-fé objetiva (artigos113 e 422 do CC)89. No Direito da Empresa, a função social e econômica do contrato (artigo 421 do CC) pode ser concretizada através do subprincípio da preservação da empresa que, como visto anteriormente, infere-se do princípio da função social da propriedade (artigos 5º, inciso XXIII; 170, inciso V). Foi a partir da eficácia interpretativa do subprincípio da preservação da empresa que a norma do artigo 335 do antigo Código Comercial, que impunha a dissolução da sociedade comercial pela saída do sócio, passou a ser compreendida na sua perspectiva funcional com vistas a tutelar os fins sociais e econômicos da sociedade90. Assim, o sócio não tem o direito absoluto de pedir a dissolução total da sociedade, sem motivos relevantes. 88 POP, Carlyle. Considerações sobre a Boa-fé objetiva no Direito Civil Vigente – efetividade, relações empresariais e pós-modernidade. In GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.). Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 21 89 Na Itália, a boa-fé objetiva tem sido aplicada no Direito societário, especialmente na sua função interativa com vistas a suprir as lacunas dos atos constitutivos (contratos sociais e estatutos) estabelecidos com base na autonomia privada para resolver os conflitos de interesses não previstos nos mesmos. Veja-se D’ANGELO, Andrea. II nuovo Diritto Societário e la clausula generale di buona fede. In Principi nella Riforma del Dirito Societário. A curi di Vittorio Afferni e Giovanna Visintini. Milano: Giuffrè, 2005, p. 109. 90 Consulte-se MARIANI, Irineu. O Principio da Preservação da Empresa e a Dissolução da Sociedade por Cotas de Responsabilidade Limitada. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 630, ano 77, abr. 1988, p. 59: Do exposto, e fiel à linha reitora do princípio da preservação da empresa, podemos sumular as seguintes conclusões: 10.1. A dissolução e liquidação totais, quando postuladas unilateralmente por sócio ou grupo de sócios, representem ou não capital majoritário, só acontecem motivadamente (inexistente a denúncia vazia), por razões que inviabilizem a consecução dos fins, ou quando todos os componentes concordarem com o término. 10.2. Quando alguém simplesmente deseja sair, ou nos casos de desistências ou desinteligências irremovíveis, havendo alguém que queira continuar, resolve-se o problema respeitando-se a vontade deste, retirando-se os demais, com a apuração dos respectivos haveres. 10.3. No caso de morte, é irrelevante o que constar no contrato sobre a dissolução ou não, pois a lei garante aos sócios sobrevivos o direito de deliberarem a respeito. 10.4. Quando, pela retirada ou morte, restar um único sócio, embora, a rigor, dissolvida, não se decreta a liquidação total desde que tal sócio queira dar continuidade (aproveitando o fundo de comércio, empregados, experiência, clientela, etc.), hipótese em que poderá escolher entre seguir como firma individual ou, com prazo previsto para a sociedade por ações, restabelecer a pluralidade.” 58 Nas palavras de José Waldecy Lucena91, a preservação da empresa trata-se de um valor fundamental no moderno Direito Societário: O princípio da preservação da empresa exsurge, no atual direito comercial, como um dos mais caros, erigindo-se mesmo em princípio fundamental do moderno direito societário. É que a dissolução social, como predicada no direito romano e na doutrina individualista, acarreta a desintegração da empresa, considerada esta como um núcleo de interesses econômicos e uma organização dos fatores de produção, cuja manutenção não é de interesse apenas dos sócios, mas também de empregados, clientes, fornecedores, fisco, em suma, da própria comunidade em que atua se não do próprio País. O que esse interesse público na manutenção da empresa operou foi o rompimento da concepção romanística de que a exclusão obrigaria necessariamente a dissolução da sociedade, então fornecendo o fundamento a que a sociedade, como organização jurídica explorando uma empresa, isto é, um centro de produção econômica, pudesse ter continuidade, caso os demais sócios assim deliberassem. Ora, mas o subprincípio da preservação da empresa não é um fim em si mesmo, tem por escopo a realização dos princípios-fins da ordem econômica (artigo 170, incisos VII, VIII, IX), os quais, por sua vez, devem ser funcionalizados em consonância com as normas fundamentais constitucionais, notadamente os valores da dignidade humana, da justiça social e da solidariedade. Por isso, no cumprimento da sua função social, é imperiosa a compreensão das sociedades como organização (feixe de contratos e relações jurídicas) com vistas a tutelar os interesses envolvidos. A partir dessa perspectiva, anota Calixto Salomão Filho92, o interesse da empresa não pode ser mais identificado, como no contratualismo, ao interesse dos sócios nem tampouco, como na fase institucionalista mais extremada, à autopreservação. Deve ser relacionado à criação de uma organização capaz de se estruturar de forma mais eficiente – e aqui a eficiência é distributiva e não alocativa – nas relações jurídicas que envolvem a sociedade93. 91 LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 709. 92 SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 42. 93 Sobre a distinção entre as teorias do contratualismo, institucionalismo e organizacionista, e a sugestão de um critério de concretização da cooperação (colaboração) societário, confira-se SALOMÃO FILHO. Op. Cit., pp. 43-45, nota 92: É nesse ponto que deve ser vista a diferença 59 Por sua vez, a boa-fé objetiva, que encontra assento na solidariedade prevista no artigo 3º, inciso I, da CF94, revela os valores da justiça contratual, da colaboração (ou cooperação), da lealdade, da confiança nas relações jurídicas, existenciais e patrimoniais. É verdade que a boa-fé já estava prevista no artigo 131 do antigo Código Comercial, mas era compreendida à luz da boa-fé subjetiva que consiste na consciência individual de não lesar direito de outrem95. Foi somente a partir do influxo dos valores constitucionais que efetivamente a norma do artigo 131 do Código Comercial adquiriu feição objetiva. Hoje, no âmbito subjetivo, a boa-fé encontra a sua verdadeira expressão na ética social, o que significa, em última análise, honestidade e correção, valores estes que deverão fundamental entre essa teoria e as anteriores. Identificando-se o interesse social e o interesse à melhor organização possível do feixe de relações envolvidas pela sociedade, esse jamais poderá ser identificado com um interesse à maximização dos lucros ou com o interesse de preservação da empresa. Distingue-se, portanto, do contratualismo e institucionalismo integracionista, que tem nítido caráter organizativo. Por esse caráter organizativo de ambas as teorias – teoria institucionalista e do contrato de organização – muitas vezes, como se verá, muitos efeitos aplicativos de ambas as teorias serão semelhantes. [...] É possível, de forma muito genérica, sugerir um critério traduzido por literatura clássica sobre cooperação. Partes tendem normalmente a se comportar de forma cooperativa e não conflitual quando três condições estão presentes: pequenos números (i.e., poucos participantes), informação ampla e recíproca , e relação continuada. Esses elementos, que, ao criar dependência recíproca sugerem, até intuitivamente, a cooperação, podem ser muito bem aproveitados pelo direito societário. Sugerem uma internalização seletiva de interesses externos. No primeiro grupo de internalizáveis, segundo esse critério, destacam-se interesses dos trabalhadores e dos consumidores. Em um segundo grupo, de difícil internalização estariam por exemplo, concorrentes e titulares de tutela pelo direito ambiental. 94 Registra-se que a boa-fé objetiva é, por sua vez, reconduzida à dignidade da pessoa humana por NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, pp. 22-223: [...] o princípio da boa-fé, como resultante necessária de uma ordenação das relações intersubjetivas, patrimoniais ou não, como um parâmetro para a sua funcionalização à dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões. 95 Sobre a evolução da boa-fé e sua compreensão, confira-se BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 116-117: A expressão “boa-fé” remonta o Direito Romano. Segundo Menezes Cordeiro, a princípio o Direito Romano fez referência apenas a fides, que significa fé. Posteriormente, relata-se que houve uma evolução tanto no que diz respeito à expressão como no que diz respeito a seu significado: “da fides, passou-se à fides bona e à bona-fides”. Para esse autor, a boa-fé, ao longo dos séculos, passou por vários processos de diluição e de difusão, razão pela qual possui uma ambivalência e capacidade de renovação que permanece até nossos dias. Hodiernamente, a doutrina divide a boa-fé em objetiva e subjetiva. Enquanto a boa-fé subjetiva se refere à consciência ou convicção prática de um ato conforme o direito, a boa-fé objetiva se refere a uma regra de conduta que impõe às partes determinado comportamento [...] A boa-fé objetiva é entendida como uma regra de conduta imposta às partes que se relacionam, proporcionando um dever de cooperação que é de suma importância ao se tratar de revisão contratual por excessiva onerosidade, decorrente de fatores supervenientes à contratação, não desencadeados por ação ou omissão daquele que sofre em razão dela. 60 permear todas as situações jurídicas. Já no âmbito objetivo, a boa-fé funciona como critério interpretativo (e integrativo), bem como se traduz em regras ou padrões objetivos de comportamento, como a lealdade e a confiança entre as partes96. Assim sendo, a boa-fé objetiva tem profunda incidência no tráfico negocial, seja na sua formação (fase pré-negocial), no seu conteúdo, na sua execução e, ainda, após o seu cumprimento (fase pós-negocial). A propósito da leitura do artigo 131 do Código Comercial, com supedâneo na boa-fé objetiva, transcreve-se adiante precedente da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 256.464-SP, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, data do julgamento de 22/03/2001, publicado no DJ, de 07/05/2001, verbis: COMPRA E VENDA. Laranja. Preço. Modificação substancial do mercado. O contrato de compra e venda celebrado para o fornecimento de frutas cítricas (laranja) não pode lançar despesas à conta de uma das partes, o produtor, deixando a critério da compradora a fixação do preço. Modificação substancial do mercado que deveria ser suportada pelas duas partes, de acordo com a boa-fé objetiva (art. 131 do CComercial). Recurso conhecido 97 e provido . 96 vale registrar aqui a relação da causa do contrato e da boa-fé objetiva, na sua vertente da tutela da legítima expectativa (confiança) desenvolvida por FORGIONI, Paula A. Contrato de distribuição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 512-514: esse talho [...] da matéria comercial impregnada da práxis, trouxe conseqüências teóricas relevantes: (I) a causa do negócio no direito comercial assume importância, porque permite a objetivação do comportamento do comerciante no mercado e, com isso, a possibilidade de seu cálculo pelo outro. A atenção à causa do negócio transforma-se em fator intrinsecamente ligado à proteção da legítima expectativa da outra parte, da chamada boa-fé objetiva e, como quer Roppo, à “gestão de uma economia capitalista”, ou às “regras de bom funcionamento do mercado”; (II) a racionalidade econômica do empresário sempre foi considerada pelo direito comercial e pela jurisprudência. Evita-se, a todo custo, a tomada de decisões judiciais que fujam da racionalidade própria do agente, rebatida na boa-fé e na proteção da legítima expectativa. A previsão do standard do homem “ativo e probo” nada mais é senão a assunção de uma racionalidade própria aos empresários (socialmente típica) depurada pelo direito como padrão interpretativo; c) a proteção da eficiência das decisões empresariais também é outra fonte em que há muito se fartam nossos intérpretes autênticos e nosso ordenamento jurídico. A imposição de diretivas que comprometem a segurança e a previsibilidade do mercado sempre causou preocupação, assim como decisões que amafanhassem a lógica do sistema. Conclui a citada autora que, quanto elemento jurídico, passa pela interpretação das avessas, dos direitos e das obrigações comerciais, reanimando conceitos clássicos como boa-fé, proteção da legítima expectativa da outra parte e, por mais que soe estranho, redimensionando e dando novo fôlego à teoria da causa do negócio jurídico. 97 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma. Recurso Especial n. 256.464-SP, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, data do julgamento de 22/03/2001, publicado no DJ, de 07/05/2001. 61 Assim como o Direito Civil, as relações privadas no Direito da Empresa devem ser compreendidas à luz das normas fundamentais constitucionais, notadamente da dignidade humana, da justiça social e da solidariedade. Sem embargo das normas fundamentais influenciarem no âmbito das relações privadas, cumpre anotar que a sua incidência e a sua extensão diferem daquelas relações entre o Estado e os particulares (empresários). 62 3 O ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL O comércio, na Antigüidade, caracterizava-se pelo nomadismo. Os comerciantes lançavam-se em viagens para obter mercadorias diferentes das que existiam em sua região para revender. Assim, faziam o intercâmbio de mercadorias entre as diferentes regiões. O surgimento das feiras dá-se quando as rotas dos mercadores nômades coincidem com os santuários de peregrinação. Com o tempo, as feiras passaram a ser esperadas em determinadas festividades religiosas e adquiriram regularidade. O comércio da Antigüidade foi praticamente abolido com o sistema feudal. Com o fim do isolamento do sistema feudal, a população voltou a agrupar-se em povoados que se transformaram em cidades, desenvolvidas pelo incentivo comercial. Com o desenvolvimento das cidades, os comerciantes sentiram a necessidade de se estabelecerem em construções próprias. Os comerciantes deixam de ser nômades e feirantes para montar o seu estabelecimento comercial em ponto fixo, em imóvel. O comerciante passa a organizar uma estrutura que atenda às suas necessidades no trabalho. O estabelecimento, que é a reunião de bens promovida pelo comerciante para o desenvolvimento de sua atividade, surge juntamente com o desenvolvimento do comércio, quando este deixa de ser praticado apenas por viajante para ser praticado por aqueles que se estabelecem montando uma estrutura para o seu exercício. É com a intensificação do comércio e o surgimento da concorrência que a importância do estabelecimento comercial é destacada. A crescente concorrência 63 faz com que o comerciante aprimore os mecanismos para atrair a clientela. O incremento do estabelecimento comercial foi um desses mecanismos. Com o passar do tempo, o comércio foi assimilando técnicas disponíveis para incrementá-lo. Tudo aquilo que tem relevância para o mundo do comércio pode ser retratado num valor monetário. O estabelecimento comercial ou seus elementos mais importantes passam a ser objetos de contratos, em razão do valor que representam. Com o desenvolvimento da teoria da empresa, o sentido conferido ao estabelecimento comercial ampliou-se. O estabelecimento comercial passa a ser estabelecimento empresarial. Admite-se também que o empresário, que explora atividade civil, possua um complexo de bens organizados para o desenvolvimento de sua atividade. Todo aquele que exerce atividade economicamente organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços é capaz de formar um estabelecimento empresarial. Deixa, portanto, o estabelecimento comercial de limitar-se às atividades mercantis, abrangendo todas as atividades com fins lucrativos. 3.1 O CONCEITO JURÍDICO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL A noção jurídica do estabelecimento tem dado lugar a grandes dúvidas e divergências, como acontece em relação a várias outras figuras jurídicas, a começar, em quase todos os países, pelas próprias expressões empregadas para a sua designação98. 98 MAGALHÃES, Barbosa de. Do Estabelecimento Comercial. Lisboa: Ática, 1951, p.9; Confira-se BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial – Fundo de comércio ou fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 65: O instituto do estabelecimento comercial apresenta- 64 A propósito dessa diversidade de expressões designativas do estabelecimento comercial no direito comparado, anota João Eunápio Borges99 que são empregadas no direito francês, fonds de commerce, maison de commerce, établissement commercial; no espanhol, hacienda, empresa; no anglo-americano, goodwill, business; no holandês, zaak, handelszaak; no alemão, geschäft, handelsgeschäft, haus, handlung, unternehmen. De igual modo, no Direito brasileiro é possível relacionar algumas expressões empregadas como sinônimas de estabelecimento comercial: casas de comércio, casa comercial da sociedade, fundo comercial, negócio, fazenda mercantil etc.100. Tais expressões sinônimas do estabelecimento comercial são contradiças na doutrina e, por diversas vezes, os textos legais fazem referência, porém foi a expressão fundo de comércio que adquiriu importância, na medida em que foi adotada pelo Decreto n. 24.150/34 (Lei de Luvas), porquanto este foi o primeiro texto legal a reconhecer expressamente o valor do fundo de comércio. A partir da leitura dos dispositivos que fazem referência ao estabelecimento, a doutrina comercialista cunhou alguns conceitos de estabelecimento empresarial. Vejamos. Segundo José Xavier Carvalho de Mendonça101 [...] o estabelecimento, na acepção aqui empregada (tem outros significados), designa o complexo de meios idôneos materiais e imateriais, pelos quais o comerciante explora determinada espécie de comércio; é o organismo econômico aparelhado para o exercício do comércio. Caracteriza-se ele pela função técnica, tomando, ordinariamente, a se em cada país, com caracteres intrínsecos e dimensões diferentes, de acordo com as peculiaridades do direito nacional, o que torna difícil estabelecer uma perfeita equivalência entre as várias expressões que servem para designá-lo. 99 BORGES. João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p.185. 100 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol. V, livro III, Parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963. 101 Ibid., pp.15-16. 65 designação de acordo com o seu objeto: um banco, uma fábrica, uma agência etc. Para Waldemar Ferreira102, o estabelecimento se tratava de uma “universalidade de bens constituintes do organismo por via do qual o comerciante exercita sua função medianeira entre a produção e o consumo”. Por seu turno, João Eunápio Borges103 o definia como [...] o complexo das várias forças econômicas e dos meios de trabalho que o comerciante consagra ao exercício do comércio, impondo-lhes uma unidade formal, em relação com a unidade do fim, para o qual ele as reuniu e organizou. É o instrumento, é a máquina de trabalho do comerciante. Como se pode inferir dos conceitos acima, essa divergência de expressões designativas do estabelecimento comercial, na doutrina e nos textos legais, acabava por dificultar a elaboração de um conceito inequívoco para este instituto, conforme denuncia Oscar Barreto Filho104 que proclama, na ausência de um conceito legal e tendo em vista as diversas acepções em nosso direito, a necessidade de implementar método e ordem nesse emaranhado de noções difusas. Para tanto, sugere que a formulação do conceito de estabelecimento há de atender às características que se apresentam com maior constância nas várias acepções antes examinadas. Do consenso geral, extrai então o autor as seguintes proposições acerca do estabelecimento comercial: (I) é um complexo de bens, corpóreos e incorpóreos, que constituem os instrumentos de trabalho do comerciante, no exercício de sua atividade produtiva; (II) não se configura como o complexo de relações jurídicas do comerciante, no exercício do comércio, e, portanto, não constitui um patrimônio comercial distinto do patrimônio civil; (III) é formado por bens 102 Apud MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol. V, livro III, Parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, p. 53. 103 BORGES. Op.cit., p. 184, nota 99. 104 BARRETO FILHO. Op.cit., pp. 74/75, nota 98. 66 econômicos, ou seja, por elementos patrimoniais, sendo duvidoso se compreender elementos pessoais; (IV) é uma reunião de bens ligados por uma destinação unitária que lhe é dada pela vontade do comerciante; (V) apresenta um caráter instrumental em relação à atividade econômica exercida pelo comerciante. Ao cabo desses caracteres, apresenta o seguinte conceito: complexo de bens, materiais e imateriais, que constituem o instrumento utilizado pelo comerciante para a exploração de determinada atividade mercantil. Com o advento do Código Civil de 2002, o Direito brasileiro passou a regular o estabelecimento comercial no livro II, Título III (Do Estabelecimento), Capítulo Único (Disposições Gerais), nos seus artigos 1.142 a 1.149. O legislador definiu o estabelecimento no artigo 1.142 como todo o complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário ou sociedade empresária. À luz da teoria da empresa, adotada pelo Código Civil de 2002, Modesto Carvalhosa105, Fábio Ulhoa Coelho106 e Sérgio Campinho107. 3.2 ESTABELECIMENTO PRINCIPAL, AGÊNCIAS, FILIAIS E SUCURSAIS É possível que um empresário possua mais de um estabelecimento. Ter-seia, então, um único sujeito de direito, podendo ser empresário individual ou sociedade empresária, com vários locais de exploração de sua atividade. 105 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 616. 106 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 96-102. 107 CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 67 Estabelecimento principal é definido como o “lugar em que o comerciante tem a sede de sua atividade ou, melhor, de onde governa e dirige seus negócios”108. Já a filial é conceituada como “Estabelecimento auxiliar, fundado pela casa principal ou matriz e dela dependente”109. A sucursal é tida como “estabelecimento auxiliar e dependente da casa matriz, criado por esta para expansão dos seus negócios. É subordinado à administração central, embora em certos casos goze de relativa autonomia”110. A agência apresenta proporções menores. É um simples ponto de conclusão de negócios com autonomia mínima. Deve-se lembrar, todavia, que toda classificação deve visar a um objetivo. Não há porque se conceituar estabelecimento principal e secundários, e ainda, filial, sucursal e agência, se diferença alguma trouxer para o direito. Não há porque criar classificações que não apresentem conseqüências práticas. É preciso identificar a necessidade de classificar os diversos estabelecimentos do empresário. Extrai-se da análise feita à legislação nacional que a classificação dos diversos estabelecimentos empresariais, de um só sujeito de direito, não é relevante para o Direito Processual Civil. Tal não ocorre com o Direito Falimentar que se utiliza do conceito de estabelecimento principal para definir o foro competente para o processo de falência (art. 3º, da Lei nº 11.101/05). O conceito de estabelecimento principal é utilizado para a determinação do juízo competente para a declaração da falência. Rubens Requião entende que o domicílio real do empresário é aquele em que se concentram seus bens principais, móveis e imóveis, todos os seus aparelhos e instalações, os seus negócios e 108 FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial, 2° vol., tomo1. São Paulo: Saraiva, 1952, p. 34. 109 NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica, s.v. filial. 110 NUNES, Pedro. Dicionário de tecnologia, s.v. sucursal. 68 interesses111. Para Trajano de Miranda Valverde112, a sede administrativa da empresa é o seu estabelecimento principal para efeitos da lei de falência. Percebe-se que duas são as principais preocupações na definição de estabelecimento principal. Uma corrente preocupa-se em declarar a falência no local onde se encontra o maior número de bens do empresário. A facilidade na arrecadação dos bens é a intenção desses. Na outra corrente, há preocupação em identificar a sede administrativa com o intuito de obter o maior número de informações sobre a atividade da empresa. Tendo a falência o objetivo principal de arrecadar do falido o seu maior número de bens, para que se consiga a satisfação dos credores, opta-se por adotar o primeiro entendimento, ou seja, a falência deve ser declarada no local onde o falido possui o maior volume de suas atividades e, consequentemente, o maior número de bens. Assim, a classificação dos vários estabelecimentos de um só empresário ou sociedade empresária interessa ao direito falimentar. Porém, não se possui interesse na classificação dos vários estabelecimentos secundários em filiais, agências e sucursais, sendo irrelevante para a presente pesquisa. 3.3 NATUREZA JURÍDICA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL Definir a natureza jurídica de um instituto é identificar o regime jurídico a ele aplicável. Após o conhecimento das características do estabelecimento empresarial, cabe identificar sua natureza jurídica, a fim de apontar o regramento jurídico a que ele está submetido. O interesse prático na qualificação jurídica do estabelecimento reside na circunstância de que os problemas relativos aos negócios jurídicos, feitos 111 112 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. Vol. 1, São Paulo: Saraiva, pp. 81-82. Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. Vol. 1, São Paulo: Saraiva, pp. 81-82. 69 com ou sobre o estabelecimento, dependem – quanto à forma de realização e quanto aos efeitos jurídicos – da natureza de que o mesmo se revista perante a lei113. Embora o estabelecimento empresarial seja um fenômeno comum em todos os países, cada um possui um regramento próprio que a ele se aplica. A natureza jurídica variará conforme o ordenamento jurídico de cada local. Importa identificar a natureza jurídica do estabelecimento empresarial no direito brasileiro. Predomina, hoje, na doutrina brasileira, o entendimento de que o estabelecimento empresarial é uma universalidade de fato. Cabe, porém, discorrer sobre as teorias mais relevantes a respeito do tema. 3.3.1 Teoria da Personalidade Jurídica Segundo essa teoria, criada pelo proprietário, o estabelecimento adquire vida própria e autônoma. Os bens e direitos, cuja organização deu origem ao estabelecimento, passam a pertencer a este e não ao proprietário que, também ele, sujeito ao estabelecimento, decai de sua qualidade de dono para transformar-se apenas no primeiro empregado do estabelecimento. A adoção dessa teoria teria por conseqüência conferir autonomia patrimonial ao estabelecimento. Haveria um outro sujeito de direito, que seria titular dos direitos e obrigações relativos à exploração da atividade empresarial; logo, as obrigações contraídas pelo estabelecimento teriam como garantia apenas os seus bens componentes. 113 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial – Fundo de Comércio ou Fazenda Mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. 70 A teoria da personalidade jurídica, porém é incompatível com nosso direito positivo pátrio. O direito brasileiro não reconhece outros entes com personalidade jurídica senão aqueles elencados nos arts. 43 e 44 do Código Civil. Quanto a essa teoria é interessante apontar que o Regulamento do Imposto de Renda – Decreto 3000/99 – equipara a empresa individual à pessoa jurídica para efeitos de imposto de renda. Assim, de acordo com o artigo 150, §1º, I, o empresário individual passa a fazer duas declarações, separando dessa forma os bens e os lucros referentes à sua atividade empresarial dos bens e rendimentos pessoais. Essa separação, todavia, existe apenas para efeito de imposto de renda, não gerando efeitos no patrimônio do empresário. 3.3.2 Teoria do Patrimônio Separado Para os defensores dessa teoria o estabelecimento se constitui em patrimônio autônomo, que se destaca dos demais bens integrados no patrimônio geral do proprietário. Seguindo esse entendimento tem-se um único sujeito com dois patrimônios distintos: o seu patrimônio civil e o patrimônio empresarial, ou seja, o patrimônio que se destina à exploração de sua atividade lucrativa. Essa teoria traz a mesma conseqüência da anterior, a autonomia patrimonial do estabelecimento. As obrigações assumidas pelo empresário, no exercício de sua atividade, teriam como garantia o patrimônio destinado à atividade empresarial. A separação patrimonial constituiria para o comerciante individual a possibilidade de limitar sua responsabilidade apenas àquela parcela patrimonial que destinou ao comércio. 71 Essa teoria também não se adapta às regras de direito positivo brasileiro, pois ele consagra a unicidade patrimonial. A separação patrimonial é uma exceção e existe somente nos casos expressamente fixados por lei. Ademais, a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada ou empresa individual de responsabilidade limitada não são permitidas pela legislação pátria, e este fato já seria um obstáculo para a adoção dessa teoria. 3.3.3 Teoria do Bem Imaterial Para os adeptos dessa teoria, o estabelecimento é um bem imaterial com existência distinta dos demais elementos que o compõem. O estabelecimento comercial constitui um bem incorpóreo, constituído de um complexo de bens que não se fundem, mas mantêm unitariamente sua individualidade própria. Oscar Barreto Filho114 contesta a teoria: Não se pode, portanto, identificar o estabelecimento com a organização, que é um conceito abstrato inferido do modo de ser dos elementos ou fatores da produção, esquecendo a sua própria essência. Se o estabelecimento pressupõe a organização, esta por sua vez pressupõe a materialidade dos bens de produção em que se concretiza, e sem os quais o estabelecimento não existe, porque não é possível a atividade produtiva. 3.3.4 Teoria das Universalidades De acordo com o artigo 90 do Código Civil constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes a mesma pessoa, tenham destinação unitária. Os bens que formam essa universalidade pode ser objeto de relações jurídicas próprias. 114 BARRETO FILHO, Op. cit., pp. 93-94, nota 113. 72 Quanto à universalidade de direito, disciplina o artigo 91 do Código civil como o complexo de relações jurídicas de uma pessoa dotada de valor econômico. 3.3.4.1 Bens Singulares e Coletivos (Universalidades) O estabelecimento comercial para essa teoria nada mais é que um objeto de direito. É ele um complexo de bens. É um bem coletivo ou universal, ou seja, uma universalidade de bens. As coisas coletivas ou universais são as constituídas por várias coisas singulares, consideradas em conjunto, formando um todo único, que passa a ter individualidade própria, distinta da dos objetos componentes, que conservam sua autonomia funcional. As universalidades nada mais são que coisas singulares consideradas em conjunto. Vê-se, portanto, que se trata das mesmas coisas, e que a distinção advém das diversas maneiras de encará-las. Se consideradas de per si, serão singulares, ainda que estejam em grupo; se consideradas em conjunto, serão coletivas, ainda que se mire uma delas individualmente. Coletivas ou universais são as que, embora constituídas de duas ou mais coisas singulares, se consideram, todavia, agrupadas num único todo. Esse todo que tem individualidade distinta das unidades que o compõem, é geralmente designado por um nome genérico. Nessa classificação pode-se encaixar o conceito de estabelecimento empresarial. O estabelecimento empresarial nada mais é que a reunião de vários bens singulares, que, em dado momento, são encarados em conjunto. 