Curso de Psicologia Maria Cristina Suares Lima FILHO: UMA EXPERIÊNCIA DE ESTRANHAMENTO Salvador 2014 Maria Cristina Suares Lima FILHO: UMA EXPERIÊNCIA DE ESTRANHAMENTO Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Psicologia do Centro Universitário Jorge Amado, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia. Orientador: Chalhub. Salvador 2014 Professor Mestre Anderson Almeida AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, a Jesus e aos Espíritos Superiores a dádiva da vida e o amparo espiritual, em todos os momentos da minha existência. Aos meus pais, João (in memoriam) e Beatriz, a oportunidade desta existência, sem os quais não teria experienciado, nas inter-relações familiares, as lutas naturais e necessárias ao processo desenvolvimental humano e espiritual. Às minhas filhas, Xênia e Teila, que na convivência em família, me proporcionaram aprendizado e crescimento, enquanto mãe e educadora. Ao meu marido Luis Alberto, por sua generosa paciência, cumplicidade e companheirismo em todos os momentos, cujo incentivo e apoio, tornaram possível esta graduação. Aos meus professores, pela compreensão para com as minhas dificuldades; pela generosidade em compartilhar conhecimentos; pela dedicação, carinho e orientação no processo de aprendizado; por suas noites mal dormidas e exaustivas horas de trabalho, em prol do nosso aprimoramento acadêmico. Agradeço ao efetivo estímulo, principalmente de Kátia Jane Bernardo e Anderson Chalhub. A este último, meu mestre, pelos esclarecimentos zelosos e desafiadores na supervisão clínica, ao esculpir esta terapeuta, por sua paciência na orientação e condução deste trabalho, por acreditar em minhas capacidades, cujo incentivo nas horas mais difíceis, foi fundamental. Aos meus colegas, principalmente aos mais queridos, especialmente à minha turma de origem (2010.1), pela parceria e saudável convivência dentro e fora da academia, pelo compartilhamento de aprendizados, incentivo profissional e pela construção dos laços de amizade. Aos meus psicoterapeutas Ubirajara Costa e Sandra Meneses, pelo generoso incentivo das minhas capacidades enquanto pessoa, psicoterapeuta, na condução para o autoconhecimento, aprimoramento e transformação do meu Self. Aos clientes, pela generosidade em compartilhar suas vidas comigo. À Psicologia e a Doutrina dos Espíritos que fizeram de mim uma pessoa melhor. Enfim, a todos que tornaram possível esta jornada, colaborando para meu aprendizado, oportunizando desenvolvimento, enquanto ser humano, filha, irmã, mulher, companheira, mãe, amiga, colega e psicoterapeuta. Meus cumprimentos! Muitíssimo grata! Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida. Ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Onde leva? Não perguntes, segue-o! (Friedrich Nietzsche, 1930) SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO...................................................................................................6 2. DIFERENCIAÇÃO DO SEL...............................................................................9 3. INFLUÊNCIAS DOS SISTEMAS PARENTAL E SOCIOCULTURAL NA CONSTRUÇÃO DA DIFERENCIAÇÃO DO SELF AO LONGO DA VIDA.......16 4. ESTRANHAMENTO: UM OLHAR PARA A DIFERENCIAÇÃO......................22 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................29 6. REFERÊNCIAS...............................................................................................33 Filho: uma experiência de estranhamento Maria Cristina Suares Lima¹ Anderson Almeida Chalhub² Resumo Este trabalho objetiva analisar o entrelace entre a diferenciação psicológica e cultural de pais e filhos na experiência de estranhamento. Desta forma, busca especificamente entender as influências dos sistemas parental e sociocultural na construção do self ao longo da vida, identificar, nos mesmos, valores, crenças e mitos transmitidos, vinculados a esta experiência, e compreender o estranhamento sob o olhar da diferenciação do self. Para tanto, utiliza como metodologia a pesquisa bibliográfica e revisa conceitos fundamentais da Teoria Sistêmica, vinculadas aos estudos sobre família. A diferenciação do self é um processo natural do desenvolvimento humano e como tal deve ser encarado. A depender das expectativas dos pais e dos filhos, a diferenciação pode ser percebida como estranhamento, o que causa frustração, culpa, inquietação e conflito entre os membros do sistema familiar. Geralmente, a família luta para que o filho permaneça indiferenciado, enquanto o filho luta para manter suas crenças e valores recémconstruídos em contato com a sociedade e a cultura, o que causa estranhamento no sistema. Palavras-chave: Diferenciação do self. Família. Estranhamento. ¹ Graduanda em Psicologia pelo Centro Universitário Jorge Amado. Endereço para correspondência: Rua 1, nº 18, 1ª Etapa, Castelo Branco – Salvador – Bahia. E-mail: [email protected] ² Psicólogo pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Professor, Pesquisador e Orientador pelo Centro Universitário Jorge Amado. E-mail: [email protected] 6 1. INTRODUÇÃO O que leva alguns pais a se queixarem que seus filhos lhes parecem estranhos? Frequentemente, nas situações do cotidiano, como estagiária na clínica em psicoterapia de família, escutamos queixas dos pais referentes aos comportamentos atípicos de seus filhos. Elas versam sobre a personalidade deles, sobre as diferenças entre eles e o estranhamento causado por esses comportamentos, diferenciados dos valores e crenças transmitidos pela família. Estas situações são altamente frustrantes, culpabilizadoras e provocadoras de inquietação e conflitos em pais, familiares e educadores, que buscam direcionamento para a educação de seus filhos. Por outro lado, também deparamonos com determinadas situações nas quais estávamos observando esses filhos e percebemos que eles não se parecem com os pais: não gostam do que eles gostam, não apreciam o que eles apreciam e seus valores, muitas vezes, são bastante diversos. Os pais, em geral, se propõem a serem bons modelos, em estarem presentes, ampararem, orientarem, cuidarem. Mas, para uns, todo esforço resulta inútil. Esses pais questionavam quando e como erraram e por que seus filhos são tão diferentes deles, estranhos a eles, ou onde aprenderam a comportarem-se deste ou daquele modo. Muitas vezes, as pessoas próximas a elas ou os próprios membros da família ampliada, comentavam entre si: “Fulano é tão diferente do pai!”, “Sicrano parece um ser estranho naquela família”, “Aquela filha é a ovelha negra da família.” Uma situação que poderá ilustrar essa afirmativa é aquela em que os pais resolvem as situações conflitantes, dialogando com seus pares e subsistemas, enquanto que os filhos escolhem resolver os impasses ou conflitos através da agressividade ou até mesmo da violência física. O estranhamento pode ser percebido como uma angústia ou ansiedade, tanto na perspectiva dos pais, quanto dos filhos, que vivenciam essa experiência como sendo dolorosa, e muitas vezes disruptiva, nos entrelaces das relações familiares. Na perspectiva dos pais, é dolorido porque eles estranham os filhos, seres do seu mais profundo afeto e dedicação incondicional, quando em determinado momento das suas inter-relações, eles apresentam ou demonstram crenças e valores éticomorais diferenciados daqueles transmitidos inter e transgeracionalmente. A ponto de lhes parecerem verdadeiros estranhos, comparados, até mesmo a estrangeiros no seio do sistema familiar, cuja linguagem, hábitos, mitos e crenças se chocam com os 7 do núcleo. Já na perspectiva dos filhos, essa angústia parece ser vivenciada como uma incompreensão, uma rejeição ou desvalorização por parte dos pais, aqueles que deveriam amá-los incondicionalmente, apoiá-los, mas que, no entanto, os rejeitam por possuírem idéias e opiniões próprias e diferentes do sistema familiar. Esses filhos sentem-se tratados como “ovelhas negras” e são apontados como os portadores dos sintomas familiares, os bodes expiatórios, os culpados pelas discordâncias e pelas disfunções familiares. Situações como estas traduzem também a inquietação desta pesquisadora, conduzindo-a a reflexão sobre a experiência do estranhamento sob a perspectiva da diferenciação do self, cuja teorização versa sobre a diferenciação entre o self de uma pessoa e o self familiar. Isto vai direcionando a uma compreensão de que esta diferenciação se refere a uma sucessão de mudanças ocasionadas ou impulsionadas pela necessidade de individuação da pessoa, pela necessidade de construção da própria identidade, que sendo singular, é, portanto, diferente da dos demais membros do sistema familiar. Assim, o processo de desenvolvimento da pessoa diferenciação do self é essencial para o na família, pois faz parte do processo de amadurecimento, isto é, fundamental