Diversidade e diferenciação do público e do privado
na Educação Superior do Brasil
Sumário
PRÓLOGO: PROPOSTA PARA UM DIÁLOGO INTERCULTURAL ...................... 1
DIVERSIDADE E DIFERENCIAÇÃO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR........................ 2
SOBRE DIVERSIDADE E DIFERENCIAÇÃO: CONCEITOS E CONTEXTOS................................... 3
ABORDANDO DIVERSIDADE E DIFERENCIAÇÃO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL ......... 4
CONSENSO E DIVERSIDADE? – OS DISCURSOS TRANSNACIONAIS........................................ 5
A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: DIVERSIDADE E DIFERENCIAÇÃO
DO PÚBLICO E DO PRIVADO ..................................................................................... 7
CONTEXTUALIZANDO: A SITUAÇÃO EDUCACIONAL DO BRASIL ......................................... 7
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DA DIVERSIDADE E DO PÚBLICO-PRIVADO NA EDUCAÇÃO
SUPERIOR NO BRASIL ...................................................................................................... 9
A DIVERSIDADE DO E NO PÚBLICO E PRIVADO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: UMA
POLÍTICA EM AÇÃO ........................................................................................................ 12
Da diversidade estrutural do sistema: jurisdições estatais e segmentos privados...... 12
Da diversidade institucional do público e do privado ............................................... 16
Da diversidade programática: aspectos de qualidade do público e do privado......... 18
DIVERSIDADE E UNIDADE NO CORAÇÃO DO ESTADO E DA
UNIVERSIDADE: EM SUPERAÇÃO DOS LIMITES DA MODERNIZAÇÃO
INSTRUMENTAL ......................................................................................................... 22
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 24
Diversidade e diferenciação do público e do privado
na Educação Superior do Brasil
Maria-Beatriz Luce1
UFRGS, Porto Alegre, Brasil
[email protected]
Resumo
Análise da crescente diversidade institucional e programática verificada na Educação Superior no Brasil, bem
como das estratégias de diferenciação adotadas no plano das políticas públicas e das organizações terciárias
de ensino, permite exame mais percuciente do sentido da reforma educacional e do planejamento
institucional. Questiona-se criticamente a diferenciação institucional e programática no caso de países que
ainda não atingiram a massificação da educação e que gravitam nos sistemas econômico e científicotecnológico.
Prólogo: proposta para um diálogo intercultural
Organizamos esta sessão sobre “Políticas de educação na América Latina: o público
e o privado em questão” com o objetivo de problematizar as relações entre pressões
externas e tensões internas que vivenciamos nos espaços da política nacional de educação e
das universidades de nossos países, nesta época em que se tornam bastante evidentes
condições de crise e reformas estruturais e institucionais. A questão ora destacada para
análise apresenta-se pela emblemática dicotomia público-privado, mas compreende, por
certo, exame do papel do Estado e de toda a composição da esfera pública, suas
configurações e articulações com os interesses privados no campo da Educação Superior,
da pesquisa e da formação profissional.
Neste texto, elaborado especialmente para o debate com colegas pesquisadores,
focalizo uma tendência atual internacionalmente reconhecida da Educação Superior
(UNESCO, 1995) e que é também diretriz oficial para a Educação Superior no Brasil
(Ministério da Educação, 2000), a diversificação institucional e programática.
Apresentando algumas faces da diversidade de estruturas e formas, examino estratégias de
diferenciação adotadas nos planos das políticas públicas e das organizações terciárias de
ensino do país, as quais despertam preocupação sobre o sentido político e eventuais
conseqüências destas medidas, notadamente quando as condições sociais e de produção
científico-tecnológica são tão adversas. Com isto pretendo contribuir para o repensar da
condição latino-americana e dos projetos de integração regional, assim como para a
discussão mais ampla sobre a problemática da globalização nas reformas educacionais.
Sem dúvida, minha visão é marcada pela intimidade com uma universidade pública
consolidada, embora aproveite também muitas oportunidades de trabalho em órgãos de
gestão e fomento das atividades finalísticas da Educação Superior, em associações de
1
Com suporte dos bolsistas de Iniciação Científica vinculados ao Núcleo de Estudos de Política e Gestão da
Educação, UFRGS: Nelson Scarpinski (PIBIC/CNPq-UFRGS), Patrícia Souza Marchand (PIBIC/CNPqUFRGS), Letícia Schmarczek Figueiredo (FAPERGS.
1
educadores, pesquisadores e dirigentes universitários, e em faculdades e universidades
privadas, construindo planos de democratização da educação e da gestão institucional. Os
problemas, contradições, dilemas e possibilidades aqui tratados, no entanto, devem
interessar ao conjunto da sociedade. Especialmente, por pretendermos – no Congresso da
LASA - uma reflexão crítica mais aprofundada sobre nossos fazeres e pensares acadêmicos,
potencializada pelo diálogo intercultural entre cidadãos que se reconhecem artífices e
artefatos destes mesmos processos de política educacional e institucional. O ponto de
partida é um sentimento de preocupação ou inconformidade com o sentido e o conteúdo de
muitas das diretivas reformistas da Educação Superior em meu país. Por isso, a disposição
para problematizar – como ensinou Paulo Freire – até o nível da indignação, de modo a
acumular o impulso que leva à possibilidade de teorização da superação da realidade
existente – i.e. à proposição de perspectivas. Mas essa, já sabemos, só acontece quando
conseguimos nos reunir, interrogar criticamente sobre a natureza e a qualidade moral de
nossa sociedade e avançar em direção ao levantamento de alternativas fundamentadas – que
sustentam lutas solidárias por objetivos emancipatórios2. Um propósito, por suposto, além
deste texto.
Aqui, inicialmente, situo as noções de diversidade e diferenciação aplicadas à
Educação Superior, para, a seguir, apresentar alguns aspectos pelos quais vem sendo
reconfigurado o sistema universitário no Brasil. Na análise da dinâmica que produz sua
diversidade institucional e programática, procurei evidenciar o papel do Estado e a
organização dos interesses privados, que permitem problematizar a política educacional em
curso. – Qual o movimento, o sentido, da reforma educacional proposta? e – A quem
interessa? são as questões que orientaram o percurso de interpretação.
Diversidade e diferenciação na Educação Superior
Diversidade e diferenciação tornaram-se categorias analíticas dos sistemas e
instituições de Educação Superior, nas últimas décadas, quando se verifica grande expansão
da oferta deste nível de ensino e se debatem as formas como as universidades respondem
ou podem responder às pressões econômicas, sociais e políticas contemporâneas. Assim
sendo, a par de resultar em um recurso para comparação entre distintos modelos e
processos organizacionais, estas categorias têm contribuído muito para a compreensão da
complexa questão das mudanças nos sistemas de Educação Superior e sua relação com as
políticas nacionais. Não fora esta matéria suficientemente polêmica, acrescentam-se mais
recentemente as questões relativas a integração regional e globalização, que permitem
examinar com mais amplitude contradições entre diversidade e unidade, entre diferenciação
e homogeneização; e, destarte, as pressões externas e as tensões internas do público e do
privado nas políticas educacionais da América Latina.
Neste quadro, ainda, ficam esboçados os próprios limites e possibilidades das
teorizações sobre diversidade e diferenciação, assim como dos discursos que conferem a
estas categorias estatuto estratégico nas políticas educacionais e na gestão dos sistemas ou
das instituições de ensino terciário.
2
Expressão e noção obviamente inspiradas também em Boaventura de Sousa Santos (2000).
2
Caberá, pois, mesmo que sumariamente, situar origens e aplicações destes termos à
Educação Superior, já como um plano da problematização deste tema. Na seqüência,
registra-se o incipiente tratamento dos mesmos nas investigações sobre as mudanças em
curso no Brasil e destacam-se referências indicativas de discursos oficiais influentes sobre
diversidade e diferenciação no cenário internacional e latino-americano.
Sobre diversidade e diferenciação: conceitos e contextos
Em busca de uma sintética definição destes termos, encontra-se usualmente
diversidade como um critério pelo qual se pode descrever, comparar, classificar e avaliar
sistemas, instituições, programas e funções da Educação Superior, em qualquer ponto no
tempo e espaço. Refere-se, por conseguinte, a um estado ou qualidade relativa de um todo e
suas partes. Correlatamente, diferenciação designa um processo pelo qual se examina ou
interpreta a dinâmica de mudança, pela qual um sistema ou instituição é levado a
determinado estado de diversidade. Por isso, pode-se encontrá-la também como uma
estratégia no planejamento institucional e na reforma educacional.