73 3.3.4.2 Universalidades de Fato e de Direito A união em conjunto de bens singulares dá-se em função da lei ou da vontade do titular dos bens. Surge daí a distinção entre universalidade de direito e universalidade de fato. Tem-se a universalidade de direito quando o conjunto de bens se forma por determinação legal; a universalidade de fato é formada por vontade do titular de seus bens, que os reúne para determinado fim. Reconhecendo a unidade do estabelecimento, José Xavier Carvalho de Mendonça115 considera-o como uma universalidade de direito, ou seja, o estabelecimento seria uma massa de coisas e direitos reunidos em virtude de lei. Embora faça referência à lei, o autor afirma que a vontade do empresário organiza e reúne os elementos integrantes do estabelecimento. Porém, a lei trata do estabelecimento como uma unidade, mas não para todas as relações, só para determinados fins. Assim sendo, não se pode adotar a teoria da universalidade de direito, pois a lei deveria tratar o estabelecimento como conjunto unitário, como faz com o patrimônio, a herança e a massa falida. O estabelecimento é um conjunto de bens ligados pela destinação comum de constituir o instrumento da atividade empresarial. Tal liame entre os bens que compõem o estabelecimento permite tratá-lo de forma unitária, distinguindo-o dos bens singulares que o compõem. O Código Civil permite que o estabelecimento seja tratado como um todo objeto unitário de direitos e negócios jurídicos (artigo 1.143), sem, contudo, proibir a negociação isolada dos bens integrantes do estabelecimento. A unidade deste encontra-se na destinação comum dos componentes. 115 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de Direito Comercial. Vol. 3, tomo I, p.28. 74 Os elementos que compõem o estabelecimento são unidos em prol do negócio, porém na essência continuam cada um com suas características autônomas, podendo inclusive ser reagrupados ou sofrer outras modificações a critério do seu titular. Estes elementos unificados representam o estabelecimento, que por sua vez pode ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza. Assim, guardando compatibilidade com sua natureza unitária, o estabelecimento pode ser objeto de negócio jurídico próprio, ou seja, pode ser objeto de venda, alienação, cessão ou arrendamento. A natureza jurídica do estabelecimento não se confunde com a natureza da empresa nem com a do empresário. O estabelecimento não é pessoa, nem atividade empresarial, é uma universalidade de fato que integra o patrimônio do empresário. O direito encontra-se diante de um valor econômico extremamente relevante para o mundo empresarial. Esse valor, porém, não encontra objeto específico que lhe dê origem. É um conjunto de bens e a organização desses bens é que faz surgir esse valor. A fluidez do conceito de estabelecimento empresarial e a dificuldade de delimitá-lo tornam o trabalho do jurista extremamente difícil. Predomina, hoje, na doutrina brasileira o entendimento de que o estabelecimento empresarial tem natureza jurídica de uma universalidade de fato. Essa universalidade é formada pela vontade do seu titular, o empresário, que organiza, como um conjunto, os diversos elementos componentes do estabelecimento, tendo em vista o exercício de uma determinada atividade. Nesse caso, como os elementos que compõem o estabelecimento formam uma unidade, em virtude da destinação que lhes foi dada pelo seu titular, trata-se de uma 75 universalidade de fato, tal como definido expressamente na norma do artigo 90 do Código Civil. 3.4 A COMPOSIÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA Inicialmente, cabe assinalar que não há consenso na doutrina brasileira, assim como na estrangeira, a propósito dos elementos que compõem o estabelecimento empresarial. No Direito brasileiro, antes do advento do Código Civil de 2002, a imprecisão jurídica do conceito de estabelecimento empresarial e a sua disciplina em leis esparsas acabaram por deflagrar diferentes concepções a respeito dos seus elementos constitutivos. A fim de ilustrar essa divergência doutrinária, será transcrita nessa oportunidade a opinião de alguns doutrinadores. Para João Eunápio Borges116, os elementos constitutivos do estabelecimento são três: capital, trabalho e organização. Por seu turno, o elemento capital se desdobra em dois grupos: os das coisas corpóreas ou materiais e o das coisas incorpóreas ou direitos. Para o doutrinador, as coisas corpóreas são as instalações, as mercadorias, vitrines, mostruários, máquinas, móveis, imóvel, utensílios, livros de contabilidade, material de escritório etc. As coisas incorpóreas ou direitos são, entre outros, os créditos ou dívidas ativas, o direito de exclusividade para o uso do título ou nome de estabelecimento e respectiva insígnia, marcas de indústria e de comércio, patentes de invenção, de modelos de utilidade, de modelos industriais etc. No que concerne ao elemento trabalho, este é representado pelos 116 BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969, pp. 187-192. 76 serviços de quantos dedicam sua atividade à vida do estabelecimento, desde o proprietário até o mais modesto empregado. A propósito do elemento organização, este é o principal fator de eficiência de um estabelecimento, combinando adequadamente bens e serviços. É o elemento que vai conferir ao estabelecimento um valor econômico como um todo organizado. Segundo Rubens Requião117, que prefere empregar a expressão fundo de comércio para designar o estabelecimento empresarial, este [...] compõe-se de elementos corpóreos e incorpóreos, que o empresário comercial une para o exercício de sua atividade. Na categoria de bens, por outro lado, é classificado como bem móvel. Não é consumível nem fungível, malgrado a fungibilidade de muitos elementos que o integram. Sendo objeto de direito constitui propriedade do empresário, que é o seu dono, sujeito de direito. Os bens corpóreos e incorpóreos conjuntados no fundo de comércio não perdem cada um deles sua individualidade singular, embora todos unidos integrem um novo bem. Cada um mantém sua categoria jurídica própria. Para o jurista paranaense, os bens corpóreos, que se caracterizam por ocupar espaço no mundo exterior, compreendem: (I) as mercadorias; (II) as instalações e; (III) máquinas e utensílios. Já os incorpóreos, que são as coisas imateriais que não ocupam espaço no mundo exterior, consistem em: (IV) ponto comercial – contrato de locação comercial; (V) créditos; (VI) título do estabelecimento; (VII) os privilégios de invenção; (VIII) de modelo de utilidade; (IX) de modelo e desenho industriais. Fran Martins118, por sua vez, assenta que [...] os elementos que integram o fundo de comércio podem ser divididos em dois grupos distintos: elementos incorpóreos e elementos corpóreos. Do primeiro fazem parte a (I) propriedade comercial; (II) o nome comercial, ou seja, a firma ou denominação; (III) os acessórios do nome comercial, tais como o título do estabelecimento e as expressões e sinais de propaganda; (IV) a propriedade industrial, isto é, as de invenção, assim como as patentes 117 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 198-213. MARTINS, Fran. Curso de Direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 25 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 344. 118 77 dos modelos de utilidade e dos desenhos e modelos industriais e; (V) as garantias de uso das marcas de indústria, de comércio e de serviços; (VI) e a propriedade imaterial, caracterizada pelo aviamento. Os elementos corpóreos são os bens (VII) móveis e os (VIII) imóveis pertencentes aos comerciantes e por eles utilizados no exercício do seu comércio. Ao enfrentar a questão, Oscar Barreto Filho119, acompanhado por Waldírio Bulgarelli120, parte da seguinte premissa: sendo o estabelecimento um complexo de bens, este somente pode compreender elementos do ativo do empresário, de maneira que o passivo não está contemplado na sua composição. Por conseguinte, aponta que os seus elementos, de natureza heterogênea, compreendem duas principais categorias: (I) os bens materiais e; (II) os bens imateriais. Estes abrangem: (II.a) os bens que, sendo tutelados como objetos de direito, têm existência meramente ideal, e não subsistem por si, independentemente da forma concreta pela qual se exteriorizam (as criações intelectuais); (II.b) as prestações decorrentes de direitos obrigacionais, dentre as quais sobressaem os serviços. Já aqueles correspondem às coisas corpóreas, que podem ser objeto de domínio (propriedade em sentido estrito). A doutrina majoritária, após o Código Civil de 2002, entre outros, Fábio Ulhoa Coelho121, Sergio Campinho122, Marcelo M. Bertoldi123, cingiu-se, com pequenas variações acerca da inclusão de determinados elementos nas respectivas categorias, a repetir a classificação comumente empregada, que distingue os 119 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial – Fundo de comércio ou fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp.154-155. 120 BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas; empresas e estabelecimento comercial: estudo das sociedades comerciais e seus tipos, conceitos modernos de empresa e estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagem às sociedades civis e cooperativas. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, pp.320-321. 121 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 100-102. 122 CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.309. 123 BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 109. 78 elementos do estabelecimento empresarial, os bens corpóreos e os bens incorpóreos. Outros, porém, como Modesto Carvalhosa124, influenciados pela doutrina italiana, incluem, ao lado das categorias bens corpóreos e incorpóreos, a categoria “atividade laboral”, necessária à operacionalização dos bens que compõem o estabelecimento empresarial estranho. Explica o referido autor que, sem o fator trabalho (relações jurídicas de trabalho), os bens não adquirem a unidade funcional que os caracteriza como elementos do estabelecimento, e muito menos possibilitam o exercício da empresa. Ao final, conclui que o [...] estabelecimento compreende um conjunto mais amplo de elementos, e não só os bens corpóreos e incorpóreos, pois nele se incluem também os serviços do empresário ou de seus empregados, reunidos por aquele com o propósito de exercer determinada atividade empresarial. Com efeito, o critério para a inclusão dos elementos do estabelecimento empresarial parece estar na coerência dos seus fatores jurídico e funcional125. O fator jurídico é revelado pelo tratamento dispensado pelo sistema jurídico, isto é, a realidade que foi apreendida pelo Direito. No Direito brasileiro, sem embargo das disposições em leis esparsas (artigo 448 da CLT; artigo 133 do CTN; etc.), o estabelecimento empresarial foi apreendido, especialmente, no capítulo único – disposições gerais (artigo 1.142 a 1.149) do Título III, do Livro II, do Código Civil, donde se inferem as seguintes premissas que conferem suporte ao fator jurídico: 1ª – não há enumeração legal dos elementos que integram o estabelecimento empresarial. A Lei Argentina nº 11.867, em seu artigo 1°126 e o 124 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 616-617. 125 Os fatores jurídico e funcional são sugeridos como critério por CORDEIRO, Antônio Menezes. Op. Cit., p.241-243 79 artigo 516 do Código de Comércio Colombiano enumeram os bens que compõem o estabelecimento empresarial. Essa enumeração é exemplificativa, na medida em que se presta para definir apenas os elementos que serão objetos de transferência por ocasião do trespasse do estabelecimento. Para Paula Castelo Miguel127, a diversidade de bens que compõem o estabelecimento e a variedade que estes podem adquirir, em função dos diferentes ramos de atividade desenvolvidos, tornam a enumeração falha. A enumeração feita por certas legislações tem como única vantagem indicar os elementos envolvidos no negócio da alienação do estabelecimento, não pretendendo abranger a sua totalidade de bens. 2ª – O estabelecimento empresarial é definido como o complexo de bens organizados para o exercício da empresa (artigo. 1.142). A expressão bens pode ser reconduzida àqueles bens considerados em si mesmos ou em relação à sua própria natureza e classificam-se em: a) corpóreos (tangíveis ou materiais) e incorpóreos (intangíveis e imateriais); b) móveis e imóveis. Tradicionalmente, emprega-se a distinção entre corpóreos e incorpóreos para classificar os bens que compõem o estabelecimento empresarial. Outrossim, a partir de uma análise funcional determinada pelo ciclo econômico, Fábio Konder Comparato128 propõe a classificação entre bens de produção e bens de consumo. Essa distinção é a que melhor se adequa ao sistema capitalista. Na primeira categoria, incluem-se móveis, imóveis, mercadorias, terra, dinheiro (moeda e crédito), todos estes expressam a 126 Art. 1º Declarase elementos constitutivos de um estabelecimiento comercial o fondo de comercio, a los efectos de su transmisión por cualquier título: lãs instalaciones, existências em mercaderías, nombre y enseña comercial, la clientela, el direcho al local, lãs patentes de invención, lãs marcas de fábrica, los dibujos y modelos industriales, lãs distinciones honoríficas y todos los demás derechos derivados de la propriedad comercial e industrial o artística. 127 MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São Paulo: R. T., n. 118, 2000, pp.29-30. 128 COMPARATO, Fábio Konder. As cláusulas de não-concorrência nos “Shopping Centers”. In Revista de Direito Mercantil, São Paulo, p. 23-28, n. 97, jan./mar. 1995. 80 idéia de capital produtivo. Na segunda categoria, encontram-se os bens cuja utilidade é obtida pela sua concomitante extinção. 3ª - O estabelecimento empresarial pode ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza (artigo 1.143 do CC). Infere-se desse dispositivo que o Direito brasileiro garante a circulação do estabelecimento empresarial com vistas a impedir que este se desagregue por fato voluntário ou involuntário do seu titular. 3ª.1 – O trespasse do estabelecimento empresarial importa na responsabilidade do adquirente pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de 1 (um) ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação e, quanto aos outros, da data do vencimento (art. 1.146). Essa transferência de débitos trata-se de verdadeira assunção da dívida, por disposição legal e exerce função econômica social na medida em que facilita o acerto de contas sem o deslocamento de numerário, dinamizando a circulação de bens e permitindo a continuidade das relações econômicas129. Note-se que essa assunção da dívida, na modalidade cumulativa ou de reforço, prevista no referido dispositivo, transmuta-se, após o prazo legal, em liberatória, quando encerra a responsabilidade solidária do cedente. 129 TEPEDINO, Gustavo (coord.) et. Al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp.583-584: Sua conveniência é evidente em situações como a transferência do estabelecimento comercial com a assunção do passivo; [...]. A assunção pode ser cumulativa ou de reforço, que se verifica quando o terceiro assume a dívida sem excluir o devedor; ou liberatória, também chamada de cumprimento, hipótese em que há efetiva transferência do débito, colocando-se o terceiro no lugar do devedor, que se libera. Em relação ao dispositivo do artigo 299, restou assentada na 1º jornada de direito civil do STJ no enunciado nº 16 que o Código Civil não exclui a possibilidade da assunção cumulativa da dívida quando dois ou mais devedores se tornam responsáveis pelo débito com a concordância do credor. Sem embargo, observe-se que, para efeito da transferência do estabelecimento empresarial, no artigo 1.146 o legislador suprimiu o requisito do consentimento do credor previsto no artigo 299. 81 3ª.2 – A transferência do estabelecimento empresarial enseja, salvo disposição em contrário, à sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para a exploração do estabelecimento, se não tiveram caráter personalíssimo, podendo os terceiros rescindir o contrato em 90 (noventa) dias, a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a responsabilidade do alienante (artigo 1.148). Esse dispositivo trata de cessão da posição contratual do alienante, titular do estabelecimento, em favor do adquirente, nos negócios jurídicos necessários à sua exploração. Contudo, não se opera a cessão da posição contratual naqueles negócios de caráter personalíssimo, isto é, quando a consideração da pessoa de um dos contratantes é, para o outro, o elemento determinante de sua conclusão. Faculta-se, ainda, a possibilidade do alienante e do adquirente dispor de forma diversa, ou seja, observe-se que essa faculdade deve ser exercida com certo temperamento, pois determinados contratos têm um nexo estreito e econômico com bens componentes do estabelecimento e as prestações derivadas daquelas relações devem seguir o destino do conjunto, sob pena de frustrar a ratio do artigo 1.143. São as hipóteses dos contratos de locação do imóvel onde está localizado o estabelecimento, de fornecimento de mercadorias e aqueles de trabalho130. 3ª.3 – A circulação do estabelecimento empresarial acarretará também a cessão dos créditos a ele atinentes, cuja eficácia de sua transmissão perante os devedores será a da data da publicação da sua transferência (artigo 1.144); contudo, se o devedor pagar de boa-fé, o cedente ficará exonerado (artigo 1.149). Ao contrário da transmissão dos débitos prevista no artigo 1.146, a transferência dos 130 Os exemplos são de FRANCO, Vera Helena de Mello. Op. Cit., p.137. A autora assevera que, com o novo Código Civil, todas as relações acompanharão o destino do estabelecimento empresarial, encampando o fenômeno da acessoriedade legal. 82 créditos não é uma conseqüência direta da circulação do estabelecimento empresarial. Destarte, para que ocorra a transmissão dos créditos, impõe-se a vontade do titular do estabelecimento e se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou o ajuste com o devedor (artigo 286 do CC). O fator funcional está relacionado à exigência da realidade da própria vida do comércio. O estabelecimento empresarial não pode ser reduzido a determinados elementos apenas para facilitar o seu enquadramento em categorias jurídicas preexistentes. Essa concepção estática do estabelecimento empresarial acaba por desprezar elementos outros, cuja necessariedade deve ser aferível a partir da respectiva organização feita pelo empresário e conforme a destinação para o escopo produtivo. Assim, por exemplo, pode-se encontrar, excepcionalmente, um estabelecimento empresarial praticamente sem nenhum bem ou direito, como as agências de negócios, os escritórios de representação, as empresas de corretagem, que para as suas atividades não precisam mais do que um local próprio ou alugado, um cadastro de clientes e uma linha telefônica. Não se pode olvidar que a empresa, como realidade econômica, está em constante evolução, por conseguinte, impõe-se acolher uma concepção dinâmica do estabelecimento empresarial, visto que este também está autonomizado pelo comércio. Na perspectiva da organização funcional do estabelecimento, os elementos que compõem sua estrutura e configuração estão em conformidade com a atividade de determinado segmento mercadológico e com a ordenação promovida pelo 83 empresário. Por tal razão, não se pode ter a pretensão de estipular previamente todos os elementos do estabelecimento empresarial. Afigura-se viável fazer referência sobre os elementos potencialmente constitutivos do estabelecimento empresarial e as respectivas categorias jurídicas, examinadas a seguir e, concomitantemente, serão tecidas algumas considerações acerca da inclusão dessas categorias, com exceção do aviamento e da clientela, os quais se investigarão em item específico para melhor compreensão em virtude das inúmeras controvérsias existentes. a) mercadorias, máquinas, matéria-prima, mobiliários, veículos, etc. Esses elementos podem ser conduzidos às categorias de bens móveis e corpóreos. b) imóvel: trata-se do local físico onde se encontra instalado o estabelecimento empresarial. Esse elemento é compreendido nas categorias dos bens imóveis e corpóreos. Na esteira da doutrina francesa, Rubens Requião131 sustenta que o imóvel pode ser elemento da empresa, mas não o é do estabelecimento. Em sentido contrário posiciona-se a doutrina brasileira majoritária, entre eles João Eunápio Borges132 e Fran Martins133. Desde há muito, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda134 critica a concepção francesa que tradicionalmente pré-excluía o imóvel do estabelecimento, afirmando ser obsoleta a restrição. Explicava o jurista que o conceito de fundo (estabelecimento) de hoje não é só o “de 131 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 208: Ora, se considerarmos o estabelecimento, na sua unidade, uma coisa móvel, claro está, desde logo, que o elemento imóvel não o pode constituir. É preciso, e é de bom aviso frisar, que não se deve confundir fundo de comércio com patrimônio. O fundo de comércio não constitui todo o patrimônio, mas é parte ou parcela do patrimônio do empresário. A empresa, que é o exercício da atividade organizada pelo empresário, conta com vários outros elementos patrimoniais, por este organizados, para a produção ou troca de bens ou serviços que não integram o estabelecimento comercial. 132 BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969, pp.174-175. 133 MARTINS, Fran. Curso de Direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 25 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.418. 134 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p.371. 84 comércio” e sim de qualquer empresa. Argumenta, por outro lado, que os patrimônios podem ser objeto de negócios jurídicos e usufruto de patrimônio em que haja imóvel. Mais recentemente, a partir da relevância da alienação do estabelecimento empresarial, Paula Castello Miguel135 assevera que é nesse momento que se torna imprescindível identificar os bens que mudarão de titularidade, de tal sorte que sendo o imóvel alienado, em conjunto com os demais bens, ante a sua importância na exploração da atividade empresarial, tem-se o imóvel como componente do estabelecimento. A propósito da localização do estabelecimento empresarial, Fábio Ulhoa Coelho136 sugere alguns critérios para a escolha do local, como o vulto do empreendimento, o tipo de atividade e o perfil da clientela potencial. c) Ponto empresarial e sua clientela: o ponto empresarial é considerado bem incorpóreo pela doutrina. Quando o empresário não é proprietário do imóvel onde se localiza o estabelecimento empresarial, mas sim, locatário ou inquilino deste, e desde que observados os respectivos requisitos legais previstos atualmente na Lei nº 8.245/91, o direito brasileiro dispensa-lhe tutela mediante a renovação compulsória do contrato de locação e a indenização, se acolhida a defesa de retomada suscitada pelo locador. No que concerne à tutela da renovação compulsória, essa remonta ao Decreto nº 24.150/34 (Lei de Luvas). Na legislação vigente, os seus requisitos estão insculpidos no artigo 51 da Lei nº 8.245/91. Cabe indagar se a cessão do estabelecimento empresarial tem o condão de conferir ao adquirente também à posição contratual do alienante-locatário. 135 MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São Paulo: R. T., n. 118, 2000, p.32. 136 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.102. 85 Como visto alhures, o local do estabelecimento empresarial pode constituir elemento essencial para exploração da atividade empresarial. Todavia, o artigo 13 da Lei n° 8.245/91 estabelece que a cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou parcialmente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador. Assim, em caráter de excepcionalidade, a transferência do estabelecimento empresarial como objeto unitário, assentada na norma do artigo 1.143, afastaria a incidência da regra do artigo 13 da Lei n° 8.245/91, que trata da simples e pura cessão da locação, de modo que o adquirente assumiria a posição do locatárioalienante no contrato de locação, ressalvada a possibilidade de o locador opor as objeções por justa causa com vistas à rescisão do contrato conforme previsão do artigo 1.148 do CC. Cabe anotar que o fundamento racional da norma do artigo 1.143 do CC encontra-se no subprincípio da preservação da empresa (perfil finalístico do negócio jurídico do trespasse) que, por sua vez, alberga um feixe de interesses interno (titular do estabelecimento) e externo (empregado, consumidor, etc.). Já o artigo 13 da Lei n°. 8.245 encontra assento nos princípios constitucionais da propriedade (artigo 5°, XXI) e da autonomia da vontade (artigo 5°, II) do proprietário-locador. Destarte, a colisão dessas normas deve ser resolvida à luz da leitura funcionalizada das categorias jurídicas da propriedade e autonomia da vontade (artigo 5°, XXIIII c/c 170, III, ambos da CF, e artigo 421 do CC), de maneira que ao artigo 1.143 deve ser dispensado tratamento de norma excepcional em relação à regra do artigo 13 da Lei n° 8.245/91 que não incidirá na hipótese de transferência do estabelecimento empresarial. Nesse sentido, confira-se a ementa do julgado da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, nos autos do 86 Agravo de Instrumento n°. 1997.002.02273, da lavra do Des. Nametala Machado Jorge, julgado em 15/12/1997, registro de 06/05/1998, fls. 7284/7290: Locação comercial. Ação Revisional. Legitimação. Destinando-se o imóvel à atividade comercial do locador (pessoa física) ou de empresa por ele constituída, afigura-se lícito, face à letra e ao espírito do contrato, que, mudando-se de local a pessoa jurídica por aquele fundada, outra, também por ele constituída, se instale no imóvel. A cessão das cotas que representam à integralidade do capital social dessa segunda empresa, que a rigor passou a ser a locatária, e face ao princípio da autonomia da pessoa jurídica em relação a de seus sócios, não importa modificação subjetiva do contrato de locação. Ademais, somente a cessão pura e simples da locação comercial é que depende do consentimento do locador. Não aquela que ocorre com a transferência do fundo do comércio, do qual é a locação um dos seus elementos incorpóreos. Recurso desprovido. (PLD) Vencido o Des. 137 Julio César Paraguassu que dava provimento ao recurso . O empresário-locatário do ponto poderá ter rejeitado o seu pleito de renovação compulsória do contrato de locação na hipótese de acolhimento das objeções do locador previstas no artigo 52 da Lei n° 8.245/91. Assim sendo, com vistas a compatibilizar o direito da propriedade do locador e coibir o enriquecimento indevido de outro negociante que venha ocupar o referido ponto empresarial, o legislador ordinário prevê mecanismos de compensação. Destarte, o empresário locatário fará jus à indenização pela perda do ponto se presentes os pressupostos: (I) caracterização da locação como empresarial, com o atendimento aos requisitos formal, temporal e material; (II) ajuizamento da ação renovatória dentro do prazo; (III) acolhimento da exceção de retomada. Uma vez presentes tais pressupostos, impõese a indenização do ponto em quaisquer das seguintes situações: (a) se a exceção de retomada foi a existência de proposta melhor de terceiro; (b) se o locador demorou mais de 3 meses, contados da entrega do imóvel para dar o destino alegado ou iniciar as obras determinadas pelo Poder Público ou que declare pretender realizar; (c) se caracterizada a insinceridade da exceção da retomada. 137 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 13ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n°. 1997.002.02273, do Des. Nametala Machado Jorge, julgado em 15/12/1997, registro de 06/05/1998, fls. 7284/7290. 87 As duas primeiras situações decorrem da regra do § 3° do artigo 52 da Lei n. 8.245/91, enquanto, segundo lição de Fábio Ulhoa Coelho138, as demais exsurgem dos princípios de boa-fé e da proibição do enriquecimento indevido. d) direitos de propriedade industrial: esses direitos de propriedade industrial são bens móveis, consoante o artigo 6° da Lei nº 9.279/96. A natureza dos direitos de propriedade industrial no Brasil é objeto de imensa controvérsia. Sem embargo, na doutrina há predileção pela classificação desses direitos como bens móveis incorpóreos ou imateriais. Os direitos de Propriedade Industrial estão arrolados no artigo 2° da Lei nº 9.279/96 e se referem: (I) à invenção e aos modelos de utilidade; (II) ao desenho industrial; (III) às marcas. e) título e a insígnia do estabelecimento empresarial: tratam-se de propriedade intelectual, mais precisamente de bens móveis incorpóreos. O primeiro é a designação nominal que o empresário empresta ao local do exercício de sua atividade, ao qual se dirigirá o público consumidor. A segunda constitui uma designação figurativa ou mista. Estes só podem ser transmitidos em conjunto com o estabelecimento ou parte de estabelecimento a que estejam ligados. O Direito brasileiro dispensou proteção a estes bens móveis incorpóreos através do Decreto nº 24.507/34 e dos primeiros Códigos de Propriedade Industrial. O Código de Propriedade Industrial de 1972 (Lei nº 5.771/72) previa que não era suscetível de registro como marca, o título de estabelecimento ou o nome empresarial. A Lei nº 9.279/96 acabou por limitar a proteção ao elemento característico (artigo 124, inciso V), bem como tipifica como crime de concorrência desleal o uso indevido de título de estabelecimento (artigo 195, inciso V). 138 COELHO, Op. Cit., p. 111, nota 137. 88 f) nome empresarial – para parte da doutrina tem natureza de bem móvel incorpóreo; trata-se de elemento de identificação do empresário com vistas a individualizá-lo perante o poder público e os demais empresários. A legislação brasileira dispensa proteção ao nome empresarial através da Lei nº 8.934/94 (artigos 33 e 34) e o Decreto nº 1.800/96 e instrução normativa do DNRC 99/2005, que garante a exclusividade do seu uso, observados os requisitos legais. Ademais, o artigo 8° da Convenção União de Paris (Decreto nº 75.572/75) também lhe conferia proteção sem condicioná-la ao prévio registro na Junta Comercial ou qualquer outro registro. Tendo em vista a função do nome empresarial, a doutrina brasileira diverge se este estaria albergado entre os bens que compõem o estabelecimento empresarial. Negando a sua inclusão entre os elementos do estabelecimento empresarial, estão Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda139, João Eunápio Borges140 e Rubens Requião141. Defendendo a sua inclusão entre os elementos do estabelecimento empresarial, cite-se, entre outros, Oscar Barreto Filho142 e Paula Castello Miguel143. Atualmente, o Código Civil de 2002 disciplinou-o nos artigos 1.155 a 1.168 do Capítulo II (Do nome Empresarial), do Título IV (Dos Institutos 139 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p. 372: O nome civil e o nome comercial não são elementos componentes do fundo de empresa. O que é elemento componente, incorpóreo, do fundo de empresa é o valor que do nome civil ou comercial resultou para a empresa, como sugestão de crédito e de clientela. 140 BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969, pp. 187-188: Em nosso direito, a firma ou nome comercial não se inclui entre os elementos componentes do estabelecimento. Porque, como vimos no capítulo XIII, o nome comercial (firma ou denominação) designa a pessoa do comerciante e não o seu estabelecimento. E, a não ser para o fim restrito ao adquirente declarar-se sucessor do vendedor, nos termos do artigo 7°, parágrafo único, do Decreto n°. 916, a firma é inalienável. 141 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.213. O autor não inclui o nome empresarial entre os elementos incorpóreos do estabelecimento. Logo, a contrario sensu, entende que este não constitui seu elemento componente. 