para a pessoa tornar-se “si mesma” o que é natural do processo de desenvolvimento humano sadio. Segundo Papero (1998), na família, os filhos experimentam o pertencimento (o saber-se membro da família) como partilham de suas crenças, valores, regras, segredos e mitos. Da mesma forma experimentam a diferenciação (afirmação da sua singularidade, da sua individuação e do seu direito de pensar e expressar-se, independentemente dos valores defendidos por sua família). Assim, a angústia trazida ou provocada pela diferenciação dos filhos, pode ser entendida como natural e inerente ao desenvolvimento humano. Daniels e Weingarten (1983 apud McGOLDRICK, 1995/2011, p. 42) dizem que educar filhos é um processo “gerador de desenvolvimento”, que “proporciona uma oportunidade” de aperfeiçoamento e expressão de si mesmo, “de aprender” o que pode vir a ser, de se tornar “alguém diferente”. Citam ainda, que os pais entrevistados no seu estudo, afirmavam que os filhos os desafiam a serem mais do que pensam, a darem mais do que imaginam ter para dar. McGoldrick (1995/2011, p. 42) vê essa perspectiva de desenvolvimento de pais e filhos “[...] na riqueza de 8 seu contexto global de relacionamentos familiares multigeracionais, assim como dentro de seu contexto social e cultural.” Assim, este trabalho é relevante para a Psicologia porque abre novas perspectivas para o atendimento psicológico às famílias e filhos em processo de diferenciação. Devido à escassez do tema, servirá também como referência para futuras pesquisas, ampliando estudos na perspectiva sistêmica, possibilitando uma visão mais contemporânea do entrelace das relações familiares com o processo de desenvolvimento humano. Também contribuirá com as Ciências Sociais e Humanas para o entendimento das relações familiares, na construção e no fortalecimento dos seus vínculos, possibilitando compreensão da necessidade dos filhos seguirem seus próprios caminhos e construírem suas próprias pontes na travessia do rio da vida. Para desenvolver este trabalho foi realizada uma pesquisa bibliográfica com buscas de palavras-chaves (família, diferenciação do self, estranhamento) nas bases de dados de acesso eletrônico (BVSpsi, Scielo, LILACS, PsycINFO) e em livros do campo da psicologia e psicoterapia com temáticas de família. Foram realizadas leituras exploratórias, seletivas, críticas e interpretativas do material encontrado, tendo sido devidamente fichados e organizados, segundo os critérios para pesquisa bibliográfica. (GOMES, Romeu, 2004; GIL, 2010). Por se tratar de pesquisa bibliográfica, revisamos conceitos fundamentais das Teorias Sistêmicas, vinculadas aos estudos sobre família, assim como conceitos de diferenciação do self, transmissão intergeracional, transgeracional, sistema parental e estranhamento, apresentados por Bowen, Carter, McGoldrick, Cerveny, e Bowlby e outros autores que discutem o tema. Assim, analisou-se o entrelace entre a diferenciação psicológica e cultural de pais e filhos na experiência de estranhamento, objetivo geral deste trabalho. Para tanto, precisamos compreender a Teoria da Diferenciação do Self, entender as influências dos sistemas parental e sociocultural na construção do self ao longo da vida, identificando nos mesmos, valores, crenças e mitos transmitidos, vinculados à experiência de estranhamento, bem como identificar aspectos da qualidade inter-relacional entre pais e filhos, e compreender o estranhamento sob o olhar da diferenciação do self, que são os objetivos específicos. 9 2. DIFERENCIAÇÃO DO SELF Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas do desejo da Vida por si mesma. Khalil Gibran (1883 – 1931/2006. p. 28). A diferenciação da pessoa inicia-se no próprio processo desenvolvimental da família, à medida que as relações vão se ajustando para lidar com as entradas, saídas e desenvolvimento dos seus membros. Estes passam por processos de expansão e contração, exigindo transformações ao longo do seu ciclo vital, de modo significativo. Carter e McGoldrick (1995/2011) nomearam essas mudanças de estágios do ciclo de vida familiar, estabelecendo seis fases de transformação: a) saindo de casa: jovens adultos solteiros; b) a união de famílias: o novo casal; c) famílias com filhos pequenos; d) famílias com adolescentes; e) lançando os filhos e seguindo em frente; f) famílias no estágio tardio. Na primeira fase, ocorre a diferenciação do self (de si mesmo) em relação à família de origem, quando são desenvolvidas as relações íntimas com novos parceiros, adultos, a definição profissional e busca da independência financeira. (CARTER; McGOLDRICK, 1995/2011). Na segunda fase, os jovens se comprometem com um novo sistema, formando um novo casal (sistema marital), havendo um realinhamento dos relacionamentos com as famílias ampliadas (as famílias de origem de cada um dos cônjuges) e os amigos. (CARTER; McGOLDRICK, 1995/2011). Na terceira fase, chegam os novos membros (filhos) dentro do sistema conjugal, e o casal cria espaço para eles, buscando unir-se nas tarefas de educação dos mesmos, nas tarefas domésticas e financeiras, havendo novo realinhamento com a família ampliada para inclusão dos papéis de pais e avós. (CARTER; McGOLDRICK, 1995/2011). Na quarta fase, é necessário aumentar a flexibilidade das fronteiras familiares para incluir a interdependência dos filhos e as fragilidades dos avós. Portanto, há uma necessidade de mudança nas relações entre pais e filhos para permitir movimentos do adolescente para dentro e para fora do sistema familiar. Isto requer novo foco nas questões conjugais e profissionais, e um reajustamento devido à necessidade de cuidar da geração mais velha. (CARTER; McGOLDRICK, 1995/2011). Na quinta fase, é necessário aceitar as várias saídas e entradas no sistema familiar, ocasionadas pela necessidade desenvolvimental dos filhos, jovens adultos. 10 Ocorre uma renegociação no sistema conjugal enquanto díade, e realinhamento das relações para inclusão de parentes do novo casal e netos. Normalmente nesta fase ocorre a necessidade de lidar com a incapacidade ou morte dos pais (avós). (CARTER; McGOLDRICK, 1995/2011). Na sexta e última fase há a aceitação da mudança dos papéis geracionais (transição do papel de pais para avós), em função da manutenção do funcionamento dos interesses próprios ou do casal, em face do declínio fisiológico. Ocorre necessidade de apoiar um papel mais central na geração do meio (filhos casados e com filhos) e de lidar com o luto da perda do cônjuge, irmãos, iguais (amigos) e preparação para a própria morte. (CARTER; McGOLDRICK, 1995/2011). Segundo Avis (1985 apud McGOLDRICK, 1995/2011, p. 42), “a família tradicional frequentemente não apenas encorajava, mas inclusive exigia padrões disfuncionais tais como a super-responsabilidade das mães por seus filhos e a complementar sub-responsabilidade ou desobrigação dos pais.” No entanto, não se pode esquecer que os estudos de Carter e McGoldrick (1995/2011) foram realizados com famílias norte-americanas, possivelmente da década de 80, quando seus estudos começaram a ser publicados. Para Bruscagin (2012), as exigências de padrões comportamentais diferem de cultura para cultura. Para os padrões culturais das famílias brasileiras da década de 90, essa super-responsabilidade das mães era considerada normal, pois havia uma interdependência significativa entre a mãe e os filhos, diferente das famílias norte-americanas por considerar superproteção ou dependência (BRUSCAGIN, 2012). Cerveny e Berthoud (1997/2010 e 2002/2011) propuseram uma divisão do ciclo vital das famílias brasileiras em quatro etapas, assim definidas: fase de aquisição, fase adolescente, fase madura e fase última. A fase de aquisição, como diz o próprio termo, é o período mais central e específico, de maior ênfase nas famílias que se iniciam, englobando o nascimento da mesma através da união do casal. É caracterizada geralmente, pela aquisição de um lugar para morar, trabalho que sustente as condições de sobrevivência, filhos pequenos (até a pré-adolescência), renegociação dos valores e regras de relacionamento adquiridas pelos cônjuges em suas famílias de origem e que irão influenciar na família que desejam formar. Ou seja, há uma reorganização no sistema em função da definição de novos papéis. Já a fase adolescente se refere ao período em que os filhos entram na adolescência, bem como os desafios e 11 transformações pessoais e relacionais enfrentados pela família, pelo casal e pelo adolescente. (CERVENY; BERTHOUD, 1997/2010 e 2002/2011). A fase madura remete ao período em que os filhos atingem a idade adulta e saem de casa e a família vive a maturidade. É quando o casal tem oportunidade de se redescobrir, reencontrar seu tempo a dois, enfim de reestruturar sua vida. É caracterizada por transições nas quais, conflitos e