A literatura sobre este assunto é tributária de contribuições originárias das ciências
biológicas e da ecologia3 e das ciências sociais 4, baseadas nas noções modernas de
evolução e progresso, bem como da tradicional orientação metodológica analíticodescritiva (positivista), tendo prosperado com a aplicação destas na pesquisa sobre sistemas
nacionais ou sub-nacionais de Educação Superior e em estudos comparativos de âmbito
internacional. Embora partindo de comum paradigma epistemológico e sócio-cultural, logo
são identificáveis distintas posições entre autores que com estes mesmos conceitos e
processos trabalharam; tanto em termos de definição da missão própria à Universidade ou
de suas funções e modelos organizacionais, tanto quanto a respeito das implicações éticas e
políticas (principalmente sobre a desejabilidade) da diversidade e das estratégias de
diferenciação, revelam um amplo arco conceitual e explicativo. Todavia, ao apresentarem
suas interpretações e preferências, reconhecem as complexas interações do ambiente
(social, econômico, político e normativo) com as instituições de Educação Superior e, por
conseguinte, a importância de uma clara identificação das unidades e categorias de análise
(como nível de agregação e foco/perspectiva sobre diversidade). Esta observação pareceme ser crucial porque sabemos que tais estudos e questões são ordinariamente usados como
referência para o planejamento, o controle e a avaliação de sistemas de Educação Superior
(macro) ou de suas instituições (micro) – uma prática que precisa ser mais cautelosa.
Outro aspecto relevante é que a maior parte dos trabalhos examina diversidade e
diferenciação em sistemas educacionais que já atingiram “a massificação”, inclusive no
nível terciário de ensino. Além disso, em todos os casos estudados, a diversidade
institucional e/ou programática apresenta-se como uma característica valorizada para o
sistema e/ou as instituições de Educação Superior ou como uma questão importante na
arena de discussão e definição das políticas públicas ou institucionais - o que ainda não é o
3
Desde Charles Darwin e outros sobre mimetismo, diferenciação e seletividade.
Com destaque para Durkheim, Parsons e outros sobre divisão do trabalho e especialização na estrutura
organizacional.
4
3
caso, genericamente, da América Latina; nem obviamente, o do Brasil, conforme pretendo
demonstrar a seguir e já havia indicado em texto anterior (LUCE, 1998).
Dentre os estudos ora referidos é pertinente mencionar as publicações da IAU, a
Associação Internacional de Universidades, abrigada pela UNESCO em Paris, ou do
CHEPS, o Centro de Estudos sobre Política de Educação Superior, na Universidade de
Twente, da Holanda, no continente europeu; na América do Norte, a questão da diversidade
é bastante disseminada e muito mais polêmica, mas pode ser representada pela importância
das coleções de Educação Superior da Jossey-Bass, sediada em São Francisco da
Califórnia, e do ACE, Conselho Americano de Educação, baseado no D.C.. Algumas destas
e outras, poucas obras que citarei pontualmente, são melhor identificadas ao final deste
texto.
Do conjunto destes estudos considero bastante interessantes as análises apresentadas
por MEEK, GOEDEBUURE et al. (1991, 1993 e 1996) resultantes de uma série de
seminários sobre políticas de Educação Superior, nos quais foram tematizados os efeitos
pretendidos e não pretendidos de políticas nacionais reformistas, notadamente os
decorrentes da nova ênfase nos métodos mais remotos ou indiretos de direção e regulação
das universidades pelos governos e na accountability; assim como, especificamente, a
problemática da diversidade em sistemas já acima caracterizados. Em que pese uma
compreensível afinidade entre os vários autores, também daqueles sistemas de ensino
oriundos, há entre aqueles suficientes diferenças em suas plataformas teóricas e
experiências profissionais que permitem o desvelamento de alguns pontos, dentre outros,
que merecem subseqüente problematização: a naturalização da diferenciação na Educação
Superior, devida à evolução da especialização nas disciplinas acadêmicas, constituintes da
universidade; a legitimidade e potencialidade política da diversidade, ou melhor, de
distintas formas de incluir/excluir conhecimentos e grupos sociais das e nas universidades;
ou as aparentes contradições entre o discurso (publicizado?) central, normatizador, e as
forças instrumentais de gestão do Estado nacional, das estruturas supranacionais e das
corporações profissionais e empresariais (privatizantes?), que tendem a homogeneizar. E,
ainda, mais: - Seremos capazes de uma problematização totalizadora (em sentido
epistemológico e societal) destas perspectivas?
Abordando diversidade e diferenciação na Educação Superior no Brasil
Uma relativamente extensa revisão da literatura brasileira5 não aponta este tema
como uma idéia ou categoria recorrente na análise da Educação Superior no país. Há,
obviamente, muitos estudos que identificam as principais características estruturais dos
sistemas e das instituições deste nível de ensino e que descrevem ou criticam as dinâmicas
que as produzem. Utilizam, em decorrência, indicadores e interpretam fenômenos que, sem
dúvida, são associados com ou estão contidos no referencial conceitual e analítico sobre
diversidade e diferenciação, mas poucos os tratam como tal.
Mesmo os documentos de governo, como exposições de motivos nas emendas
constitucionais, leis e regulamentações, ou planos e projetos, todos abundantes nesta
5
Abrangendo resumos de teses e dissertações, anais de reuniões da ANPED e ANPAE e seis periódicos
nacionais importantes, todos de 1990 em diante, além do acervo de livros da UFRGS.
4
década, omitiram o tema ou trataram-no de modo vago, conquanto sempre subentendido,
até recentemente. O ano de 1997, com a implantação da nova LDB - Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, pode ser estabelecido como um marco formal na matéria,
pois permitirá ao Ministério da Educação e do Desporto tratar, efetivamente, de desocultar
e desatar a diversificação institucional e programática na Educação Superior brasileira,
conforme as pretensões declaradas já no plano inicial de governo. Diz-se isso porque é
possível observar que as bases das condições atuais em que opera a diferenciação no
sistema e nos estabelecimentos do nível superior de ensino foram de mais longa data
instituídas e acompanham a expansão da oferta de vagas, assim como a transfiguração
conceitual e estratégica do significante Universidade, vinculada às mudanças econômicas,
sociais e políticas mais estruturais, das quais a reforma do Estado e a internacionalização da
economia são exemplos. A trama da questão problematizada nesse painel, o público e o
privado, é evidente em tal percurso e subjacente em todas essas formações, como bem
ilustram análises da crise brasileira reunidas por TRINDADE (1999), sob o provocativo
título “A universidade em ruínas: na república dos professores”.
Por esta razão, neste texto, procuro tomar uma dimensão temporal ampliada para
demonstrar as variações ocorridas em algumas características estruturais do sistema de
educação superior, nos tipos de instituição de ensino e nas funções exercidas ou atividades
oferecidas, ao mesmo tempo situando certas políticas nacionais adotadas. A intenção é,
como dito, podermos discutir algumas linhas para a investigação dos caminhos e dos efeitos
da dinâmica de diferenciação, especialmente no que se refere ao posicionamento do Estado
face aos interesses sociais e privados. É provocar mais uma frente de problematização da
(falta de) democratização da educação superior no país.
Consenso e diversidade? – os discursos transnacionais
Nos últimos anos, no cenário mundial, vieram à luz alguns documentos de política
da Educação Superior que têm suscitado amplo debate. Sua discussão no Brasil e, creio, na
América Latina é ainda bastante limitada, ou melhor, confinada, no caso de meu país, nos
círculos de dirigentes universitários e de pesquisadores especializados – como CATANI &
OLIVEIRA (1999), RISTOFF (1999), TRINDADE (1999b e 1999c), SGUISSARDI
(1999), Aguiar (1998), FONSECA (1998) - sem alcançar a amplitude e a avaliação crítica
que merecem por seu potencial de influência junto às células formuladoras das diretrizes
nacionais do setor.
Observando-se as distintas origens, abrangências e finalidades de cada um dos
aludidos documentos, que inclusive lhes conferem sentidos políticos diversos, em
diferentes ambientes de repercussão, cabe, dado o escopo deste texto, indicar que todos
parecem coincidir na valorização da diversificação de estruturas e programas como
qualidades e tendências da Educação Superior, para a contemporaneidade. Suficiente
motivo para reforçar a necessidade de investirmos no estudo mais aprofundado dos
elementos sobre os quais foram firmadas as respectivas posições, bem como de
acompanharmos de perto o que muda (e o que não muda) e como (não) mudam nossos
sistemas e instituições universitárias, nas particulares tradições e circunstâncias de nossos
países e da região.
5
Resumidamente, identifico algumas destas fontes documentais com significativa
expressão política internacional, para evidenciar a complexidade epistemológica,
metodológica e política que agrega a questão, para a qual estudos comparativos e críticos
precisam decididamente dar mais atenção. São estes: relatórios de três comissões nacionais
encarregadas de avaliar os sistemas de ensino superior dos respectivos países e propor-lhes
reformas; e os documentos de posição de dois organismos internacionais, de natureza
distinta, ambos com atuação sobre a Educação Superior, notadamente nos países
dependentes e emergentes.
