PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Raquel Pires
Limitações à circulação de veículos como instrumento de
política urbana
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2010
Raquel Pires
Limitações à circulação de veículos como instrumento de
política urbana
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em
Direito do Estado, área de
concentração Direito Urbanístico,
sob a orientação do Professor
Doutor Márcio Cammarosano.
SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Dedico este trabalho aos meus pais,
com todo meu amor e gratidão.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, a Deus, que me concedeu força e inspiração, nos momentos mais
difíceis; que me capacitou para continuar minha caminhada, quando tudo parecia tão
difícil;
Aos meus pais, pelo apoio e amor incondicional; pela bondade que irradia em seus
corações;
Ao meu noivo Omar, pela paciência e por estar sempre presente; por me fazer
acreditar que tudo é possível;
Ao professor doutor Márcio Cammarosano, de quem tive o privilégio de ser
orientanda e aluna desde a época em que fui ouvinte, nas aulas de Mestrado. Pela
confiança depositada em minha pessoa; pelo prazer de compartilhar de sua
amizade; pelo brilhantismo de seus ensinamentos; por cada palavra de incentivo e
pela oportunidade de acompanhá-lo em suas aulas de direito administrativo, na
graduação;
A todos os amigos e colegas da PUC – SP, em especial, à Mariana Mencio, que em
todos os momentos que precisei, sempre se mostrou solícita e receptiva.
Igualmente, à Patrícia de Mello Barboza e à Renata Fiori Pucetti, pelo prazer do
convívio enriquecedor e pela torcida sincera;
Às amigas, Juliana, Annaiza, Tatiane e Milena, que mesmo longe, estão sempre
presentes;
Por fim, a toda minha família, que participa e acompanha a minha trajetória
acadêmica.
Raquel Pires
Limitações à circulação de veículos como instrumento de política urbana
Resumo
O trabalho busca analisar as limitações à circulação de veículos enquanto
instrumento de política urbana, que, à luz da Constituição Federal e do Estatuto da
Cidade, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade de modo a garantir o direito coletivo a cidades sustentáveis. Demonstra os
impactos do modelo de circulação centrado nos automóveis sobre a qualidade de
vida da população. Verifica a importância do planejamento do trânsito e do
transporte, aliado ao uso e ocupação do solo urbano. Apresenta o conceito de
mobilidade urbana, bem como o Projeto de Lei n° 1.6 87/2007, como mudanças
positivas no cenário de crise das condições de deslocamento na cidade. Evidencia
que o Município tem competência para regular o trânsito e o tráfego local e, portanto,
para estabelecer limitações à circulação de veículos, que estão relacionadas à
liberdade de trânsito e tráfego. As regras municipais, expedidas no exercício de
poder de polícia do Estado, para serem consideradas legítimas, devem ser
estabelecidas por lei, de iniciativa concorrente, além de estarem sujeitas ao princípio
da razoabilidade e da proporcionalidade.
Palavras-chave: política urbana – limitações - circulação de veículos.
Raquel Pires
Limitations on movement of vehicles as an instrument of urban policy
Abstract
The work aims to analyze the limitations on movement of vehicles as an instrument
of urban policy, which under the light of the Federal Constitution and the Statute of
the City, aims to regulate the full development of the social functions of the city in
order to guarantee the collective right to sustainable cities. It demonstrates the
impacts of the model of circulation centered in automobiles on the quality of life of the
population. It notes the importance of the integrated planning among transit, traffic
and the use and occupation of urban land. It introduces the concept of urban mobility
and the Law Project 1.687/2007, as positive changes in the displacement crisis
conditions in the city. It shows the municipal legal authority to regulate the local
transit and traffic and, therefore, to establish limitations on the movement of vehicles,
which are related to the freedom of transit and traffic. The municipal rules, as issued
in the exercise of police power of the State, to be regarded as legitimate, must be
established by law, of concurrent initiative, besides being subjected to the principles
of reasonableness and proportionality.
Key-words: urban policy – limitations - movement of vehicles.
SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................................................9
1. Processo de urbanização e o surgimento do direito urbanístico no Brasil.........11
1.1 Urbanização e qualidade de vida...........................................................................11
1.2 Urbanificação, urbanismo e direito.........................................................................13
1.3 Atividade urbanística..............................................................................................16
1.4 Definição de direito urbanístico..............................................................................19
1.5 Interfaces entre o direito urbanístico e o direito administrativo..............................22
2. Política urbana e circulação......................................................................................27
2.1 Políticas públicas...................................................................................................27
2.2 Política urbana.......................................................................................................29
2.2.1 A competência dos entes federativos...........................................................30
2.2.2 O direito a cidades sustentáveis...................................................................34
2.2.3 O planejamento urbanístico..........................................................................37
2.3 Circulação..............................................................................................................38
2.3.1 O modelo centrado nos automóveis.............................................................40
2.3.2 A construção de um novo paradigma...........................................................43
2.3.3 A mobilidade urbana.....................................................................................44
2.3.4 Projeto de Lei nº 1.687/2007.........................................................................45
3. Limitações à liberdade e à propriedade...................................................................49
3.1 Considerações preliminares...................................................................................49
3.2 Poder de polícia: sentido amplo e sentido estrito............................................... ...50
3.3 Limitações e sistema jurídico constitucional..........................................................58
4. Limitações à circulação de veículos........................................................................61
4.1 Limitações à liberdade de trânsito e tráfego..........................................................61
4.2 Competência legislativa sobre trânsito e tráfego...................................................62
4.3 O que pode ser objeto de ato infralegal.................................................................66
4.4 A razoabilidade e a proporcionalidade das limitações...........................................70
Conclusão.......................................................................................................................81
Bibliografia......................................................................................................................84
9
Introdução
Sabe-se que a Constituição de 1988 consagra um capítulo próprio
para tratar da política de desenvolvimento urbano, estabelecendo, no art. 182, seu
objetivo, qual seja: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Para viabilizar a concretização dos preceitos constitucionais, veio a
lume o Estatuto da Cidade, que apontou a garantia do direito às cidades
sustentáveis como uma das diretrizes da política urbana (art. 2°, I). Assim, tanto na
formulação como na implementação dessa política, o Poder Público tem o dever de
zelar pelo equilíbrio das funções sociais da cidade – dentre elas, a circulação - de
modo a garantir a realização do direito a cidades sustentáveis.
Nesse contexto, verifica-se que medidas para desafogar o trânsito e
o tráfego nas cidades estão cada vez mais em pauta nas políticas urbanas.
Por outro lado, se é verdade que a atividade urbanística destinada a
criar condições para a circulação encontra fundamento na garantia de realização do
direito de todos às cidades sustentáveis, da mesma forma, não pode estar alheia ao
direito à circulação dos indivíduos, também, assegurado constitucionalmente (art. 5°,
XV e LXVIII).
Com o objetivo precípuo de analisar até que ponto as limitações
urbanísticas à circulação de veículos se fundamentam à luz do sistema jurídico
brasileiro - considerando, sobretudo, a observância dos princípios da legalidade, da
razoabilidade e da proporcionalidade, bem como as questões relativas à
competência para regular a matéria - é que foi despertado o interesse em produzir
esta dissertação.
Para tanto, inicia-se com uma abordagem acerca do processo de
urbanização, procurando identificar as causas que conduziram ao quadro urbano
atual, marcado por congestionamentos crônicos, tráfego caótico, degradação das
condições ambientais, enfim, problemas relacionados diretamente à qualidade de
vida da população.
Nessa esteira, procura-se, inicialmente, demonstrar o surgimento da
necessidade da intervenção do Poder Público na ordenação do território municipal e
como se desenvolveu as normas urbanísticas.
10
Em seguida, parte-se para a análise da política urbana, tal como
prevista na Constituição de 1988, o que reclama um perpassar de olhos pelo
conceito de políticas públicas em geral, antes de se investigar o conteúdo do direito
a cidades sustentáveis e sua relação com as condições de circulação no espaço
urbano. Nesse ponto, já é possível vislumbrar a finalidade tipicamente urbanística
das limitações à circulação de veículos estabelecidas com o propósito de facilitar as
condições de circulação nas cidades.
Note-se que é sob a perspectiva da finalidade urbanística que será
detida a análise do objeto do presente trabalho, conquanto as limitações à circulação
de veículos possam, também, apresentar uma finalidade ambiental – relacionada à
melhoria das condições do meio ambiente.
Feita essa ressalva, no terceiro capítulo, será dado enfoque sobre o
conceito e as características do poder de polícia do Estado, buscando evidenciar a
diferença entre limitar o direito e limitar o exercício do direito, bem como fixar o
sentido e o alcance do princípio da legalidade para as limitações estabelecidas no
exercício de função administrativa.
Por fim, o quarto capítulo trata, especialmente, das limitações à
circulação de veículos, aduzindo os principais debates envolvidos nesse campo, tais
como: a competência dos entes federativos para regular sobre trânsito e tráfego; o
questionamento sobre a necessidade de iniciativa legislativa privativa do Poder
Executivo nesta matéria; o controle de legalidade, bem como a razoabilidade e a
proporcionalidade das medidas, como critérios aferidores de sua constitucionalidade.