142 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial – Fundo de comércio ou fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 158. 143 MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São Paulo: R. T., n. 118, 2000, pp. 35-36. 89 Complementares), do Livro II (Direito da Empresa). Nesse passo, cumpre anotar que a cabeça do artigo 1.164 preceitua que o nome empresarial não pode ser objeto de alienação. Modesto Carvalhosa144 explica o sentido da referida norma: [...] o nome é um direito inerente à sociedade, ou à empresa, personificada. [...] A vedação existente no art. 1.164 do Código Civil de 2002 não incide, portanto, nos casos em que a titularidade da empresa, ou seja, de suas quotas ou ações é transferida. Incide apenas para a transferência isolada do nome empresarial. Estando o nome ligado à personalidade jurídica da empresa, proibe-se que seja dela destacado e alienado, para que não venha a designar outra empresa, sob pena de se gerar grande confusão no público em geral e naqueles que contratam com a sociedade. Essa norma leva a ilação de que o nome empresarial não integraria o estabelecimento empresarial, na medida em que não poderia ser alienado. Todavia, o parágrafo único do referido dispositivo abre uma exceção ao estabelecer que o adquirente do estabelecimento, por ato entre vivos, pode, se o contrato permitir, usar o nome do alienante, precedido do seu próprio, com a qualificação de sucessor. Antes de qualquer coisa, incumbe investigar a natureza jurídica do nome empresarial. Parcela da doutrina sustenta tratar-se de direito pessoal, expressão da personalidade, agregado à pessoa do empresário e, consequentemente, inalienável e impenhorável. Essa tese encontraria embasamento legal nos artigos 11, 48 e 1.167; este último dispositivo estabelece que a pretensão de anulação da inscrição do nome empresarial feita com violação da lei ou do contrato não estaria sujeita a prazo. Em sentido diametralmente oposto, está a tese do nome empresarial como direito patrimonial, preconizada por Clóvis Beviláqua. Há uma terceira corrente, capitaneada por João da Gama Cerqueira145, que busca conciliar as duas anteriores ao fazer a distinção entre o nome comercial 144 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 731. 90 subjetivo, atributo da personalidade do empresário, e objetivo, elemento de identificação da própria atividade. É na função objetiva que o nome empresarial torna-se objeto autônomo, um bem patrimonial. Fábio Ulhoa Coelho146 corrobora a opinião acerca da natureza patrimonial do nome empresarial, sob a seguinte argumentação: Na verdade, a doutrina do nome do empresário como direito pessoal não se reveste de operacionalidade, não auxilia a composição jurídica de interesses. Deve-se, com efeito, levar em conta que o mercado de fato atribui ao nome empresarial um valor, como intangível da empresa. Ora, se há quem, em determinadas circunstâncias, paga pela utilização do nome empresarial criado pelo exercente de atividade econômica, então negar-lhe as condições de bem do patrimônio desse último é irreal. Se o direito não reconhecer a natureza patrimonial do nome adotado pelo empresário, os conflitos ligados à sua negociação não poderão ser convenientemente equacionados, na medida em que a própria juridicidade do negócio poderia ser equacionada. Cabe anotar que é comum o nome empresarial ser reproduzido no título de estabelecimento (ex: nome empresarial: “Banco Itaú S/A”; título do estabelecimento “Itaú”) e, nesse caso, o nome empresarial acaba por emprestar elevado valor ao título de estabelecimento empresarial a configurar um fator atrativo do público consumidor. É por isso que o parágrafo único do artigo 1.164 do CC dispõe sobre a possibilidade de o empresário alienante licenciar ou permitir o uso, de forma gratuita ou onerosa, o seu nome empresarial com vistas a ser empregado como referência ou identificação complementar ao nome do empresário adquirente do 145 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1 e 2, 2ª ed. Revista e atualizada por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa Neto. São Paulo: RT, 1982, p. 1198: Quando versamos esta matéria, no início deste capítulo, tivemos ocasião de mostrar que o nome comercial exerce duas funções diversas, a que denominamos subjetiva e objetiva, deixando clara a fundamental distinção que entre elas existe. Vimos, então, que, em sua função subjetiva, como o nome sob o qual a pessoa física ou jurídica exerce o comércio e se assina nos atos a ele relativos, o nome comercial é objeto da disciplina do Direito Comercial, e, de modo particular, da matéria relativa ao registro de comércio. Somente em sua função objetiva, como projeção da individualidade do comerciante ou do complexo do estabelecimento no campo da concorrência, o nome comercial, em suas várias modalidades, tem entrada no campo da propriedade industrial, podendo constituir objeto da proteção das suas leis de Direito interno e das convenções e tratados internacionais. 146 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 177. 91 estabelecimento, mas não à sua alienação ou transferência definitiva. Note-se que a parte final do referido dispositivo condiciona o uso do nome empresarial precedido do nome do adquirente acrescido da expressão sucessor, de modo a tutelar, a um só tempo, o princípio da distintividade previsto no parágrafo único do artigo 1.163 e o direito básico do consumidor que não será induzido em erro por utilização indevida do nome empresarial e outros signos distintivos, este proclamado no artigo 4°, inciso VI, da Lei nº 8.078/90. Extraída a verdadeira ratio da norma do artigo 1.164, convém agora enfrentar a questão acerca da possibilidade de inclusão do nome empresarial – bem patrimonial incorpóreo – como elemento do estabelecimento empresarial. Já foi dito alhures que a cessão do estabelecimento empresarial (objeto unitário – artigo 1.143) não implicará necessariamente na transferência da propriedade dos seus elementos ao adquirente, eis que o alienante, titular do estabelecimento, poderá deter apenas um título legal que lhe confira suporte para a respectiva utilização (v.g., contrato de alienação fiduciária). Destarte, quando o empresário alienante do estabelecimento empresarial licenciar o uso do seu nome para o adquirente nas condições previstas no parágrafo único do artigo 1.164 do CC, forçoso será reconhecer que este direito passará a ser elemento imaterial do estabelecimento empresarial. g) Direitos de propriedade intelectual: entre os direitos intelectuais componentes do estabelecimento empresarial, cumpre destacar o direito autoral, o software e a tecnologia. Segundo Newton Silveira147, os direitos intelectuais são bens de natureza imaterial que são concebidos como um direito de propriedade. Portanto, estes são objetos de bens imateriais. 147 Silveira, Newton. A propriedade intelectual e as Novas Leis Autorais. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.14. 92 O direito autoral está regulado pela Lei n° 9.610/98, que em seu artigo 49 dispõe sobre a transferência dos direitos patrimoniais do autor, por meio de licenciamento, concessão ou cessão. Sem embargo da possibilidade de transmissão integral dos direitos de autor – e não direitos autorais - prevê o inciso IV do referido artigo que a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato. No que respeita ao estabelecimento empresarial, este poderá guardar estrita pertinência com a atividade empresarial explorada ou até constitui o elemento principal, como é o caso dos editores. A Lei n° 9.609/98 dispensa tratamento ao programa de computador, os softwares, o qual, em si, não pode ser tutelado por meio de patentes (artigo 10, inciso VI, da Lei n° 9.279/96). O artigo 1° define o programa de computador como sendo “a expressão de um conjunto de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento de informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou analógica, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.” Ao programa de computador é conferido o regime de proteção às obras literárias, pela legislação de direitos autorais e conexos (Lei n° 9.610/98) observadas as disposições específicas na Lei do Software (artigo 2° da Lei n° 9.609/98). Destarte, aplicam-se as regras de transferência da Lei n° 9.610/98 aos programas de computador. A propósito dos contratos de licença de uso de software, de comercialização e de transferência de tecnologia, quando da cessão do estabelecimento empresarial, o adquirente assumirá a posição contratual consoante à regra do artigo 1.148, respeitadas as disposições específicas (Lei n° 9.609/98 c/c Lei n° 9.610/98). 93 No que concerne à tecnologia, segundo a definição de Elizabeth Kasznar Fekete148 abrange um conjunto de conhecimentos, sigilosos ou não, patenteados ou não, sendo usado também, em sentido mais amplo ainda, universal, para significar todo o estado da arte, o estágio de desenvolvimento técnico e comercial dos setores em geral. O seu conceito é suficiente para albergar o saber-fazer (Know-how) e o segredo industrial. Este seria espécie do saber-fazer e este, por sua vez, estaria incluído no gênero tecnologia. Saber-fazer, na definição proposta por Denis Borges Barbosa149, é o corpo de conhecimentos, técnicos e de outra natureza, necessários para dar a um empresário acesso, manutenção ou vantagem no seu próprio mercado. Pode-se dizer que o saber-fazer está ligado ao modelo de produção específico, que possibilitará uma vantagem concorrencial para o empresário em face dos seus demais competidores. O saber-fazer diferencia-se do segredo na medida em que este se guarda e protege-se contra “ataques”, enquanto aquele possui uma conotação mais dinâmica, de algo que não somente se guarda e se protege, mas também algo que se transmite, se comunica, mediante remuneração. O saber-fazer constitui elemento transmissível na cessão do estabelecimento empresarial. Ao contrário da patente, que se trata de direito de propriedade industrial, conferido exclusivamente na sua exploração, o saber-fazer e o segredo industrial são uma situação de fato tutelados pela vedação de concorrência desleal e por contrato que institua uma obrigação de não fazer com vistas a proibir uma das partes a divulgar esse conjunto de conhecimentos. 148 FEKETE, Elizabeth Kasznar. O regime jurídico do segredo de indústria e comércio no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 56-60. 149 BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 650. 94 h) contratos de trabalho e de serviço: por força do artigo 448150 da CLT, determina que a mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados. Infere-se desse preceito o princípio da continuidade do emprego ou da permanência do contrato de trabalho. Sem embargo das críticas de terminologia que se possa fazer ao referido preceito, mormente quanto aos dizeres “alteração na estrutura jurídica da empresa”, a expressão “contrato de trabalho” contida, no preceito, revela uma relação jurídica entre o empregado e o empregador. O artigo 448 da CLT deve ser compatibilizado com o artigo 1.148151 do Código Civil. Portanto, constitui elemento do estabelecimento empresarial e será transferido juntamente com este na hipótese de cessão, de maneira que o adquirente assumirá a posição contratual do empresário alienante. Por outro lado, não apenas o empregado é fonte de energia laborativa, mas também todos os demais sujeitos que atuam no estabelecimento empresarial são seus colaboradores, como os administradores não sócios, os trabalhadores autônomos, os profissionais intelectuais e os auxiliares estáveis e temporários (representantes comerciais, intermediadores, mandatários, etc.). Discute-se na doutrina nacional e estrangeira, se o trabalho humano e os trabalhadores podem fazer parte do estabelecimento empresarial como elemento deste. No Brasil, Rubens Requião152 é contra a sua inclusão entre os seus elementos, ao passo que João Eunápio Borges153 é a favor. Mais recentemente, 150 Artigo 448. A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalhos dos respectivos empregados. 151 Artigo 1148. Salvo disposição em contrário, a transferência importa a subrogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo terceiros rescindir o contrato em 90 dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso a responsabilidade do alienante. 152 REQUIÃO, op. cit., p. 242, nota 143. 153 BORGES, op. cit., pp. 191-192, nota 142. 95 Modesto Carvalhosa154 também alude que a atividade laboral é necessária à operacionalização desses bens (corpóreos e incorpóreos), eis que para o sucesso da empresa de nada adiantaria ao empresário reuni-los sem adicionar o fator trabalho, através do qual os bens adquirem a unidade funcional que os caracteriza como elementos do estabelecimento e, por conseguinte, com o fito de possibilitar o exercício da empresa. Essa concepção encontra respaldo da expressão “complexo de bens organizado” contida na norma do artigo 1.142 do CC. A propósito da sua natureza, Oscar Barreto Filho155 insere os contratos de trabalho e de serviços no gênero serviços de pessoal e os remete à categoria de bens incorpóreos, sob o argumento de que essas energias aplicadas ao trabalho configuram prestações de fazer que aderem ao estabelecimento independentemente da vontade das partes, caracterizando-se como obrigações reais propter rem. António Menezes Cordeiro156 também adota a mesma posição ao incluir entre as coisas incorpóreas os direitos provenientes de posições contratuais, como os contratos de trabalho, contratos de prestação de serviço, contratos com fornecedores, contratos de agência, contratos de distribuição, etc. Na esteira da lição de Mario Casanova157, tais contratos de trabalho e de serviço não estão albergados nas categorias de bens corpóreos e incorpóreos, os quais podem ser remetidos à categoria das relações jurídicas obrigacionais (artigo 48, II c/c artigo 91). De qualquer forma, os contratos de trabalho e de serviço indubitavelmente são elementos componentes do estabelecimento empresarial. 154 CARVALHOSA, op. cit., pp.617-618, nota 146. BARRETO FILHO, op. cit., p. 159, nota 144. 156 CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001, p. 240. 157 CASANOVA, Mario. Verbete Azienda. In Digesto delle Discipline Privatistiche. 4ª ed. Vol. 1, Torino: UTET, 1998. 155 96 i) direitos e créditos: há controvérsia a propósito da inclusão dos créditos e direitos como elementos do estabelecimento empresarial. Em sentido desfavorável à sua inclusão, argumenta-se que os direitos pertencem apenas ao titular do estabelecimento empresarial, isto é, o empresário, que é sujeito de direito capaz de ser titular de direitos e obrigações. O estabelecimento empresarial, como objeto de direito, não possui personalidade jurídica e, por conseguinte, não poderá ser titular de direitos. Não obstante, há direitos que ficam aderidos ao estabelecimento empresarial por força de lei, quando se puder inferir do sistema jurídico ou por convenção das partes (ex. cessão de crédito – artigos 286 a 298 do CC). Já se disse alhures que o artigo 1.148 versa sobre a cessão da posição contratual (direitos) do alienante, titular do estabelecimento, em favor do adquirente, nos negócios jurídicos necessários à sua exploração (artigo 1.142), de tal sorte que os direitos e créditos poderão constituir elementos imprescindíveis. É o caso da sociedade empresária que explora a atividade de fomento mercantil, conhecida como factoring. Explica Fábio Ulhoa Coelho158 que, no contrato de fomento mercantil, um empresário (faturizador) presta a outro (faturizado) serviços de administração do crédito concedido e garante o pagamento das faturas emitidas (maturity factoring); é comum, também, o contrato abranger a antecipação do crédito, numa operação de financiamento (conventional factoring). Destarte, quando da circulação do estabelecimento empresarial (artigo 1.143), opera-se a transferência de tais direitos e créditos. Impõe-se, portanto, reconhecer que estes também são elementos do estabelecimento empresarial. j) débitos e obrigações: de igual modo, débitos (dívidas) e obrigações são refutados como elementos do estabelecimento a partir da argumentação supra 158 COELHO, op. cit., pp. 134-135, nota 148. 97 transcrita. Quanto aos débitos tributários, o artigo 133 do CTN estabelece que a pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma razão ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato: I - integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade; II subsidiariamente, com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de 06 (seis) meses, a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão. Se o credor for o fisco, aplicar-se-á a regra do artigo 133 CTN que permanece vigente. No direito do trabalho a responsabilidade por sucessão é interpretada de forma ampla para se assegurar a solvência do crédito do empregado. A compra do estabelecimento empresarial e a manutenção das atividades e do contrato de trabalho anterior são condições suficientes, porém não imprescindíveis, para responsabilizar o adquirente. Como já foi dito alhures, o artigo 1.146 do CC versa sobre assunção da dívida (cumulativa e liberatória), cuja regra aplica-se a todos os demais credores. Apesar das dívidas indubitavelmente serem transmitidas por ocasião da cessão do estabelecimento empresarial (artigo 1.143), estas não se prestam ao exercício da atividade empresarial (artigo 1.142). Parece que a sua inclusão quando da transferência do estabelecimento se deve à política legislativa que visa dar efetividade às normas dos artigos 677159 e 678160 do CPC, que tutelam os interesses 159 Art. 677 - Quando a penhora recair em estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, bem como em semoventes, plantações ou edifício em construção, o juiz nomeará um depositário, determinando-lhe que apresente em 10 (dez) dias a forma de administração. § 1º - Ouvidas as partes, o juiz decidirá. § 2º - É lícito, porém, às partes ajustarem a forma de administração, escolhendo o depositário; caso em que o juiz homologará por despacho a indicação. 98 e credores. Segundo os referidos preceitos, o estabelecimento pode ser objeto de apreensão judicial, sujeitando-se à penhora. Contudo, ao contrário da medida de expropriação, esta medida impõe a função de guarda e providências de administração que assegurem a incolumidade dos bens penhorados, conservando, destarte a unidade funcional do estabelecimento (artigo 1.143). Esse é o entendimento perfilhado por Celso Neves161, ao afirmar que o intuito do legislador está em que se mantenham as atividades próprias das empresas e outros estabelecimentos. Por tais razões, os débitos não estão inclusos entre os elementos componentes do estabelecimento empresarial, eis que não desempenham papel essencial no funcionamento do estabelecimento (artigo 1.142), apesar de serem transmitidos com este quando da sua circulação (artigo 1.143 c/c artigo 1.146). Em relação aos débitos, fundamental é mencionar que o passivo não integra o estabelecimento do empresário, ou seja, o passivo não compõe o objeto transacionado quando o adquirente efetua o trespasse. A regra do direito brasileiro é a de que o adquirente não se obriga pelas dívidas de seu antecessor, isto é, os credores do alienante não são credores do adquirente. Não há sub-rogação em decorrência do trespasse. Não obstante, a regra geral da não responsabilização não é absoluta, ou seja, independentemente de acordo, o adquirente é sucessor legal do alienante, em relação às obrigações trabalhistas e tributárias. Ensina Rubens Requião162 que os débitos não são bens pertencentes ao empresário, mas gravam 160 Art. 678 - A penhora de empresa, que funcione mediante concessão ou autorização, far-se-á, conforme o valor do crédito, sobre a renda, sobre determinados bens ou sobre todo o patrimônio, nomeando o juiz como depositário, de preferência, um dos seus diretores. Parágrafo único - Quando a penhora recair sobre a renda, ou sobre determinados bens, o depositário apresentará a forma de administração e o esquema de pagamento observando-se, quanto ao mais, o disposto nos arts. 716 a 720; recaindo, porém, sobre todo o patrimônio, prosseguirá a execução os seus ulteriores termos, ouvindo-se, antes da arrematação ou da adjudicação, o poder público, que houver outorgado a concessão. 161 NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 7. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 74. 162 REQUIÃO, op. cit., pp. 287-288, nota 143. 99 ao seu patrimônio, que por eles responde. Desta forma, os débitos do empresário, embora decorrentes da manutenção do estabelecimento empresarial, nele não se integram. Para tanto, é necessário compreender, como acentuou Ascarelli, que o conceito de azienda (complexo de bens) não se identifica com o de patrimônio (complexo de relações jurídicas ativa e passiva), e, sobretudo de patrimônio autônomo. O patrimônio é do empresário e não do estabelecimento. Pode o proprietário do patrimônio, o empresário, dispor dele para integrá-lo no estabelecimento. São bens de que tem a mais completa disposição. Dá o destino que bem entender aos seus bens. Para ele embora as dívidas não integrem o estabelecimento empresarial, a lei visou impedir a venda ou transferência do estabelecimento sem que fossem elas liquidadas. De qualquer modo, deve-se frisar que, à luz da perspectiva do critério funcional, os elementos componentes do estabelecimento empresarial serão aqueles que mantêm a identidade do projeto empresarial e as características qualitativas do processo produtivo. Assim sendo, no sistema jurídico brasileiro, os elementos potencialmente constitutivos de um estabelecimento empresarial supra mencionado podem ser reconduzidos às categorias de bens corpóreos (materiais) e incorpóreos (imateriais) e das relações jurídicas (contratos de trabalho e serviços, créditos). Diante disso, parece que melhor seria entender a locução complexo de bens organizados, prevista no artigo 1.142, como instrumentos de produção. Dessa forma, para formar o seu estabelecimento empresarial, o empresário identificará os bens que são necessários para o desenvolvimento de sua atividade, promovendo a sua reunião com a organização que considerar mais conveniente e funcional. 100 3.5 O AVIAMENTO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL O aviamento é expressão preferida da doutrina italiana, à qual aderiu a brasileira. A tal respeito, ensina Aldo Fiale163 que do fato do estabelecimento empresarial ser caracterizado como um complexo de bens organizados em função de um escopo produtivo infere-se que os bens singulares dele componentes têm um valor determinado e que, ao contrário, se organizados para o exercício do estabelecimento, os mesmos bens têm um valor superior em relação àquele individual. A esse valor a maior ou sobrevalor que tais bens adquirem quando são organizados dá-se o nome de aviamento do estabelecimento. O aviamento, em síntese, é conceituado pela doutrina como a capacidade do estabelecimento de produzir lucros. Essa capacidade de produzir lucros tem origem no conjunto de bens selecionados pelo empresário e na organização a eles oferecida, sendo uma conseqüência do trabalho intelectual do empresário ao organizar os seus bens. A expressão aviamento traduz essa idéia: organização eficiente que resulta na atração de clientela que se reflete na capacidade lucrativa do estabelecimento. A expressão aviamento vem justificar o sobrevalor pago pelo estabelecimento quando este é objeto de algum negócio jurídico. Quando se paga pelo estabelecimento empresarial mais que a soma dos bens que o compõem, pagase pelo seu aviamento. Esse sobrevalor a que corresponde o aviamento, que decorre dos elementos do estabelecimento, pelo fato dos bens que o compõem serem organizados e coordenados para atingir o mesmo fim, existe, então, um fundamento subjetivo – 163 FIALE, Aldo. Diritto Commerciale. Edizione Napoli: Esselibri-Simone, 1994, pp.74-75. 101 aviamento subjetivo - em razão da capacidade e da qualidade do empresário; e um fundamento objetivo – aviamento objetivo - que decorre dos elementos do estabelecimento e do lugar no qual a atividade se desenvolve. Entre as características do aviamento subjetivo, pode-se mencionar a relação com os fornecedores, bancos e demais instituições de crédito, a confiança que têm os clientes num determinado empresário, do conhecimento que este tem nos seus hábitos e nos seus gostos, na sua capacidade, honestidade, jeito, zelo, prudência e certeza nas deliberações. No que concerne ao aviamento objetivo, citem-se as características provenientes da reunião dos elementos do estabelecimento empresarial e da sua organização. A clientela, representada pelo fluxo constante de pessoas dispostas a contratar com o estabelecimento, é resultado do aviamento, este compreendido na sua perspectiva subjetiva e objetiva. Fala-se, assim, de aviamento-clientela. Anota Mario Casanova164 que o aviamento não se exaure na clientela. Com efeito, um estabelecimento é bem aviado quando a gestão pode contar com uma durável e fiel clientela. Mas a clientela é apenas um dos fatores e dos aspectos do aviamento do estabelecimento empresarial. Deve-se ter em conta, para uma avaliação do grau de aviamento, também os outros fatores, entre os quais, as relações com os colaboradores, os fornecedores, e os auxiliares do empresário. Deve-se, portanto, ter presente, ao lado da clientela, que determina o volume dos produtos e serviços, também estes outros fatores que, por sua vez, influenciam sobre o montante dos custos. Por conseguinte, a baixa incidência dos custos e o alto nível dos produtos, proporcionam como resultado o lucro. Ambos interessam para a 164 CASANOVA, Mario. Verbete Azienda. In Digesto delle Discipline Privatistiche. 4ª ed. Vol. 1, Torino: UTET, 1998, p. 79. 102 obtenção dos escopos econômicos que se conseguem graças à organização do estabelecimento. Trata-se, então, de aviamento-organização. A partir desses múltiplos aspectos, define-se, mais precisamente, o aviamento como a atuação objetiva que o estabelecimento se propõe a atingir ao fim que lhe é próprio. O aviamento é imprescindível no estabelecimento empresarial, não existe estabelecimento sem aviamento, por mais rudimentar que seja. Por tal razão, afirma Ângelo de Martini165 que, em conformidade com a intensidade e a colocação das características qualitativas (aviamento subjetivo e objetivo), pode haver um estabelecimento muito ou bem aviado e um estabelecimento pouco ou mal aviado. Assim, tem-se o aviamento positivo (goodwill) e o aviamento negativo (goodwill negativo ou badwill) ou desviamento166. O bom aviamento, cuja função primacial é captar e fixar clientela, passa a constituir uma mais valia, a ser considerada quando da alienação do estabelecimento. Discute-se em doutrina se o aviamento é apenas uma qualidade ou se constitui, por si, um elemento do estabelecimento comercial, um bem imaterial da natureza dos demais elementos incorpóreos integrantes do estabelecimento. Cumpre destacar algumas concepções a respeito da natureza do aviamento. A primeira é aquela que reconhece o aviamento como um bem imaterial. Segundo essa teoria, a organização dos bens do estabelecimento constitui um típico e essencial bem imaterial do estabelecimento, porquanto, em certo sentido, é uma criação e invenção do empresário. O aviamento é identificado como o resultado 165 MARTINI, Ângelo de. Corso di Diritto Commerciale. Volume primo. Milano: Giuffrè, 1983, p.198199. 166 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol.1. São Paulo: Malheiros. 2004, p. 255: E tal valor pode ser negativo, denominado badwill ou goodwill negativo, na hipótese de deságio e/ou relacionado à expectativa de prejuízos futuros, ao qual acima se chamou desviamento. 103 organizativo do estabelecimento. Logo, este também deve ser reconhecido como bem imaterial. A segunda concepção, capitaneada por Francesco Carrara167, identifica os conceitos de aviamento e estabelecimento, afirmando que [...] existe um só elemento essencial do estabelecimento, é a combinação dos fatores da produção; este elemento não é uma universalidade de coisas ou de direitos e não pode classificar-se na categoria de coisas; nem é um modo de ser do estabelecimento: vamos ainda além e afirmamos que o aviamento é o próprio estabelecimento. Essa concepção não sustenta antes as objeções supramencionadas, mormente porque se o aviamento é concebido como uma força ou energia latente, este não se confunde com o estabelecimento no qual se manifesta, “assim como a vida se distingue do ser que anima e a energia não se confunde com a matéria sobre que se aplica”168. Uma terceira concepção defendida por João Eunápio Borges169, sustenta que o aviamento é uma qualidade, um atributo do estabelecimento, não um elemento autônomo que se possa considerar isoladamente como os demais de que se compõe o estabelecimento. Para ele, o aviamento é, em síntese, uma resultante dos elementos organizados que compõem o estabelecimento. Ao mesmo tempo, constitui o aviamento a verdadeira medida do valor de um estabelecimento comercial. Se a finalidade econômica deste é produzir e dar lucros e se o aviamento é precisamente a capacidade de produzir e de dar lucros, a eficiência do estabelecimento é decorrência de seu aviamento. Pelo simples fato de existir, e por mais rudimentar que seja sua organização, todo estabelecimento tem seu aviamento. A diferença será apenas de grau, mas o aviamento é atributo necessário e essencial de qualquer estabelecimento. 167 Apud BARRETO FILHO, op. cit., p.172, nota 144. BARRETO FILHO, op. cit., p.172, nota 144. 169 BORGES, Op. Cit., p. 193, nota 142. 168 104 Essa teoria é suficiente para explicar o aviamento objetivo, mas por outro lado, é incompleta, pois deixa de considerar o aviamento subjetivo. Com efeito, o aviamento não decorre apenas dos fatores de produção e da sua organização, mas também, da capacidade e das qualidades do titular do estabelecimento empresarial. Destarte, a concepção que vê no aviamento um fator resultante dos fatores do estabelecimento e da pessoa do titular é a que parece mais adequada a explicálo. Por fim, cabe anotar que, na transferência do estabelecimento empresarial, são transmitidos apenas os fatores ligados à sua organização e o complexo de bens componentes, isto é, o aviamento objetivo. Por sua vez, o aviamento, isto é, a atitude que tem o estabelecimento, enquanto organização, de produzir lucros futuros, não se realiza senão através da clientela ou freguesia do estabelecimento, que será, a seguir, estudada. 3.6 A CLIENTELA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL Conforme assinalado anteriormente, discute-se em doutrina se a clientela ou o seu direito constitui ou não elemento essencial componente do estabelecimento empresarial. Pode-se dizer que todo o trabalho desempenhado pelo empresário ao aparelhar-se, produzir bens de boa qualidade, oferecer um bom atendimento, entre outras preocupações, tem por objetivo conquistar para si uma clientela, que é de extrema importância para o estabelecimento empresarial. Para a clientela vive o estabelecimento. 