O Relatório ATTALI (1998) propõe uma reforma no sistema francês e a construção
de um modelo europeu de ensino superior, com vistas a maior homogeneidade na definição
da missão das universidades e das grand école, em termos de qualidade e harmonização de
cursos e diplomas (comparabilidade), para promover mais inclusão social e educação
permanente, e mantém a diversidade institucional e programática existente. O Relatório
BOYER (1998) endossa as principais características do sistema norte-americano de
educação superior, marcado por sua orientação eminentemente pública, administração
estadualizada e diversidade de objetivos e programas acadêmicos, propondo que os
aperfeiçoamentos necessários sejam feitos por segmentos, como o novo modelo que
recomenda para o ensino de graduação nas universidades de pesquisa, fundamentado na
indissolubilidade entre ensino e pesquisa e na importância do acesso dos jovens aos
melhores professores, aos pós-graduandos e às instalações mais sofisticadas. O Relatório
DEARING (1997) toma como critério para estabelecer objetivos e metas para a educação
superior a noção de sociedade do conhecimento, com suas exigências econômicas e sociais;
analisa os elementos que compõem as instituições de ensino, como currículos, pessoal
funções e organização, detendo-se sobre a problemática do financiamento (público e
privado) para propugnar pela melhoria dos salários de docentes e pesquisadores, e a
valorização da pesquisa e da qualidade do ensino, que culminaram com a ampliação dos
fundos públicos, a fim de garantir a competitividade do país nestes campos.
Já os documentos dos organismos internacionais, por sua natureza, são endereçados
objetivamente à concertação sobre pluralidades e pressupõem possibilidades de
generalização e “ teorização”. A UNESCO oferece um conjunto de textos submetidos a
amplas discussões regionais e temáticas, com especialistas e representantes
governamentais, durante toda a década de 1990, em que se destacam o Documento de
Política para a Mudança e o Desenvolvimento da Educação Superior (1995) e os anais da
Conferência Regional de Havana (1996) e da Conferência Mundial sobre Educação
Superior no Século XXI (1998). Nestes é marcante o reconhecimento da necessidade de
democratizar o acesso à universidade e ao conhecimento nela gerado com o irrenunciável
investimento dos estados. A diversificação de estruturas institucionais, de programas, da
população estudantil e das fontes de financiamento é vista como uma tendência geral,
promovida por fatores externos como o aumento da demanda social, as restrições
financeiras e as mudanças tecnológicas e de organização do trabalho, mas também por
fatores internos como a especialização dos campos científicos, as atividades inter e
multidisciplinares e as possibilidades das novas técnicas da informação e comunicação. De
outra parte, o Banco Mundial (1995) oferece suas “lições” colhidas no pressuposto da
diminuição dos recursos fiscais para a Educação Superior: maior eficiência de gestão e
diversificação para alcançar opções mais baratas e flexíveis de ensino (as modalidades póssecundárias) e novas fontes de financiamento. Por isso passa a priorizar seu apoio (cada vez
6
mais competitivo) a programas nacionais e regionais de excelência e a sistemas de
avaliação do desempenho e credenciamento institucional.
Ainda que de forma esquemática, também nestas fontes fica evidente a
complexidade em que diversidade e diferenciação na Educação Superior são articuladas às
esferas do público e do privado.
A Educação Superior no Brasil: diversidade e diferenciação do
público e do privado
Considero interessante, para a compreensão das peculiaridades do sistema de
Educação Superior brasileiro e de como este vem reagindo às pressões externas e nas
tensões internas, tomar inicialmente uma perspectiva histórica sobre sua dinâmica de
diferenciação e de convergência, e sobre o movimento nas fronteiras entre o espaço público
e o espaço privado. O foco da atenção, porém, incidirá sobre os últimos anos, quando
importantes inflexões vêm ocorrendo. É este quadro longitudinal e focalizado que nos
oferece suficientes elementos para discutirmos, comparativa e criticamente, os fundamentos
das atuais propostas de políticas educacionais na América Latina e, assim, articularmos um
papel protagonista de seus investigadores.
Entretanto, antes de adentrar ao tema específico, proponho apenas alguns elementos
de contextualização da condição econômica, política e social relacionados à configuração
do sistema educacional do país, que apresenta diversas singularidades quando comparado
ao conjunto de nossa região e alguns paradoxos internos, também relevantes para as
finalidades do debate coletivo.
Contextualizando: a situação educacional do Brasil
É de domínio amplo que o Brasil é um dos países com maior extensão territorial
(maior que a porção contínua dos Estados Unidos), população (cerca de 170 milhões) e
PNB (US$ 590 milhões); mas também que mantém uma das mais desiguais e excludentes
situações sociais: 13% da população são ainda analfabetos, 23% estão abaixo da linha de
indigência e 47% da renda é apropriada pelos 10% mais ricos, o que compõe o coeficiente
de Gini em 0,60 (IPEADATA, 2001). As diferenças regionais e entre setores de uma
mesma área metropolitana ou até mesmo de uma cidade são também muito
impressionantes. Refletem a história colonial e as tradições econômicas, políticas e sócioculturais que transitaram no país pelo século XX, acrescidas dos efeitos perversos da
reestruturação macro-econômica e da reforma do Estado desde as últimas décadas.
Correlatamente, a situação educacional do país, numa perspectiva comparada,
revela médias de escolarização ainda muito baixas como resultado da repetência e da
deserção escolar precoce. Os indicadores de qualidade e eqüidade do próprio sistema de
ensino “permanecem muito distantes dos padrões desejados pela sociedade e necessários ao
desenvolvimento nacional”, como admite a autoridade governamental (CASTRO, 1999, p.
7), ao registrar as conquistas rumo à universalização do ensino fundamental e a melhoria da
eficiência do setor.
7
Gráfico 1
População brasileira estudando
ta x a d e
m a tríc u la
1 4 0 .0 %
1 2 0 .0 %
1 0 0 .0 %
8 0 .0 %
6 0 .0 %
4 0 .0 %
2 0 .0 %
0 .0 %
E n s in o
F u n d a m e n ta l
ta x a b r u ta
E n s in o
M é d io
E n s in o
S u p e r io r
ta x a líq u id a
Fonte: SCHWARTZMANN, 2001.
Com efeito, a escolarização líquida da população brasileira de 7 a 14 anos passa de
67%, em 1970, para 95,8%, em 1998, quando se alcançam 127,6% de escolarização bruta.
Todavia, apenas 30,4% da população de 15 a 17 anos estão freqüentando o ensino médio,
apesar do acentuado aumento do número de vagas nos últimos anos. O Gráfico 1, acima,
ilustra o grande funil da escolarização brasileira; portanto o déficit de Educação Superior.
Agora, na vigência de pressões para a redução das desigualdades e a viabilização de
políticas sociais, dado que a estabilidade econômica e a consolidação da democracia
interessam bem mais longe que as fronteiras nacionais e a dignidade dos cidadãos (sic),
temos conseguido alguns significativos avanços (ainda que às expensas de outros fatores da
“qualidade de vida social”): São 55 milhões de matrículas no país, i. e. quase 1/3 da
população! Destas matrículas, mais de 53 milhões são na educação básica. E, logicamente,
massiçamente na rede de escolas públicas gratuitas, como confirma logo adiante a Tabela 1.
Aliás, é oportuno exemplificar que a democratização do acesso ao ensino médio, em
tempos de encolhimento da classe média, corresponde não apenas à expansão da oferta de
vagas nas escolas estatais (de 46,5% em 1980 passam a 84,24% em 1999) mas também a
uma redução do número absoluto das matrículas em escolas privadas e a um “rebaixamento
da qualidade do ensino (idem, p. 13), com “falta de professores qualificados nas disciplinas
básicas – Química, Física, Matemática e Biologia” (idem, p. 14) e 54,8% de matrículas no
período noturno, em prédios inadequados e mal equipados (INEP, Censo Escolar, 1998).
Tabela 1
Distribuição da matrícula por nível de ensino e participação
da rede pública: Brasil – 1998
Nível de Ensino
Matrícula Total
Rede Pública
% Rede Pública
Educação Infantil
5.733.273
4.135.854
72,14
Ens. Fund. 1ª a 4ª
20.939.076
19.220.984
91,79
Ens. Fund. 5ª a 8ª
15.120.666
13.561.411
89,69
Ensino Médio
7.769.199
6.544.835
84,24
Ensino Superior
2.369.945
832.022
35,11
55.315.419
47.128.928
85,20
Total
Fonte: INEP/MEC apud CASTRO, 1999.