11
1. Processo de urbanização e o surgimento do direito urbanístico
no Brasil
1.1 Urbanização e qualidade de vida
O fenômeno da urbanização é típico da sociedade industrializada e
não significa, apenas, o crescimento das cidades, mas “[...] designa o processo pelo
qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural [...]”.1
Notadamente, a urbanização, no Brasil, ocorreu de maneira
avassaladora:
Em menos de 40 anos, entre as décadas de 1940 e 1980, a população
brasileira passou de predominantemente rural para majoritariamente
urbana. Impulsionado pela imigração de um vasto contingente de pobres,
esse movimento socioterritorial, um dos mais rápidos e intensos de que se
tem notícia, ocorreu sob a égide de um modelo de desenvolvimento urbano
que privou as faixas de menor renda de condições básicas de urbanidade e
de inserção efetiva à cidade. Além de excludente, tal modelo mostrou-se
2
também altamente concentrador [...].
O país que, em 1940, apresentava índice de população urbana
equivalente a 30,24%, passou a registrar, no ano 2000, mais de 80% da população
vivendo em áreas urbanas.3
Essa urbanização crescente, mas prematura, segundo adverte Jorge
Wilheim:
[...] decorreu de fatores nem sempre desenvolvimentistas, como o êxodo
rural, por causa da má condição de vida no campo e da liberação de mãode-obra em razão da mecanização da lavoura ou da transformação de
4
plantações em campos de criação de gado.
Evidentemente:
A urbanização gera enormes problemas. Deteriora o ambiente urbano.
Provoca a desorganização social, com carência de habitação, desemprego,
problemas de higiene e de saneamento básico. Modifica a utilização do solo
5
e transforma a paisagem urbana.
1
SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro, p. 26.
ROLNIK,
Raquel.
A
lógica
da
desordem.
Disponível
em:
<http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/Raquel%20Rolnik-(2).pdf>. Acesso em:
01 jun. 2009.
3
População
urbana
(percentual).
Disponível
em:
<http://www.ibge.gov.br/series_estatisticas/subtema.php?idsubtema=107>. Acesso em 20 jan.
2010.
4
Urbanismo no subdesenvolvimento, p.24. RJ: Saga, 1969 apud SILVA, José Afonso da. Direito
urbanístico brasileiro, p. 27.
5
Op. cit., p. 27.
2
12
As cidades não estavam preparadas para atender à enorme
demanda populacional ocasionada pela ocupação desenfreada do solo urbano, o
que fez emergir graves problemas sociais, como mostra Daniela Libório:
A cidade, na condição de espaço voltado para a coletividade, desconhecia
certos fenômenos que se sucederam a esta repentina e intensa ocupação.
Problemas de saúde pública (água, alimentos e saneamento) e de uso do
espaço, com a conseqüente ordenação das vias de circulação e a oferta de
serviços públicos mínimos, fizeram o Poder Público elaborar políticas
públicas e editar normas jurídicas até então inéditas. Foi o processo de
urbanização, e não a existência das cidades que fez se desenvolver o
6
urbanismo e, posteriormente, o Direito Urbanístico.
Enquanto, na década de 40, as cidades brasileiras eram vistas como
a possibilidade de avanço e modernidade em relação ao campo, na década de 90,
essa imagem passou a ser associada à violência, poluição, tráfego caótico, etc. “[...]
É que a evolução mostrou que, ao lado de intenso crescimento econômico, o
processo de urbanização com crescimento da desigualdade resultou numa inédita e
gigantesca concentração espacial da pobreza”.7
Assim como em outros países em desenvolvimento, o processo de
urbanização brasileiro foi resultado da ocupação irracional do solo urbano, a partir
da abertura de novos bairros de moradia, cada vez mais distantes das áreas
centrais. A população de baixa renda acabou sendo expulsa para as áreas
periféricas dos Municípios, passando a se aglomerar em regiões desprovidas de
condições mínimas de uma vida com qualidade. É corrente que tanto a prestação de
serviços públicos como o acesso a equipamentos de saúde, educação, áreas de
lazer, rede de esgotos, etc., figuram absolutamente deficitários nessas áreas mais
pobres.
A par do agravamento do quadro de desigualdade social existente
no Brasil, a urbanização tem provocado impactos ambientais significativos, que são
causa de enchentes, desmoronamentos, poluição dos recursos hídricos, poluição do
ar, desmoronamentos, etc.