ambiguidades estão presentes, pois surgem novas obrigações, como a de cuidar dos pais (avós) que se encontram na terceira ou quarta idade. Também ocorre nesta fase a formação da família canguru, ou seja, quando os filhos que têm por volta de 25 a 35 anos, mais ou menos independentes economicamente, ainda não saíram de casa. Também ocorre a entrada de novos membros na família extensa, e com isso há uma nova renegociação das regras de convivência e padrões de relacionamento. (CERVENY; BERTHOUD, 1997/2010 e 2002/2011). A fase última trata do período de vida em que normalmente os cônjuges já estão aposentados, geralmente não têm nenhum filho vivendo com eles e o tempo se desacelera. Embora tenha sido ampliada com o aumento da perspectiva de vida, é caracterizada pelo envelhecimento dos cônjuges, que por sua vez irá influenciar peculiarmente nas transformações da estrutura familiar e parental, seja pela viuvez de um dos cônjuges, ou por questões práticas de moradia, manutenção financeira, ou por questões pessoais de adaptação às novas condições emocionais de perda de funções e papéis. (CERVENY; BERTHOUD, 1997/2010 e 2002/2011). Cerveny (2002/2011) compara essas fases com a metáfora das fases da lua: a fase de aquisição é a lua nova, a fase de adolescente é a lua crescente, a fase madura é a lua cheia e a fase última é a lua nova. (CERVENY; BERTHOUD, 1997/2010 e 2002/2011). Essas fases são permeadas por diferenciações do self das pessoas e da família, que variam de pessoa para pessoa e de família para família, de acordo com a diversidade cultural das mesmas. A diferenciação do self é fundamental na avaliação do funcionamento individual e familiar, e de como os membros da família respondem ao ciclo de vida e às mudanças ambientais. Segundo Bowen (1978 apud PAPERO, 1998), a diferenciação do self engloba a capacidade do indivíduo distinguir o sistema intelectual ou racional do sistema emocional, e a competência de preservar a autorreflexão e autonomia num contexto de intimidade profunda com as pessoas mais próximas. O processo de diferenciação do self é formado por duas 12 dimensões distintas e inter-relacionadas: uma, no nível intrapsíquico, refere-se à capacidade de autorregulação, à capacidade de distinguir pensamentos de sentimentos e a decisão entre ser direcionado pelo sistema emocional ou pelo intelectual. A outra, no nível interpessoal, refere-se à capacidade de resguardar a autonomia, ao mesmo tempo em que vivencia intimidade com outras pessoas. (PAPERO, 1998; NEVES, 2011). Bowen (1978 apud PAPERO, 1998; NEVES, 2011) especifica dois níveis de diferenciação: o nível básico, independente do processo relacional, determinado pelo nível de separação emocional da família de origem, cujo componente mais importante é o self sólido, correspondente à parte do self que é impermeável à influência de outras pessoas, formado pelas crenças e conhecimentos, não influenciados pela coação da aprovação dos outros; o nível funcional, dependente do processo relacional e influenciado pelo nível de ansiedade crônica nos sistemas relacionais do indivíduo, cujo componente importante é o pseudo self (ou falso self), permeável à influência de outros e refere-se aos conhecimentos e crenças adquiridas na relação com outras pessoas (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998; NEVES, 2011; KERR, 1984/1988; SKOWRON; FRIEDLANDER, 1998 apud NEVES, 2011). Desta forma, a teoria boweniana destaca a necessidade de descobrir o que acontece nas gerações precedentes à família nuclear, para compreendê-la, ampliando o olhar sobre a família extensa para tornar compreensíveis ao psicoterapeuta e à própria família, os nós que permanecem confusos no estudo exclusivo (ou estrito) da família. (PAPERO, 1998; MARTINS, RABINOVICH, SILVA, 2008). Na família, as crianças experimentam tanto a diferenciação quanto o pertencimento. Este último é o direito de compartilhar, conhecer-se membro da família, partilhar suas crenças, regras, valores, mitos e segredos. Toda criança nasce fusionada ao self familiar, mas durante o seu desenvolvimento, sua principal tarefa será diferenciar-se do mesmo, para adquirir autonomia e independência. Essa diferenciação é necessária para o processo desenvolvimental e para o funcionamento saudável da pessoa dentro do sistema familiar, cujo processo requer que o indivíduo se torne um self diferenciado da sua família de origem, mas mantendo relação com a mesma, ou seja, afirme sua singularidade, sua individuação, seu direito de pensar e agir independente dos 13 valores preservados pela família (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998; MARTINS; RABINOVICH; SILVA, 2008). Os pais devem favorecer este processo, apoiando, incentivando e orientando este desenvolvimento, apresentando fronteiras mais flexíveis (MINUCHIN; FISHMAN, 2007) para permitir que o filho, ao alçar voo próprio, sinta-se seguro para o enfrentamento de novas fases. Se o filho desenvolve um self menos diferenciado, poderá ser mais “vulnerável às aflições da vida” (PAPERO, 1998, p. 80), ou seja, poderá desenvolver baixa tolerância às frustrações, e ceder perante a influência de outras pessoas, tornando-se dependente delas. Isto significa que poderá possuir menos capacidade intelectual para agir, ou ainda, se sua diferenciação for mínima, provavelmente terá dificuldades relacionais e será mais reativo às falas dos membros da família e de outras figuras de autoridade. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). A pessoa indiferenciada não sente segurança emocional para agir. Afirma Papero (1998) que vários fatores, como a ansiedade e a transmissão da indiferenciação como uma herança familiar, influenciam as ligações emocionais não resolvidas. Assim, a gênese dessas ligações emocionais, está na fusão da pessoa em relação a seus pais. Neste caso, a pessoa poderá necessitar de outra pessoa para atuar com self, pois possuem pouca autonomia, e tendem a fundir-se com outros, experimentando dificuldades quando se separam delas. (PAPERO, 1998). “Essa necessidade pode variar de uma simbiose real” a “um grau muito baixo de fusão.” (PAPERO, 1998, p. 79). Seja como for essa necessidade de completude que a pessoa tenha, Papero (1998) diz que ela é transmitida, desde a família de origem, a todas as relações futuras. As pessoas que tiveram grandes dificuldades de se afastarem emocionalmente de suas famílias, tendem a romperem relações entre si, produzindo um corte emocional. Disto se compreende que, a forma como a pessoa lida com a indiferenciação de sua família de origem pode levá-la a cortar relações com a mesma. Bowen (1978 apud PAPERO, 1998, p 91) afirma que, “a pessoa que foge do lar está tão emocionalmente ligada a ele quanto aquela que lá permanece e se utiliza de mecanismos interiores para controlar essa ligação.” Disto se compreende que o saudável tanto para o indivíduo quanto para a família é desenvolver uma diferenciação. “Quanto mais alto o nível de diferenciação apresentado por uma pessoa e por uma família, menos ligações emocionais 14 indiferenciadas” elas precisarão gerenciar em seus relacionamentos, e mais independência emocional elas possuirão. (PAPERO, 1998, p. 78). Um self familiar diferenciado propicia aos seus membros uma educação baseada na diferenciação do self. Todavia, alguns membros podem se diferenciar bastante e apresentar um grau muito elevado de diferenciação do self, demonstrando uma capacidade autônoma de discriminar e escolher seu próprio funcionamento, ou seja, decidir se suas ações serão movidas ou gerenciadas pelo sistema emocional ou intelectual. Se a escolha do modo de funcionamento da pessoa é diferente da forma de funcionamento da família, isto a torna diferenciada desta, o que pode conduzir os pais a pensarem que seus filhos lhes são completamente estranhos. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998; NEVES, 2011). Afirma a teoria boweniana que o sinal de um bom equilíbrio ou ajustamento pessoal é a objetividade racional e a individualidade, pois uma pessoa diferenciada é capaz de distinguir o pensar do sentir, balanceando-os ou equilibrando-os, ou seja, é capaz de ser espontânea, de vivenciar fortes emoções sem perder o equilíbrio emocional. Isto quer dizer que é capaz de resistir ao poder dos impulsos emocionais, de escolher saídas definitivas e tomar novos rumos, uma vez que consegue pensar independentemente, decidir e agir de acordo com suas crenças. Do que se compreende, que também é capaz de relacionar-se intimamente com os outros (familiares, amigos, pessoas muito próximas que compõem a família extensa, pessoas das suas relações sociais e de trabalho) mantendo uma construção reflexiva sobre eles e ainda assim permanecer independente da família de origem. Todavia o grau de diferenciação depende do curso da história da família, embora a pessoa possa atingir os níveis mais altos de diferenciação através de processos que envolvam toda a família. (PAPERO, 1998; NEVES, 2011). A escala de diferenciação do self proposta por Bowen (1978 apud PAPERO, 1998; NEVES, 2011), embora utilize um método quantitativo, não foi construída com o objetivo de atribuir um nível exato de diferenciação, pois se refere ao nível básico de diferenciação. Além disso, é sabido que o nível atribuído a uma pessoa ou indivíduo é impreciso, e avaliar a diferenciação de um indivíduo, demanda uma ampla quantidade de informações sobre várias pessoas. (KERR, 1988 apud NEVES, 2011). Desta forma, Bowen (1978 apud PAPERO, 1998) estabeleceu os níveis de diferenciação do self em uma escala que vai de 0 a 100: 15 O nível zero, o “mais baixo possível do funcionamento humano” indica uma “indiferenciação completa” (NEVES, 2011, p. 8) onde as pessoas não apresentam “nenhuma capacidade de discriminar e escolher entre seu funcionamento baseado no sistema emocional ou intelectual.” (PAPERO, 1998, p. 79). Nos níveis mais baixos as pessoas podem ser extremamente reativas, isto é, podem apresentar respostas emocionais impulsivas, não reflexivas, ou opostas a estas. São altamente influenciadas pelos sentimentos e opiniões de outras pessoas. Comportam-se de forma automática, guiando-se apenas por seus instintos e sentimentos, demonstrando pouca racionalidade. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). Isto quer dizer que as pessoas menos diferenciadas vivem num mundo controlado pelas emoções, são menos flexíveis e emocionalmente dependentes dos outros. Tendem a ter suas respostas dirigidas por suas emoções e possuem dificuldade em sustentar uma solidez do self [ou solidez do eu para Neves, (2011) ou solidez do ego para Papero (1998)] nas relações, conduzindo a uma maior angústia psicológica. Estas pessoas têm maior necessidade de união e menos impulsionamento para a individualidade. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998; NEVES, 2011). Nos níveis médios as pessoas apresentam capacidade para diferenciarem-se, todavia retornam ao comportamento automatizado quando ansiosas. Constroem um falso eu, ou pseudo-self, isto é, suas crenças e conhecimentos são aprendidos e incorporados de outras pessoas. Isto significa que, se pressionadas, podem ceder e concordar sobre outros princípios que não os seus, tomando decisões antes de correrem o risco de assumir posições que desagradem os outros. Têm tendência a desenvolverem sintomas físicos, emocionais e sociais sérios, porém momentâneos, devido à grande capacidade de recuperação que possuem. Por apresentarem baixo nível de ansiedade, suportam os problemas com calma e relativo equilíbrio. (PAPERO, 1998). No nível mais alto estão as pessoas que apresentam princípios consolidados, buscando alcançar seus objetivos, pois são “capazes de manter seu raciocínio” (PAPERO, 1998, p. 80) sob as mais diversas condições, estando capacitada para funcionar emocionalmente ou intelectualmente a depender das circunstâncias apresentadas. Têm opinião segura, mas não necessitam expressá-las rígida ou dogmaticamente, pois, são capazes de considerarem as opiniões alheias, analisarem seu modo de pensar, trocarem velhas crenças por novas, responsabilizando-se por seus atos perante a família e a sociedade. Tolerantes e 16 respeitosas, despreocupadas com seu lugar na hierarquia, buscam serem éticas na avaliação do outro, e dificilmente desenvolvem sintomas diante de estresse. (PAPERO, 1998). Para Bowen (1978 apud PAPERO, 1998; NEVES, 2011) as pessoas que estão entre os níveis 85-95 da escala já são consideradas bem diferenciadas, pois é muito difícil alguém alcançar o nível 100, porque, mesmo os que apresentam nível elevado de diferenciação, conservam uma parte significativa de não-diferenciação. Por manifestarem uma maior flexibilidade relacional e utilizarem o melhor das suas capacidades adaptativas, toleram a angústia e passam o mais tranquilamente possível por provas e tensões inevitáveis (PAPERO, 1998; NEVES, 2011). Isto quer dizer que estas pessoas são mais capazes de lidar com emoções fortes, com as frustrações, com a incerteza e a ambiguidade, mantendo-se calmos nas relações de maior proximidade. (BOWEN, 1978 apud NEVES, 2011). Pode-se compreender que, uma família que possua conhecimento acerca do funcionamento do seu sistema e forte motivação para mudança, possa ter um self familiar altamente diferenciado, impulsionando seus membros também à diferenciação. (NEVES, 2011). 3. INFLUÊNCIAS DOS SISTEMAS PARENTAL E SOCIOCULTURAL NA CONSTRUÇÃO DA DIFERENCIAÇÃO DO SELF AO LONGO DA VIDA “Eles vêm através de vós, mas não de vós, e apesar de estarem convosco, não pertencem a vós.” Khalil Gibran (1883 – 1931/2006. p. 28) O sistema familiar é formado por dois subsistemas: o parental (pais), o de maior influência dentro do sistema, e a fratria (filhos). Dependendo da posição que um dos membros ocupe no sistema, podemos ter um filho parental, exercendo o papel de pai ou mãe, ou um pai ou mãe na fratria exercendo o papel de filho/filha. O sistema parental pode ainda incluir um avô/avó ou tia/tio e excluir um dos pais (MINUCHIN; FISHMAN, 2007). É a partir das inter-relações na família de origem (sistema familiar) que se estabelecem e se concretizam as relações com a família extensa ou ampliada e com outros sistemas da sociedade (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). Embora, nos dias atuais, as escolas e as instituições governamentais também devam cumprir o papel social de promover a educação e a socialização da pessoa, ainda é a família a primeira instituição com a qual as pessoas mantêm os contatos 17 iniciais e estabelecem as primeiras relações (principalmente nos primeiros meses dos bebês, antes destes irem para uma creche). Então, a família é a responsável por várias funções, tais como: a promoção da educação, socialização, provisão econômica, geração de proteção e afeto, transmissão de valores ou condutas éticas e morais, culturas, regras, sentimentos, crenças, mitos, conceitos, e papéis de seus membros (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). Por sua vez, os pais aprenderam as funções ou papéis da família com seus respectivos pais, transmitindo a herança cultural da família, que perpassa gerações (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012), pois as influências ou heranças familiares não se restringem ao contexto nuclear (pais e filhos), mas extrapolam-se a outros familiares, antecessores aos pais, através dos legados familiares deixados pelas gerações passadas. (PENSO; COSTA; RIBEIRO, 2008). Assim, são os pais quem primeiramente influenciam diretamente o desenvolvimento dos filhos, através da transmissão de conhecimentos tanto formal quanto comportamental, por meio da observação do comportamento dos adultos tidos como modelos (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012), embora as influências do contexto sociocultural (PENSO; COSTA; RIBEIRO, 2008). A essa transmissão, percebida com a repetição de padrões educacionais e comportamentais, entre pais e filhos e entre uma geração e outra, nomeia-se como “transmissão geracional, intergeracional ou transgeracional” (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012, p.16). Essa influência no desenvolvimento dos filhos pode acontecer de vários modos. Um deles é quando os pais interferem nas habilidades cognitivas e nas personalidades dos filhos através das tarefas que lhes oferecem para cumprirem, pelo modo como reagem a seus comportamentos particulares, pelos valores que promovem ao estabelecerem condutas adequadas e pelos padrões de comportamentos que transmitem (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). Outro modo é quando selecionam muitos dos outros contextos sociais aos quais os filhos estão expostos, como os locais que visitam, onde estudam e os meios com os quais se entretêm, com quem brincam ou se relacionam e como passam pelos momentos de crise (PENSO; COSTA; RIBEIRO, 2008). Ou seja, os pais influenciam no desenvolvimento de novas relações, desde as de parentesco, amizade, laborais até a construção de um novo núcleo familiar (MINUCHIN; FISHMAN, 2007; CARTER; McGOLDRICK, 2011). 