8
Uma perspectiva histórica da diversidade e do público-privado na Educação Superior
no Brasil
Diferentemente da América Espanhola, que teve suas primeiras universidades já ao
início da colonização, a coroa portuguesa impediu-as no Brasil. Assim sendo, ficava o
ensino superior, no período colonial, limitado aos cursos de Filosofia e Teologia
ministrados pelos jesuítas e, após sua expulsão do reino português, em 1759, pelos
franciscanos, em conventos. Contava-se, então, apenas com instituições privadas, que se
mesclavam ao Estado pelo regime do padroado (CUNHA, 1999). Com a transferência da
família real portuguesa para o Brasil, em 1808, foram criadas as primeiras instituições
estatais de formação superior profissional – as faculdades de Medicina, Direito e
Engenharia –, na Bahia e no Rio de Janeiro, que co-existiram com as escolas religiosas logo
progressivamente limitadas à formação clerical, no decorrer do período imperial (18221889). Tem-se, assim, a matriz da Educação Superior no país: leiga e estatal, com
estabelecimentos/cursos de formação profissional isolados, centralmente mantidos e
controlados.
Os primeiros governos republicanos, sob a égide do liberalismo e do positivismo,
pretendiam romper com a exclusividade do Estado no ensino superior. No entanto, os
vínculos do professorado das faculdades estatais com os novos dirigentes fizeram com que
fossem mantidas, a par da iniciativa governamental de estados federados e de grupos
particulares. Pode-se, com isto, interpretar que este foi o primeiro movimento de
diversificação da Educação Superior no Brasil, definindo os principais segmentos
institucionais até hoje existentes: o público, com estabelecimentos federais e estaduais, e o
privado, com estabelecimentos confessionais e particulares. Nota-se, também, que se
constitui, desde então, a legitimação do ensino superior não-federal pelo reconhecimento
oficial dos cursos, mediante inspeção estatal regular e registro de diplomas na repartição
ministerial, uma fonte latente de tensões e, evidentemente, de homogeneização da oferta
curricular.
Outro elemento importante a registrar é a “universidade temporã”, como bem
caracterizou CUNHA (1985), posto que, antes de 1920, no Brasil, nenhuma universidade
existiu e que, de fato, apenas a partir de 1934, com a criação da USP - Universidade de São
Paulo, é introduzido um novo modelo conceitual e organizacional. Aliás, o advento e
desenvolvimento da USP e da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (FAVERO, 1999)
já sinalizam suficientemente que a diferenciação na Educação Superior guarda complicadas
relações com o modelo político e econômico, seja com a democratização do ensino e o
papel das elites, a pesquisa científico-tecnológica e a formação profissional, o nacionalismo
e a cooperação internacional, ou com a construção de novas hegemonias regionais e mesmo
institucionais. Os textos de FERNANDES (1984) e QUEIROZ, PONTES e FERNANDES
(1984), elaborados por ocasião do cinqüentenário da instituição e, com outros, recuperados
à memória atual pelo GT de Políticas da Educação Superior, da ANPED, são ricos
subsídios para a compreensão deste fenômeno, em perspectiva longitudinal.
De 1945 a 1964, prosperam instituições de ensino superior no país e muitas das
faculdades e escolas são aglutinadas em universidades e federalizadas, em movimento que
pode ser interpretado como de homogeneização interna e externa (interinstitucional e
programática). Algumas universidades confessionais são também criadas no período,
9
trazendo mais um elemento de diversidade. Mas tanto as universidades públicas quanto as
privadas mantém o padrão (originário da USP) que inclui uma tensionante diversidade
interna, as escolas tradicionais de formação profissional e a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, concebida como centro gerador de cultura para as demais. Todas as
unidades universitárias, no entanto, muito seletivas e notadamente devotadas ao ensino. Ao
final do “período populista”, 65% dos estudantes universitários brasileiros freqüentavam
universidades (CUNHA, 1982), o que atesta uma importante inflexão no modelo
institucional do sistema, que também já evidenciava grande diversidade regional e
institucional de qualidade, apesar de formalmente haver uma padronização curricular e de
organização interna nas universidades ou estabelecimentos isolados.
Os anos sessenta foram tempos de crítica e politização versus constrangimentos nas
universidades brasileiras. O elitismo, a excludência do vestibular eliminatório (que gerava
contingentes de jovens aprovados nos exames seletivos e sem acesso ao ensino superior), a
alienação social, econômica e política dos currículos e a obsolescência da hierarquia
docente (a estrutura de cátedra), alimentavam intensos debates e provocaram, no bojo das
medidas de controle político subseqüente ao golpe de 1964, profundos traumas na
comunidade acadêmica e uma ruptura programática: as aulas, as bibliotecas e as reuniões
vigiadas; o desenvolvimento nacional tornado uma “questão técnica”; a cooperação norteamericana substitui a vertente intelectual a européia. – Poder-se-á caracterizar o movimento
também como uma diferenciação ético-política e com repercussões sobre as concepções
acerca do papel do Estado e autonomia universitária?
A Reforma Universitária, orientada pela Lei 5540, de 1968, vem impor um novo
papel para o governo federal em matéria de Educação Superior: a regulação forte e
propositiva, de cunho tecno-burocrático. Com esteio na ideologia do planejamento, é criado
um sistema de ensino superior, sob jurisdição normativa e de controle da União, no qual
havia um modelo institucional, a universidade humboldiana-americana. As principais
características então impostas às instituições existentes foram: novos objetivos (pesquisa e
extensão) e nova estrutura organizacional (departamentos e centros); nova organização
acadêmica (carreiras curtas, ciclo básico, matrícula por disciplina e créditos,
semestralização do calendário). Paralelamente, tratou o governo de incentivar a pósgraduação e a pesquisa, instituindo, nas universidades federais, uma carreira docente
nacional, isonômica e com gratificação para o tempo integral e a dedicação exclusiva. Um
programa de modernização administrativa, construção de campi universitários fora dos
perímetros urbanos e o processo orçamentário centralizado completavam a reforma. Todas
estas medidas representaram mudanças muito drásticas nas estruturas e nas práticas
acadêmicas, na cultura e nos valores universitários brasileiros. Representaram, por isso, um
significativo movimento de convergência institucional e programática, notadamente
homogeneizadora, mas que trazia consigo algumas contradições e escapes. Talvez a
principal contradição interna da Reforma Universitária de 1968 tenha sido a introdução de
valiosos elementos da democracia acadêmica que se alargará até recentemente, com a
extinção da cátedra e a regulamentação dos concursos públicos para docentes, com a
eleição de dirigentes pela comunidade universitária, os colegiados como instância decisória
e a garantia da representação estudantil nestes. Contudo, há quem lembre que, com isto,
professores e estudantes ficaram por demais envolvidos nas disputas sobre as novas
estruturas internas, em detrimento da atuação nas questões políticas gerais.
10
A compreensão da dinâmica da Educação Superior brasileira, posterior a este
ordenamento estrutural e organizacional, não pode descuidar de que à época vinha
ocorrendo um acentuado aumento da demanda, associado à urbanização da população e à
industrialização. A pressão desta demanda, a arquitetura de contenção da resistência
política e o projeto desenvolvimentista somaram-se, fazendo com que os militares
oportunizassem um desvio no leito da Reforma Universitária. Tem-se, então, nos anos
setenta, o desenvolvimento de um modelo de expansão por diferenciação na Educação
Superior; o sistema, ainda com o paradigma normativo unitário cede espaço à proliferação
de estabelecimentos da iniciativa privada, isolados (não-universitários), voltados
inteiramente para o ensino, localizados no interior dos estados ou nas periferias
metropolitanas. Neste tipo de instituição, os cursos noturnos e de fim de semana, para a
formação profissional em Direito, Economia e Administração e para as Licenciaturas
(formação de professores) em Letras, Pedagogia e Ciências Sociais e Humanas
predominaram; seus docentes eram profissionais com precários vínculos de trabalho e
formação acadêmica; assim como os alunos, a classe média empobrecida e aspirante de
mobilidade social. Com efeito, a impressionante expansão de matrículas no ensino superior,
- cerca de 46.000 em 1950, 93.000 em 1960, 425.000 em 1970 e mais de 1 milhão em 1977
– só poderia ter acontecido por uma marcante estratificação em que os indicadores sócioeconômicos dos alunos e professores guardam elevada correlação com seus atributos
acadêmicos. Este fenômeno da expansão via privatização, interiorização e degradação
acadêmica é analisado por OLIVEN (1990), que chama atenção para a “paroquialização”
do ensino superior brasileiro como uma estratégia na cooptação política da classe média
pelo Estado autoritário. Esta limitação conceptual, de objetivos e de repercussão no projeto
universitário, que pode ser sumariamente ilustrada na situação de 1981, quando havia mais
de 800 faculdades isoladas, 250 destas com menos de 300 alunos, e apenas 65
universidades, 7 destas com mais de 20.000 alunos.