105 A clientela compreende os destinatários dos bens e serviços produzidos pelo empresário e o fluxo constante de demanda desses bens e serviços que estão dispostos a contratar com o estabelecimento. Ela não tem deveres em relação à empresa e nem pode ser objeto de direito real. Para o direito em vigor a clientela é insuscetível de apropriação. A clientela traduz uma probabilidade, uma expectativa. Essa probabilidade e expectativa decorrem da exploração da atividade do estabelecimento empresarial. Quanto à sua composição, a clientela pode ser certa e virtual. Será certa quando resultar de relações contratuais com alguma estabilidade ou quando a própria natureza da atividade assegurar que os clientes renovarão as suas encomendas. Haverá uma clientela virtual, correspondente às expectativas ou possibilidades de que novos clientes se dirijam à empresa. Assim, necessário se faz identificar a posição da clientela no estudo da estrutura jurídica do estabelecimento empresarial. Alguns autores consideram a clientela elemento integrante do estabelecimento empresarial. Jozé Cândido Sampaio de Lacerda170 doutrina que a freguesia ou clientela constitui o elemento essencial, a alma do estabelecimento empresarial. De fato, a presença de clientela é fundamental para o estabelecimento empresarial, mas não se chega à conclusão de que a clientela é bem incorpóreo que compõe juntamente com os demais, corpóreos e incorpóreos, o estabelecimento empresarial. Possuir autonomia, ou seja, constituir uma entidade econômica independente, possuir valor economicamente apreciável e ser capaz de subordinar- 170 LACERDA, Jozé Cândido Sampaio de. Lições de Direito Comercial Terrestre. p. 112. 106 se juridicamente a um titular são características dos bens jurídicos. O bem imaterial deverá, também, ser reconhecido pela ordem jurídica para caracterizar-se como tal. A impossibilidade de a clientela subordinar-se juridicamente ao titular do estabelecimento empresarial é patente. Não há como dispor da clientela, não há como impedir que esta abandone o estabelecimento. A clientela á apenas resultado de contingências criadas ou não pelo empresário, mas nunca um bem pertencente a ele ou integrante do conjunto de seus bens. Assim, pode-se dizer que a clientela é, apenas, um efeito do dinamismo (aviamento) empresarial. Pelo seu fluxo e refluxo a clientela não oferece o requisito de fixação para se constituir em elemento estável da empresa. A clientela também carece de autonomia. Ela existe somente enquanto os elementos do estabelecimento estiverem a seu serviço. A clientela não sobrevive sem a figura do estabelecimento, pois a situação de pessoas que consomem habitualmente só é possível quando se refere a um determinado estabelecimento. A clientela não recebe uma regulamentação específica do direito que a torne suscetível de ser objeto deste. As normas legais que se referem à clientela são as regras de concorrência desleal. Essas normas não conferem a um determinado sujeito de direito, poderes sobre a clientela. Elas apenas impedem que os concorrentes se utilizem de meios fraudulentos para atrair clientela alheia. Vê-se, dessa forma, que a clientela não se enquadra no conceito de bem jurídico, não integrando o estabelecimento na qualidade de elemento componente. A clientela é apenas um objetivo do estabelecimento empresarial, ou seja, desenvolvese a estrutura do estabelecimento empresarial para que ele seja capaz de atrai-la e fixá-la. 107 Assim, tendo em vista que, a clientela não é uma coisa suscetível de apropriação, e, portanto, não pode ser objeto de direito, é possível razoavelmente afirmar que, na transferência do estabelecimento empresarial, o que sucede é apenas a possibilidade atribuída ao adquirente de aceder a uma posição similar àquela que o alienante anteriormente ocupava. No que concerne ao regime jurídico, o direito à clientela estaria assentado no: (I) regime da concorrência desleal, cuja tônica preponderante é a proteção da integridade da clientela, como elemento da empresa; (II) nos contratos de alienação e cessão de exploração do estabelecimento que, através da cláusula implícita de não-concorrência, é vedado ao alienante ou locador a captação da clientela do estabelecimento (artigo 1147 do CC) e; (III) no contrato de agência, ao conferir ao agente o direito a uma indenização de clientela, de caráter compensatório, se e na medida em que tenha angariado para a outra parte. Com efeito, em um sistema capitalista, baseado no princípio da livre iniciativa, predomina a existência de uma pluralidade de sujeitos econômicos diferenciados que atuam num mercado com uma pluralidade de consumidores com vistas à obtenção do lucro. A idéia de concorrência, portanto, é subjacente à de livre iniciativa. Consoante Carlos Olavo171, a concorrência caracteriza-se pela possibilidade de flutuação de escolha por parte dos consumidores e representa a competição entre os vários agentes econômicos com vistas a atingirem a supremacia no mercado em relação aos demais. Daí se infere a possibilidade de que a prevalência de um empresário possa corresponder ao sacrifício do outro. Por conseguinte, aceita-se que um empresário que atue honestamente possa criar e expandir sua clientela às custas de clientela alheia. Destarte, não se 171 OLAVO, Carlos. Propriedade industrial. Coimbra: Almedina, 1997, pp. 5-23. 108 pode falar em um direito sobre a clientela (em potencial). Também não se pode sustentar um direito de clientela (real), sob pena de submeter o consumidor a um regime de contratação obrigatória, retirando-lhe a liberdade de escolha (artigo 6º, inciso II, e artigo 39, inciso I, da Lei nº 8.078/90). As regras de concorrência, tanto a liberdade quanto a lealdade são direcionadas à tutela institucional do mercado. Os concorrentes, através da proibição de concorrência desleal que coíbe os comportamentos reprováveis (dever genérico de lealdade), têm os seus interesses tutelados de forma secundária. O interesse primário é o interesse da coletividade sobre a concorrência em si, isto é, na sua perspectiva como instituição. Quanto ao direito à clientela, decorrente da cláusula implícita de não concorrência nos contratos de alienação e cessão de exploração do estabelecimento, este constitui o núcleo do presente trabalho, de modo que se tratará especificamente dessa questão ao examinar a qualificação jurídica do contrato de trespasse. 3.7 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL O desenvolvimento da Internet, que é um sistema global de rede de computadores, possibilitou a comunicação e a transferência de arquivos de uma máquina a qualquer outra máquina conectada na rede. Com isso, tornou-se possível um intercâmbio de informações sem precedentes na história, de maneira rápida, eficiente e sem limitações de fronteiras, culminando na criação de mecanismos de relacionamento, conforme lição de Gustavo Testa Corrêa172. 172 CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.8. Explica o autor que a internet não é a World Wide Web, também chamada de WWW, pois, justamente 109 Anota ainda o autor que: a utilização da Grande Rede cresce assustadoramente, constituindo um verdadeiro fenômeno mundial, representando um mercado superior à marca de 50 bilhões de dólares até 2005. Isso se deve ao grande número de pessoas proprietárias de microcomputadores pessoais, conectando-se aos serviços públicos da Rede, por meio da inscrição junto aos provedores de acesso, e estes, as várias empresas responsáveis pela distribuição do sinal da internet. O sucesso da Internet acabou por também atrair organizações empresariais que passaram a exercer a sua atividade no ambiente virtual, mediante a oferta de produtos e serviços aos clientes conectados à rede de computadores. É possível, então, falar em um novo ambiente de negócios, o mercado virtual, nas palavras de Modesto Carvalhosa173. Assim, além do ponto comercial “físico”, sobre o qual se tratará especificamente mais adiante, o empresário passou a ofertar seus produtos e serviços num site, identificado na Internet pelo usuário por meio de um endereço eletrônico, também chamado de nome de domínio. A doutrina brasileira, entre outros, Fábio Ulhoa Coelho174, Modesto Carvalhosa175, Maria Tereza Lynch de Moraes176, sustenta que este site, onde o empresário exerce a sua atividade no ambiente da Internet, é um estabelecimento virtual. Assim como ocorre no estabelecimento empresarial físico, no que concerne ao ponto empresarial, o titular do estabelecimento virtual não precisa ser o titular (proprietário) do nome de domínio, pois este poderá licenciá-lo àquele.Todavia, a propósito de estender a tutela de renovação compulsória do contrato de locação devido a sua extensão e amplitude, aquela significa o meio pelo qual o correio eletrônico, os servidores FTP, a WWW, o Usenet e outros serviços trafega. 173 CARVALHOSA, op.cit., p. 624, nota 146. 174 COELHO, op. cit., p. 98, nota 148. 175 CARVALHOSA, op.cit., p. 625, nota 146. 176 MORAES, Maria Tereza Lynch de. O Trespasse: A alienação do Estabelecimento Empresarial e a Cláusula de Não Restabelecimento. In Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 90, n. 792, pp. 116-128, out. 2001. 110 empresarial ao contrato de licença de nome de domínio, Maria Tereza Lynch de Moraes177 assevera que: [...] não impera quando o estabelecimento é virtual, posto que, nessas novas casas de comércio, não ocorre a formação do ponto comercial ‘físico’, já que, na maioria das vezes, o consumidor nem sequer sabe onde se localiza geograficamente o estabelecimento nem precisa ter esta ciência, porque as transações comerciais eletrônicas dispensam o deslocamento dos consumidores até o imóvel onde está situado o estabelecimento. Desse modo, em se tratando de empresa virtual, não é necessário se preocupar com a renovação do contrato de locação do imóvel onde se instala a empresa virtual para garantir a efetividade econômica do trespasse. 3.8 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL RURAL A empresa rural compreende todas as atividades que têm, na terra, o fator principal de sua realização. Nesse gênero encontram-se a agricultura, a pecuária, a silvicultura, o extrativismo, a caça. As atividades conexas, tais como as de beneficiamento dos produtos rurais, promovidas localmente, a fim de adequá-los à comercialização, também se integrariam nesse mesmo contexto. As atividades rurais no Brasil são exploradas em dois tipos radicalmente diferentes de organizações econômicas. Tomando-se a produção de alimentos, por exemplo, encontra-se na economia brasileira, de um lado, a agroindústria ou agronegócio e, de outro, a agricultura familiar. Naquela, emprega-se tecnologia avançada e mão de obra assalariada (permanente e temporária), há especialização de culturas em grandes áreas de cultivo; na familiar, trabalham o dono da terra e seus parentes, um ou outro empregado, e são relativamente mais diversificadas as culturas e menores as áreas de cultivo. Convém registrar que, ao contrário de outros países, principalmente na Europa, em que a pequena propriedade rural sempre teve e continua tendo importância econômica no encaminhamento da questão agrícola, 177 Ibid., pp. 116-128. 111 no Brasil, a produção de alimentos é altamente industrializada e concentra-se em grandes empresas rurais. Sabe-se que a atividade rural, tradicionalmente, não estava submetida ao pálio do Direito Comercial por não ser considerada mercancia, nos termos do art. 4º do Código Comercial e arts. 19 e 20 do Decreto nº 737/1850. Apenas as sociedades anônimas que exploravam atividades rurais possuíam natureza mercantil em razão da forma societária adotada (cf. art. 2º, § 1º da Lei nº 6.404/76). O Código Civil, nos artigos 971 e 984, permitiu que o empresário rural e a sociedade empresária rural pudessem optar entre o regime estabelecido para os empresários sujeitos a registro e à submissão ao regime não empresarial. A possibilidade de opção justificou-se diante da diversidade de organização entre os pequenos produtores e a grande empresa rural. Em vista dessas características da agricultura brasileira, o Código Civil de 2002 reservou para o exercente de atividade rural um tratamento específico nos artigos 971 e 984. Esse tratamento diferenciado, assegurado pelo Código Civil, confere ao empresário rural a opção de requerer a inscrição no Registro de Empresas, e, uma vez inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro. Ora, se uma vez inscrito no Registro de Empresas, ficará equiparado ao empresário sujeito a registro, enquanto não inscrito desfrutará das condições próprias do não-empresário. Por conseguinte, segundo a dicção do art. 1142 do Código Civil, o estabelecimento é um complexo de bens utilizado para o exercício da empresa e, como tal, prende-se necessariamente à figura do empresário. Somente é possível aplicar as disposições referentes ao estabelecimento à pessoa física ou jurídica que exerça a opção do registro na Junta Comercial, pois é com essa 112 providência que ocorrerá a equiparação, para todos os fins legais, ao empresário regular. No entanto, em relação ao empresário rural, é necessário verificar a existência ou não de inscrição no Registro de Empresas, porque somente o empresário rural registrado estará sujeito à Lei de Falências e Recuperação de Empresas (cf. art. 1º da Lei nº 11101/05). Não devem ser aplicadas ao empresário individual e à sociedade as sanções pela falta de inscrição de firma, ou a não aquisição da personalidade jurídica pelo arquivamento do contrato no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Somente com o registro na Junta Comercial é que a pessoa natural ou a sociedade serão reputadas empresárias para fins de direito. Por conseguinte, é vedada a decretação da falência do empresário ou da sociedade, antes do arquivamento da firma ou do contrato na Junta Comercial. A sociedade com atividade rural, se não for empresária – vale dizer, se não contar com uma organização – será necessariamente uma sociedade simples. Dotada de organização, poderá optar, livremente, entre a condição de sociedade simples e a condição de sociedade empresária. A sociedade rural desfruta, pois, de uma situação singular. Mesmo sendo uma empresa, cabe-lhe escolher o seu status jurídico, de sociedade simples ou empresária, para tanto bastando optar, respectivamente, pelo Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou pelo Registro Público de Empresas Mercantis. Pode-se, então, assentar que o empresário individual rural não se encontra sujeito a registro, mas poderá promovê-lo, passando a ser tratado formalmente como empresário, e que a sociedade empresária rural, independentemente de seu porte ou patrimônio, poderá optar entre inscrever-se no Registro Civil das Pessoas 113 Jurídicas, assumindo a condição de uma sociedade simples, ou no Registro Público de Empresas Mercantis, assumindo a condição formal de sociedade empresária. 114 4 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL – O TRESPASSE A livre concorrência no campo das atividades econômicas é manifestação da liberdade de iniciativa, constituindo um fenômeno natural, legítimo e indispensável ao progresso e bem estar da sociedade. Situação diversa, contudo é a concorrência desleal, que pelo seu caráter ilícito, deve ser e é reprimida, pois ao direito constitucional de explorar atividade econômica, expresso no princípio da livre iniciativa, corresponde o dever, imposto a todos, de respeitá-lo. No caso da alienação do estabelecimento empresarial a observância aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência manifesta-se, através de uma limitação, que consiste no impedimento do restabelecimento da parte alienante. Tem-se, portanto, que a continuidade do exercício da atividade econômica do comerciante-alienante fica adstrita a determinadas condições que têm o intuito de evitar que essa prática mercantil assuma as características de concorrência desleal. Assim, a doutrina e a jurisprudência admitem a estipulação de convenções impedientes ou restritivas de liberdade econômica, visando preservar a clientela. 4.1 O CONTRATO DE ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E A SUA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA O estabelecimento empresarial pode ser objeto unitário de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, inter vivos ou mortis causa, em consonância 115 com a sua natureza jurídica que, como visto, é de uma universalidade de fato. O art. 1.143 do CC dá suporte legal à sua transmissão. Trata-se, nas palavras de E. Santos Júnior178, do aspecto dinâmico do estabelecimento empresarial a que o Direito garante a sua circulação, justamente, para impedir que ele desagregue quando o seu titular deixe, queira ou tenha de deixar de estar à sua frente. Na doutrina brasileira, Oscar Barreto Filho179 elenca esses negócios nas seguintes categorias: (I) negócios jurídicos de alienação, inter vivos, a título oneroso (cessão ou trespasse, permuta, conferência de sociedade, dação em pagamento) ou a título gratuito (doação); (II) negócios de alienação mortis causa (sucessão legítima ou testamentária); (III) negócios de gestão para fim de desfrute (arrendamento, usufruto, comodato, constituição de dote) ou de garantia (penhor). Para a presente investigação, interessa a primeira categoria, mais especificamente o negócio jurídico de trespasse do estabelecimento empresarial. Etimologicamente trespasse significa, entre outra, transmissão, transferência e alienação. Essa expressão é tradicionalmente empregada pela doutrina portuguesa para designar a transferência do estabelecimento empresarial a título oneroso, consoante lição de Barbosa Magalhães180, António Menezes Cordeiro181, Fernando de Gravato Morais182 e Miguel J. A. Pupo Correia183. Este último afirma categoricamente que ficam excluídos do âmbito do conceito os casos de transmissão mortis causa. 178 SANTOS JÚNIOR, E. Sobre o Trespasse e a Cessão de Exploração do Estabelecimento Comercial. In ASCENÇÃO, José de Oliveira (Org.). As operações comerciais. Coimbra: Almedina, 1988, p.407. 179 BARRETO FILHO, op. cit., p. 206, nota 144. 180 MAGALHÃES, Barbosa de. Do Estabelecimento Comercial. Lisboa: Ática, 1951, p. 211. 181 CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001, p. 248. 182 MORAIS, Fernando de Gravato. Alienação e oneração de estabelecimento comercial. Coimbra: Almedina, 2005, pp. 79-80. 183 CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial. 8ª ed. Lisboa: Ediforum, 2003, p. 322. 116 No Direito português, há várias disposições legais que empregam a expressão trespasse, sendo certo que o § 4º do art. 33 do Decreto, de 12/11/1910, dispôs que os prédios, em que estivessem instalados os estabelecimentos comerciais ou industriais, só podiam ser sublocados sem autorização do senhorio em caso de trespasse do mesmo negócio. Já o Alvará, de 16 de Dezembro de 1757, empregara o termo sinônimo traspasso para designar situação similar àquela. Os contornos do trespasse, nos moldes acima, foram inicialmente acolhidos pela doutrina brasileira conforme se infere da lição de Waldemar Ferreira184: Trespasso é o ato de trespassar, passar além, passar a outrem, dar, ceder, alheiar, a título oneroso ou gratuito. Também se diz traspasso. As duas figuras são correntes na vida mercantil. Quando se diz que certo comerciante trespassou seu estabelecimento, o que se afirma é que este foi transferido. Todavia, Oscar Barreto Filho185 dispensou tratamento mais restrito ao negócio jurídico de trespasse, excluindo a transmissão do estabelecimento a título gratuito, sob o argumento de que o trespasse refere-se especificamente à transferência do estabelecimento que se opera por efeito de venda ou cessão. Sustenta que é preferível empregar o termo cessão, visto que a venda se refere à transferência do domínio das coisas corpóreas (artigo 1.222 do CC/1916). Assim, por empregar o termo mais restrito de cessão, aplica-se, então, às demais modalidades de negócios jurídicos a título oneroso (artigos 996 e 1.146 do CC/1916; artigo 4º e seguintes do Decreto-lei nº 2.627/1940). Deve-se falar de trespasse do estabelecimento somente quando o negócio se refere ao complexo unitário de bens instrumentais que servem à atividade empresarial, necessariamente caracterizado pela existência do aviamento objetivo. O princípio geral que inspira toda a disciplina jurídica do trespasse, como vem 184 FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial. 2° vol., tomo1. São Paulo: Saraiva, 1952, p. 207. 185 BARRETO FILHO, op. cit., p. 208, nota 144. 117 expressa nas várias legislações, é sempre o de resguardar a integridade do aviamento, por ocasião da mudança de titularidade da casa comercial. A doutrina mais recente como Waldírio Bulgarelli186, Modesto Carvalhosa187, Marcelo M. Bertoldi188 e Maria Tereza Lynch de Moraes189, inclina-se na adoção da concepção do trespasse como ato negocial de venda do estabelecimento empresarial. A nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101, de 09/02/2005) empregou a expressão trespasse no inciso VII, do artigo 50, como uma das modalidades de recuperação para designar a venda do estabelecimento empresarial, portanto, negócio jurídico oneroso. No trespasse, o alienante ou vendedor do estabelecimento é denominado de trespassante, enquanto o adquirente ou comprador chama-se trespassário. O contrato de trespasse tem por objetivo a transmissão do estabelecimento empresarial, que dada a sua natureza de universalidade, os elementos componentes (fatores de produção) podem compreender bens corpóreos (materiais) e incorpóreos (imateriais), relações jurídicas (contratos de trabalho e de serviços, etc.) e créditos. Afigura-se imperioso que no trespasse o estabelecimento seja alienado como um todo unitário, albergando os elementos que compõem a sua universalidade. Todavia, é possível que algum ou alguns desses elementos sejam especificamente subtraídos, com o consentimento do adquirente, de maneira que, ainda assim, restará caracterizado o negócio de trespasse, desde que mantida a 186 BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas; empresas e estabelecimento comercial: estudo das sociedades comerciais e seus tipos, conceitos modernos de empresa e estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagem às sociedades civis e cooperativas. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 336. 187 CARVALHOSA, OP. CIT., p. 636, nota 146. 188 BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 115. 189 MORAES, op. cit., p. 119, nota 176. 118 estabilidade da organização do estabelecimento e se mantenha apto ao exercício da atividade empresarial. No tocante à classificação do contrato de trespasse, Modesto Carvalhosa190 sustenta tratar-se de um negócio oneroso, sinalagmático, comutativo e documentado (escrito). Dada à peculiaridade de estar-se transferindo uma universalidade, que é o seu objeto, o contrato de trespasse é uno, de maneira que possibilita a inclusão, em um único instrumento, de todas as cláusulas e condições necessárias para a transferência dos bens e direitos considerados na sua individualidade. Nada obsta, porém, que o trespasse do estabelecimento empresarial opere-se mediante a celebração de vários contratos representativos de cada bem e direito componente, desde que visem ao mesmo fim191. O contrato de trespasse deve ser classificado como um contrato misto pelo fato de resultar da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos distintos. Além disso, pode ser incluído na categoria dos contratos mistos de modalidade múltipla, visto que uma das partes obriga-se a várias prestações principais, próprias de outras tantas categorias de contratos, e a outra parte promete uma remuneração global. Assim, em havendo duas prestações para uma das partes, é preciso saber se entre elas há relação de dependência para a resolução do contrato. A resolução por descumprimento da principal implica a da obrigação definida como acessória. Por outro lado, a inexecução da obrigação acessória poderá levar à resolução da principal, se a sua falta impossibilitar ou tornar extraordinariamente difícil a principal, ou se determinar a perda do interesse do credor em recebê-la. 190 191 CARVALHOSA, op.cit., p. 636, nota 146. BARRETO FILHO, op. cit., p. 211, nota 144. 119 Nesse particular, o perfil finalístico do contrato de trespasse assume especial relevância para determinação da utilidade da prestação que restou inadimplida pelo alienante. De acordo com a finalidade econômica do contrato de trespasse, o interesse do alienante está no recebimento do preço ajustado. Por seu turno, o interesse do adquirente reside na aquisição do complexo organizado dos fatores de produção, ou seja, os mesmos bens e direitos idôneos e coordenados com vistas ao desenvolvimento da atividade empresarial, que, em sua unidade, confere ao estabelecimento empresarial um sobrevalor (aviamento), do qual decorre também a capacidade de atração da clientela. Para salvaguardar essa legítima expectativa do adquirente (artigo 422 do CC) e o resultado econômico (aviamento objetivo) normalmente desejado com a celebração do contrato de trespasse (artigo 421 do CC), mister se faz a proibição de concorrência do alienante, com vistas a assegurar a capacidade lucrativa do estabelecimento (aviamento subjetivo). 4.2 OS DEVERES PRINCIPAIS E SECUNDÁRIOS NAS FASES NO CONTRATO DE TRESPASSE No contrato de alienação do estabelecimento empresarial, o alienante e o adquirente assumem deveres principais e secundários que decorrem do processo negocial segundo a boa-fé objetiva (artigos 187 e 422 do CC). Na lição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva192, os deveres secundários ou anexos ou laterais comportam tratamento que abranja toda a relação jurídica, de modo que se inferem previamente, durante o curso ou o desenvolvimento da relação 192 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushastky, 1976, p.113. 120 jurídica negocial e, em certas hipóteses, também posteriormente ao adimplemento da prestação principal do contrato. Tais deveres traduzem preponderantemente em um “fazer” ou “não fazer”, como as declarações de ciência, atos de indicação e comunicações, e também às vezes um “dar”. Os deveres anexos ou secundários nascem em momentos distintos no processo negocial, na celebração e a prestação principal efetiva, com a sua extinção. Como bem salienta Regis Fichtner Pereira193, na fase pré-contratual, tais deveres que incidem ao lado do dever jurídico principal não terão caráter acessório a este, já que esse dever principal não existe nessa fase do contrato. Portanto, acabam por assumir o papel principal não na regulação da conduta dos contratantes, haja vista, que serão os próprios que definirão as exigências de comportamento de cada um em relação ao contrato. Antes da celebração do contrato, a boa-fé objetiva é revelada nos seguintes deveres: (I) dever de informação; (II) dever de lealdade ou correção; (III) deveres de proteção e cuidado; (IV) deveres de segredo ou sigilo. A informação é necessária para que as partes interessadas em contratar possam efetivar o negócio em vista. Daí, as partes têm o dever de prestar as informações que sejam juridicamente exigíveis em conformidade com cada tipo contratual e as circunstâncias do caso que possibilitará aferir a extensão das legítimas expectativas geradas para elas. No tocante ao dever de lealdade e correição, diz respeito ao efetivo interesse no objetivo do contrato e que tenham condições legais e econômicas para suportar os termos do negócio pretendido. 193 PEREIRA, Regis Fichtner. A responsabilidade Civil Pré-Contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 88. 121 Já o dever de proteção e cuidado impõe para as partes, durante as negociações preparatórias, que as mesmas tomem determinadas medidas de segurança para evitar danos ao outro ou ao seu patrimônio. Por fim, para a deliberação da contratação ou não e a fixação do seu conteúdo importa que as partes transmitam informações que estarão resguardadas pelo dever de sigilo ou segredo, de modo que não poderão ser usadas para finalidades outras. Assim, na fase preliminar da celebração do contrato de trespasse, a exibição ao adquirente, pelo alienante, dos livros contábeis do estabelecimento implica ao adquirente, nessa fase interessado, o dever de sigilo, pois os livros não são acessíveis ao público em geral e sua não-divulgação é justificada pelo interesse legítimo e econômico do empresário. Outrossim, o dever de sigilo alcança também o sigilo técnico (patentes) e o sigilo comercial (lista dos nomes dos clientes). Na execução do contrato, a lealdade de comportamento acarreta deveres acessórios à obrigação principal e, na fase pós-contratual, ensina Mauricio Jorge Mota194 que, com o término do contrato, surgem deveres post pactum finitum, como de guarda de documentos, fornecimento de material de reposição ou informações sobre os negócios firmados. Realizada a prestação principal, os deveres anexos impostos pela boa-fé objetiva serão aqueles que visam realizar o próprio fim do contrato. Na fase pós-contratual, Enéas Costa Garcia195 cita os seguintes deveres anexos: (I) informação; (II) sigilo; (III) proteção; (IV) cooperação. O dever anexo de 194 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A pós-eficácia das obrigações. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.) Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: renovar, 2000, p.196. 195 GARCIA, Enéas Costa. Responsabilidade pré e pós contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 231-241. 122 informação, após o adimplemento da prestação principal, pode implicar à parte a necessidade de acompanhar e instruir a contraparte a respeito do uso correto dos bens envolvidos no contrato, até, de certo modo, fornecer algum tipo de treinamento. Quanto ao sigilo, este alberga não apenas a esfera íntima da vida privada da parte, mas também todos os fatos desta que são conhecidos por força da relação contratual, inclusive aqueles de cunho preponderantemente patrimonial, como os segredos industriais e comerciais e as invenções. A proteção, como dever anexo, consiste no cuidado que a parte deve ter com relação à pessoa da contraparte e os seus bens. Por fim, o dever anexo de cooperação impõe à parte um comportamento com vistas a atingir o bom resultado da relação contratual. 4.3 A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE TRESPASSE A proibição de concorrência que exsurge do contrato de alienação do estabelecimento empresarial é empregada em sistemas jurídicos de inúmeros países. Com efeito, a sua incidência em cada sistema jurídico apresenta características particulares, especialmente quanto ao seu fundamento legal e aos seus elementos. No Brasil, a proibição de concorrência no contrato de trespasse foi tema de um intenso debate da doutrina e da jurisprudência, porquanto inexistia, até o advento do Código Civil de 2002, qualquer disciplina legal regulando o contrato de alienação do estabelecimento e seus efeitos. 123 Assim, na prática contratual, discutia-se a possibilidade de imposição da proibição implícita de concorrência ao alienante do estabelecimento, se as partes não a convencionassem expressamente. 4.3.1 Evolução da Doutrina e da Jurisprudência A corrente doutrinária liderada por José Xavier Carvalho de Mendonça196 defende a posição de que entre as garantias devidas ao adquirente pelo alienante no trespasse, está a de fazer boa a coisa vendida, o que importa não o perturbar em sua posse e, por conseguinte, a clientela que lhe foi transmitida com o estabelecimento. Essa garantia estava assegurada pelo artigo 214 do Código Comercial que estabelece que o vendedor é obrigado a fazer boa a coisa vendida, ainda que, no contrato, estipule-se que não fica o vendedor sujeito à responsabilidade alguma; salvo se o comprador, conhecendo o perigo ao tempo da compra, declarar expressamente no instrumento do contrato que toma sobre si o risco. Por isso, dispensa-se a convenção formal da cláusula de não concorrência, haja vista ser uma obrigação implícita e acessória ao contrato de trespasse. Acrescenta, ainda, que a norma do artigo 214 do Código Comercial seria cogente, de maneira que as partes não poderiam dispor de forma diversa. Em sentido oposto, está a corrente liderada por Rui Barbosa que pode ser sintetizada nas seguintes proposições formuladas por Francisco Morato197. 196 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito Comercial Brasileiro. Vol.v, livro III, parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, pp. 157-159. 197 BARBOSA, Rui. As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. In Obras Completas. Prefácio de Francisco Morato. Vol. XL, Rio de Janeiro: [s.n.], 1948, pp. XXIX-XXXII. 