18 Entretanto, essa influência é bidirecional, ou seja, há uma troca de ensinamentos e aprendizados entre pais e filhos. Desta forma, os filhos também influenciam no modo como os pais interagem com eles, interferindo no comportamento dos mesmos, através do seu temperamento, aparência, capacidade verbal, novos conhecimentos, pois as transmissões também ocorrem em uma perspectiva global, já que a pessoa está inserida em vários outros contextos sociais e culturais (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). A pessoa ao aprender novas crenças e padrões comportamentais no ambiente sociocultural, vai influenciar os pais, no ambiente familiar, ao transmitir a eles os novos aprendizados. Assim, a herança geracional pode sofrer modificações criativas e transformações, além de se repetir, durante a transmissão geracional (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). Isto quer dizer que, os sistemas sociais e culturais, como sistemas maiores que englobam o familiar, também têm grande influência na formação, desenvolvimento e diferenciação do self da pessoa (BRUSCAGIN, 2012), pois é nas inter-relações sociais que a pessoa copia comportamentos diferentes dos padrões familiares adquiridos, adicionando-os aos já existentes, transformando-os ou modificando-os e ampliando-os. Afirma Bruscagin (2012), que as heranças culturais de cada pessoa influenciam no seu modo de agir com as crises e reagir aos problemas psicológicos, afetando a dinâmica familiar. (BRUSCAGIN, 2012). Desta forma, o pensamento de Bruscagin (2012) vem corroborar o pensamento de Baptista, Cardoso e Gomes (2012). A família também muda e transforma seus valores e crenças transgeracionalmente, ao encontrar culturas diferenciadas das suas, ao ser afetada na sua dinâmica, pelas heranças culturais pessoais dos seus membros, desenvolvendo ao longo de sua história, “uma cultura própria, sempre inserida em um contexto mais amplo histórico e socioeconômico”, pois a cultura não é transmitida transgeracionalmente de forma imutável, já que é uma construção que se faz na história das relações dos diferentes grupos (BRUSCAGIN, 2012. p. 182). Por ser a família um sistema aberto e flexível, ela se movimenta tanto nos contextos intergeracionais (família de origem do casal – todos que fazem parte da rede de apoio parental), multidimensionais (diferentes áreas da vida da pessoa – funções e papéis exercidos) e pluricontextuais (históricos, culturais, subculturais ou pátrios, socioeconômicos e de gêneros). (GALANO, 2012). 19 Todavia, não se pode esquecer que, existe uma correlação entre a qualidade da relação conjugal e a qualidade das relações parentais, associadas ao desenvolvimento e ao comportamento dos filhos, o que significa dizer que as relações conjugais favorecem relações parentais de alta ou baixa qualidade, já que o sistema parental é um importante influenciador no processo desenvolvimental dos filhos, embora as diferenças de pessoa para pessoa (PAPERO, 1998; NEVES, 2011). Pode-se entender então, que os valores, crenças e mitos transmitidos intergeracionalmente (entre gerações) e transgeracionalmente (por várias gerações) vão influenciar positiva ou negativamente os membros do sistema familiar, tanto no subsistema parental quanto na fratria, promovendo ou provocando estranhamento entre esses membros e subsistemas, principalmente quando estes desenvolvem valores diferentes daqueles comuns ao sistema familiar (PENSO; COSTA; RIBEIRO, 2008; BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). De acordo com Bowlby (1990), o estabelecimento e a qualidade dessas relações vão depender de como foi estabelecido o modelo de apego, seguro ou inseguro, pois este irá fornecer a base para a formação de um Modelo Funcional Interno (MFI) que justificará a continuidade desse apego por toda a vida. Ou seja, o modelo de funcionamento interno guiará o comportamento da pessoa no modo como ela enxergará o mundo, suas expectativas, a si mesmo e suas relações subsequentes (BOWLBY, 1990). Isto quer dizer que, tanto crianças quanto adultos, demonstrarão autoconfiança e segurança para buscarem outros contatos e manterem outros relacionamentos, sem perderem o contato com os pais. Se desenvolverem um modelo de segurança, através da responsividade sensível e calorosa dos pais às solicitações deste adulto quando criança, isso vai levá-las a ver outras pessoas como confiáveis e bondosas, e a si mesmas como merecedoras desta atenção. Este é o padrão de comportamento típico do apego seguro (BOWLBY, 1990). Desta forma, o apego seguro, que propiciará uma base segura para as relações, propiciará também condições para a diferenciação do self da pessoa, contribuindo para que a mesma possa desenvolver-se ao longo da vida, ao sentir segurança e apoio das suas bases parentais, que a ajudarão caso sinta necessidade. Isto quer dizer que, esta segurança promoverá a autoconfiança necessária para que a pessoa diferencie-se do self familiar, além da díade. Contudo, também na díade do sistema parental, a pessoa de confiança é importante figura de 20 ligação, pois ela irá fornecer ao seu parceiro a base segura, a partir da qual poderá atuar. Estes padrões comportamentais irão influenciar as futuras gerações familiares. (BOWLBY, 1990). Aquelas pessoas que evitam contatos e relacionamentos e se tornaram inseguras, são as que desenvolveram um modelo inseguro/evitativo no contato com os pais. Já as que oscilam entre a busca de contato ou de manutenção de uma relação e a resistência ao mesmo, tornando-se ora coléricas, ora passivas, apresentam comportamento típico do apego inseguro/resistente. (BOWLBY, 2006). A ênfase sobre os estudos da transmissão geracional de padrões comportamentais nos fornece sustentação teórica para entender as relações familiares, a transmissão de valores, o comportamento dos filhos e o modo como os mesmos interferem nas inter-relações, tanto familiares quanto pessoais e muitas vezes até profissionais, provocando conflitos transgeracionais e intergeracionais. (PENSO; COSTA; RIBEIRO, 2008). Bowlby (1990) afirma que a relação familiar caracterizada por interdependência, confiança e compromisso, proporciona ao indivíduo satisfação nas relações, maior bem estar em relação à proximidade ou distância e menos ansiedade ou preocupação sobre suas relações, típico do apego seguro. Isto quer dizer que a qualidade das relações do sistema parental vai influenciar diretamente no tipo de apego desenvolvido pela pessoa, pois este modelará seu funcionamento interno por toda a vida, desde as relações familiares até as relações sociais, influenciando assim, na capacidade do indivíduo diferenciar-se. (BOWLBY, 2006b). Diz ainda o mesmo autor que, quando a situação é contrária a esta, o indivíduo pode apresentar um apego inseguro (evitativo ou ansioso/ambivalente). Desta forma, pode apresentar padrão de comportamento mais propenso a vivenciar ciúme e a ter uma preocupação obsessiva com seus relacionamentos. Dependem demais de suas relações e de seus parceiros, apresentando zelo excessivo (apego ansioso) ou demonstram medo da intimidade, restringindo esses momentos e a proximidade, apresentando menos dependência de seus pares e menos angústia nas situações de conflito (apego evitativo) (BOWLBY, 1990). Então, se a criança desenvolve apego seguro ou inseguro, de acordo com os cuidados maternos que lhe foram dispensados na infância, pode transformar-se num adulto seguro ou inseguro. (BOWLBY, 1990; 2006b). 21 Segundo Bowlby (1990; 2006a), a base segura determina que o padrão das relações familiares vivenciados por uma pessoa, durante sua infância, terá grande importância para o desenvolvimento final de sua personalidade, o que nos leva a entender que a desvinculação, desligamento ou libertação dos vínculos familiares pode provocar um retorno a comportamentos instintivos mais infantis e regressivos. Assim, os aspectos positivos (afetos, papéis sociais, padrões de comportamento) ou negativos (agressividade, violência) advindos da herança familiar entre gerações, são influenciadores e transformadores da construção da pessoa (BOWLBY, 2006a). De acordo com isso, pode-se entender que essas heranças também sofrem por sua vez, influências dos contextos culturais. Sendo a cultura em suas várias manifestações (arte, religião, crenças, alimentação, rituais, etc.), “um poderoso gerador de significados” (FALICOV, 1998 apud BRUSCAGIN, 2012), dá origem às crenças que interferem nos padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos, influenciando enfática ou poderosamente no contexto desenvolvimental e na formação da identidade das pessoas. Dessa forma, contribui significativamente para o comportamento diferenciado da pessoa no contexto familiar. Pode-se entender também, que o nível dessa atuação ou poder transformador exercido pela cultura, dependerá de como a família receberá as influências externas ao seu sistema, de como ela apoiará seus membros, através da atenção, do carinho, do diálogo e da autonomia dispensados a esses membros. Dependerá também de como esses membros perceberão o apoio do sistema. Se de modo positivo ou benéfico, poderá contribuir para aumentar o contentamento e o bem-estar nas inter-relações. Ou se a percepção desse apoio é fraca, poderá contribuir para expressões de humor negativo e desentendimentos entre os subsistemas familiares (BAPTISTA; CARDOSO; GOMES, 2012). Positiva ou negativamente, como afirma Martins (2005), é na construção das relações familiares que a pessoa pode se diferenciar da família, por meio das triangulações e destriangulações, embora, a construção das relações sociais e culturais também contribua fundamentalmente para essa diferenciação. E essa contribuição das relações socioculturais, é cada vez mais influenciadora de comportamentos nos dias atuais, devido à velocidade da troca de conhecimento e informação, que, por sua vez, solicita compreensão e respeito às diversidades culturais. 