Paradoxalmente, os planos de desenvolvimento econômico e segurança nacional
levam, ainda nos anos setenta, a uma forte política de desenvolvimento da pós-graduação e
da pesquisa, que fertiliza principalmente nas universidades públicas. A expansão e
qualificação deste segmento acadêmico, conquanto limitado, produz mais uma evidente
diferenciação no sistema de ensino superior brasileiro, entre os tipos de instituição –
universidades e instituições isoladas – e internamente, nas universidades, entre graduação e
pós-graduação, seus docentes, discentes e recursos acadêmico-científicos.
A década de oitenta, reconhecida como a Década Perdida, na América Latina,
devido aos efeitos das restrições na capacidade de investimento, também repercute em
estagnação das matrículas no ensino superior: apenas 11,50% entre 1980 e 1992, quando é
retomado o crescimento. Neste período, o setor privado passa por severa crise que será
diagnosticada por anacronismo acadêmico e inviabilidade econômica das instituições
isoladas e pequenas. O remédio foi a agregação destas para formarem as chamadas “novas
universidades” (BRAGA, 1989), que se constituíram sob diversas formas institucionais e
jurídicas: algumas tornaram-se públicas, abrigadas por governos estaduais ou municipais,
em poucos casos; outras privadas, sob competência confessional ou particular, ou ainda
como comunitária – definida como não-estatal mas de interesse público. Este novo
elemento da diversidade institucional, que floresceu na região sul do país, pode ser
associado a fatores da herança cultural européia, da experiência com o modo de produção
cooperativado e dos valores de participação política.
11
As “novas universidades” representam, pois, um movimento de convergência, para
instituições maiores, mas com óbvia diferenciação sobre as anteriores formas
organizacionais, os perfis de clientela, os programas acadêmicos e os serviços técnicos e
tecnológicos complementares. Todavia, não suficiente para descaracterizar a diversidade
institucional e a estratificação acadêmica do sistema de ensino superior brasileiro, ao final
do século, que merece uma análise mais detalhada, a seguir.
A diversidade do e no público e privado na Educação Superior no Brasil: uma política
em ação
Conforme já indicado, a diversificação de estruturas e formas vem se constituindo
em uma tendência contemporânea da Educação Superior, no plano internacional, embora,
nesta escala de análise, já se possam visualizar algumas categorias disseminadas, pelas
quais será possível o estudo comparativo morfológico e da dinâmica estratégica, de
interesse para o campo das políticas públicas.
No Brasil, como ora ilustrado, a formação de nível superior sempre foi um objeto
político do Estado, que atuou como regulador, pela via normativa, de controles em
processo, ou pelo financiamento, seja sobre as instituições estatais (públicas, oficiais) ou
privadas. Em movimentos no sentido de diferenciação ou homogeneização institucional e
programática, muitas vezes paralelos – e, por isso, contraditórios – chega o país ao final do
século XX, com uma situação relativamente precária de qualificação cultural, profissional e
científico-tecnológica, segundo os padrões exigidos na competitividade global.
Esta avaliação das dificuldades em que estamos para evitar órbitas
progressivamente excludentes no cenário da sociedade do conhecimento, complica-se com
as limitações mais imediatas da crise fiscal e de disponibilidades de fundos públicos
privados para investimentos em educação. O quadro estável de crescente concentração de
renda (BARROS, HENRIQUES e MENDONÇA, 2001) reforça a importância de situar-se
o tratamento da Educação Superior no conjunto das políticas educacionais, com focalização
nas desigualdades sociais. Destarte, o modelo de sistema de ensino superior – suas
instituições, objetivos e critérios de acesso – fica em xeque; como também a diversificação
atual e a diferenciação induzida pelo Estado (SILVA JR; SGUISSARDI, 1999), se postas
como estratégia para a expansão e melhoria [da relevância social] da Educação Superior.
Examinemos, portanto, algumas possibilidades iniciais de abordagem desta
problemática:
Da diversidade estrutural do sistema: jurisdições estatais e segmentos privados
O ordenamento constitucional e legal brasileiro preceitua o dever do Estado garantir
a educação escolar pública e o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da
criação artística, segundo a capacidade de cada um” (CF, art. 208, V; LDB, art. 4º , V). Mas
reconhece também que “o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes
condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo
sistema de ensino; autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo poder
público; III – capacidade de auto-financiamento, ressalvado o previsto no artigo 213 da
12
Constituição Federal” (CF, art. 209, com redação da LDB, art. 7º ). Tem-se, pois, atualizada
a tradição de instituições públicas e instituições privadas de ensino, assim como a ampla
função normativa e de controle do Estado sobre estas – cujos limites e instrumentos sempre
têm sido objeto das mais acirradas disputas nos processos constituintes, legislativos e da
administração educacional no país.
A configuração do Estado, estabelecida na Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988, como parte das negociações na transição democrática, é composta por três
instâncias político-administrativas: a União, os estados - com o Distrito Federal, e os
municípios. Todas três com atribuições em matéria de educação e com competência para
organizar, em regime de colaboração, seus sistemas de ensino (CF, art. 211; LDB, ar. 8º ).
Desdobra-se no setor da educação, portanto, a diretriz de descentralização, amplamente
aplicada no novo ordenamento nacional, que ainda guarda muitos recursos e incumbências
para a União mas reconhece maior autonomia para os estados e os municípios (estes
limitados a normatizar apenas a Educação Infantil e o Ensino Fundamental de sua
jurisdição).
Os elementos constitutivos dos sistemas de ensino federal, estaduais e municipais
são definidos na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Assim, o
sistema federal compreende as instituições de ensino mantidas pela União e mais as
instituições de educação superior privadas (LDB, art. 16); os sistemas estaduais
compreendem as instituições de ensino mantidas pelos respectivos poderes públicos
estaduais e mais as instituições de educação superior mantidas por municípios de sua
jurisdição, além das instituições privadas de ensino fundamental e médio (LDB, art. 17); os
sistemas municipais compreendem as instituições de ensino fundamental, médio e de
educação infantil mantidas pelo respectivo Poder Público Municipal e as instituições
privadas de educação infantil localizadas no município (LDB, art. 18). Nestas disposições,
com a concorrência de outras, verifica-se que, embora reconhecida a autonomia de
municípios para criar e manter ensino superior, não lhes é concedida competência
normativa sobre este nível e nem lhes é facultado aplicar os recursos orçamentários
vinculados à educação (25% ou mais, se tal dispuser a Lei Orgânica Municipal) – uma
providência para evitar que as pressões das elites locais inviabilizem a educação básica.
Complementarmente, a LDB define que à União “cabe a coordenação da política
nacional da educação, articulando os diferentes níveis e sistemas de ensino e exercendo
função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias” (LDB, art.
8º ); e, ainda, especificamente com relação ao ensino superior, “assegurar processo nacional
de avaliação das instituições de educação superior, com a cooperação dos sistemas que
tiverem responsabilidades sobre este nível de ensino” (idem, art. 9º , VIII). A incumbência
de “autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos
das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema” (idem, art. 9º ,
IX) poderá ser delegada pela União aos estados que mantenham instituição de educação
superior.
Posta está, no plano normativo, de forma inequívoca, a responsabilidade do governo
federal quanto à política de educação superior e às condições de manutenção e
desenvolvimento deste nível de ensino no país. A complexidade jurisdicional, porém,
requer o regime de colaboração entre entes federados – da União com os estados que
mantenham ensino superior ou do estado com seus municípios que mantenham ensino
13
superior -, seja um trato planejado, concertado e geralmente submetido a acordos de ordem
legislativa. Já as relações de exercício do poder normativo e de gestão interna na jurisdição
federal são, logicamente, complicadas porque envolvem precipuamente as tensões entre
mantenedoras com interesses, em princípio, de natureza distinta - as públicas e as privadas.
Estas últimas ainda segmentadas por diferenças que também podem ser dispostas em
gradientes, conforme disposições sobre patrimônio, valores de contribuição do alunado e
participação de docentes, discentes e comunidade no processo decisório, entre outras.