124 Em primeiro lugar, na transferência do estabelecimento comercial ou industrial, não se deve presumir a renúncia ao direito do alienante de se restabelecer, através de novo estabelecimento igual ou similar; esta deve ser expressa ou resultar peremptoriamente dos termos do contrato. Caso contrário, estar-se-ia violando o princípio supremo da livre concorrência. A segunda proposição esclarece a posição doutrinária majoritária, à época, que era oposta à lição de Aubry e Rau198 de que na alienação de um estabelecimento se entende implícita a cessão da clientela, e, por conseguinte, proibido estaria o vendedor de abrir na vizinhança do estabelecimento transferido outro da mesma natureza em prazo próximo à data da venda. A terceira proposição está assentada na idéia de que a clientela não constitui elemento do fundo de comércio, sem embargo de consistir num valor à parte e poderem as partes ajustar expressamente convenção independente sobre ela. A quarta proposição diz respeito à ressalva feita na doutrina de Aubry e Rau no sentido de que a vedação de restabelecimento do vendedor limita-se à hipótese de alienação de fundos de comércio e não se estende aos estabelecimentos industriais, usinas ou fábricas, por serem coisas que se distinguem no conceito e efeitos. A quinta proposição refere-se a ser nula a proibição de concorrência, ainda que expressa, caso seja irrestrita ao tempo ou ao lugar. No sistema anglo-saxão, as convenções de não concorrência absolutas e irrestritas são nulas se não limitadas ao tempo e ao espaço, bem como não podem ser desarrazoadas. No sistema continental, tais convenções que afetam a liberdade 198 Apud Ibid., pp. XXIX-XXXII. 125 comercial ou industrial devem ser limitadas no tempo, no objeto e no espaço, sob pena de nulidade. Estas são, respectivamente, a sexta e a sétima proposição. Em 1913, sucedeu o primeiro caso sobre a proibição de concorrência do alienante por força do contrato de trespasse submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Trata-se da ação proposta pela Companhia Nacional de Tecidos Juta contra o conde Antônio Álvares Penteado e a Companhia Paulista de Aniagens, os quais eram patrocinados, respectivamente, por José Xavier Carvalho de Mendonça e Rui Barbosa. A autora aduziu que o conde violou o contrato de trespasse ao realizar a venda de estabelecimento industrial e, logo após, instalar-se no mesmo mercado, desviando assim, a sua clientela. Postulou a responsabilidade do conde por evicção, conforme disposto no artigo 215 do Código Comercial. Na instância ordinária, entendeu-se não serem aplicáveis os artigos 214 e 215 do Código Comercial, pois não se podia presumir a renúncia ao direito de exercer determinado ramo de comércio e indústria, salvo estipulação expressa. A Suprema Corte Federal proveu recurso de apelação interposto pela autora para julgar procedente o pedido, cuja motivação acolheu a tese de José Xavier Carvalho de Mendonça. Rui Barbosa, então, opôs embargos, sustentando a tese diversa, encampando as proposições, acima citadas, que foram desenvolvidas a partir da análise desse caso concreto. Os embargos foram providos, por maioria, para julgar improcedente o pleito da autora, acolhendo notadamente a orientação da limitação tripartite da convenção de não concorrência e da sua expressa previsão no contrato de trespasse199. 199 Veja-se a síntese de: PAES. P. R. Tavares. Da Concorrência do Alienante do Estabelecimento Comercial. São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 59-60. 126 Sem embargo do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, que adotou uma posição liberal sobre a matéria, subsistia na doutrina e jurisprudência forte divergência, a qual passa-se a elucidar. Nesse passo, para Waldemar Ferreira200, que prestigia a posição de Rui Barbosa, não se pode presumir a renúncia do direito ao exercício de determinado ramo de comércio e indústria. Portanto, além de ser restrita no tempo, no espaço e no objeto, a renúncia deve ser expressa, ou pelo menos resultar de maneira inequívoca dos termos do contrato, para que na solução de conflitos não prevaleça contra o princípio da livre concorrência. Para o autor somente a concorrência desleal deve ser evitada, eis que a ilicitude não está no fato do comerciante se restabelecer. Por seu turno, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda201, que prefere a expressão “cláusula de não restabelecimento igual”, entende que a sua inserção no contrato de transferência do estabelecimento é útil, pois com ela se precisa até onde se considera restabelecimento igual a abertura de outra empresa ou a constituição de outro fundo de empresa para a mesma que alienou. Ela não deve ser perpétua, deve ser limitada ao gênero de indústria ou comércio, bem como restrita ao tempo e ao espaço. A infringência da cláusula contratual não tem nada a ver com deslealdade concorrencial, pois naquele caso é vedada negocialmente, o que é mais do que ser desleal. Opina João Eunápio Borges202 que alguém pode ceder a sua clientela, mas essa cessão é reduzida a uma obrigação de não fazer, assumida pelo alienante consistente em não se estabelecer novamente com o mesmo ramo do negócio 200 FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial. 2° vol., tomo1. São Paulo: Saraiva, 1952, p. 226. 201 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p. 378. 202 BORGES, Op. Cit., pp. 195-196, nota 142. 127 vendido, durante certo tempo e espaço. Pode ser expressa ou implícita, desde que se possa inferir de maneira inequívoca das circunstâncias do negócio e da intenção das partes. Já para João da Gama Cerqueira203, a violação da interdição da concorrência, no caso de trespasse do estabelecimento, refere-se à violação de contratos e constitui uma modalidade de concorrência desleal. Ressalta que essa interdição não poderia ser absoluta no tempo e no espaço. Quando não for expressa poderá ser inferida do próprio negócio de trespasse, com arrimo nos artigos 214 e 215 do Código Comercial. Após o célebre leading case, o Supremo Tribunal Federal reviu a posição anteriormente adotada e acabou por encampar a tese de José Xavier Carvalho de Mendonça, baseada no artigo 214 do Código Comercial, mas, por outro lado, acolheu a orientação doutrinária de Pontes de Miranda ao qualificar o ato do alienante do estabelecimento como deslealdade concorrencial, senão vejamos: Ementa: Quem vende um estabelecimento comercial não está, em regra, proibido de instalar ou adquirir outro. Certas circunstâncias porém, que ocorrem na sucessão desses fatos, podem caracterizar concorrência desleal. Relatório: [...] não negou o réu-apelante o fato de que, decorridos poucos meses da venda ao autor-apelado do estabelecimento comercial “chaveiro N. S. do Carmo”, instalou-se na Rua Venceslau Brás, menos de cinqüenta metros distante, como “Chaveiro Real”, explorando, assim, ramo de comércio idêntico ao do autor. Evidentemente não podia o réu ter esse comportamento, que traduz autêntica concorrência desleal. Não importa que no contrato de venda do estabelecimento não constasse cláusula proibitiva a respeito, pois ensinava Carvalho de Mendonça que não há necessidade de estipulação formal expressa pela qual se obrigue a não se restabelecer. É decorrência natural da obrigação assumida pelo vendedor de fazer boa ao comprador a coisa vendida. Código Comercial, art. 214. prevalece o princípio mesmo sendo o contrato de venda omisso sobre este pacto, diz cunha Gonçalves – Da compra e venda n° 138, p. 410. Indubitáveis os prejuízos do autor oriundos desse procedimento ilícito do réu. Manifestou o réu, achar de que, com o assim decidir, interpretou a veneranda Câmara o art. 214 do C. Comercial em desacordo com o art. 141, § 14 da Constituição. [...] Voto. Preliminar. Não vejo infringido o 203 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1 e 2, 2ª ed. Revista e atualizada por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa Neto. São Paulo: RT, 1982, p. 1283-1285. 128 art. 141, § 14 da Constituição. É exato que não se pode privar alguém de exercer a sua profissão. Quem vende um estabelecimento comercial não está proibido de, posteriormente, instalar ou adquirir outro. [...] São as circunstâncias que revelam se houve ou não concorrência desleal. Na hipótese achou o Tribunal, provada essa concorrência. [...] Tratandose de pequena indústria, natural era que a venda fosse feita tendo mais em vista a freguesia que os objetos realmente transferidos. O recorrente poderia exercitar sua profissão, naturalmente. Por que, porém, fazê-lo a 50 metros da casa que pouco antes transferira a outrem? A sentença 204 está correta. Não conheço do recurso . Por seu turno, Oscar Barreto Filho205 crê que o trespasse do estabelecimento comercial autoriza estipulação expressa da cláusula de não concorrência e, se não ajustada, implica virtualmente, a proibição de restabelecer-se com o mesmo gênero de negócio, em circunstâncias de tempo e de lugar que impossibilitem manter a integridade do fundo de comércio. Não se deve distinguir estabelecimentos comerciais e industriais, visto que o desvio de clientela pode verificar-se em ambos. A propósito do limite temporal, que até então carecia de um critério para sua fixação, sugeriu a duração pelo prazo de 05 (cinco) anos, que é o geralmente aceito pela legislação e jurisprudência de outros países e que é também fixado pelo Decreto nº 24.150/34, como o bastante para estabilizar o aviamento do fundo em relação ao seu titular. Por derradeiro, consoante Paulo Roberto Tavares Paes206, o trespasse do estabelecimento comercial acarreta para o vendedor o impedimento de se restabelecer, desde que, seja com o mesmo gênero de negócio, atendidas as circunstâncias de tempo e lugar, porquanto é impossível a proibição absoluta ao restabelecimento do alienante. 204 BRASIL. Superior Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 23.003-SP, relator Ministro Mário Guimarães. Julgamento de 06/08/1953, publicado no DO de 19/01/1954. 205 BARRETO FILHO, op. cit., pp. 252-253, nota 144. 206 Apud CERQUEIRA, op. cit., pp. 34-36, nota 205. 129 4.3.2 A Proibição de Concorrência do Artigo 1.147 do Código Civil A proibição de concorrência está prevista no artigo 1.147 do Código Civil que dispõe que, não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes à transferência. Com efeito, uma nova fase para compreensão da proibição de concorrência na alienação do estabelecimento infere-se com o advento do Código Civil de 2002 que, além de revogar a Parte Primeira do Código Comercial consoante à norma do artigo 2.045, deve realizar como visto alhures, os valores das normas fundamentais constitucionais. A previsão expressa da cláusula de não concorrência no artigo 1.147 pelo legislador ordinário de 2002 consiste em uma restrição legal à liberdade de concorrência entre empresários (artigo 1º, inciso IV e 170, caput e IV, todos da Constituição Federal). Essa limitação legal pressupõe a vontade querida pelas partes por ocasião da celebração do contrato de trespasse. Sem embargo, a primeira parte da norma do artigo 1.147 confere às partes a faculdade de dispor de forma diversa, desde que o façam expressamente. Portanto, trata-se de uma norma que contém uma limitação de natureza dispositiva que será aplicada supletivamente à vontade das partes se não convencionarem de forma diversa, o que não lhe retira a característica de imperativa. Assim, a proibição de concorrência, no artigo 1.147 do Código Civil, constitui uma norma dispositiva imperativa negativa. 130 4.3.3 Os Elementos Limitativos da Proibição de Concorrência do Artigo 1.147 do Código Civil O legislador considerou a proibição de concorrência sob um dúplice aspecto. De um lado, fixando o dever legal de não concorrência ao estabelecer os limites e, por outro, prevendo que as partes poderão ajustar contratualmente a possibilidade de o alienante concorrer ou determinar os limites da cláusula de não concorrência. A proibição de concorrência na alienação do estabelecimento não pode ser irrestrita e, por isso, pressupõe elementos limitativos, são eles: material, temporal e territorial. O elemento material corresponde à atividade desenvolvida no estabelecimento empresarial considerado em seu todo unitário, por isso o alienante fica proibido de fazer concorrência que consista no exercício da mesma ou de similar atividade desenvolvida no estabelecimento alienado, no fornecimento de produtos e/ou serviços idênticos, complementares ou sucedâneos, destinados à satisfação das necessidades de um determinado setor de mercado que poderá ser o empresário ou consumidor. Também encerra a proibição do alienante de concorrer total ou parcialmente se a atividade desenvolvida no estabelecimento empresarial albergar diversos segmentos mercadológicos207. O elemento territorial ou espacial importa ao alienante não concorrer no local de operação do estabelecimento empresarial. Doutrina João Eunápio Borges208 que, nos grandes centros comerciais, uma parcela mínima da clientela é que se prende ao estabelecimento por amor ao proprietário, em geral desconhecido do grande 207 208 CARVALHOSA, op. cit., p. 651, nota 146. BORGES, op. cit., p. 196, nota 142.. 131 público. Assim sendo, parte substancial dos clientes é atraída pelo ponto empresarial, ou seja, a localização do estabelecimento. Insere-se, ainda, no elemento territorial, a proibição de o alienante iniciar uma nova empresa concorrente, isto é, que seja idônea para afetar o aviamento objetivo consubstanciado na capacidade de gerar lucro. Por outro lado, entende-se que o alienante poderá legitimamente prosseguir com a atividade empresarial idêntica ou similar que antes da alienação do estabelecimento já desenvolvia em empresa diversa, desde que dê ciência ao adquirente da sua existência. Para a proibição deverá ser ajustado expressamente com o alienante. Outra questão é saber se a determinação da extensão material e territorial deve ter em conta apenas a efetiva atividade do estabelecimento alienado ou também a sua potencial expansão. Assim, se pouco antes da alienação do estabelecimento pretendia-se lançar uma campanha publicitária de novos produtos em uma localidade, o alienante não poderá produzir ou vender produtos concorrentes na mesma zona alcançada pelo lançamento publicitário, no qual o custo possivelmente o adquirente suportou. O alienante também estará sujeito à proibição de concorrência na hipótese de existência de estudos técnicos de novos produtos com vistas a buscar novos mercados em locais diversos da atividade produtiva do estabelecimento alienado. Quanto ao elemento temporal, a proibição de concorrência do alienante é limitada ao prazo de 05 (cinco) anos subseqüentes à transferência do estabelecimento. Nesse período, o adquirente tende a constituir uma nova relação de confiança entre a empresa e a clientela. 132 Esse prazo pode ser justificado como o período no qual o empresário consolida a universalidade dos elementos que compõem o estabelecimento para atingir a capacidade lucrativa esperada (aviamento objetivo) e presume-se a cessação da periculosidade da atração do alienante (aviamento subjetivo). Durante esse prazo, Mario Casanova209 defende a posição de que a mera suspensão da atividade do empresário não será suficiente, sendo necessária a dissolução do estabelecimento para cessar efetivamente a possibilidade de perigo de concorrência ilícita pelo alienante. Não obstante, Eros Roberto Grau e Paula Forgioni210 fazem a ressalva de que, salvo expressa disposição no contrato de trespasse, isso não obsta que o alienante possa praticar atos preparatórios para o exercício de sua atuação concorrencial, como a construção de uma nova fábrica apta à produção de produtos ou da prestação de serviços iguais ou afins da atividade desenvolvida no estabelecimento alienado. A proibição de concorrência no contrato de trespasse consiste em uma limitação à liberdade de concorrência do alienante. Como visto, a sua validade dependerá a priori dos elementos temporal, territorial e material. Numa perspectiva funcionalizada, a acessoriedade constitui o quarto elemento de validade da proibição de concorrência no contrato de trespasse. Com efeito, tal proibição tem por escopo tutelar as legítimas expectativas do adquirente em conformidade com a função social e econômica do contrato de trespasse e de acordo com as tratativas estabelecidas pelas partes durante a fase de negociação (artigos 421 e 422 do CC). 209 CASANOVA, op. cit., p. 491, nota 157. GRAU. Eros Roberto; FORGIONI, Paula A. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, pp. 297-298. 210 133 Não obstante, na apreciação da validade da proibição de concorrência o objetivo primário deverá ser sempre a preservação do equilíbrio do mercado, sob pena de causar um impacto negativo, como o exercício abusivo de posição dominante por limitar ou impedir o acesso de novos empresários ao mercado (artigos 20, IV e 21, IV, da Lei nº 8.884/94). 4.3.4 O Controle de Legalidade dos Elementos Limitativos da Proibição de Concorrência Através do Postulado da Razoabilidade Em certas circunstâncias, as partes podem ajustar limites mais amplos do que aqueles da norma do artigo 1.147 do CC, como fixação de prazo superior ao período de 05 (cinco) anos, que será possível mediante a aplicação do postulado da razoabilidade. O postulado da razoabilidade é aplicado em vários contextos, como a razoabilidade de sua interpretação, a razoabilidade do fim legal, a razão de uma restrição. Humberto Ávila211 extrai três acepções do postulado da razoabilidade: Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individuais do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas. 211 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 102-111. 134 Assim, no tocante ao elemento temporal, a norma do artigo 1.147 do CC estabelece que a proibição de concorrência do alienante do estabelecimento empresarial é limitada ao prazo de 05 (cindo) anos. Esse prazo encerra uma situação-tipo que atende à generalidade dos negócios jurídicos de alienação do estabelecimento. Em virtude de situações especiais, como os elementos do estabelecimento que são transferidos ou outra circunstância específica do negócio, é razoável que o prazo legal seja ampliado à realização de uma justiça material ou eqüitativa. A prescrição contida em uma regra jurídica geral e abstrata encerra uma previsão decorrente de experiências que já fazem parte do conhecimento. A dinâmica das relações sociais e as mudanças nas instituições acabam por gerar novas experiências, o que permite concluir pela insuficiência da previsibilidade da prescrição contida na norma jurídica geral e abstrata. Destarte, admite-se a superação da regra em razão de circunstâncias ou particularidades especiais desconhecidas do ser humano que justificavam a formulação da prescrição contida na norma ou em decorrência das transformações do mundo. Desse modo, não é razoável a incidência de uma regra geral e abstrata numa situação fática permeada de circunstâncias excepcionais. Interpreta-se a norma geral, por meio da razoabilidade, alcançando-se a justiça do caso concreto, cujo fundamento está no preâmbulo e no artigo 3° da Constituição Federal212. Assim, diante de certas circunstâncias específicas, o limite temporal de 05 (cinco) anos poderá ser insuficiente para assegurar a função social e econômica do objeto principal do contrato de trespasse e as legítimas expectativas das partes, 212 Ibid., p. 102-111. 135 podendo as partes estipular um limite temporal superior justificado pelas especificidades do caso concreto. Nesse sentido, traz-se à colação o seguinte precedente213: Declaratória. Cessão de cotas. Proibição de concorrência. Prazo determinado. Se no contrato em que ocorre a transferência, por cessão de quotas de sociedade anônima, resta consignado a proibição de os cedentes, durante prazo limitado e local determinado, se estabelecerem, ainda que em nome de terceiros, com negócios do mesmo ramo de atividade, essa vedação não se apresenta como ilegítima ou ilegal e muito menos inconstitucional. E' que, ainda que não escrita, inegável a admissão nos negócios de cessão de controle acionário, da cláusula implícita de não concorrência, por parte do cedente, que não proíbe o trabalho, este, assegurado pela Carta Magna, mas, sim, a desleal concorrência. [...] Narram os autores que em 20/04/94 alienaram à ré suas cotas em sociedade industrial, tendo constado do contrato de venda cláusula que os impedia de exercer pelo prazo de 10 anos, por si ou pessoa interposta, atividade industrial ou comercial igual, similar ou correlata a da sociedade cujas cotas foram alienadas. [...] estando longe de influir na liberdade de trabalho. Infere-se do julgado que a cláusula de não-concorrência contém os elementos acessoriedade, material, territorial e temporal. Quanto a este último, foi fixado pelas partes em 10 (dez) anos, portanto, superior ao prazo legal. Justifica-se a superação deste na circunstância de o preço recebido pelos alienantes representar três vezes o valor do patrimônio da sociedade. O magistrado recorreu à razoabilidade na sua acepção eqüitativa para julgar como sendo legítimo o prazo de 10 anos. Por ocasião da edição do Aviso nº 188/5 de 2001, a Comissão Européia de concorrência estabeleceu que os limites da cláusula de não concorrência devem estar de acordo com a sua natureza (acessória), duração (tempo), bem objeto do ajuste (corpóreo e/ou incorpóreo), o campo geográfico (territorial) da sua prestação, e que períodos superiores àqueles, geralmente determinados, podem ser ajustados 213 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 3° Câmara Cível. Apelação cível n° 1996.001.02289. Relator Dês. Oscar Silvares. Registro de 21/08/1996. 136 desde que seja justificado de acordo com as circunstâncias específicas do caso concreto. No Direito brasileiro a Concorrência é considerado na trilogia Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE, a Secretaria de Direito Econômico – SDE e Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. A Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE, tem por função auxiliar a Secretaria de Direito Econômico – SDE, notadamente quanto aos aspectos econômicos dos atos de concentração. Esse auxílio dá-se através da emissão de um parecer de caráter obrigatório nos casos de concentração e, quando se tratarem de condutas anticoncorrenciais, este parecer é facultativo, cabendo ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência – CADE, ou Secretaria de Direito Econômico – SDE, a sua solicitação (vide artigos 38 e 54, §6°, da Lei nº 8.884/94). Por seu turno, a Secretaria de Direito Econômico – SDE, é um órgão integrante do Ministério da Justiça, cuja atribuição é prevista nas Leis n° 8.078/90, n° 8.884/94 e n° 9.021/95. A função da SDE cinge-se a formular, implementar e supervisionar as políticas de proteção e defesa da ordem econômica, no âmbito da concorrência e do consumidor (artigo 14 da Lei nº 8.884/94). O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, foi elevado à categoria de autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede no Distrito Federal e galgou status de principal órgão tutelar da concorrência. O CADE é composto por um presidente e seis conselheiros escolhidos com mais de trinta anos de idade, de notório saber jurídico ou econômico e reputação ilibada, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pelo Senado Federal. Registre-se que o CADE é um órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional. Portanto, as suas decisões administrativas passaram a ser finais no âmbito do 137 Executivo, podendo ser judicialmente executadas (artigo 3° e 7°, inciso XIII, da Lei n° 8.884/94). O CADE exerce basicamente três papéis: (I) preventivo; (II) repressivo; (III) pedagógico. No que concerne ao papel pedagógico, o CADE tem atribuição de difundir a cultura da concorrência consoante prevê a regra do artigo 7°, inciso XVIII, da Lei n° 8.884/94. Quanto ao papel repressivo, o CADE tem a atribuição de analisar as condutas anticoncorrenciais previstas no artigo 20 e seguintes da referida lei. Nesse caso, o exame cinge-se à verificação de práticas de infração à ordem econômica, tais como: cartéis, vendas casadas, preços predatórios, acordos de exclusividade etc. No seu papel preventivo, o CADE tem a atribuição de analisar atos de concentração, isto é, fusões, incorporações, associações entre empresas suscetíveis de causar prejuízo à concorrência (artigo 54 da Lei nº 8.884/94). No Direito da Concorrência deve-se, ainda, distinguir entre a cláusula vazia de restrição (naked restraint) e cláusula acessória de restrição (ancillary restraint). A primeira ocorre quando o contrato versa apenas sobre proibição de concorrência, ao passo que a segunda é acessória à finalidade principal do contrato. A doutrina estrangeira e a brasileira assinalam que possivelmente o primeiro caso decidido pelos tribunais sobre a restrição de concorrência acessória foi o caso Mitchel vs. Reynolds, apreciado em 1711. Nesse caso, Reynolds vendeu a sua panificadora a Mitchel, havendo ajustado cláusula no contrato de venda que aquele não poderia se restabelecer no mesmo ramo de atividade comercial pelo prazo de 05 (cinco) anos. Sob o argumento de que aquela era a única atividade profissional 138 que sabia desempenhar e que não poderia sobreviver sem ela, Reynolds montou uma nova panificadora. O juiz Parker entendeu que a cláusula contratual de não concorrência ajustada no referido negócio de venda da panificadora era válida ante a sua razoabilidade. Contudo, a chamada doutrina das cláusulas de não concorrência deve-se ao voto proferido pelo juiz Taft, do 6° Circuit, em 1898, no caso United States vs Addyston Pippe & Steel Co., 85 Fed. 271, que versava sobre o dever de não competir assumido pelos sócios de uma sociedade. Extrai-se da argumentação do magistrado que a cláusula de não concorrência foi considerada acessória e fundamental para a existência e o funcionamento da sociedade alienada. No seu voto, o juiz Taft identificou cinco espécies do gênero cláusula de não concorrência, a saber: (I) o dever assumido pelo vendedor de uma empresa de não competir com o adquirente de forma a diminuir o valor da empresa adquirida; (II) o dever do sócio retirante de não competir com a sociedade; (III) o dever do sócio de não competir com a sociedade; (IV) o dever do comprador de uma propriedade de não a usar para competir com o empregador depois da expiração de seu tempo de trabalho. O postulado da razoabilidade como eqüidade é aplicado pelo CADE para flexibilizar o elemento temporal de cinco anos, a fim de viabilizar a realização da própria transação principal (função social e econômica) quando presentes circunstâncias justificadoras, como as particularidades do próprio mercado ou, ainda, o grau de experiência do adquirente no respectivo ramo de negócio. Além dos critérios das particularidades do próprio mercado e o grau de experiência do adquirente no respectivo ramo, vale notar que os elementos Knowhow e segredo de negócio que compõem os ativos transferidos podem constituir 139 uma circunstância justificadora para a redução do prazo convencionados pelas partes para o limite temporal padrão de 05 (cinco) anos. Assim, pode-se concluir que o postulado da razoabilidade é aplicável aos elementos limitativos da proibição de concorrência com a finalidade de realização da justiça material no caso concreto, considerando os interesses e as expectativas das partes (artigos 3°, 5°, caput, e 170, caput, da CF c/c 421 e 422 do CC). 4.3.5 O Controle de Legalidade dos Elementos Limitativos da Proibição de Concorrência Através do Postulado da Proporcionalidade e a sua Revisão pelo Poder Judiciário O postulado da proporcionalidade é também aplicado no controle dos elementos da cláusula de proibição de concorrência. Humberto Ávila214 ensina que a proporcionalidade, como postulado estruturador da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre um meio e um fim, não possui aplicabilidade irrestrita. Sua aplicação depende de elementos sem os quais não pode ser aplicada. Sem um meio, um fim concreto e uma relação de causalidade entre eles, não há aplicabilidade do postulado da proporcionalidade. O artigo 1° da Lei n° 8.884/94 guarda correspondência com os princípios de funcionamento da ordem econômica previstos no artigo 170, incisos II a V, e artigo 173, § 4°, ambos da Constituição Federal, estabelecendo que a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica devem ser orientadas pelos ditames constitucionais da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função 214 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 113. 140 social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico. Assim sendo, verifica-se que no controle repressivo e preventivo exercido pelo CADE os princípios orientadores poderão se imbricar numa relação de causalidade entre um meio e um fim. Para resolver a imbricação dos princípios, o CADE utiliza-se dos seguintes elementos de fundo: (I) existência de impactos estruturais, que implica: (a) na identificação e delimitação dos mercados relevantes, (b) a identificação das sociedades participantes e (c) o cálculo dos efeitos da operação sobre a estrutura de cada um dos mercados relevantes identificados215; (II) dinâmica do mercado e efeitos potencialmente nocivos da operação, que tem por fito saber em que medida a operação eleva a probabilidade de conluio ou abuso de posição dominante por parte das participantes através: (a) da estrutura de incentivos da sociedade, (b) da intenção entre as sociedades, (c) da capacidade de produção das sociedades, e (d) das tendências do mercado; (III) análise das condições de entrada, isto é, do grau de contestabilidade de cada mercado relevante; (IV) análise das eficiências, que são os ganhos de bem-estar oriundos do ato de concentração (ganhos de eficiência ou eficiências compensatórias); (V) motivo preponderante da economia nacional e do bem comum. Cumpre-se destacar, três importantes aspectos: os efeitos do ato de concentração devem ser avaliados para cada um individualmente; a identificação dos impactos concorrenciais mediante a separação dos mercados relevantes não devem impedir a percepção das estratégias empresariais e seus efeitos globais sobre o conjunto de mercados identificados ou mesmo sobre a economia; o próprio 215 OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e Economia da concorrência. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 119. 141 conjunto de mercados a ser estudado não pode restringir-se àqueles nos quais se verificam relações horizontais entre as sociedades requerentes. Quando o CADE exerce o controle dos elementos limitativos da cláusula de proibição de concorrência aplica o postulado da proporcionalidade, ainda que de forma implícita, através dos elementos de fundo, como a existência de impactos estruturais e a análise das condições de entrada216. Nesse passo, cabe examinar em que medida a decisão do CADE sobre a legalidade dos elementos limitativos da proibição de concorrência poderá ser revista pelo Poder Judiciário e quais são os critérios para determinar a gradação do referido controle jurisdicional. O princípio da legalidade é basilar na existência do Estado de Direito, determinando a Constituição Federal sua garantia, sempre que houver violação do direito, mediante lesão ou ameaça (artigo 5, XXXXV). Dessa forma, será chamado a intervir o Poder Judiciário, que, no exercício da jurisdição, deverá aplicar o direito ao caso concreto. Assim conforme salienta Nelson Nery Júnior217 podemos verificar que o direito de ação é um direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo à sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas as condições da ação. Importante, igualmente, salientar que o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um 216 Cabe consignar o voto do Conselheiro Fernando de Oliveira Marques, no ato de Concentração nº 08012.0042240/2001-45, que, a partir dos referidos elementos de fundo, analisou a legalidade da cláusula de proibição de concorrência ajustada nos negócios jurídicos celebrados pelos requerentes no ato de concentração. 