22 Logo, a contemporaneidade de um mundo cada vez mais globalizado solicita a capacidade de aceitar o outro do modo como ele é ou se apresenta no que tange aos aspectos culturais, étnicos e religiosos. Como “as fronteiras culturais são” ultrapassadas velozmente em função dos hodiernos meios de “locomoção e comunicação,” o rápido deslocamento e a comunicação promovem contatos com diversos “modos de ser, agir e compreender” (BRUSCAGIN, 2012, p. 179), incitando e provocando mudanças amplas de hábitos e valores nas pessoas, que vão repercutir em suas relações familiares e sociais, gerando conflitos inter e transgeracionais. Ao provocar desencontros, gera questionamentos referentes aos valores, relações familiares e sociais, identidades, conceitos e hábitos, conduzindo as pessoas a “complexos processos de negociação”, exigindo dos psicólogos, compreensão cultural das sociedades plurais. (BRUSCAGIN, 2012, p. 180). Essa conjuntura sociocultural vai influir na construção da diferenciação de cada pessoa ao longo da vida, determinando muitas vezes, o papel ou a função de cada uma delas, tanto na família quanto na sociedade, provocando uma retroalimentação entre os sistemas familiares e culturais e vice-versa. Isto quer dizer que as heranças culturais de uma pessoa vão influenciar no modo como ela age com os conflitos ou crises e como reage às problemáticas psicológicas, afetando a dinâmica familiar, que por sua vez, também desenvolverá uma cultura própria ao longo de sua história (BRUSCAGIN, 2012). 4. ESTRANHAMENTO: UM OLHAR PARA A DIFERENCIAÇÃO “Podeis dar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos.” Khalil Gibran (1883 – 1931/2006. p. 28). Segundo Ximenes (2000, p. 405), estranhamento é “estranhar” alguma coisa. Estranhar é “achar estranho; censurar”. Julgar diferente. Estranho é “fora do comum; inusitado. Desconhecido, misterioso.” Novo; pouco familiar. Oposto aos costumes, aos hábitos. Então, estranho é aquele que não é familiar, que é desconhecido. Estranhamento aqui é o desconhecimento daquele, que sendo familiar, não parece sê-lo, por apresentar-se diferente dos demais membros do mesmo sistema, e/ou por apresentar padrões de comportamento, valores ético-morais e culturais, sentimentos e crenças divergentes dos demais membros do sistema familiar. Afirma Di Nicola (1998), que um ou mais membros da família podem se comportar estranhamente, podem afastar-se de si mesmos ou de outros membros do sistema familiar. Ou 23 ainda, os membros de uma família podem possuir valores culturais semelhantes, mas, que ao se encontrarem num novo contexto social, este vai lhe oportunizar uma incerteza, um estranhamento dos seus próprios valores. (DI NICOLA, 1998). Essa diferenciação pode se apresentar em diversas nuances, a depender das relações parentais e fraternas, ou familiares. O estranhamento pode, então, ser identificado na qualidade inter-relacional entre pais e filhos, ou seja, nas intra ou inter-relações dos subsistemas familiares (sistema parental e fratria). Também poderá ser identificado de acordo com o modo de funcionamento interno de cada pessoa, e em concordância com os valores desenvolvidos pela mesma, que propiciarão a diferenciação do self, possibilitando provocar estranhamento. Isto leva a pensar que dependendo da situação provocadora de estranhamento entre os membros de um mesmo sistema familiar, aquele que é estranhado ou os que estranham podem erguer e manter fronteiras rígidas para confirmar a sua sobrevivência, seu próprio modo de funcionamento. Embora Di Nicola (1998) diga que são os membros da família, aqueles que estranham, os que erguem barreiras para “legitimar e validar sua dor e suas razões para valorizá-la e mantê-la” (DI NICOLA, 1998, p. 48). Desta forma, compreende-se que é a família quem mais levanta barreiras, porque ela cria expectativas sobre o que pensa e deseja que o filho seja. E se o filho não corresponde a estas expectativas, então, pode haver estranhamento, incompreensão e barreiras ou fronteiras rígidas. Mas, de que dor fala Di Nicola? Pode-se entendê-la como sofrimento provocado pela mágoa e pela zanga dos membros da família, ao não terem seus valores e crenças aceitos e compreendidos pelos filhos, e vice-versa. Embora Di Nicola (1998) trate como estranho no seu estudo, o estrangeiro, ou seja, aquele que vive em meio cultural diferente do seu, isto também se aplica aqui, ao entender-se que, também há choque cultural na família e o estranho pode ser visto como o diferente, presente no mesmo meio ambiente, percebido como a ovelha negra. Em contraponto a isto, ou não (a depender do ângulo de visão de cada situação e pessoa), Bowlby (2006b) traz da etologia os conceitos de estranhamento e familiaridade como sendo importantes para todas as espécies. Afirma o mesmo autor que a influência etológica vem desde o berço, pois a nossa tendência enquanto espécie é buscar o familiar, o conhecido, porque este proporciona segurança, ao passo que o estranho, o desconhecido é tratado com reserva, com 24 distanciamento. A criança (ou pode-se pensar a pessoa) busca reconhecer o familiar, e estranha o que não o é. “Ao estranhamento, reage-se de um modo ambivalente. De um lado, ele é gerador de medo e retraimento, por outro, suscita curiosidade e investigação.” (BOWLBY, 2006b, p. 154). Desta forma, pode-se perceber que o estranho é necessário para saber se a criança ou a pessoa está apegada. Seguindo o raciocínio de Bowlby (2006b), a sobressalência ou prevalência opostas, de uma ou outra resposta, procede da influência de muitos fatores, tais como o nível de “estranheza da situação, a presença ou ausência de uma companhia”, e do fato da pessoa que responde à situação, “ser madura ou imatura”, disponível ou indisponível, sadia ou “doente”. (BOWLBY, 2006b, p. 154). Bowlby (2006b) afirma que no quadro de funcionamento da personalidade, surgem dois grupos de influências fundamentais. O primeiro se refere à ausência ou presença, total ou parcial, de uma figura de confiança, disponível e capaz de fornecer base segura em cada fase do ciclo vital, constituindo as influências externas ou ambientais. A segunda se refere à aptidão ou inaptidão relativa de uma pessoa para reconhecer quando outra é digna de confiança, e se está disponível para oferecer uma base segura. E caso essa disponibilidade aconteça, cooperar para que se inicie e se mantenha uma relação de compensação mútua, constituindo assim, as influências internas ou organísmicas. (BOWLBY, 2006b). Esses dois grupos de influências interagem de modo complexo e circular, levando, de um lado, aqueles que desenvolveram autoconfiança e competência, como resposta à responsividade sensível e calorosa dos seus pais, a buscar oportunamente uma base segura pessoal e iniciar e manter relações mutuamente gratificantes. Por outro lado, a natureza das expectativas e o grau de competência que uma pessoa tem, influenciará no seu modo de relacionamento com outras pessoas, e com o tipo de pessoas que buscará para relacionar-se, e de como estas o tratarão. Isto significa que, dependendo da natureza das intra e inter-relações familiares, a pessoa poderá diferenciar-se dos padrões de comportamento familiares, ou indiferenciar-se à mesma, fusionando-se a essa massa. Embora, a família lute para manter a pessoa indiferenciada, semelhante aos seus padrões. Mas, Bowlby (2006b) conclui que o padrão de relações familiares que a pessoa experimenta, vai influenciar fundamentalmente o desenvolvimento da personalidade da pessoa, desde a infância, passando pela adolescência até a fase 25 adulta, já que essas experiências atravessam ou perpassam cada ciclo vital. (BOWLBY, 2006b). Ora, as relações familiares são bidirecionais, e as sociais são multidirecionais. Portanto, não há mudanças apenas no desenvolvimento familiar, mas também no desenvolvimento social. É o novo, presente no social que trará a mudança, proporcionando o estranhamento. Compreende-se, então, que o funcionamento saudável da pessoa em toda e qualquer idade, revela a capacidade da mesma para reconhecer outras pessoas que estejam dispostas e capazes (ou não), a proporcionar-lhe uma base segura, como também sua aptidão para cooperar com as mesmas numa relação mutuamente compensadora, ou ainda, optar pela decisão de não cooperar ou de fazê-lo sem esperar retorno e sem cobranças. Em contraponto, as diversas formas de funcionamento podem refletir também uma capacidade diminuída das pessoas para reconhecerem outras de confiança, colaborar com as mesmas e desenvolver relações gratificantes. Entende-se, então, que os diversos tipos de apego vão influenciar diretamente na qualidade intrarelacional, inter-relacional e de relações futuras, tanto na construção quanto na deterioração das mesmas. (BOWLBY, 2006b). Assim, uma pessoa que funciona de modo saudável, vai ser capaz de trocar de papéis, ora buscando, ora oferecendo base segura. Isto confirma a teoria boweniana de que a pessoa diferenciada se sente segura e autoconfiante para distanciar-se da sua família, buscando outras relações, mas, mantendo vínculo com a mesma. Enquanto que, aquela indiferenciada, fusionada, desenvolve insegurança, independência desafiadora e ansiedade nas relações, tornando-se exigente, ansiosa, ambivalente, e muitas vezes indiferente ao sistema parental, sem, contudo, diferenciar-se deste, permanecendo fusionada ao mesmo, ainda que esteja afastada. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). Entende-se, assim, que a pessoa que é incapaz de expressar sua necessidade de apoio, ou a expressa de forma agressiva e exigente, reflete sua falta de confiança no recebimento do mesmo, mostrando-se insatisfeita com o que pode receber e incapaz de doar espontaneamente a outra pessoa, ou seja, a exigência agressiva reflete a insegurança e a falta de confiança (BOWLBY, 2006b). Ginzburg (1963/1989 apud DI NICOLA, 1998) diz que mesmo em meio a culturas diferentes (estrangeiras), uma simples expressão proferida entre os membros de um mesmo sistema, conduz ao reconhecimento do que é familiar para 26 esses membros. Isto quer dizer que, mesmo em meios adversos ou culturalmente bem diferenciados, os familiares se reconhecem naquilo que lhes é peculiar, ou seja, naquilo que lhes é comum, igual ou que lhes une numa massa indiferenciada. Ou seja, como afirma Bowen (1978 apud PAPERO, 1998), mesmo que a pessoa alcance o nível mais alto de diferenciação, ainda manterá algum grau indiferenciado, fusionado à massa familiar, que o levará a se identificar, positiva ou negativamente aos seus. Semelhante a isso, a diferenciação, vista como o desenvolvimento de uma pessoa, “pode tornar estranhos partes familiares de nós mesmos e dos nossos mundos”, como afirma Di Nicola (1998, p. 44), o que nos remete à parte de nós mesmos que se diferencia, causando estranhamento aos familiares. Diz ainda Di Nicola (1998) que Cada porta que abrimos, é tanto uma entrada quanto uma saída. Ir além do familiar e do self estabelecido, é entrar numa dança de polaridades: a dança entre o self e o outro é um eixo entre o estranho e o familiar, entre o ser pessoal e o social, e uma troca fluida de perspectivas entre os que fazem parte do grupo e os de fora. (DI NICOLA, 1998, p.44-45). Isso nos leva a entender o estranhamento como um olhar para a diferenciação, cujos elementos constituintes do self diferenciado, além dos padrões comportamentais e dos mitos familiares, são elementos ou padrões e mitos adquiridos com a cultura, que por sua vez é um sistema maior e mais diversificado que o sistema parental/familiar. O que nos conduz a outra afirmação de Di Nicola (1998, p. 45), “do familiar ao estranho, cada pessoa e cada família constrói uma identidade composta de ser pessoal e social”, confirmando a influência da cultura como elemento formador da diferenciação e provocador do estranhamento entre os membros do sistema parental (DI NICOLA, 1998). Por outro lado, paradoxalmente, a família também estranha o membro indiferenciado, quando espera que este se diferencie positivamente do self familiar, e quando a diferenciação não ocorre, frustra suas expectativas. Isto pode ser explicado pela teoria de Bowen (1978 apud PAPERO, 1998), que discorre sobre as famílias esquizofrenizantes, enfatizando que elas são caracterizadas por um lado, pela rede muito estreita de relações, e por outro, pela presença da angústia, que tende a ser transmitida transgeracionalmente, evidenciando ou esclarecendo daí, que o saudável é diferenciar-se. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). 27 Observa-se que a diferenciação pode causar estranhamento no núcleo familiar, dependendo de cada situação esperada e/ou vivenciada. Sendo a família uma variedade de sistemas e subsistemas abertos, cujo funcionamento vai do ótimo ao disfuncional, as mudanças que atingem um de seus membros, irá consequentemente, provocar por sua vez, mudanças em outros dos seus membros. Essas mudanças podem ser percebidas como estranhas aos padrões e valores da família, podendo ser acatadas ou não, a depender do grau de estranheza que elas causem ou provoquem (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). Desta forma, as mudanças ocorridas com um dos membros do sistema, pode afetar positiva ou negativamente o funcionamento familiar e vice-versa. Assim, os sintomas emergem de processos que se desenvolvem no seio da unidade familiar, e refletem as mudanças de funcionamento das condições familiares, podendo surgir, piorar, melhorar e desaparecer em resposta às condições apresentadas pela família e pelo ambiente, refletindo a interação do sistema emocional, dos produtos e dos processos evolutivos comuns a todos os seres vivos (PAPERO, 1998). A sucessão ou o encadeamento de comportamentos e interações que repercutem o sistema emocional possuem traços peculiares de repetência, pois todo comportamento é produto de uma interação, e as modificações das condições, resultam em outras que se operam sobre os comportamentos. (PAPERO, 1998). Uma das variáveis que influenciam o funcionamento do sistema emocional é a diferenciação do self; a outra é a ansiedade. Desta forma, “as pessoas se diferenciam uma das outras em termo de funcionamento.” (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998, p. 76). Os níveis de diferenciação podem então ser comparados a uma escala de maturidade emocional. Esse nível é reconhecido como sendo aquele em que o self se funde ou se incorpora a outro self, numa relação emocional muito próxima. Entretanto, há pessoas pouco diferenciadas que conseguem manter suas vidas dentro de um equilíbrio emocional, sem desenvolver doenças emocionais, como também há as altamente diferenciadas que podem desenvolver sintomas emocionais graves em situações de estresse. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). Todavia as mais propensas a enfermidades físicas e sociais são as pouco diferenciadas, porque as mais diferenciadas podem recuperar rapidamente o equilíbrio emocional. (BOWEN, 1978 apud PAPERO, 1998). 28 A relação primária de uma pessoa com seus pais está situada no ponto central da diferenciação do self. Tanto pais quanto filhos, movimentam-se no sentido de maior autonomia emocional. O nível de diferenciação dos pais foi estabelecido pela relação destes com seus respectivos pais, influenciando até onde pode ir o progresso familiar, no sentido da autonomia. Quando os níveis de diferenciação e de ansiedade crônica dos pais não impedem o progresso da autonomia da família, os filhos sairão do seu processo desenvolvimental com graus mais elevados de diferenciação (PAPERO, 1998). Neves (2011) analisa a diferenciação do self entre pais e filhos numa amostra quantitativa, com 522 pessoas (189 pais com filhos adolescentes, e 333 adolescentes entre 15 e 19 anos), residentes na zona Norte de Lisboa (73.6%, N=139), e na área da Grande Lisboa (32.3%, N=61), entre os anos de 2009/2010 e 2010/2011 em Lisboa – Portugal, no que pretendeu: a) analisar a relação entre a diferenciação do self e a percepção do ambiente familiar; b) investigar as diferenças entre as dimensões da diferenciação do self dos pais e dos filhos adolescentes; c) verificar a existência de diferenças nas dimensões da diferenciação do self, em função do sexo e do grupo etário dos filhos adolescentes. (NEVES, 2011). Os resultados encontrados foram: a) no que tange à diferenciação do self dos pais e dos filhos, em relação à percepção do ambiente familiar, este é percebido como positivo ou bom, já que o nível de reatividade e corte emocional foi baixo. Para a dimensão fusão com os outros e posição do eu (posição do si mesmo) desses filhos, o resultado foi percebido como elevada a moderada, sugerindo que quanto maior é o nível de fusão, menor é a diferenciação; b) os resultados entre a diferenciação do self dos pais e dos filhos apresenta significativa diferença na dimensão fusão com os outros, quando os filhos demonstram níveis mais elevados de indiferenciação que a amostra dos pais; c) os resultados entre a diferenciação do self em função do sexo apresenta para o sexo feminino, tanto na amostra de pais quanto de filhos, níveis mais elevados de reatividade emocional e níveis menos elevados da posição do eu, quando comparados aos indivíduos do sexo masculino. No que tange à diferenciação do self dos filhos em função do grupo etário, foram encontradas diferenças apenas na fusão com os outros, cujos adolescentes da faixa de 15 a 16 anos apresentam níveis mais elevados que os da faixa de 17 a 19 anos. Martins (2005) realizou uma pesquisa qualitativa em Salvador, na região da Península Itapagipana, entre março de 1998 a março de 1999, e entre abril de 2004 29 a abril de 2005. Estudou três famílias nucleares de classe média intermediária, fusionadas com suas famílias de origem, concluindo que a família menos diferenciada pode “impedir as pessoas de chegarem à diferenciação e à liberdade plena” (MARTINS, 2005, p. 97), confirmando o estranhamento na percepção daquele que, na relação familiar não percebe o outro e nem a si mesmo. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Entende-se a diferenciação como a independência emocional saudável dos filhos com relação aos pais, e a fusão, como uma dependência emocional ou uma simbiose com esses pais ou familiares. Percebe-se o processo de diferenciação como natural e impulsionador do desenvolvimento humano. Contudo, a depender das expectativas dos pais em relação aos filhos, a diferenciação também pode ser percebida com estranhamento nessas inter-relações, o que poderá vir a causar frustrações, culpas, inquietações e conflitos aos membros do sistema familiar. Geralmente, a família luta para que o filho permaneça indiferenciado a ela, ou seja, luta para preservar os seus valores e crenças intactos na transmissão inter e transgeracional, enquanto o filho luta para manter sua individualidade, suas crenças e valores recém-construídos, influenciados pelo contato com a sociedade e a cultura externas ao sistema familiar. Entretanto, o processo dessa luta irá depender da ótica da maturidade ou imaturidade de cada membro do sistema familiar, ou seja, de como os pais enxergam e aceitam as transformações, ampliações e ressignificações realizadas pelos filhos, à medida que estes caminham por entre as veredas divergentes ou estranhas, e familiares, na construção do próprio self. Essa construção é, portanto, um processo de reconhecimento e estranhamento dos padrões comportamentais, de valores, crenças e mitos familiares e socioculturais. Considerando as reflexões mais profundas a que este tema me conduziu, percebo que a base teórica da diferenciação do self, apesar de muito importante e necessária, ainda é insuficiente para explicar a complexidade das inter-relações familiares, pois cada pessoa age e reage de modo diverso, em relação às próprias expectativas e às expectativas daqueles com os quais convivem. Assim, considero importante contextualizar a pessoa nas suas inter-relações, tanto familiares, quanto socioculturais. As crenças, os valores, os mitos, a forma de dialogar consigo mesma, com os papéis que cada pessoa exerce, dentro do sistema familiar e nos sistemas mais amplos onde a pessoa está inserida, colaboram para que cada uma funcione 30 de modo diverso da outra, o que a torna exclusiva, particular. Embora haja particularidades que nos tornem tão iguais, como os sentimentos de fragilidade, angústia, ansiedade, medo, sensibilidade, amor ou afeto, ou ainda, os diversos papéis que desempenhamos, a exemplo daqueles exercidos dentro da família e na sociedade, o modo como experimentamos esses sentimentos e como desempenhamos esses papéis, é o que nos torna tão diferentes, tão singulares, e às vezes, tão estranhos. Partindo do pressuposto que, numa família, o que pode haver de mais importante são os laços afetivos, a cumplicidade e o companheirismo, o estranhamento pode ser entendido como uma rejeição ao comportamento daquele que saiu das entranhas mais profundas da mãe e do pai, ou da escolha mais amorosa dos que optaram pela decisão de serem pais, que, portanto, são os membros da família, que se pressupõe, mais amam e mais desejam que o filho se desenvolva e seja feliz. Assim, necessário se faz que envolvam esse filho em laços que permitam o seu caminhar, e que os filhos também compartilhem esses sentimentos de afetividade com os seus membros, para que juntos possam sair mais fortalecidos de cada embate, entendendo que todos possuem forças internas e externas que os mobilizam a encontrar estratégias de enfrentamento para cada teste, no processo de desenvolvimento humano de cada pessoa. Percebemos, desta forma, o quanto é necessário para o profissional da Psicologia, buscar compreender esses aspectos da qualidade inter-relacional, entre pais e filhos, e auxiliá-los, considerando as divergências que perpassam as vidas de cada um, de geração a geração, ainda que estejam unidos por laços de amor. Laços esses, que muitas vezes não são suficientes para conduzirem os pais à compreensão das necessidades dos filhos, dos seus valores, crenças e atitudes. Assim, criar filhos é uma experiência de estranhamento, porque é difícil aceitar que eles se tornem pessoas diferentes, e apesar disso, continuar a amá-los, compreendê-los e respeitá-los, oferecendo-lhes suporte para que se sintam confiantes de que os laços que os mantêm unidos são suficientemente flexíveis, para permitir que eles sejam o que quiserem ser, ousem e façam suas próprias escolhas, sem julgamentos. Que os pais possam agir como águias que impulsionam seus filhos a alçarem voos, infundindo-lhes coragem, ânimo e entusiasmo, sendo os primeiros a acreditarem em suas capacidades transformadoras, de si mesmos e do mundo. 31 Desta forma, considero que esta pesquisa não se encerra, mas se inicia aqui, pois há muito que se investigar e estudar, já que as relações estão sempre se modificando, influenciadas pelos diversos contextos emocionais, familiares e socioculturais. Devido também, à grande dificuldade de se encontrar dados de pesquisa qualitativa e quantitativa para a realidade sociocultural brasileira, no que tange ao estranhamento no contexto familiar, considero necessário novos estudos que ampliem o olhar sobre este tema, de extrema relevância no contexto atual da família brasileira, quando esta apresenta novos formatos ou modelos, carentes de entendimento. É necessário, portanto, analisar mais profunda e proficuamente estes aspectos, à luz da Psicologia Sistêmica, principalmente numa perspectiva nova paradigmática, por esta considerar importante, as contextualizações humanas e socioculturais. 32 Son: an experience of estrangement ABSTRACT The subject of this work aims to analyze the interlace between the psychological and cultural differentiation of parents and sons the experience of estrangement. Thus, you need to specifically understand the influences of parental and sociocultural systems in the construction of self lifelong, identify ourselves, values, beliefs and myths transmitted, linked to this experience, and understand estrangement from the perspective of differentiation of self. For this purpose, as the methodology literature, reviewed the fundamental concepts of Systemic Theory, linked to family studies. Differentiation of self is a natural process of human development and as such should be seen. Depending on the expectations of parents and sons, differentiation can be perceived as estrangement, which causes frustration, guilt, restlessness and conflict between members of the family system form. Generally, the family struggle for the son to remain undifferentiated, while the son struggles to maintain their beliefs and newly constructed values in touch with society and culture, which causes estrangement in the system. Keywords: Differentiation of self. Family. Estrangement. 33 REFERÊNCIAS BAPTISTA, Makilim Nunes; CARDOSO, Hugo Ferrari; GOMES, Juliana Oliveira. Intergeracionalidade familiar. In BAPTISTA, Makilim Nunes; TEODORO, Maycoln L. M (Org.) Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenção. Porto Alegre: Artmed, 2012. p. 16 – 26. BRUSCAGIN, Claudia. Família e cultura. In CERVENY, Ceneide Maria de Oliveira. (Org.) Família e ... São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012. p. 177-193. BOWLBY, John; AINSWORTH, Mary D. S. (Col.) Cuidados maternos e saúde mental. Tradução: Vera Lúcia Baptista de Souza; Irene Rizzini. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006a. 239 p. ______. Apego: a natureza do vínculo. Tradução: Álvaro Cabral. Trilogia Apego e Perda. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 1 v. ______. Formação e rompimento dos laços afetivos. Tradução Álvaro Cabral. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. 228 p. CARTER, Betty; McGOLDRICK, Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar. Uma estrutura para a terapia familiar. 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