A propósito, é pertinente destacar que a expansão e a organização dos interesses
privados no setor educacional – e os conflitos internos entre estes – fizeram com que desde
a Constituição Federal (1988, art. 213) ficasse explicitada uma tipologia de instituições
privadas: comunitárias, confessionais e filantrópicas, que professavam - e tiveram
reconhecido – seu “interesse público”, habilitando-se a receber recursos públicos, mediante
algumas condições. Posteriormente, a LDB (1996, art. 19 e 20) formaliza como categorias
administrativas das instituições de ensino a pública e a privada, enquadrando nesta última,
além das mencionadas, as instituições particulares, o que significa, implicitamente, admitir
dentre instituições de ensino o caráter empresarial. Este movimento representa, sem dúvida,
a legitimação de um processo de diferenciação de objetivos e padrões administrativos, que
parece ter (e deva ter) continuidade na diferenciação de critérios e instrumentos de
supervisão do Poder Público. Um fato relevante, neste sentido é a subcategorização
estatística iniciada com o Censo da Educação Superior de 1999, que já desmembra os dados
das instituições privadas em particulares e comunitárias/confessionais/sem-fins-lucrativos.
A Tabela 2, a seguir, quantifica a diversidade estrutural das instituições de
Educação Superior no Brasil, segundo as jurisdições dos sistemas de ensino e a
dependência administrativa, ilustrando a grande proporção de instituições privadas - que
corresponderá a uma proporção relativamente menor de matrículas, devido ao menor porte
dos estabelecimentos. Observe-se, porém, que dentre as instituições municipais constam
algumas (ou muitas) criadas por Poder Público Municipal, por meio de Lei Municipal, mas
que não são de fato mantidas pelo mesmo, em função das restrições legais já comentadas e
do fundo público municipal; há umas dentre estas que, inclusive, não são gratuitas e que
poderiam ser melhor enquadradas como instituições comunitárias e até particulares – numa
depuração dos sistemas já iniciada e que, por certo, ainda se faz necessária. Um alerta
também deve ser feito com relação à diminuição do número de instituições federais, que
não significa encolhimento da oferta de ensino, posto que na década de noventa houve
aglutinação de estabelecimentos isolados em novas universidades e novos investimentos,
para dotar novos estados da federação – recentemente desmembrados – de uma
universidade federal, como é tradição no país.
Tabela 2
Instituições de ensino superior por sistemas de ensino e dependência
administrativa e tipo de instituição: Brasil, 1980, 1990, 1999
Ano
Sistema federal
Instituições Instituições
federais
privadas
Sistemas estaduais
Instituições
Instituições
estaduais
municipais
Total de instituições
Públicas
1980
1990
56
55
682
696
53
83
91
84
200
1999
50
905
66
60
176
Fonte: INEP, 2001.
14
222
Privadas Total
Outra observação importante é que os números da Tabela 2 estão a indicar apenas
uma das faces dos amplos processos de expansão e de privatização que vem ocorrendo na
Educação Superior, que, todavia, carecem de ser examinados em níveis de análise mais
detalhados para que se percebam outros movimentos que concorrem e decorrem do novo
ordenamento legal e institucional e das práticas político-administrativas nos diversos
sistemas, o federal e os estaduais – e, principalmente, das complexas relações entre os
interesses públicos e privados. Alguns desses níveis de análise mais detalhados serão
explorados mais adiante, com categorização por tipo de instituição, cursos oferecidos e
indicadores de qualidade.
Primeiro, destaco a expansão e a privatização na oferta do ensino de graduação,
mantendo a dependência administrativa como unidade de análise, porque bem retrata a
diferenciação no ritmo da dinâmica da iniciativa privada comparativamente à do Poder
Público, em qualquer de suas três instâncias.
Gráfico 2
Evolução da matrícula de graduação por dependência
administrativa: Brasil, 1980-1999
2.500.000
2.000.000
Total
Federal
1.500.000
Estadual
1.000.000
Municipal
Privada
500.000
0
1980
1985
1990
1995
1999
Fonte: INEP, 2001.
Buscando ilustrar outros aspectos da diversidade, o Gráfico 3, a seguir, proporciona
uma noção do problema da distribuição espacial da Educação Superior no território
nacional, segundo as macro-regiões, em que é evidente a densidade de instituições privadas
de ensino na região Sudeste. Tomar esta situação como “natural”, atribuindo-a apenas à
concentração de população e renda ou ao perfil da economia nos estados de São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais, que potencializariam um “mercado” regional, parece-me
insuficiente, por desconhecer fatores políticos, culturais, empresariais ou da organização da
educação básica incidentes na demanda pela formação terciária ou na atratividade
comercial do setor educacional. Mais um argumento sobre a importância do
aprofundamento nas análises e para o questionamento sobre o papel do Estado na regulação
da oferta de Educação Superior.
15
Gráfico 3
Distribuição regional das instituições de educação superior
públicas e privadas: Brasil, 1999
600
500
400
300
P ú b lic o
200
P riv a d o
100
0
N o rte
N o rd e s te
S u d o e ste
S ul
C e ntro O e ste
Fonte: INEP, Censo da Educação Superior, 1999.
Da diversidade institucional do público e do privado
Historicamente, como vimos, a Educação Superior no Brasil se estabelece em
instituições isoladas de formação profissional e acadêmica, denominadas faculdades,
escolas ou institutos. As universidades foram tardias e, não obstante a Reforma
Universitária de 1968 tenha preconizado a universidade científica ou “humboldianoamericana” como paradigma, sempre foram a exceção, seja no número de instituições ou
pelo volume de matrículas que conseguiam abrigar, quer no segmento público ou no
privado. A esta limitada diversidade institucional correspondia também uma certa
diversidade programática, ou seja de objetivos, conteúdo e, em realidade, de (não limitada)
qualificação acadêmico-científica. Razão pela qual, a noção de diversidade institucional era
de fato ausente e carente de legitimidade na educação Superior no Brasil. Pode-se dizer que
as instituições isoladas foram, via de regra, vistas como uma segunda classe, uma
excrescência tolerada no sistema.
Uma ruptura objetiva com esta postura veio acontecer no atual governo, desde a
divulgação das primeiras diretrizes para a Educação Superior, que visavam a retomada da
dinâmica de expansão de vagas e apontavam a diversificação institucional como uma
estratégia para tal. Foi consagrada no Decreto 2306, de 1997, que regulamenta o sistema
federal de ensino. Neste mister, esclarece objetivamente a admissibilidade de formas
jurídicas de natureza civil, fundacional ou comercial, e indica cinco categorias de
organização acadêmica: I- Universidades, II- Centros Universitários, III- Faculdades
Integradas, IV- Faculdades e V- Institutos Superiores ou Escolas Superiores (art. 8º ). As
universidades são caracterizadas, como tradicionalmente, pela indissociabilidade de ensino,
pesquisa e extensão, admitindo-se a inovação de universidades especializadas. Os centros
universitários devem ser pluricurriculares e, segundo a norma, atender a critérios de
excelência (art. 12), para gozar de prerrogativas de determinada autonomia, como a criação
de cursos e programas, remanejar ou ampliar vagas nos cursos existentes.
16
Tabela 3
Instituições de ensino superior por dependência administrativa
e tipo de instituição: Brasil, 1980, 1990, 1999
Ano
1980
1990
1999
Instituições
Federais
Un F&In
34
36
39
-
F
22
19
11
Un
20
40
83
Instituições
Privadas
F&I
F
CUn
19
643
74
582
72
711
39
Instituições
Estaduais
Un F&I
F
9
1
43
16
67
30
36
Instituições
Municipais
Un F&I
F
2
89
3
81
3
2
55
Fonte: INEP, 2001.
A Tabela 3, acima, assim como a Tabela 4 e o Gráfico 4, a seguir, oferecem
ilustração da diversidade ora existente e do processo de diferenciação em curso nas últimas
duas décadas, conforme o tipo de instituição de Educação Superior e a dependência
administrativa, seja pelo número de estabelecimentos ou pela matrícula de graduação. Fica
evidente a diferença entre a oferta do Poder Público, federal, estadual ou municipal, e da
iniciativa privada.
Complementarmente a este panorama da situação e da dinâmica na organização
institucional, pode-se detalhar a diversidade institucional registrada no último Censo da
Educação Superior (1999) que, como dito, inclui as novas categorias institucionais e
distingue as subcategorias do ensino privado. Assim, observa-se que, de certo modo, as
instituições privadas sem fins lucrativos aproximam-se mais do tipo-padrão, a universidade,
do que as instituições particulares, que, por sua vez, fazem sua bases nas faculdades
isoladas e aderem mais rapidamente ao novo tipo, o centro universitário. Especula-se que o
fato esteja relacionado a que as ordens religiosas e organizações comunitárias tenham sido
precursoras na iniciativa de Educação Superior, já que os interesses empresariais só
recentemente foram de forma aberta admitidos; que as universidades pressupõem corpo
docente mais qualificado e profissionalizado no magistério, com o que as condições de
gestão democrática e de trabalho na instituição seriam mais demandadas e mais toleradas
pelos seus dirigentes.