217 NERY JR., Nelson e Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Civil Extravagante. 5º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 142 direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue. Embora a lei antitruste mencione ser o CADE órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional (LAT art. 3), na verdade essas expressões foram empregadas impropriamente, porque a atividade da autarquia é administrativa e seus julgamentos têm natureza administrativa. Como todo ato administrativo, as decisões do CADE podem ser sindicadas pelo Poder judiciário, a quem cabe examinar sua constitucionalidade e legalidade, como, por exemplo, se houve correta aplicação dos princípios constitucionais da mínima intervenção pública na atividade privada (artigo 170 da CF), do devido processo legal administrativo (artigo 5º, inciso LIV da CF), do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV da CF) etc. O que o judiciário não pode fazer é aplicar as sanções e multas que a lei prevê como atividades do CADE, substituindo-se à autarquia, pois estaria invadindo a esfera de competência do Poder Executivo, em desrespeito à harmonia e à independência entre os poderes do Estado (artigo 2º da CF). 4.3.6 Eficácia Subjetiva e a Oponibilidade da Proibição de Concorrência O sucessor a título universal de um contrato acaba por também assumir a posição jurídica derivada das partes, salvo se o contrato for intuito personae. Assim, sem embargo de não ter participado na formação do contrato, o sucessor a título universal, em princípio, não é terceiro, mas parte no contrato. No Brasil, entende-se que a proibição de concorrência não alcança os sucessores do alienante, salvo disposição contratual expressa. 143 Outra questão tormentosa acerca da proibição de concorrência é saber se ela alcança os sócios ou acionistas da sociedade alienante, pois como é cediço, as obrigações da sociedade não se estendem aos seus sócios ou acionistas, porquanto aquela goza de personalidade jurídica distinta (artigo 45 do CC). Sucede que o princípio da relatividade dos contratos é relativo e, por conseguinte, comporta exceções, as quais são definidas, a partir da idéia de terceiro, que é aquele considerado totalmente estranho ao contrato ou à relação sobre a qual ele estende os seus efeitos. Assim, prevalece, prima facie, o entendimento de que a proibição de concorrência não é oponível automaticamente aos sócios da sociedade ou acionistas da companhia. Contudo, não se pode olvidar que o sócio ou acionista da sociedade alienante poderá desenvolver uma concorrência perigosa idônea a afetar o aviamento objetivo adquirido quando, por exemplo, ele era pessoalmente o conhecedor da estrutura organizacional do estabelecimento ou, ainda, quando representava a sociedade diretamente perante os seus clientes, os seus fornecedores e os seus colaboradores. Ademais, será possível também opor a proibição de concorrência quando, aos olhos do público, aquele sócio ou acionista personaliza a sociedade alienante, ou seja, a sua pessoa acaba por se confundir com esta. Inicialmente, deve-se fazer a distinção entre terceiro concorrente e não concorrente que interfere na esfera do alienante com o fim de induzi-lo ao descumprimento da proibição de concorrência. Quando se tratar de terceiro concorrente que contrata com alienante induzindo-o à violação da proibição de concorrência, tal conduta consiste em ato 144 tendente a prejudicar negócio alheio e, por conseguinte, qualificada imediatamente como ato de concorrência desleal previsto no artigo 209 da Lei nº 9.279/96218. Note-se que o referido dispositivo não afasta a possibilidade de enquadrar a questão de forma mediata no campo da ilicitude e, portanto, no campo do abuso do direito de liberdade de iniciativa por frustrar as legítimas expectativas do adquirente e a função social e econômica do contrato de trespasse (artigos 187219, 421220 e 422221 do CC). Se o terceiro não for concorrente, a sua conduta deve ser imediatamente qualificada como abusiva por violar as legítimas expectativas do adquirente e a função social do contrato de trespasse. Com relação ao valor da indenização a ser paga ao adquirente, o terceiro não concorrente responderá com fundamento no critério genérico da legislação civil previsto no artigo 402 do CC, e o terceiro concorrente será responsabilizado com base nos artigos 208222 e 210223 da Lei nº 9.279/96. De qualquer forma, será necessário que o terceiro, seja concorrente ou não, tenha conhecimento da existência da proibição de concorrência. 218 Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviços, ou entre os produtos e serviços postos no comércio. 219 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 220 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. 221 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 222 Art. 208. A indenização será determinada pelos benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido. 223 Art. 210. Os lucros cessantes serão determinados pelo critério mais favorável ao prejudicado, dentre os seguintes: I-os benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; ou II-os benefícios que foram auferidos pelo autor da violação do direito; ou III- a remuneração que o autor da violação teria pago ao titular do direito violado pela concessão de má licença que lhe permitisse legalmente explorar o bem. 145 O registro do contrato de trespasse produz efeitos quanto a terceiros, depois de averbado à margem da inscrição do empresário ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial (artigo 1.144 do CC). Nesse caso, a presunção do seu conhecimento por terceiro é absoluta, mas nos limites da Junta Comercial de cada Estado (artigo 1.150 do CC). 4.3.7 Violação Direta e Indireta da Proibição de Concorrência A quebra da proibição de concorrência pode ocorrer direta ou indiretamente. Há violação direta quando efetuado pelo próprio empresário alienante, detentor do aviamento subjetivo. O empresário pode ser individual quando se tratar de pessoa física, titular da empresa, ou coletivo quando diz respeito a uma pessoa jurídica (sociedade). Ocorre a violação indireta da proibição de concorrência quando o alienante associa-se a terceiro para explorar o mesmo fim ou segmento mercadológico do estabelecimento empresarial alienado. A atração pessoal do empresário não é a única forma de violação da proibição de concorrência. Sem embargo da ocultação do nome do alienante, em se tratando de empresas de grande porte, pretende-se coibir a possibilidade de utilizar as informações sobre a organização do estabelecimento e sobre a clientela. Na violação indireta pelo empresário, Oscar Barreto Filho224 esclarece que o terceiro colaborador pode ser o seu cônjuge, filho ou genro. A violação indireta será caracterizada na hipótese de o empresário, individual ou coletivo, atuar também através de uma sociedade controlada por ele na 224 BARRETO FILHO, op. cit., p. 254, nota 144. 146 qualidade de acionista majoritário. A proibição de concorrência subsiste também no caso de o empresário exercer relevante função administrativa responsável pela gestão de sociedade concorrente, inclusive se esta for preexistente, se for possível empregar o seu conhecimento acerca da organização sobre o estabelecimento alienado e da sua clientela ou, ainda, o aproveitamento das relações com os clientes. Assim não haverá nenhuma violação da proibição de concorrência se o alienante limitar-se a entrar como sócio de uma sociedade nova ou preexistente, sem, contudo, assumir função de gestão, regular ou oculta, e sem colocar à disposição o seu conhecimento sobre o estabelecimento ou suas relações com a clientela. Também não poderá emprestar o seu nome para a razão social ou denominação da sociedade, porquanto isso consiste em elemento de atração da clientela alienada. Cabe ao adquirente o ônus da prova da violação indireta da proibição de concorrência para a obtenção da tutela inibitória e/ou ressarcitória em face do alienante, pois se trata de fato constitutivo do seu direito. Uma vez comprovada a violação, direta ou indiretamente, da proibição de concorrência pelo alienante, o adquirente poderá obter a resolução do contrato de trespasse e a reparação por perdas e danos. Esses prejuízos albergam o que efetivamente o adquirente perdeu e o que razoavelmente deixou de lucrar conforme o disposto no artigo 402225 do Código Civil. Por outro lado, o adquirente poderá postular, além da reparação dos prejuízos causados, o cumprimento da proibição de 225 Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar. 147 concorrência e lançar das tutelas previstas nos artigos 461226 e 645227 do Código de Processo Civil com vistas à remoção do ilícito. Não obstante, o adquirente não precisa aguardar a violação da proibição de concorrência para se socorrer judicialmente com vistas a impedir preventivamente a concorrência indevida. O remédio processual apto a tutelar preventivamente o interesse do alienante é a ação de inibição de descumprimento contratual que também encontra guarida no artigo 461 do CPC. Por fim, o adquirente poderá demandar o alienante, visando ao adimplemento dos deveres secundários ou anexos. 226 Art. 461 - Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º - A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 2º - A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (Art. 287). § 3º - Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada § 4º - O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º - Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. § 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva. 227 Art. 645 - Na execução de obrigação de fazer ou não fazer, fundada em título extrajudicial, o juiz, ao despachar a inicial, fixará multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação e a data a partir da qual será devida. Parágrafo único - Se o valor da multa estiver previsto no título, o juiz poderá reduzi-lo se excessivo. 148 5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO DIREITO DA EMPRESA Cabe agora examinar se o preceito da proibição da concorrência da norma do artigo 1.147 impõe apenas como conseqüência exclusiva da alienação do estabelecimento empresarial ou também se pode aplicar às situações valoráveis como equivalentes, ou seja, que contém uma correspondência com o fato-tipo (Tatbesttand, em alemão; fattispecie, em italiano) da norma228. 5.1 APLICAÇÃO EXTENSIVA E INTEGRATIVA DO ARTIGO 1.147 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 No Brasil, a aplicação da proibição de concorrência à hipótese valorável conforme o fato-tipo do contrato de trespasse não recebeu um tratamento metodológico adequado, embora a doutrina já tenha admitido a sua incidência em algumas situações como se verá mais adiante. Com efeito, a proibição de concorrência comporta aplicação em dois âmbitos com fundamentos (pressupostos) distintos e, a partir daí, conseqüências específicas. O primeiro âmbito é o da aplicação extensiva por meio da interpretação teleológica que corresponde diretamente ao fundamento da razão da norma (ratio legis) de proibição de concorrência, isto é, dos objetivos pretendidos pelo legislador 228 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 100: A previsão do legislador raro é de um fato ou evento particular e único, mas sim de uma ‘espécie de fato’, ou um ‘fato-tipo’, ao qual poderão corresponder, com maior ou menor rigor, múltiplos fatos concretos. Quando, na experiência social, se verifica uma correspondência razoável entre um fato particular e o fato tipo F (Se F é, C deve ser), previsto na norma, o responsável por aquele fato particular (em geral, o agente ou o autor daquilo que resultou de seu ato) goza ou suporta as conseqüências prédeterminadas no dispositivo ou preceito). 149 com a sua edição e, indiretamente, à coerência normativo-material do sistema considerado, o caso concreto (ratio iuris)229. Na interpretação extensiva, o domínio de aplicação do sentido da norma é ampliado para integrar um caso, ainda que circunstâncias nele existentes não pertençam ao fato-tipo conceitual previsto (pelo menos ao núcleo da hipótese normativa)230. O sentido da norma (regra) é apreendido através da sua recondução e pelo menos um princípio, porquanto o comportamento descrito e valorado na norma é um meio de realização do princípio que lhe é conexo231. Portanto, uma vez identificado o princípio realizado na regra, afigurar-se-á possível estender a sua aplicação a uma determinada situação jurídica não prevista na sua moldura. O princípio, então, desempenhará um papel de unificação dessas situações jurídicas, fazendo incidir na espécie a regra que realiza o seu valor232. 229 NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993, pp. 152-153: Se a decisão, como a manifestação de uma auctoritas imperativa, traduz o acto prescritivo da solução jurídica, a sua justificação terá de procurar-se no motivo-fim que a determinou – na sua teleologia praticamente motivante (ratio legis). Diferentemente quanto ao juízo, porquanto sendo este o acto intencional (normativo-juridicamente intencional) da solução, os seus fundamentos terão de procurar-se na própria normatividade fundamentadamente constitutiva do sistema jurídico (ratio iuris). [...] Ora, perante esta análise, conduzida pela intenção de compreendermos a norma como critério normativo do juízo concreto, logo nos damos conta de que o seu núcleo está no momento problemático: o momento histórico converge nele e o momento teleológico-sistemático é por ele exigido. 230 A aplicação extensiva não se confunde com a interpretação extensiva, que é a mera divergência entre a expressão verbal e o pensamento normativo. Nesse sentido, NEVES, A. Op. Cit, p. 171. 231 PERLINGIERE. Manuale di Diritto Civile. Op. Cit., p. 10: Ogni regola è riconducibile almeno ad um princípio. La regola riguarda um comportamento e lo valuta; questo, valuato positivamente, constituisce um modo di realizzare il principio. La regola è quindi uma scelta tra le molteplici opportunità di realizzare il princípio. 232 ÁVILA. Teoria dos princípios. Op. Cit., p. 78: Os princípios atuam sobre outras normas de forma direta e indireta. A eficácia direta traduz-se na atuação sem intermediação ou interposição de um outro (sub-princípio) ou regra. Dentro do âmbito da aptidão das normas para produzir efeitos as normas exercem diferentes funções, dentre as quais algumas se destacam e merecem ser analisadas separadamente. No plano da eficácia direta, os princípios exercem função integrativa, na medida em que um elemento inerente ao fim que deve ser buscado não esteja previsto, ainda assim o princípio irá garanti-lo. [...] Outro exemplo: se não há regra expressa garantindo a proteção da expectativa de direito – mas ela é necessária à implementação de um estado de confiabilidade e de estabilidade para o cidadão -, ela deverá ser resguardada com base direta no princípio da segurança jurídica. Nesses casos, há princípios que atuam diretamente. 150 Pois bem. O contrato de trespasse compreendido na sua função social e econômica (artigo 421 do CC) visa, em última análise, à realização do subprincípio da preservação da empresa. Nesse passo, o objetivo pretendido pelo legislador com a previsão da proibição de concorrência é tutelar as legítimas expectativas do adquirente (artigo 422 do CC) quanto ao aviamento (sobrevalor) transmitido em razão da finalidade econômica do contrato de trespasse (artigo 421 do CC). Daí, nos negócios jurídicos no Direito da Empresa que têm uma correspondência mediata com o contrato de trespasse, isto é, que importem à transmissão indireta do estabelecimento empresarial geradora de um sobrevalor, aplica-se extensivamente à proibição de concorrência nos moldes do artigo 1.147 do CC. Nesse caso, a proibição de concorrência também se presume querida pelo adquirente e, portanto, é implícita, ou seja, dispensa a previsão expressa. O segundo âmbito de aplicação da proibição de concorrência é por meio da analogia233, que é entendida pela transposição de uma regra, dada na lei para a hipótese legal, ou várias hipóteses semelhantes, numa outra hipótese, não regulada 233 Sobre a diferença entre a analogia e a interpretação extensiva, confira-se MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica a Aplicação do Direito. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 215: A analogia ocupa-se com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em nenhum dispositivo, e resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins: a interpretação extensiva completa a norma existente, trata de espécie já regulada pelo Código, enquadrada no sentido de um preceito explícito, embora não se compreenda na letra deste. Os dois efeitos diferem, quanto aos pressupostos, ao fim e ao resultado: a analogia pressupõe a falta de dispositivo expresso, a interpretação pressupõe a existência do mesmo; a primeira tem por escopo a pesquisa de uma idéia superior aplicável também ao caso não contemplado no texto; a segunda busca o sentido amplo de um preceito estabelecido; aquela de fato revela uma norma nova, esta apenas esclarece a antiga; numa o que se entende é o princípio; na outra, na interpretação, é a própria regra que se dilata. Em resumo: a interpretação revela o que a regra legal exprime, o que da mesma decorre diretamente, se a examinam com inteligência e espírito liberal; a analogia serve-se dos elementos do dispositivo e com o seu auxílio formula preceito novo, quase nada diverso do existente, para resolver hipótese não prevista de modo explícito, nem implícito, em norma alguma. Identificam-se a analogia e a exegese ampla, quanto a uma particularidade, têm um ponto em comum: uma e outra servem para resolver casos não expressos por palavras da lei. 151 por lei, semelhante àquela. A propósito da distinção entre a interpretação extensiva e a analogia, ensina José de Oliveira Ascenção234 que: Em princípio, a distinção dos dois processos é muito simples. A interpretação dirige-se à determinação das regras, trabalhando sobre a fonte. Pelo contrário, para haver interpretação tem de se partir da verificação de que não há nenhuma regra, conclusão esta que pressupõe uma tarefa de interpretação das fontes, como vimos. O critério pode ser delineado com precisão, o que não quer dizer que na prática não surjam problemas da maior complexidade. A interpretação extensiva pressupõe que dada hipótese, não estando compreendida na letra da lei, o que está, todavia no seu espírito: há uma regra, visto que o espírito é que é o decisivo. Quando há lacuna, porém a hipótese não está compreendida nem na letra nem no espírito de nenhum dos preceitos vigentes [...] Mas analogia, apesar das dificuldades de aplicação que dissemos já que se suscitam quando em concreto desejamos saber se estamos perante uma ou outra situação. O critério é em si seguro. Num caso estamos ainda a extrair a regra, implícita num texto imperfeito; no outro nada encontramos implícito, porque há uma lacuna. Portanto, tendo em vista a ausência de uma norma geral sobre a convenção de não concorrência no Direito brasileiro, a exemplo do artigo 2596235 do Codice Civile italiano, os elementos da proibição de concorrência do preceito do artigo 1147 do CC poderão ser aplicados nos negócios jurídicos entre concorrentes com vistas à consecução da sua finalidade social e econômica (artigo 421 do CC) e à tutela da legítima expectativa dos contratantes (artigo 422 do CC). Contudo, na aplicação, por analogia, a proibição de concorrência não é presumida como querida pelo adquirente e, portanto, é necessária a sua previsão expressa no contrato ajustado pelas partes. À luz dos critérios acima propostos, passa-se a examinar a aplicação extensiva nos negócios jurídicos empresariais. 234 ASCENÇÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e teoria geral: uma perspectiva luso-brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, pp. 349-351. 235 Art. 2596. limiti contrattuali della concorrenza. II ptto che limita la concorrenza debe essere provato per iscritto [2725]. Esso è valido se circoscritto ad uma determinata zona o ad uma determinata attività, e non può excederé la durata di cinque anni [2125, 2557]. 152 5.2 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA ALIENAÇÃO DAS PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS REPRESENTATIVAS DO CONTROLE DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE PESSOAS E DE CAPITAL Irá se ver agora a aplicação da proibição de concorrência na alienação de participações societárias representativas do controle de sociedade empresária, de pessoas e de capital236. Em doutrina, Tullio Ascarelli e Giorgio Ferrari237 adotam a orientação da tese restritiva. A tese restritiva argumentava, em primeiro lugar, que a norma do artigo 2557238 do Codice Civile é excepcional, de maneira que não pode se estender por analogia a sua aplicação. O outro argumento está baseado na diferença de objeto do negócio translativo entre a alienação do estabelecimento e do contrato de alienação de quotas sociais. O primeiro contrato é celebrado entre o titular do estabelecimento e um estranho, em que a titularidade do estabelecimento é transmitida a este; enquanto que, no segundo, é a própria empresa (sociedade) que é transmitida. 236 Prefere-se a expressão alienação a cessão, visto que aquela está consagrada no artigo 254 da lei n. 6.404/75, bem como guarda melhor correspondência com a realidade da influência do controle sobre um patrimônio. Sobre essa questão terminológica, confira-se PEREIRA. Guilherme Döring Cunha. Alienação do poder de controle acionário. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 74-77 237 Apud GUGLIELMETTI. Limiti Negoziali della Concorrenza. Op. Cit., pp. 256-257. 238 Art. 2557 Divieto di concorrenza Chi aliena l'azienda deve astenersi, per il periodo di cinque anni dal trasferimento, dall'iniziare una nuova impresa che per l'oggetto, l'ubicazione o altre circostanze sia idonea a sviare la clientela dell'azienda ceduta (2125, 2596). Il patto di astenersi dalla concorrenza in limiti più ampi di quelli previsti dal comma precedente è valido, purché non impedisca ogni attività professionale dell'alienante. Esso non può eccedere la durata di cinque anni dal trasferimento. Se nel patto è indicata una durata maggiore o la durata non e stabilita, il divieto di concorrenza vale per il periodo di cinque anni dal trasferimento. Nel caso di usufrutto o di affitto dell'azienda il divieto di concorrenza disposto dal primo comma vale nei confronti del proprietario o del locatore per la durata dell'usufrutto o dell'affitto. Le disposizioni di questo articolo si applicano alle aziende agricole solo per le attività ad esse connesse (2135), quando rispetto a queste sia possibile uno sviamento di clientela. 153 La Gioia239 aduz que quem aliena a quota social, aliena a parte do estabelecimento correspondente à sua quota e justo seria que o alienante se sujeitasse às obrigações decorrentes da alienação do estabelecimento, exceto se o estabelecimento estiver fechado (liquidado). Esclarece, ainda, que no valor da quota estão compreendidos o valor dos bens singulares do estabelecimento e o valor do complexo organizado, isto é, do respectivo aviamento, o que justificaria aplicação da proibição de concorrência do artigo 2557240 do Codice Civile. Acrescenta Giannantonio Guglielmentti241 que o motivo pelo qual o legislador estabeleceu o dever de não concorrência do alienante está fundado na periculosidade da atividade desenvolvida por este, após a transferência do estabelecimento, em relação ao adquirente em virtude da possibilidade de retirada da clientela. Nesse caso, o critério para definir a periculosidade da atividade do cedente determina-se a partir do cotejo da sua atuação (cargo) na sociedade e das relações constituídas com terceiros estranhos a mesma sociedade, os quais constituíram e constituem a clientela, respectivamente da azienda sociale antes da alienação da quota e, após este evento negocial, dos dois estabelecimentos, aquele alienado que permaneceu em atividade e o novo que o cedente iniciou depois da transferência da sua quota. Quando o sócio cedente for praticamente o deus ex machina da sociedade, evidentemente que o início por este de uma nova empresa 239 Ibid., p. 257. Art. 2557 Divieto di concorrenza. [I]. Chi aliena l'azienda deve astenersi, per il periodo di cinque anni dal trasferimento, dall'iniziare una nuova impresa che per l'oggetto, l'ubicazione o altre circostanze sia idonea a sviare la clientela dell'azienda ceduta [2125, 2229 ss., 2596]. [II]. Il patto di astenersi dalla concorrenza in limiti più ampi di quelli previsti dal comma precedente é valido, purché non impedisca ogni attività professionale dell'alienante. Esso non può eccedere la durata di cinque anni dal trasferimento [2596]. [III]. Se nel patto é indicata una durata maggiore o la durata non é stabilita, il divieto di concorrenza vale per il periodo di cinque anni dal trasferimento [1339, 2125]. [IV]. Nel caso di usufrutto [2561] o di affitto [2562] dell'azienda il divieto di concorrenza disposto dal primo comma vale nei confronti del proprietario o del locatore per la durata dell'usufrutto o dell'affitto. [V]. Le disposizioni di questo articolo si applicano alle aziende agricole solo per le attività ad esse connesse [2135 comma 2], quando rispetto a queste sia possibile uno sviamento di clientela. 241 Op. Cit., p. 258. 240 154 concorrente será idôneo a determinar o deslocamento da clientela, impondo-se, nesse caso, o dever de não concorrência com vistas a tutelar a posição do alienante. No caso de sociedade de capital, a aplicação do dever de não concorrência ao alienante do bloco acionário far-se-á quando este detiver o controle da sociedade, e disso também tenham conhecimento terceiros, de modo que se possa inferir do comportamento e dos poderes do controlador uma identificação com a própria sociedade, isto é, quando sociedade e sócio sejam um quid unicum. O encargo probatório dessa situação fática incumbirá ao adquirente. Tanto na alienação das quotas sociais como do bloco acionário permite-se a estipulação expressa do dever de não concorrência. A respeito da superação formal do objeto dos negócios de cessão do estabelecimento e da alienação de quotas sociais ou de ações, para alguns doutrinadores não se deve dar excessivo peso a este aspecto formal do negócio e deve-se, ao contrário, considerar a efetiva posição revestida do cedente no estabelecimento societário. Giovanni E. Colombo242 sustenta que o dever de não concorrência do artigo 2557 do Codice Civile deve ser aplicado extensivamente ao alienante das quotas (sociedade de pessoas) ou das ações (sociedade de capital). Atualmente, a Suprema Corte italiana acolhe a tese da aplicação extensiva do dever de não concorrência previsto no artigo 2557 do Codice Civile (a primeira decisão é de 20.01.1997, n. 549, in RDI, 1998, II, p. 9; a segunda é de 16.02.1998, n Gco, 1998, II, p. 577)243, a partir da interpretação da norma com base no perfil teleológico244. 242 COLOMBO, Giovanni E. Trattado di Dirito Commerciale e di Dirito Pubblico Dell’Economia. Vol. Terzo. (L’Azienda e il Mercato). Diretto da Francesco Galgano. Padova: CEDAM, 1979, p. 194. 243 A primeira decisão assentou que a disposição do artigo 2557 do Codice Civile não tem caráter de excepcionalidade na medida em que o legislador não teve a intenção de conceber uma norma que 155 Mais recentemente, a Suprema Corte italiana (Cass. N. 9682, de 2000, in Giust. Civ., 2001, I, p. 1031) pronunciou-se novamente favorável à tese extensiva da norma do artigo 2557 do Codice Civile toda vez que se realizar a mesma função jurídica tutelada no dispositivo, na qual se verifica uma mesma situação concorrencial, como é caso da cessão de quotas de participação da sociedade titular de estabelecimento. Em Portugal, são favoráveis à aplicação extensiva do dever de não concorrência à alienação das participações sociais (quotas e ações) Jorge Manuel Coutinho de Abreu245 e Fernando de Gravato Morais246. Jorge Manuel Coutinho de Abreu247 bem explica a distinção entre a alienação da empresa social da alienação das participações desta: A alienação de participações (ou partes ou quotas) sociais – mesmo tratando-se da totalidade das participações numa sociedade – não se identifica com a alienação da empresa social. Objeto da primeira são as quotas – permanecendo a empresa na esfera jurídica da sociedade; objeto da segunda é a própria empresa, transferida da sociedade para outro sujeito. Com efeito, a realidade do trespasse (alienação do estabelecimento) é diversa da transmissão das participações sociais, eis que os sócios não têm direitos sobre os bens componentes do patrimônio da sociedade, mas apenas esta. derroga o princípio da livre iniciativa, mas disciplinar de maneira coerente o resultado daqueles mesmos efeitos que as partes explicitam ou que se devem presumir co-naturais á relação negocial das partes; aplicando-se, via analógica, a norma do referido dispositivo à cessão de quotas sociais. Caberá ao juiz realizar rigoroso exame e levar em consideração as circunstâncias e a periculosidade do caso, constatando se a cessão do caso concreto trata-se de um caso similar à alienação do estabelecimento, isto é, que implique a substituição de um sujeito por outro no estabelecimento. A segunda decisão conclui que a fattispecie da alienação das quotas sociais está sujeita ao dever de não concorrência da norma do artigo 2557 do Codice Civile quando as circunstâncias concretas efetivadas conduzirem o juiz à conclusão de que constituiu verdadeira proteção à alienação propriamente dita, com vistas a preservar o aviamento e a sua produtividade, características determinantes no ajuste de transferência. 244 LATELLA. Dario. II Divieto di Concorrenza dell”Alienante. In GUERRERA, Fabrizio (Coord.). I Transferimenti di Azienda. Milano: Giufrè, 2000, pp. 476-477. 245 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de Direito Comercial. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 297. 246 MORAIS, Fernando de Gravato. Alienação e oneração de estabelecimento comercial. Coimbra: Almedina, 2005, pp. 122-124. 247 ABREU, 2005, p. 297. 156 Sem embargo dessa distinção e de outras que se podem também inferir248, a doutrina portuguesa tem defendido que, quando a cessão de participações sociais for em bloco e representar a sua maioria, pode-se dizer que o estabelecimento é transmitido jurídica e indiretamente249 ou, ainda, segundo Jorge Manuel Coutinho de Abreu250, opera-se uma transmissão indireta da empresa que é instrumento de uma transferência substancial do estabelecimento. Destarte, se a alienação das participações sociais for total ou parcial que represente a sua maioria, esta deverá ser equiparada à alienação do estabelecimento, de modo que nesse caso incidirá também o dever de não concorrência do cedente251. Entende Fernando de Gravato Morais252 ser suficiente o critério da transmissão da totalidade ou da maioria (parte considerável) das participações, ao passo que Jorge Manuel Coutinho de Abreu253, o qual se aproxima da posição de Giovanni Colombo, limita a incidência do dever de não concorrência apenas se o alienante (ou alienantes) das partes sociais, dada à posição de controle que tinha na sociedade, for capaz de exercer uma concorrência particularmente qualificada ou diferencial; ficará então obrigado a não concorrer perante o(s) adquirente(s) das quotas. 