Tabela 4
Instituições particulares e privadas sem fins lucrativos por tipo de instituição, matrículas de
graduação, vagas oferecidas e concluintes: Brasil, 1999
Total
Universidades Centros Univ. Fac.Integrad. Inst.Isoladas
Instituições
Particulares
Com./conf./fil.
Cursos
Particulares
Com./conf./fil
Docentes
Particulares
Com./conf./fil
Matrículas
Particulares
Com./conf./fil
Concluintes
Particulares
Com./conf./fil
526
379
26
57
22
17
47
25
431
280
2467
2917
863
1873
347
256
290
146
967
642
36865
56088
14087
37571
4922
3641
3777
2884
14079
11992
651362
866561
267267
627285
97854
63118
72277
40682
213959
155476
83463
111938
30488
72768
13138
9089
213959
155476
28514
24541
Fonte: INEP, Sinopse da Educação Superior, 1999.
17
Já o Gráfico 4, demonstra que a expansão das matrículas de graduação tem início
depois de 1985 e toma grande aceleração nos últimos anos da década de 1990. As
universidades foram, marcadamente, as instituições responsáveis por esta dinâmica.
Gráfico 4
Evolução da matrícula de graduação por tipo de instituição
de educação superior: Brasil, 1980-1999
2500000
2000000
Universidades
1500000
Fac. Int e Cen.
Un.
1000000
Faculdades
500000
Total
0
1980
1985
1990
1995
1999
Fonte: INEP, 2001.
Da diversidade programática: aspectos de qualidade do público e do privado
As diferenças em termos de programas e serviços oferecidos pelas instituições de
Educação Superior, no Brasil, dependem, em grande parte, das definições normativas e das
práticas de gestão dos órgãos de supervisão e avaliação dos respectivos sistemas de ensino,
por sua vez inseridas na política nacional de educação e suas determinações. Mas
dependem, também, de definições da própria instituição (ou sua mantenedora) quanto à
missão institucional e a seu posicionamento estratégico.
Dentre os vários aspectos que poderiam ser examinados para caracterizar a
diversidade programática do público e do privado na Educação Superior, dados os limites
das fontes e dos níveis de análise utilizados neste texto, destaco apenas alguns, relacionados
à função de ensino e as principais variáveis a esta função associadas.
De acordo com a nova LDB (art. 44), na Educação Superior, são reconhecidos
cursos e programas: I- de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino
médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo; II- de pósgraduação, compreendendo programas de mestrado e doutorado, cursos de especialização,
aperfeiçoamento e outros, abertos a diplomados em cursos de graduação e que atendam às
exigências das instituições de ensino; III- cursos de extensão, abertos a candidatos que
atendam aos requisitos estabelecidos em cada caso pelas instituições de ensino; e IVcursos seqüenciais, por campo de saber, de diferentes níveis e abrangências, abertos a
candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos pelas instituições de ensino. Esta
última categoria, os cursos seqüenciais, são uma novidade introduzida na LDB, por
iniciativa vinculada ao governo, surpreendendo como fórmula normatizada o campo
educacional, e pode ser considerada como um recurso de diferenciação programática entre
18
e nas instituições. Por definição e em realidade, todas as universidades e centros
universitários oferecem cursos de graduação, pós-graduação e extensão. As exigências
normativas da pós-graduação, tradicionalmente bastante controlada (por agência
governamental específica, a CAPES), fazem com que a oferta dos cursos de stricto sensu –
mestrado e doutorado- seja um elemento importante na diferenciação programática entre as
universidades e, especialmente, destas com os centros universitários, federações e
instituições isoladas de ensino superior, no continuum de diversidade segundo os níveis de
ensino ofertados.
Já os cursos seqüenciais, que se diversificam em cursos seqüenciais de
complementação de estudos, com destinação individual ou coletiva, conduzindo a
certificado, e de formação específica, somente com destinação coletiva e conduzindo a
diploma, são ainda experimentados por um número restrito de instituições e, têm servido
para apontar diferenças de posicionamento entre instituições particulares e públicas ou
entre universidades e instituições isoladas. São vistos com desconfiança pelas instituições
mais qualificadas e tradicionais, posto que podem representar apenas mais uma fórmula de
alcançar mais rendimentos financeiros sobre a capacidade acadêmica instalada, sem
considerar as implicações pedagógicas de aumentar o número de alunos por turma e
diversificar as salas de aulas com alunos submetidos a distintos processos seletivos de
ingresso e com distintos interesses, idade e experiência acadêmica e profissional. Mas
também não se desconhece que podem possibilitar atendimento a parcelas da população
que não obtiveram condições de ingresso pelas vias tradicionais ou que desejam atualização
profissional, inclusive substituindo com vantagens oportunidades anteriormente oferecidas
como cursos de extensão, a exemplo do que fazem algumas universidades, inclusive
públicas, para a educação continuada de professores de educação básica junto a
licenciaturas regulares. Creio que um exame mais detalhado da dinâmica dos cursos
seqüenciais no país proporcionará interessantes observações sobre a questão da diversidade
programática, o público e o privado, face a temas como democratização/ elitização do
acesso ao conhecimento, nos planos institucionais e societal. Ou, ainda, face ao tema da
desregulamentação do ensino superior, seus processos seletivos, diretrizes curriculares e
condições de oferta.
Em nível subseqüente, a diversidade programática é revelada pela variável campos
de conhecimento ou de atuação profissional. O Gráfico 5, a seguir, indica a acentuada
concentração de cursos de graduação nas áreas de Ciências Sociais Aplicadas
(Administração, Direito, Comunicação Social, entre outros) e Ciências Humanas
(Pedagogia, História, Filosofia, entre outros) reconhecidos como cursos de fácil
implantação e de baixo custo. Estes cursos estão presentes na oferta de todas as instituições,
salvo as especializadas em outros campos de saber; são proporcionalmente mais oferecidos
pelas instituições privadas e dentre estas pelas particulares, como o mesmo gráfico indica.
Os condicionantes desta situação são, obviamente, também ligados a características sócioeconômicas do alunado e das regiões em que se situam. De outra parte, tem-se as
exigências ou limitações impostas a alguns cursos de formação profissional, notadamente
na área da saúde.
19
Gráfico 5
Distribuição proporcional dos cursos por área de conhecimento: Brasil, 1999.
35 ,0
30 ,0
25 ,0
total
20 ,0
P riva do
15 ,0
10 ,0
5,0
Eng
Tec
nolo
gia
Letr
as e
Arte
s
Terr
a
Exa
tas &
Hum
ana
s
Soc
iais
Apli
cada
s
0,0
Fonte: INEP, Censo da Educação Superior, 1999.
Outra perspectiva sobre a diversidade programática, conforme as áreas de
conhecimento, é dada pela distribuição proporcional das matrículas nestes mesmos cursos,
ilustrada a seguir no Gráfico 6. Observa-se, aí, que há concentração ainda mais acentuada
nos cursos de Ciências Sociais Aplicadas (42,6% do total das matrículas), a ponto de
reduzir a significação relativa de todas as demais áreas.
Gráfico 6
Distribuição proporcional das matrículas de graduação por área de
conhecimento em instituições públicas e privadas : Brasil - 1999
60
50
40
30
20
10
0
Total
Biológicas
Agrárias
Eng
Tecnologia
Letras e
Artes
Saúde
Exatas &
Terra
Humanas
Sociais
Aplicadas
Privada
Fonte: INEP, Censo da Educação Superior, 1999.
Portanto, cabe interpretar que, em realidade, há não apenas pouca diversidade na
formação superior sendo oferecida à população, mas que possivelmente estamos sob uma
força homogeneizadora de cursos pouco vinculados a pesquisa e com mais reduzido
impacto sobre qualquer alavancagem de desenvolvimento tecnológico e econômico, em que
20
pese seu potencial valor social e humanístico. Exemplo contundente é o registro de 1266
novos cursos de graduação autorizados/reconhecidos, dos quais 392 são de Administração,
132 de Ciências Contábeis e Econômicas, 66 de Turismo, e assim por diante (MEC, 2001),
que caracterizam o que SAMPAIO (1998) havia percebido como ampliação do leque de
opções curriculares e fragmentação de carreiras para atrair novas clientelas com baixo
investimento adicional. Endosso sua problematização sobre a relação entre a fragmentação
de carreiras e a diversificação do sistema de ensino superior no país.
Algumas das estatísticas disponíveis permitem apreciar o movimento de expansão
das oportunidades de trabalho docente, segundo os aspectos de diversidade já examinados.
Considerando o Gráficos 7, a seguir, verifica-se que no segmento das universidades é onde
de fato evolui o número de postos de trabalho, posto que nos estabelecimentos isolados há
um aumento muito discreto destes e nas federações ou faculdades integradas ocorre
diminuição.
Gráfico 7
Evolução do número de funções docentes por
tipo de instituição: Brasil, 1980-1999.
200000
180000
160000
140000
120000
100000
80000
60000
40000
20000
0
Universidades
Fac. Int e Cen. Un.
Faculdades
Total
1980
1985
1990
1995
1999
Fonte: INEP, 2001.
Gráfico 8
Evolução do número de funções docentes por
dependência administrativa: Brasil, 1980-1999.
200.000
180.000
160.000
140.000
120.000
100.000
80.000
60.000
40.000
20.000
0
Total
Federal
Estadual
Municipal
Privada
1980
1985
1990
1995
Fonte: INEP, 2001.
21
1999
Já o Gráfico 8 complementa a compreensão do fenômeno, por indicar que o governo
federal não vem proporcionando a expansão de postos docentes enquanto que nas
instituições estaduais houve mediano crescimento; os novos empregos, consoante os
indicadores de instituições e matrículas, estão mesmo é no setor privado. Atente-se, sobre
esta variável que indica o número de funções docentes e não o número de professores,
sendo comum o acúmulo de funções por docentes quando lecionam em mais de um curso
numa federação de faculdades ou lecionam até em mais de uma universidade ou centro
universitário, em regimes de tempo parcial.
Mais uma importante aproximação da diversidade entre público e privado na
Educação Superior pode ser obtida com a comparação sobre a qualificação dos docentes.
Como o Gráfico 9 exibe, as instituições públicas apresentam uma situação bem mais
favorável do que as privadas, embora o conjunto dos docentes brasileiros tenham ainda
poucas oportunidades de pós-graduação. É oportuno lembrar as exigências que pela
primeira vez, com a LDB de 1996, se fazem no sentido de que pelo menos 1/3 dos docentes
das universidades devam ter mestrado ou doutorado e também de 1/3 com tempo integral –
dois fatores associados à possibilidade de produção acadêmico-científica e,
conseqüentemente, à mudança do padrão de qualidade do ensino.
Gráfico 9
Distribuição das funções docentes por grau de formação
em instituições públicas e privadas: Brasil, 1999.
44,7
45,0
40,0
30,0 31,4
35,0
28,6
Sem PósGraduação
Especialização
30,0
23,0
25,0
20,0
15,7
Mestrado
16,3
15,0
10,3
Doutorado
10,0
5,0
0,0
Pública
Privada
Fonte: INEP, Censo da Educação Superior, 1999.
Diversidade e unidade no coração do Estado e da Universidade:
em superação dos limites da modernização instrumental
Os aspectos com os quais até aqui ilustrei a problemática da diversidade e
diferenciação na Educação Superior do Brasil, com breve perspectiva histórica, são por
certo muito limitados. Baseiam-se apenas em indicadores tradicionais dos sistemas
estatísticos sobre as instituições de ensino, produzidos a partir de informações oferecidas
pelas próprias ao Poder Público, em sua legítima competência para tal. E, de forma alguma,
22
exploram significativa parcela dos dados que os bancos oficiais colocam à disposição dos
pesquisadores e da sociedade em geral. Há nestes muitas mais variáveis – inclusive
derivadas dos processos de avaliação institucional e dos resultados do exame nacional de
concluintes, o controvertido Provão, ou relativas às desigualdades sociais e raciais, na
berlinda neste momento - todo um mundo de relações que podem ser traçadas entre as
mesmas, para gerar interessantes elementos de representação do estado da diversidade e dos
processos de diferenciação nas e das instituições de ensino terciário, caracterizando também
a atuação do Estado e da iniciativa privada. Já foram, porém, estes aspectos, em que
predominam a natureza normativa e da formalidade institucional, suficientes para um
mapeamento de hipóteses e elementos que podem e precisam ser focalizados com mais
abrangência, profundidade e o concurso de outras abordagens teórico-metodológicas, assim
como com outras fontes de informação e unidades de análise. Por isso, dispenso a tentativa
de concluir o texto com um resumo dos temas articulados, desde o enquadramento
conceitual e político de diversidade e diferenciação na educação Superior, com sua inserção
na produção acadêmico-científica, até uma síntese das proporções e movimentos entre o
público e o privado nas instituições brasileiras. Parece-me que bastam, nas finalidades e
circunstâncias deste evento, para nos mobilizar a uma discussão com sentido prospectivo.
Retomo, então, a problemática organizadora deste painel, que havíamos posto como
a das relações entre as pressões externas e tensões internas vivenciadas nos espaços da
política nacional de educação e das universidades de nossos países, enquanto constitutivas e
exemplo da questão maior que expressamos como o público e o privado. E que, para mim,
chama a pensar sobre regulação e cidadania, mais especificamente sobre gestão pública.
Creio que o momento atual do cone sul latino-americano, em que a crise política,
econômica e social parece chegar ao ápice, facilita por demais esclarecer o referencial em
que pretendo situar o tema da diversidade institucional e programática da Educação
Superior, algo que pode ser (e tem sido) visto como uma estratégia operativa de resolução
(pública e privada) da propalada crise da universidade ou, num diagnóstico das
contingências latino-americanas, da crise do financiamento de complexas, ineficientes,
dispendiosas e conservadoras universidades públicas gratuitas (DURHAM, 1998). Um
diagnóstico e uma estratégia que podem reforçar o caráter eminentemente tecno-burocrático
do núcleo financeiro do Estado, que impede a produção de um novo ordenamento legal e
institucional com legitimidade e eficácia para a democratização da educação.
Preocupa-me e compromete-me a pesquisa e o debate sobre políticas públicas e
gestão da educação em que consigamos reconhecer a gravidade de uma situação histórica
nova, que despotencia o Estado e a legitimidade ou possibilidade concreta da administração
pública para interrogar as universidades sobre suas finalidades e modalidades. Ou seja,
preocupa-me também que não consigamos contextualizar a força e os limites da noção de
mercado, seu agente (a empresa) e seu instrumento (a moeda), e da ideologia do
darwinismo social. Compromete-me, sim e por isso, o desafio de estudar a diferenciação
institucional e programática, numa agenda de construção de uma política nacional de
educação que seja parte de um projeto de reforma do Estado dotado de capacidade de
indução e intervenção em favor do interesse público concreto.
Assim como para a questão política atual não é possível responder ao futuro com o
passado ou os fundamentos científicos e técnico-organizacionais que nos trouxeram à
racionalidade do Estado mínimo ou meramente regulador, também os sistemas de ensino e
23
a universidade (SANTOS, 1994) precisam ser repensados e “governados” na transição
paradigmática do conhecimento, da ordem jurídico-administrativa e societal (SANTOS,
2000).
Se a questão da democracia e da república nos trouxe à da igualdade e liberdade; e
se a questão da democratização da educação nos trouxe à da escola pública gratuita – quão
instigante poderá ser a questão da diversidade e diferenciação na Educação Superior posta
em xeque na articulação da política nacional de educação com autonomia e relevância
social da universidade! A dialética da unidade e da diversidade, do uno e do múltiplo, da
solidariedade e da iniciativa, apenas interrogadas ... e perspectivadas na superação
modernização instrumental!
Esta postura, teórica e metodológica, advém do entendimento de que a tarefa do
investigador é, justamente, a de definir e avaliar a natureza e as alternativas ao que está
empiricamente dado. Logo, não professa da posição que reduz a realidade ao que existe,
mas a entende como um campo de possibilidades. Reconhece que a razão que critica pode
ser a mesma que pensa e propõe, e inclusive legitima aquilo que é criticável.
Com os companheiros desta mesa compartilho abaixo uma observação, ainda
recente, feita por GENRO (2001, p. 16) a propósito apenas exemplificativo, ao propor
atenção à questão do controle público do Estado, no desafio constituirmos instituições
capazes de universalizar um Estado democrático, republicano e moldado para produzir
“regras com finalidade” - que, ao invés de consagrar desigualdades, sejam instituições
mediadoras da vontade humana para a utopia da igualdade. Da mesma fonte (CALAME e
TALMANT, 2001) veio-me a inspiração para o título desta seção final do texto.
“No caso do Brasil, com todas as limitações e submissões do Estado
brasileiro às suas oligarquias, o Estado carregou nos ombros a modernização
capitalista e fundou a universidade pública, que funcionou como um centro de
modernização cultural e política do país. O cosmopolitismo progressista daí
originário, que proporcionou ao Brasil um avanço em todos os fronts, enfrenta
agora os seus limites, já que o Estado está endividado e fragilizado, os novos
sujeitos sociais estão dispersos e os antigos tornam-se cada vez mais fracos.”
__________________________________
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Diversidade e diferenciação do público e do privado na Educação