248 MORAIS. Op. Cit., p. 123, nota 251: Cumpre, no entanto, questionar se a transferência de participações sociais pode fazer operar resultados práticos semelhantes ao trespasse (e, em que termos), sendo certo que inexiste qualquer alteração ao nível da titularidade da pessoa jurídica, que permanece proprietária do(s) estabelecimento(s) que integra(m) o seu patrimônio, embora os sócios da sociedade sejam agora outros. Por isso, e incidindo apenas o nosso olhar nos problemas inerentes à transmissão da organização mercantil, deve referir-se que, apesar da cessão da(s) quota(s), v.g., os contratos ligados ao estabelecimento permanecem intocados, assim como não se pode falar de qualquer transmissão de créditos. Desta sorte, não cabe aludir à necessidade de consentimento do contraente cedido para que ocorra a cessão da posição contratual, nem à imposição da notificação dos devedores, dado que não foram transmitidos quaisquer créditos. 249 Ibid., p.124. 250 ABREU, op. cit., p. 298, nota 250. 251 Ibid., p. 298; MORAIS, op. cit., p. 124: […] para efeito da aplicação do regime legal atinente à responsabilidade por vícios do bem transmitido. 252 MORAIS, op. cit., p. 124, nota 251. 253 ABREU, op. cit., p. 298, nota 250. 157 No Brasil, contrato de trespasse também não se confunde estruturalmente com o contrato de alienação de quotas ou ações. No contrato de trespasse, transfere-se o estabelecimento empresarial como unidade jurídica, o complexo dos fatores de produção, acrescido dos débitos, se existentes. Como bem esclarece Modesto Carvalhosa254, no contrato de trespasse ocorre a transferência da titularidade do estabelecimento empresarial. No caso da alienação de quotas ou de ações representativas do poder de controle da sociedade empresária, ensina Fábio Konder Comparato255 que o seu objeto é a própria sociedade empresária que se realiza por intermédio imediato da titularidade das quotas, tendo em vista certas circunstâncias (ex. conhecimento das características organizativas da empresa, relações pessoais com fornecedores, financiadores e clientes, etc.)256. Fábio Konder Comparato257, R. P. Tavares Paes258 e Guilherme Döring Cunha Pereira259 sustentam que na alienação do bloco acionário de controle há uma obrigação implícita do alienante de não fazer concorrência ao adquirente, isto é, de não lhe desviar, dificultar ou retirar a clientela. Nesse sentido, cite-se o julgado da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos do agravo de instrumento n. 277.0064/9-00, relator Des. Sebastião Amorim, julgamento de 06/02/2003: EMENTA: Ação de Abstenção de Atividade Comercial e Indenização. Decisão que concedeu a tutela antecipada. Manutenção com base nas 254 CARVALHOSA, op. cit., p. 635, nota 146. COMPARATO, Fábio Konder. A Cessão de Controle Acionário é negócio mercantil? Revista Forense, n. 273, ano 77, jan - mar. 1981, p. 41. 256 Os exemplos são de ABREU. Jorge Manuel Coutinho de. Da Empresarialidade. As empresas no Direito. Coimbra: Almedina, 1999, p. 356. 257 COMPARATO. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. Op. Cit., pp. 230-231, nota 260. 258 PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Alienação do Poder de Controle Acionário. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 38. 259 Ibid., pp.102-103. 255 158 provas já existentes nos autos. Cessão na qual está implícito que a recorrente não poderá exercer o mesmo ramo de comércio da referida sociedade comercial. Recurso Improvido. [...] Silvana Regina Mirisola Soda, por seus advogados, irresignada com a r. decisão que concedeu a tutela antecipada formulada nos autos da ‘Ação de Abstenção de Atividade Comercial e Indenização’, ajuizada por Vero Verdi Comércio e Paisagismos Ltda., contra ela se insurge postulando a sua reforma. Informa a agravante, inicialmente, em breve síntese, que a agravada alega que adquiriu as quotas da sociedade à qual pertencia e que, pelo preço pago, adquiriu também a clientela, motivo pelo qual estaria impedida de exercer a atividade de paisagista. Sustenta, portanto, o desacerto do entendimento esposado no decisum guerreado, eis que o mesmo não está amparado por fundamento legal, ferindo o direito elementar de exercer suas atividades profissionais livremente, o que não pode subsistir. Afirma que a transação comercial, nos termos do documento que junta a este recurso, abrangeu, única e exclusivamente, o patrimônio do estabelecimento, não havendo conseqüentemente qualquer menção sobre a proibição ou renúncia, que deveria ser expressa, da ora recorrente de atuar [...]. Quanto ao mérito, porém, melhor sorte não socorre a agravante, pelo que improcedem as suas razões recursais. Com efeito, Silvana Regina Mirisola Soda cedeu suas quotas sociais que possuía na empresa Vero Verdi Comércio e Paisagismos Ltda., nova denominação da empresa ‘SS Comércio e Paisagismo Ltda. ME’ e, em sendo assim, está implícito, nessa cessão que não poderá exercer o mesmo ramo de comércio da referida sociedade comercial. Conforme ensina Carlos Alberto Bittar no livro “Teoria e Prática da Concorrência Desleal’, páginas 64/65, que se encontra referida na petição inicial proposta: Questão debatida a propósito é a prevalência, ou não, da vedação em caso de não existência de pacto expresso”. Existem opiniões divergentes na doutrina, a partir de antigo precedente jurisprudencial, em que se previa a necessidade de estipulação expressa. Em função do princípio da boa-fé, a melhor doutrina tem assentado, no entanto, que a cláusula de cessão de clientela está implícita na alienação do estabelecimento, razão pela qual, com o trespasse, não pode o vendedor montar negócio que venha a absorver antiga clientela’. Assim, pois, entendo que, no caso, pelo menos numa cognição sumária, está com a razão a empresa agravada, sendo, pois, correta a decisão judicial proferida, com suporte na prova já existente 260 nos autos [...] . Destarte, a proibição de concorrência é aplicável extensivamente, por interpretação teleológica, à alienação das participações societárias representativas do controle de sociedade empresária de pessoas e de capital261, e, por conseguinte, imputa-se ao alienante um dever implícito de não concorrência. No tocante à eficácia subjetiva da proibição de concorrência, esta alcançará diretamente os alienantes e, caso se tratar de sociedade alienante, poderá ser 260 Tribunal de Justiça de São Paulo, 6ª câmara, Agravo de Instrumento n. 277.006-4/9-00, relator Des. Sebastião Amorim, julgamento 06/02/2003. 261 SANTOS JÚNIOR, E. Sobre o Tresoasse e a Cessão de Exploração do Estabelecimento Comercial. In ASCENÇÃO, José de Oliveira (Org.). As operações comerciais. Coimbra: Almedina, 1988, p. 415. 159 oponível ao quotista ou acionista se este exercia uma relevante função na empresa que lhe possibilitasse o conhecimento da sua organização ou, ainda, se tinha prestígio no respectivo segmento de mercado perante os clientes, os fornecedores e os colaboradores. 5.3 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NA CISÃO PARCIAL DA SOCIEDADE No direito italiano, o debate doutrinário sobre a aplicação extensiva da cláusula de não concorrência na cisão parcial da sociedade está concentrado em duas correntes. A primeira corrente sustenta o entendimento de que a cisão constitui uma mera situação modificativa dos atos constitutivos das sociedades participantes e não participantes e não implica na transferência dos bens e das relações jurídicas da sociedade cindida à sociedade beneficiária. A segunda corrente defende a orientação de que o momento translativo seja coexistencial à hipótese da alienação do estabelecimento, sem embargo de não excluir o fato da modificação estatutária262. Em Portugal, Fernando de Gravato Morais263 informa que um setor da doutrina configura a cisão como um trespasse, baseando-se na noção ampla e 262 LATELLA, Dario. Il Divieto di Concorrenza dell”Alienante. In GUERRERA, Fabrizio (Coord.). I Transferimenti di Azienda. Milano: Giufrè, 2000, p. 480. 263 MORAIS, op. cit., p. 123, nota 251: Cumpre, no entanto, questionar se a transferência de participações sociais pode fazer operar resultados práticos semelhantes ao trespasse (e, em caso afirmativo, em que termos), sendo certo que inexiste qualquer alteração ao nível da titularidade da pessoa jurídica, que permanece proprietária do(s) estabelecimento(s) que integra(m) o seu patrimônio, embora os sócios da sociedade sejam agora outros. Por isso, e incidindo apenas o nosso olhar nos problemas inerentes à transmissão da organização mercantil, deve referir-se que, apesar da cessão da(s) quota(s), v.g., os contratos ligados ao estabelecimento permanecem intocados, assim como não se pode falar de qualquer transmissão de créditos. Desta sorte, não cabe aludir à necessidade de consentimento do contratante cedido para que ocorra a cessão da posição contratual, nem à imposição da notificação dos devedores, dado que não foram transmitidos quaisquer créditos. 160 flexível do negócio, independente, portanto, da causa do ato translativo. Outro setor distingue tais operações do trespasse, pelo fato de se tratar de uma transmissão a título universal, ou seja, os direitos e obrigações transferem-se em globo, em conjunto, sem necessidade de preenchimento dos requisitos exigíveis para cada ato. O patrimônio passa de uma sociedade para outra, mantendo na esfera jurídica da sociedade adquirente a mesma fisionomia. A segunda orientação é a que prevalece, afastando, portanto, a possibilidade de aplicação extensiva da proibição de concorrência. No Brasil, o artigo 229 da Lei das S/A caracteriza a cisão como uma operação pela qual a sociedade anônima transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se a versão for parcial. Alex Prandini Jr.264 defende que a cisão parcial tem pontos de contato com o contrato de trespasse. Enquanto a venda do estabelecimento empresarial se propõe ao fim da substituição de ativos – bens por dinheiro – através da celebração do contrato de trespasse, a finalidade da cisão parcial é, similarmente, a de permitir a realocação de riquezas, por meio da organização societária. Assim, tanto um quanto outro acolhe em si o escopo de transferência de riquezas. Por outro lado, sabe-se que o patrimônio vertido na cisão parcial implica a transferência de patrimônio funcional destinado à consecução de uma atividade econômica, aproximando-se do trespasse, que é caracterizado pela alienação de bens constitutivos do estabelecimento empresarial. Nesse passo, em princípio, o trespasse e a cisão podem classificar-se como movimentos concentradores, sempre que o cessionário, 264 PRANDINI JR, Alex. Trespasse e Cisão Parcial – Similitudes. In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.). Reorganização Societária. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 378-380. 161 para quem a parcela do patrimônio deságua, seja um ente de polarização. Conclui, então, afirmando que Muito embora em suas estruturas jurídicas, o trespasse e cisão parcial repercutem inexoravelmente nos mesmos ramos do direito obrigacional e contratual, no que tange à substituição necessária das posições jurídicas do alienante/empresa cindida por adquirente e empresa resultante da cisão, respectivamente, ocorrendo o mesmo quanto aos contratos de trabalho; no direito societário e registrário, por trazerem reflexos na estrutura patrimonial das sociedades, exigindo-se assim a devida publicidade de tais atos; no direito econômico e concorrencial, quando acarretarem em atos de concentração que impactem nos princípios de política econômica. Por conta disso, resta evidente que, do ponto de vista prático, ressalvadas as nuances abordadas no parágrafo precedente, tanto cisão parcial quanto trespasse podem fazer as vezes de um do outro, sendo certo que escolha duma ou doutra via variará em razão das situações de fato que permearem a 265 atividade de determinada empresa . Com efeito, a aplicação extensiva, por interpretação teleológica, da proibição de concorrência na operação da cisão parcial da empresa tem cabimento quando esta corresponder, indiretamente, ao contrato de trespasse, isto é, o estabelecimento seja alienado como um todo unitário, ou se subtraído algum ou alguns dos seus elementos, seja mantida a estabilidade da organização do estabelecimento e se mantenha apto ao exercício da atividade empresarial266. Dessa maneira, a proibição de concorrência é implícita à operação de cisão. 5.4 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA AO SÓCIO RETIRANTE E EXCLUÍDO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA Nesse tópico, investiga-se a aplicação da proibição de concorrência ao sócio que se retira de sociedade empresária para constituir ou participar de sociedade concorrente. 265 266 PRANDINI JR, op. cit., p. 382, nota 269. SANTOS JÚNIOR, op. cit., p. 415, nota 266. 162 Na doutrina italiana, Giovanni E. Colombo267 defende que os mesmos princípios relativos à alienação de quotas resolvem a questão sobre a aplicação extensiva da proibição de não concorrência ao sócio retirante. No caso de sociedade de capitais, dificilmente será possível a aplicação extensiva da proibição de concorrência e impensável no caso do direito de recesso previsto no artigo 2437 do Codice Civile. A aplicação da proibição de concorrência será, ao contrário, menos rara nas sociedades de pessoas, mormente quando o sócio retirante puder exercer uma concorrência diferencial. De outra banda, o valor do aviamento (objetivo) que influencia a liqüidação das quotas de titularidade e a respectiva importância que caberá ao sócio retirante, justificaria a imposição da obrigação de não concorrência. No Brasil, Oscar Barreto Filho268 sustenta que a proibição de concorrência pode ser inserta no contrato social para impedir que sócio retirante possa abrir concorrência ao estabelecimento explorado pela sociedade de pessoas de que participava. Cumpre esclarecer que a alienação da participação societária difere do direito de recesso quanto à natureza do ato, isto é, a estrutura da relação jurídica correspondente e a funcionalmente. Na alienação da participação societária, o ato tem natureza de uma negociação, acordo, tratativa, evidenciando-se uma relação negocial de compra e venda quando se tratar de alienação do poder de controle. No caso de o empresário pretender desligar-se da sociedade mediante a alienação da sua participação societária, este deverá compor seus interesses com 267 COLOMBO, Giovanni E. Trattado di Dirito Commerciale e di Dirito Pubblico Dell’Economia. Vol. Terzo. (L’Azienda e il Mercato). Diretto da Francesco Galgano. Padova: CEDAM, 1979, p. 194. 268 BARRETO FILHO, op. cit., p. 254, nota 144. 163 os da pessoa que tem a intenção de ingressar na sociedade ou deseja ampliar a participação na hipótese de já figurar como sócio. No tocante ao exercício pelo sócio do direito da retirada, esse ato tem natureza de uma simples manifestação de sua vontade, condicionada à existência de certos pressupostos. Trata-se de um ato unilateral do sócio que tem o condão de liberá-lo do vínculo contratual. Ademais, outra distinção entre o direito de retirada de sócio e a alienação da participação societária está na atribuição de valores diferentes das participações. Leciona Fabio Ulhoa Coelho269 que: As tratativas para a alienação da participação societária conduzem em torno do valor de negociação da participação, e o direito de retirada garante ao retirante o valor patrimonial desta. São importes diferentes, sob o ponto de vista conceitual e sob o aspecto de sua medida econômica. O preço da participação societária, pago pelo adquirente ao alienante, não é igual ao reembolso, devido pela sociedade ao dissidente. Antes de eleger um ou outro caminhar para o seu desligamento, o sócio deve levar em conta o valor que a sua participação societária terá em cada contexto. Destarte, a proibição de concorrência não se aplica, em regra, ao sócio retirante da sociedade, pois a retirada se trata de um ato unilateral praticado no seu exclusivo interesse e que no valor correspondente à participação societária não está embutido um sobrevalor. Quanto ao sócio excluído, ele também poderá exercer concorrência com a sociedade da qual foi desligado, desde que a sua atuação não caracterize deslealdade concorrencial, como empregar meio fraudulento para desviar clientela (artigo 195, inciso lll, da lei n. 9.279/96). Excepcionalmente, afiguram-se legítimas determinadas restrições à liberdade de iniciativa ao sócio retirante e ao excluído, seja por conta da posição que nela exercia lhe permitindo adquirir o conhecimento das características organizativas 269 COELHO, op. cit., p. 300, nota 148. 164 da empresa e dados confidenciais, ou, ainda, seja porque a sociedade lhe permitiu estabelecer uma relação especial e pessoal com os clientes, fornecedores e financiadores, exercendo sobre estes uma atração diferencial270. No primeiro caso, a proibição do sócio retirante ou excluído consistirá no dever de não revelar as características organizativas e dados confidenciais da sociedade. Não se trata de proibição de concorrência propriamente dita, mas de um dever de sigilo ou de confidencialidade. Os seus requisitos de validade são: (I) descrição do que são considerados informações ou dados confidenciais da sociedade; e (II) declaração de que os dados e informações confidenciais serão utilizados única e exclusivamente no interesse da sociedade271. No segundo caso, a sociedade poderá pactuar com o sócio a proibição de concorrer por conta própria ou de participar da sociedade concorrente, desde que seja condicionada aos elementos: (I) material; (II) territorial; (III) temporal; (IV) acessoriedade; (V) retribuição. Os elementos material, territorial, temporal e acessoriedade devem ter os mesmos contornos já analisados anteriormente. Já quanto ao elemento compensatório, tem-se que a situação do ex-sócio que se retira ou é excluído da sociedade se aproxima daquela do ex-empregado, de maneira que, enquanto perdurar a proibição de concorrência, lhe será devido pela sociedade uma retribuição paga a titulo de compensação financeira. Essa remuneração poderá ser 270 O investimento financeiro realizado pela sociedade no sócio para melhor atender ou estreitar a sua relação com os determinados clientes, fornecedores e financiadores (cursos de formação e capacitação, viagens para o exterior ou outras localidades do país, etc.), com vistas a incrementar os negócios da empresa, não impõe uma restrição à liberdade de iniciativa do sócio retirante ou excluído, mas tão somente um dever de restituir à sociedade essas despesas extraordinárias caso tenha se desligado antes de um prazo razoável para recuperação de tais valores. 271 JOÃO, Regiane Teresinha de Mello. Cláusula de não concorrência no contrato de trabalho. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 50. A autora acrescenta, ainda, um terceiro elemento, o período no qual o sócio se obriga a não revelar os segredos. 271 REDECKER, Ana Cláudia. Franquia Empresarial. São Paulo: Memória Jurídica, 2002, pp.99-106. 165 paga integralmente ao término da relação societária ou mensalmente em relação ao período em que o empregado não puder exercer atividade concorrente. 5.5 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE FRANQUIA (FRANCHISING) No Brasil, o contrato de franquia empresarial é regulado pela Lei nº 8.955/94. O artigo 2º define franquia empresarial como o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócios ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício. Ana Cláudia Redecker272 doutrina no sentido da incidência da boa-fé no contrato de franquia, enfatizando a necessária observância dos deveres acessórios da boa-fé na fase pós-contratual (culpa post factum finitum). Sob o influxo do dever acessório da lealdade, a autora sustenta que o franqueado estaria proibido de praticar atividade concorrente à do franqueador, utilizando o Know-how dele adquirido, após a extinção do contrato. Ocorre que a norma do artigo 3º, XIV, “a” e “b”, da Lei n.º 8.955/94, dispõe sobre a possibilidade de o contrato de franquia disciplinar a situação do franqueado, após a expiração do contrato de franquia, no tocante: a) ao Know-how ou segredo 272 REDECKER, Ana Cláudia. Franquia Empresarial. São Paulo: Memória Jurídica, 2002, pp.99-106. 166 de indústria a que venha ter acesso em função da franquia; b) à implantação de atividade concorrente da atividade do franqueador. Sem embargo, a jurisprudência tem flexibilizado o rigor da aplicação da cláusula de não concorrência prevista no contrato de franquia, notadamente quando a atividade explorada na franquia for comum no local onde se encontrava instalado o franqueado. Cabe anotar que a proibição de concorrência contida no contrato de franquia poderá se sujeitar ao controle do CADE (artigo 54 da Lei n.º 8.884/94) conforme já decidiu o Conselheiro Ruy Afonso de Santa Cruz Lima, no Ato de Concentração n.º 100/96, de 24 de março de 1999, Requerentes: Frenesius Laboratórios Ltda., NMC do Brasil Ltda. e Maria de Almeida Indústria e Comércio Ltda., in DOU de 14/04/1999: CONTRATO DE FRANQUIA – OBRIGATORIEDADE DE APRESENTAÇÃO AO CADE NOS TERMOS DO ART. 54 DA Lei nº 8.884/94 – RECONHECIMENTO. Os contratos de franquia, bem como os de administração, consultoria ou qualquer outro entre fornecedores, devem ser 273 submetidos ao CADE nos termos do artigo 54 da Lei de Concorrência . No Direito português, a fixação de uma proibição de não concorrência no contrato de franquia é defendida por parte da doutrina desse país, com as necessárias adaptações, por aplicação analógica do artigo 9º do Decreto-Lei nº 178/86, relativo ao contrato de agência, desde que preenchidos os seguintes requisitos: necessidade de documento escrito a prever essa obrigação; limitação da liberdade do franqueado unicamente no que toca às atividades concorrentes com a do franqueador; duração máxima de dois anos após a cessação do contrato; circunscrição da obrigação à zona confiada ao franqueado; compensação do franqueado. 273 Ato de Concentração n.º 100/96. Requerentes: Frenesius Laboratórios Ltda., NMC do Brasil Ltda. e Maria de Almeida Indústria e Comércio Ltda. DOU 14/04/1999. 167 Todavia, Maria de Fátima Ribeiro274 sustenta que por se tratar o contrato de franquia de um contrato de adesão, deve-se considerar que a cláusula de não concorrência é abusiva. Argumenta, ainda, que o mecanismo legal mais adequado para resolver, no âmbito da concorrência, estes eventuais conflitos é o recurso às normas que proíbem e sancionam a concorrência desleal. Na perspectiva do Direito da Concorrência da Comunidade Européia, L. Miguel Pestana de Vasconcelos275 salienta que o Tribunal de Justiça reconheceu, num conjunto de decisões, que algumas restrições acessórias necessárias à viabilidade de uma transação não restringem, por si só, a concorrência: especialmente aquelas necessárias para induzir o investimento. Relativamente à atividade do franqueado, este poderá ficar vinculado a não concorrer com o outro membro da rede franqueada, incluindo o franqueador, no período da vigência do contrato ou mesmo na fase pós-contratual, pelo período máximo de um ano, no território onde explorou a franquia (artigo 3º, alínea “c” do Regulamento nº 4087/88). Posteriormente, em 1999, o Regulamento nº 2790 estabeleceu no artigo 5º, alínea “b”, que a cláusula de não concorrência só pode dizer respeito a bens e serviços que concorram com os bens ou serviços contratuais; deve ser limitada às instalações e terrenos, a partir dos quais o franqueado operou durante o período do contrato e ser indispensável para proteger o saber-fazer transferido pelo franqueador, desde que o período de vigência dessa proibição de concorrência seja limitado a um período de um ano após o termo de acordo; esta obrigação não prejudica a possibilidade de impor uma restrição ilimitada no tempo à utilização e divulgação do saber-fazer que não seja ainda do domínio público, nos termos do mesmo preceito. 274 RIBEIRO, Maria de Fátima. O Contrato de Franquia. Coimbra: Almedina, 2001, pp. 287-296 VASCONCELOS, L. Miguel Pestana de. O Contrato de Franquia (franchising). Coimbra: Almedina, 200, p.142. 275 168 Conclui-se que, no Direito brasileiro, a proibição de concorrência no contrato de franquia deve ser expressamente ajustada entre franqueador e franqueado, bem como deve conter os elementos temporal, material, territorial e acessório. Com relação ao elemento temporal, o prazo standart de 05 (cinco) anos do artigo 1.147 do Código Civil pode ser aplicado por analogia, mas nada obsta que seja ajustado um prazo superior, desde que justificado pelas circunstâncias decorrentes da relação contratual. 5.6 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE COOPERAÇÃO EMPRESARIAL (JOINT VENTURE) A proibição da concorrência tem sido aplicada nos contratos de joint venture. O contrato de joint venture ou cooperação empresarial tem como característica essencial a realização de um projeto comum, empreendimento cuja duração pode ser curta ou longa. Trata-se de um simples contrato de parceria ou cooperação sem a presença de afectio societatis no momento da sua celebração. Além da execução do projeto, há, entre outras, previsões como aportes para a realização do empreendimento, a partilha dos lucros ou prejuízos e o controle e a participação na gestão. Essa cooperação empresarial pode ocorrer em diversos mercados, como de exploração de recursos naturais, a realização de projetos industriais e, mais comumente, na aplicação de investimentos. Ensina Maristela Basso276 que o fator tempo é extremamente importante para escolha da forma da joint venture mais adequada e o modo de contribuição dos co-ventures (participantes) para o 276 Basso, Maristela. Joint Ventures. Manual Prático das associações empresariais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, pp.39-41. 169 empreendimento. Na joint venture, os projetos como de implantação de uma indústria, requerem investimentos em bens do ativo fixo (construção e equipamentos) de amortização a longo prazo. Já os projetos de investimentos de capital durante curto espaço de tempo e de sua recuperação, acrescida de lucros, costumam ser por um breve período. Maristela Basso277 salienta que os participantes têm o dever de lealdade uns para com os outros, porém, relativamente a operações abrangidas pelo ajuste, podem ser competidores entre si. É nesse dever de lealdade que a proibição de concorrência incide no contrato de cooperação empresarial, com vistas a assegurar a sua realização e a proteção das legítimas expectativas dos participantes do empreendimento. Na Comunidade Européia, segundo noticia Pedro Paulo Cristófaro278, a jurisprudência admite como ancilares as cláusulas de não concorrência dos sócios com o empreendimento comum e que, em se tratando de joint venture, estas eram admitidas por todo o prazo de vigência da cooperação empresarial ou até mesmo por um período que ultrapassa a vigência da joint venture. Contudo, o Aviso nº 188/5 de 2001, da Comissão Européia de Concorrência, estabeleceu que o limite temporal da cláusula de não concorrência no contrato de joint venture deve ser justificado e poderá ser de até 05 (cinco) anos, assentando que as cláusulas restritivas de concorrência por período superior à duração da cooperação empresarial não serão consideradas auxiliares. Cabe destacar, no que tange ao elemento temporal da cláusula de não concorrência no contrato de joint venture, que este, ao contrário do padrão de 05 (cinco) anos aplicável às situações negociais gerais, deverá corresponder ao tempo 277 Ibid., p.181. CRISTOFARO, Pedro Paulo. As Cláusulas de Raio em Shoping Center e a Proteção à livre Concorrência. Revista IBRAC, vol. 10, n.º 3, 2001, p.93. 278 170 de duração para a execução do projeto ou prazo menor se assim dispuserem os participantes279. Portanto, o artigo 1.147 do Código Civil é aplicado, por analogia, para regular a proibição de concorrência dos participantes da joint venture, desde que os seus elementos sejam razoavelmente delimitados com vistas à consecução da finalidade da operação. 5.7 A APLICAÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE SHOPPING CENTER O shopping center constitui verdadeiro centro global de interesses, econômica e juridicamente distinto das empresas nele estabelecidas, de modo que o centro comercial é em si mesmo, objeto de proteção do direito concorrencial, não apenas em relação a terceiros, mas também nas relações entre os próprios comerciantes com estabelecimentos nele localizados. Nesse passo, ensina Fábio Konder Comparato280 que as regras de concorrência estabelecidas nos regimentos internos dos centros comerciais, correspondem a uma limitação convencional indireta de concorrência, isto é, uma obrigação acessória em contrato que não tem por objetivo principal a regulação da concorrência. Além dos limites estabelecidos nas áreas do próprio centro comercial, ajusta-se um limite externo em relação ao centro como um todo. Tais limitações constituem um efeito natural do contrato com vistas à colaboração das partes e não da competição entre elas. Com efeito, a legitimidade da cláusula de não 279 Nesse sentido, confira-se o voto do conselheiro relator Marcelo Procópio Calliari, no ato de Concentração n.º 08012.004804/98-54, requerentes: Lucent Technologies Internacional Inc. e Telessis Sistemas em Telecomunicações Ltda., in DOU de 14/01/1999. 280 COMPARATO, Fabio Konder. As cláusulas de não-concorrência nos “shoppings Centers”. In Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n.° 97, jan./mar. 1995, pp. 23-28. 171 concorrência depende dos limites precisos de objeto, de tempo e de espaço, tendo em vista o princípio da liberdade de concorrência albergado no artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal. Em se tratando de shopping center, esclarece, ainda, Fabio Konder Comparato281 que, com vistas à proteção da clientela do centro comercial, a cláusula de não concorrência é estipulada de forma a cobrir todas as modalidades de comércio e serviços localizados no centro comercial. Não basta, porém, que se defina o objeto dessa obrigação de não concorrer. No dizer do referido autor282: Importa, ainda, que ela seja limitada no tempo, ou no espaço, [...]. Estas duas podem ser cumuladas, mas é indispensável que exista pelo menos uma. Quando a causa da interdição de concorrência refere-se à pessoa do empresário, é normal que se estabeleça uma limitação no tempo, pois a clientela pessoal tende a dispersar no curso dos anos. Mas se a razão de ser da estipulação é a concorrência espacial entre estabelecimentos, o que importa é a fixação de uma distância mínima de separação entre eles, a prevalecer sem limitação de tempo. A propósito do limite espacial, Pedro Paulo Salles Cristófaro283 adota a denominação de “cláusula de raio”, que é válida na medida em que esteja adstrita aos limites necessários para atingir os fins legítimos do contrato de shopping center, os quais se revelam na preservação do empreendimento e dos interesses entre seus participantes, na manutenção da força atrativa do tenant mix e na coibição do desvio de clientela resultante dos esforços comuns. No que tange aos critérios para a fixação da distância da cláusula de raio, leciona o citado autor que: o raio propriamente dito em que a concorrência estaria proibida deverá ser limitado ao estritamente necessário para que o poder de atração da loja localizada no interior do shopping não seja aviltado. A distância cabível, naturalmente, dependerá de diversos fatores, que fazem parte dos próprios estudos de viabilidade para a composição do tenant mix. Em um shopping de vizinhança, cujo mix é formado para atender às necessidades básicas de consumidores vizinhos, o raio de proteção será menor; em um shopping regional, que visa atender a toda sorte de clientes, o raio poderá ser maior. No interior, em que o deslocamento entre grandes distâncias se faz em 281 Ibid., pp. 23-28. Ibid., p. 28. 283 CRISTOFARO, op. cit., pp. 95-97, nota 283. 282 172 curto espaço de tempo, o raio poderá ser maior, nos grandes centros, marcados por engarrafamentos, etc. Pedro Paulo Salles Cristófaro284 defende que a proibição de concorrência é auxiliar no contrato de locação e que, portanto, deve vigorar pelo prazo da locação, ressalvando, contudo, que a sua apreciação deverá observar a razoabilidade e as condições específicas de um determinado mercado. Acrescenta o referido autor, ainda, que a imposição ao lojista de uma abstenção permanente de se estabelecer em outro local, nas proximidades do shopping, sem apontar qualquer limite temporal, fere profunda e gravemente o direito do lojista de exercer livremente a atividade econômica, a todos garantidas pela Constituição Federal, pois implicaria na renúncia definitiva ao exercício de um direito irrenunciável, ainda que relativamente a uma restrita localidade. Em recente livro sobre o Shopping Center, João Augusto Basílio285 opina no sentido de que a cláusula de não concorrência deve conter em sua redação os limites de objeto, tempo e espaço, sob pena de configurar infração à ordem econômica286. Apesar do conselheiro Roberto Augusto Castellanos Pfeifer ter qualificado a convenção de não restabelecimento no shopping center como cláusula de exclusividade, percebe-se que os elementos da norma do artigo 1.147 do Código Civil (material, temporal, territorial e acessório) foram aplicados por analogia para apreciação da validade da referida convenção, tendo concluído, no caso concreto, pelos seus efeitos anti-competitivos. 284 Ibid., p. 100. BASÍLIO, João Augusto. Shopping Centers. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 139. 286 Essa questão foi submetida à apreciação do CADE, no Processo Administrativo n.° 08012.009991/98-82, Representante: Participações Morro Vermelho Ltda. e Representadas: Condomínio Shopping Center Iguatemi e Shopping Centers Reunidos do Brasil Ltda., tendo o conselheiro Roberto Augusto Castellanos Pfeifer, tecido importantes considerações acerca dos elementos no caso concreto e sobre o mercado relevante em apreço. 285 173 Destarte, aplica-se, por analogia, a norma do artigo 1.147 do CC para disciplinar a proibição de concorrência dos lojistas nos contratos de shopping center, desde que não resulte no mercado qualquer impacto negativo. 174 6 CONCLUSÃO De todo o exposto nesta dissertação, pode-se inferir as seguintes proposições: (I) a Constituição de 1988, como fonte primária do sistema jurídico, na medida em que reside no ápice do escalonamento normativo do ordenamento jurídico brasileiro, subordina a interpretação da legislação infraconstitucional em consonância à normatividade constitucional. Em última análise, a compreensão das normas infraconstitucionais pressupõe a sua leitura à luz da supremacia constitucional; (II) conforme se infere do artigo 1º, o legislador constituinte elegeu o regime político de Estado Democrático de Direito assentado nos seguintes fundamentos: (I) a soberania; (II) a cidadania; (III) a dignidade da pessoa humana; (IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (V) e o pluralismo político; (III) o legislador constituinte remete ao caput do artigo 170 aos seus artigos 1º, incisos II e III, e 3º, inciso I, todos da CF, o que significa que a atuação do Estado e dos particulares, nos processos de produção, circulação, distribuição e consumo das riquezas do país, têm como finalidade última a existência e desenvolvimento da pessoa humana, que será efetivada em consonância com a justiça social; (IV) o Direito Comercial é correntemente definido como conjunto de normas, conceitos e princípios jurídicos que regem, no domínio privado, os fatos e as relações jurídicas comerciais ou, ainda, como o Direito Privado especial do comércio ou dos comerciantes; (V) a Constituição de 1988 abriu caminho para a leitura do Direito Civil e Comercial conforme as normas fundamentais constitucionais. Proclamando-se a 175 constitucionalização do Direito Civil no Brasil, de maneira que as normas fundamentais constitucionais, especialmente os valores existenciais da solidariedade social, a igualdade substancial e a dignidade da pessoa humana, espraiam-se por toda a legislação infraconstitucional civil; (VI) o desenvolvimento das técnicas comerciais e industriais impuseram uma especialização e uma organização na atividade comercial. Assim, a noção de ato de comércio perdeu relevo prático e cedeu passo à noção de atividade como série coordenada de atos e, depois, à noção de empresa; (VII) foi com a intensificação do comércio e o surgimento da concorrência que a importância do estabelecimento comercial ganhou relevo. A crescente concorrência faz com que o comerciante aprimore os mecanismos para atrair a clientela. O incremento do estabelecimento comercial foi um desses mecanismos; (VIII) as cláusulas gerais da função social do contrato e da boa-fé objetiva, reveladas nos artigos 113, 187, 421 e 422 do Código Civil de 2002, reclamam concretização de acordo com os critérios interpretativos coerentes com os valores existenciais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, os quais constituem a ratio do sistema jurídico brasileiro; (IX) na perspectiva constitucionalizada, a empresa há de ser compreendida como organização que engloba também feixe de contratos e de relações com vistas a tutelar os interesses nela envolvidos à luz das normas fundamentais constitucionais; (X) A empresa exerce a sua função social e econômica ao observar as normas setoriais constitucionais inseridas no artigo 170 da CF. A livre iniciativa e a propriedade privada (artigo 170, incisos II e IV, da CF) devem ser exercidas na sua perspectiva funcional e não abusiva (artigos 170, inciso III e 173, § 4° da CF), de 176 maneira que a propriedade de bens de produção deve ser também e prioritariamente utilizada em benefício de terceiros; (XI) a preservação da empresa consiste na garantia da sua continuidade no interesse geral do mercado, coletividade e no interesse dos participantes da sociedade, concretizando o princípio da função social da propriedade (artigo 5°, inciso XXXIII; artigo 170, inciso III da CF); (XII) o exercício da liberdade de concorrência entre os particulares comporta restrições de ordem legal e convencional. A primeira diz respeito àquela situação na qual o exercício pelo particular de uma determinada atividade foi previamente condicionado pelo legislador à autorização de outro particular, como a exploração de patentes de invenção. Quanto à segunda, restrições convencionais, são as estipuladas pelos contratantes no exercício da sua autonomia privada (artigos 1°, inciso IV, e 170, caput, da CF), exemplo desta é a cláusula de exclusividade em contrato de representação comercial; (XIII) a proibição de concorrência imposta ao alienante do estabelecimento empresarial (artigo 1.147 do CC) é uma espécie de restrição legal à liberdade de concorrência (artigo 170, inciso IV, da CF); (XIV) no sistema jurídico brasileiro, os elementos potencialmente constitutivos de um estabelecimento empresarial podem ser reconduzidos às categorias de bens corpóreos (materiais) e incorpóreos (imateriais) e das relações jurídicas (contratos de trabalho e serviços, créditos); (XV) à luz da perspectiva do critério funcional, os elementos componentes do estabelecimento empresarial serão aqueles que mantêm a identidade do projeto empresarial e as características qualitativas do processo produtivo, assim, para formar o seu estabelecimento empresarial, o empresário identificará os bens que 177 são necessários para o desenvolvimento de sua atividade, promovendo a sua integração com a organização que considerar mais conveniente e funcional; (XVI) o aviamento é a capacidade do estabelecimento produzir lucros, tendo origem no conjunto de bens selecionados pelo empresário e na organização a eles oferecida, sendo uma conseqüência do trabalho intelectual do empresário ao organizar os seus bens. A capacidade de atrair clientela é possibilidade de lucro para o estabelecimento. A expressão aviamento traduz essa idéia: organização eficiente que resulta na atração de clientela que se reflete na capacidade lucrativa do estabelecimento; (XVII) a clientela compreende os destinatários dos bens e serviços produzidos pelo empresário e o fluxo constante de demanda desses bens e serviços que estão dispostos a contratar com o estabelecimento. Ela não tem deveres em relação à empresa e nem pode ser objeto de direito real. Para o direito em vigor a clientela é insuscetível de apropriação; (XVIII) de fato, a presença de clientela é fundamental para o estabelecimento empresarial, mas não se chega à conclusão de que ela é bem incorpóreo que compõe juntamente com os demais, corpóreos e incorpóreos, o estabelecimento empresarial; (XIX) predomina, hoje, na doutrina brasileira, o entendimento de que o estabelecimento empresarial tem natureza jurídica de uma universalidade de fato; (XX) essa universalidade é formada pela vontade do seu titular, o empresário, que organizou os diversos elementos componentes, tendo em vista o exercício de uma determinada atividade. Nesse caso, como os elementos que compõem o estabelecimento formam uma unidade em virtude da destinação que 178 lhes foi dada pelo seu titular, trata-se de uma universalidade de fato, tal como definido expressamente na norma do artigo 90 do código civil; (XXI) no contrato de trespasse, o alienante e o adquirente assumem deveres decorrentes da boa-fé objetiva (artigos 187 e 422 do CC), como o dever de informação, de lealdade, de proteção e de segredo ou sigilo; (XXII) no sistema jurídico brasileiro, a evolução do tratamento dispensado à proibição de concorrência no contrato de trespasse pode ser dividida em quatro fases com contornos específicos em conformidade com a ideologia vigente à época; (XXIII) na 1ª fase, caracterizada pela ideologia liberal que prestigiava a vontade absoluta das partes, a proibição de concorrência deveria ser expressamente pactuada e limitada no tempo, no espaço e no objeto. O descumprimento da cláusula de não concorrência consistia em uma violação ao contrato e gerava apenas um dever de reparação; (XXIV) na 2ª fase, por força da interpretação do artigo 214 do Código Comercial Brasileiro, a proibição de concorrência era entendida como implícita no contrato de trespasse e tinha por escopo tutelar a clientela do estabelecimento alienado. Nesse período, a violação da proibição de concorrência era qualificada como ato de concorrência desleal; (XXV) na 3ª fase, a proibição de concorrência inferia-se implicitamente do contrato de trespasse, contudo, o seu fundamento decorreria do princípio da boa-fé objetiva do artigo 131 do Código Comercial, já sob o influxo da Constituição de 1988, com vistas a tutelar o aviamento do estabelecimento (capacidade de gerar lucros). Todavia a proibição de concorrência estava sujeita às limitações material, temporal e espacial; 179 (XXVI) a 4ª fase é inaugurada com o artigo 1.147 do Código Civil de 2002, quando é concedido um tratamento de proibição legal de concorrência pressuposta pelo legislador da vontade querida pelas partes; (XXVII) toda restrição à liberdade de concorrência deve ser sempre justificada com vistas, em primeiro lugar, a não prejudicar os interesses da coletividade (artigo 170, caput, da CF c/c 421 do CC) e, em segundo lugar, realizar as legítimas expectativas das partes e o resultado econômico (aviamento objetivo) do contrato de trespasse (artigos 421 e 422 do CC). Em última análise, a ratio da norma de proibição de concorrência do alienante (artigo 1.147 do CC) reconduz à proibição de venire contra factum proprium (artigo 187 do CC); (XXVIII) o período de 05 (cinco) anos, previsto no artigo 1.147 do CC, constitui um limite temporal padrão e poderá ser superado por meio do postulado da razoabilidade, na sua acepção como eqüidade, para assegurar a função social e econômica do contrato de trespasse e as legítimas expectativas dos contratantes, e assim promover a realização da justiça material (artigos 3°, 5°, caput, e 170, caput, da CF c/c artigos 421 e 422 do CC). A estipulação de um prazo superior ao padrão de 5 anos é suscetível de controle pelo CADE (artigo 170, § 4° da CF e artigos 20 e 54 da Lei 8.884/94) e pelo Poder Judiciário (artigo 1°, inciso III, e 5° caput, inciso XXXV da CF); (XXIX) para flexibilizar o elemento temporal de cinco anos, a fim de viabilizar a realização da própria transação principal (função social e econômica), quando presentes circunstâncias justificadoras, como as particularidades do próprio mercado ou, ainda, o grau de experiência do adquirente no respectivo ramo de negócio, tem sido aplicado pelo CADE, no controle desse elemento, o postulado da razoabilidade; 180 (XXX) o postulado da proporcionalidade é aplicado pelo CADE para resolver a imbricação dos princípios da ordem econômica (artigo 170 da CF e artigo 1° da Lei n° 8.884/94) e tutelar, em primeiro lugar, os interesses da coletividade (artigo 1°, parágrafo único, da Lei n° 8.884/94 c/c 421 do CC) e, em segundo lugar, os legítimos interesses dos contratantes (artigo 421 e 422 do CC), visando assegurar, respectivamente, o bem estar social e a justiça material (artigos 3°, 5°, caput, e 173, § 4°, da CF c/c artigo 1°, parágrafo único, da Lei n° 8.884/94 e artigos 421 e 422 do CC); (XXXI) a proibição de concorrência tem a sua eficácia subjetiva (efeitos internos) restrita aos contratantes, alienantes e adquirentes, e ao subadquirente; (XXXII) a quebra da proibição de concorrência pode ocorrer direta ou indiretamente. A violação será direta quando for praticada pelo empresário alienante e, indireta quando o alienante associar-se a terceiro, concorrente ou não, para explorar o mesmo fim ou segmento mercadológico do estabelecimento empresarial alienado; (XXXIII) a proibição de concorrência do artigo 1.147 do CC comporta aplicação extensiva por meio da interpretação teleológica e aplicação integrativa por meio da analogia. A primeira corresponde diretamente ao fundamento da razão da norma de proibição de concorrência, isto é, dos objetivos pretendidos pelo legislador com a sua edição e, indiretamente, à coerência normativo-material do sistema considerando o caso concreto. Na interpretação extensiva, o domínio de aplicação do sentido da norma é ampliado para integrar um caso, ainda que circunstâncias nele existentes não pertençam ao fato-tipo conceitual previsto, nesse caso, a proibição de concorrência presume-se querida pelos contratantes. 181 (XXXIV) a aplicação integrativa por meio da analogia, que é entendida pela transposição de uma regra, dada na lei para a hipótese legal, ou várias hipóteses semelhantes, numa outra hipótese, não regulada por lei, semelhante àquela. Nesta, a proibição de concorrência não é presumida, é necessária a sua previsão expressa no contrato; (XXXV) no contrato de alienação das participações societárias representativas do controle de sociedade empresária de pessoas e de capital, a proibição de concorrência é aplicável extensivamente; (XXXVI) a proibição de concorrência é aplicada extensivamente na operação societária de cisão parcial da empresa quando esta corresponder, indiretamente, ao contrato de trespasse, isto é, quando o estabelecimento for alienado como um todo unitário ou subtraídos alguns de seus elementos, seja mantida a estabilidade da sua organização e o estabelecimento se mantenha apto ao exercício da atividade empresarial. Se a cisão da empresa não corresponder ao contrato de trespasse, admite-se a aplicação integrativa da proibição de concorrência com a finalidade de assegurar a consecução da operação em razão dos elementos que compõem a parcela do patrimônio transferido; (XXXVII) a proibição de concorrência aplica-se ao sócio retirante ou excluído somente se este exercia uma função que lhe permitia adquirir o conhecimento das características organizativas da empresa e dados confidenciais, ou se estabeleceu uma relação especial e pessoal com os clientes, fornecedores e financiadores, exercendo sobre estes uma atração diferencial. Nesse caso, os elementos de validade da proibição de concorrência são: material, territorial, temporal, acessoriedade e retribuição; 182 (XXXVIII) nos contratos de franquia, de joint venture (artigo 3°, inciso XIV, da Lei 8.955/94) e de shopping center, a proibição de concorrência é aplicada integrativamente e, por isso, deve ser expressamente ajustada entre os contratantes, bem como deve conter os elementos temporal, material, territorial e acessório, e não resultar impactos negativos no mercado em prejuízo da coletividade (artigo 1°, parágrafo único, da Lei 8.884/94). (XXXIX) infere-se do presente trabalho que pela primeira vez tem-se a positivação da cláusula de não concorrência no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, a regulação dessa cláusula no artigo 1.147 somente faz restrição ao tempo, não trazendo qualquer restrição com relação ao espaço e ao gênero de comércio, que era entendimento jurisprudencial. A proibição absoluta do restabelecimento do alienante do fundo sem restrições é incompatível com a Constituição Federal (princípio da livre iniciativa e livre concorrência), sendo imperioso o princípio da razoabilidade e proporcionalidade ao se tratar da questão. 183 7 REFERÊNCIAS ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de Direito Comercial. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2005. AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2ª ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2004. ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de. Abuso do Direito e concorrência desleal. São Paulo: Quartir latin, 2004. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ASCARELLI, Tullio. Evolução e papel do direito comercial. In Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 85, n. 725, pp. 733-747, mar. 1996. ASCENÇÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal. Coimbra: Almedina, 2002. ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. Fábio Konder Comparato. In Revista de Direito mercantil. São Paulo: 1994. ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. BARBOSA, Rui. As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. In Obras Completas. Prefácio de Francisco Moraes. Vol. XL. Rio de Janeiro: [s.n.], 1948. BARBOZA, Heloisa Helena. Bioética x Biodireito: insuficiência dos conceitos jurídicos. In___; BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. BARCELLOS. Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002. BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial – Fundo de comércio ou fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. 184 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. __________. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In____. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. __________. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. __________. Modadidades de intervenção na ordem econômica. Regime jurídico das sociedades de economia mista. Inocorrência de abuso de poder econômica. In___. Temas de Direito Constitucional. Tomo I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BASÍLIO, João Augusto. Shopping Centers. Rio de Janeiro: renovar, 2005. BASSO, Maristela. Joint Ventures. Manual Prático das associações empresariais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 7º vol. São Paulo: Saraiva, 1990. BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. Brasília: UNB, 1999. ________. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Arini Bueno Sudatti. São Paulo: Edipro, 2001. BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969. BULGARELLI, Waldírio. Sociedades Comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas; empresas e estabelecimento comercial: estudo das sociedades comerciais e seus tipos, conceitos modernos de empresa e estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagem às sociedades civis e cooperativas. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003. 185 CASANOVA, Mario. Verbete Azienda. In Digesto delle Discipline Privatistiche. 4ª ed. Vol. 1, Torino: UTET, 1998. CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1 e 2, 2ª ed. Revista e atualizada por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa Neto. São Paulo: RT, 1982, CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça distributiva. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. ____________. Curso de Direito Comercial. Vol. 2, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. ____________. Curso de Direito Comercial. Vol. 3, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. COLOMBO, Giovanni E. Trattado di Dirito Commerciale e di Dirito Pubblico Dell’Economia. Vol. Terzo. (L’Azienda e il Mercato). Diretto da Francesco Galgano. Padova: CEDAM, 1979. COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 3ª ed. Rio de janeiro: Forense, 1993. ____________. As cláusulas de não-concorrência nos “Shopping Centers”. In Revista de Direito Mercantil, São Paulo, p. 23-28, n. 97, jan./mar. 1995. ___________. Função social da propriedade dos bens de produção. In Revista de Direito Mercantil, São Paulo: Malheiros, n. 63, 1986. CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial. 8ª ed. Lisboa: Ediforum, 2003. CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Vol. I. Lisboa: Almedina, 2001. CRISTOFARO, Pedro Paulo. As Cláusulas de Raio em Shoping Center e a Proteção à livre Concorrência. Revista IBRAC, vol. 10, n.º 3, 2001, p.93. __________. O Princípio da Livre Iniciativa como um dos Fundamentos da República. Conseqüências. In MOREIRA NETO, Diogo De Figueiredo (Coord.). Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. CUNHA, Carolina. A indenização de clientela do agente comercial. Coimbra: Coimbra, 2003. 186 DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações de Imóveis Comentada. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constituición como Norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1994. ESTORNINHO, Maria João. A Fuga para o Direito Privado. Contributo para o estudo da atividade de direito da Administração Pública. Lisboa: Almedina, 1999. ESTRADA, Alexei Júlio. La eficcacia de los derechos fundamentales entre particulares. Bogotá: Universidad de Colombia, 2000. FABIAN, Christoph. O Dever de Informar no Directo Civil. São Paulo: R.T., 2002. FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; Teoria Crítica do Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. FAZZIO JÚNIOR,Waldo, Fundamento de Direito Comercial. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. FEKETE, Elizabeth Kasznar. O regime jurídico do segredo de indústria e comércio no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. FERRAZ, Sylvio Marcondes. Questões de Direito Mercantil. São Paulo: Saraiva. 1977. FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial. 2° vol., tomo1. São Paulo: Saraiva, 1952. __________. Tratado de Direito Comercial. Vol. VI, nº. 1.217, São Paulo: Saraiva, 1962. FERRI, Giuseppe. Manuale di Diritto Commerciale. 5ª ed., Torino: UTET, 1983. FIALE, Aldo. Diritto Commerciale. Edizione Napoli: Esselibri-Simone, 1994. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Lei de Proteção da Concorrência. Comentários à legislação antitruste. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. FORGIONI, Paula A. Contrato de distribuição. São Paulo: Saraiva, 2005. __________. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: R.T., 1998. FRANCO, Vera Helena de Mello. Manual de Direito Comercial. Vol.1, 2ª ed. São Paulo: R.T., 2004. GARCIA, ENÉAS Costa. Responsabilidade pré e pós-contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. 187 GIOGIANNI, Michelli. Direito Privado e as suas atuais fronteiras. In Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 747, jan.1998. GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. GOMES, Orlando. Contratos. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. GONÇALVES FILHO, Manoel. Curso de Direito constitucional. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Ed. Ver. dos Trib., 1990. __________. FORGIONI, Paula. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, 2005. HERNANDEZ, Alfredo Morles. Curso de Derecho Mercantil. Elementos del sistema mercantil venezolano. Tomo I. Caracas: Universidad Catolica Andres Bello, 1986. HESSE, Honrad. A Força Normativa da Constituição. Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. Trad. Gilmar Ferreira IACOMINI, Marcello Pietro. Da alienação do estabelecimento empresarial. São Paulo: Paulista, 2004. JOÃO. Regiane Teresinha de Mello. Cláusula de não Concorrência no Contrato de Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2003. JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas Gerais no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. __________. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gullbenkian, 1997. LATELLA. Dario. II Divieto di Concorrenza dell”Alienante. In GUERRERA, Fabrizio (Coord.). I Transferimenti di Azienda. Milano: Giufrè, 2000. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Convenção impediente de novo estabelecimento. In _____. Pareceres. São Paulo: Singular, 2004. LIPPERT, Márcia Mallmann. A empresa no Novo Código Civil. Elementos de unificação no Direito Privado. São Paulo: R.T., 2003. LOBO, Jorge. Contrato de Franchising. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. LOUREIRO, Luiz Guilherme de A. V. A Lei de Propriedade Industrial Comentada. São Paulo. LEJUS, 1999. 188 LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MAGALHÃES, Barbosa de. Do Estabelecimento Comercial. Lisboa: Ática, 1951. MARIANI, Irineu. O Principio da Preservação da Empresa e a Dissolução da Sociedade por Cotas de Responsabilidade Limitada. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 630, ano 77, abr. 1988. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Específica: (arts. 461, CPC e 84, CDC). São Paulo: R.T., 2000. __________. Tutela Inibitória. São Paulo: R.T., 1998. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1999. MARTINS, Fran. Curso de Direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 25 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2000. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: São Paulo: R.T., 2000. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2ª ed. São Paulo: R.T., 2003. MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito Comercial Brasileiro. Vol.v, livro III, parte I, 7ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963. MIGUEL, Paula Castello. O Estabelecimento Comercial. In Revista de Direito Mercantil. São Paulo: R. T., n. 118, 2000. MONTEIRO, Rogério. Comentários ao Código Civil brasileiro: do direito de empresa. In ALVIN, Arruda et. al. (Coord.). vol. IX. Rio de Janeiro: Forense, 2005. MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil. Tendências. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 89, v. 779, set. 2000. ________. O conceito de Dignidade Humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In SARLET, Ingo Wolfang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto alegre: Livraria dos Advogados, 2003. MORAES, Maria Tereza Lynch de. O Trespasse: A Alienação do Estabelecimento Empresarial e a Cláusula de Não Restabelecimento. In Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 90, n. 792, p. 116 – 128, out. 2001. 189 MORAIS, Fernando de Gravato. Alienação e oneração de estabelecimento comercial. Coimbra: Almedina, 2005. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A pós-eficácia das obrigações. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.) Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: renovar, 2000. NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. ___________. Fundamentos para uma interpretação do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5ª ed., São Paulo: R.T., 1999. NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 7. &ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. NUNES, A. J. Avelãs. O Direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. Coimbra: Almedina, 2002. OLAVO, Carlos. Propriedade industrial. Coimbra: Almedina, 1997. OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Direito da concorrência e o Poder Judiciário. Rio de Janeiro: forense, 2002. OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e Economia da concorrência. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. PAES, P.R. Tavares. Curso de Direito Comercial. Vol.2. 2ª ed. São Paulo: R.T., 1996. __________. Da Concorrência do Alienante do Estabelecimento Comercial. São Paulo: Saraiva, 1980. PEREIRA. Guilherme Döring Cunha. Alienação do poder de controle acionário. São Paulo: Saraiva, 1995. PÉREZ, Jesús González. La Dignidad de la Persona. Madrid: Civitas, 1986. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar; 1999. PIMENTA, Eduardo Goulart. O Estabelecimento. In RODRIGUES, Frederico Viana (Coord.). Direito de Empresa no Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 190 PONTES DE MIRANDA, Fernando Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo XVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1956. POP, Carlyle. Considerações sobre a Boa-fé objetiva no Direito Civil Vigente – efetividade, relações empresariais e pós-modernidade. In GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.). Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004. REDECKER, Ana Cláudia. Franquia Empresarial. São Paulo: Memória Jurídica, 2002. NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. vol 1. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. RIBEIRO, Maria de Fátima. O Contrato de Franquia. Coimbra: Almedina, 2001. ROCCO, Alfredo. Princípios de Direito Comercial – Parte Geral. Trad. Do Italiano por Cabral de Moncada, São Paulo: Saraiva, 1931. ROCHA FILHO, José Maria. Curso de Direito Comercial. Parte Geral. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. RODRIGUES, Frederico Viana. Autonomia do Direito da Empresa no Novo Código Civil. In _____ (Coord.). Direito de Empresa no Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial – As condutas. São Paulo: Malheiros, 2003. ___________. . Direito Concorrencial – As Estruturas. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. ___________. O Novo Direito Societário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. SANTOS JÚNIOR, E. Sobre o Trespasse e a Cessão de Exploração do Estabelecimento Comercial. In ASCENÇÃO, José de Oliveira (Org.). As operações comerciais. Coimbra: Almedina, 1988. SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Tutela da Confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000. ____________. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. 191 SILVA, Ovídio A. Batista. Curso de processo civil. vol. 2. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2000. SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e as Novas Leis Autorais. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In___. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ___________. Crises de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In____. (Coord.). A parte geral do Novo código Civil. Estudos na perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. XXXI. ____________. (coord.) et. Al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. TOLEDO, Gastão de. O Direito Constitucional Econômico e sua Eficácia. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 175. TORRES, Ricardo Lobo. A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade. In___(org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. VASCONCELOS, L. Miguel Pestana de. O Contrato de Franquia (franchising). Coimbra: Almedina, 2000. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol.1. São Paulo: Malheiros. 2004. WALD, Arnoldo. A dupla função econômica e social do contrato. In Revista dos Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, Ano 5, vol. 17, jan./mar. 2004. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil. vol. 2. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2000. ZIMMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.