Consoante a análise de Raquel Rolnik, as cidades brasileiras são
definidas por um modelo de exclusão territorial, que exclui a maioria pobre do
acesso às áreas urbanas formais e estruturadas, de maneira a reproduzir
desigualdades. Explica a autora:
6
7
Elementos de direito urbanístico, p. 03.
MARICATO, Ermínia. Metrópole da periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 55 apud
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 23.
13
[...] Em uma cidade dividida entre a porção rica, legal e infra- estruturada e a
porção pobre, ilegal e precária, a população em situação desfavorável
acaba tendo muito pouco acesso às oportunidades econômicas e culturais
que o ambiente urbano oferece. O acesso aos territórios que concentram as
8
melhores condições de urbanidade é exclusivo para quem já é parte deles.
Ainda, segundo pensa a urbanista, esse modelo tem caráter
predatório e completa a “lógica da desordem”, condenando a cidade a um padrão
insustentável tanto do ponto de vista ambiental como econômico:
Em primeiro lugar, a concentração das oportunidades em um fragmento da
cidade e a ocupação extensiva de periferias cada vez mais distantes
impõem um padrão de circulação e mobilidade dependente do transporte
sobre pneus e, portanto, de alto consumo energético e potencial poluidor.
Em segundo lugar, a ocupação das áreas frágeis ou estratégicas do ponto
de vista ambiental – como mananciais de água, complexos dunares ou
mangues – é decorrente de um padrão extensivo de crescimento por
abertura de novas fronteiras e expulsão permanente da população mais
9
pobre das áreas ocupadas pelo mercado (grifo nosso).
Se é verdade que a expansão urbana impôs a dependência do
transporte sobre pneus, elevando o consumo de energia e o nível de poluição, por
outro lado, esse uso ampliado do transporte motorizado acabou por estimular a
própria expansão urbana e a dispersão das atividades, trazendo reflexos
importantíssimos nas condições de circulação e, conseqüentemente, na qualidade
de vida das pessoas que vivem nas cidades.
1.2 Urbanificação, urbanismo e Direito
A solução para os problemas advindos com a urbanização, conforme
aponta José Afonso da Silva, está na intervenção do Poder Público através da
ordenação dos espaços habitáveis. Segundo enfatiza, isto ocorre com a
urbanificação, definida como “[...] processo deliberado de correção da urbanização,
consistente na renovação urbana, que é a reurbanização, ou na criação de núcleos
urbanos, como as cidades novas da Grã Bretanha e Brasília”.10
Explica o autor que “a urbanização criou problemas urbanos que
precisavam ser corrigidos pela urbanificação, mediante a ordenação dos espaços
habitáveis – de onde ser originou o urbanismo como técnica e ciência”. Embora
8
A lógica da desordem, p. 10. Le Monde Diplomatique Brasil, ago/08, p. 10-11. Disponível em:
<http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/Raquel%20Rolnik-(2).pdf>. Acesso em:
01 jun. 2009.
9
Ibid., mesma página.
10
Direito urbanístico brasileiro, p. 27.
14
esteja o urbanismo correlacionado à cidade industrial, isso não significa que regras
urbanísticas inexistissem nas cidades antigas e medievais.
[...] Arruamento, estabelecimento de praças, alinhamento dos edifícios, são
exigências urbanísticas que existiram na Antigüidade Clássica, como na
Idade Média e mesmo no Brasil Colonial, quando também se iniciou o
calçamento das vias públicas. Tratava-se, no entanto, de um urbanismo
11
primitivo e empírico. (grifado no original).
Num primeiro momento, o urbanismo foi concebido como uma arte
de embelezar a cidade, preocupando-se essencialmente com a ordenação do
espaço físico da cidade.
Foi a partir da obra de Ebenezer Howard (Garden Cities of
Tomorrow, 1902) – conforme noticia Toshio Mukai – que o urbanismo começou a
ganhar nova amplitude, passando a abranger, também, o campo.12
Desenvolveu-se, assim, o conceito moderno de urbanismo, cuja
preocupação, além de ultrapassar os aspectos meramente físicos do território e se
estender, também, ao campo, passou a revelar um sentido social, à medida que se
vinculou à melhoria das condições de vida do homem.
Nesse sentido, afirmou Campos Venuti que ”a consideração científica dos
problemas da cidade leva a reconhecer que esta última não se apresenta
como entidade com vida autônoma, destacada e a considerar
separadamente do território em que surge...”, o que dá uma amplidão maior
ao urbanismo, “ultrapassando os limites da cidade para abrigar um território
inteiro, quer na sua parte urbana, quer na sua parte rural, sendo que
“urbanismo” não mais significa “do urbano” mas “do território”, no sentido de
que o objeto dessa ciência não mais coincide com o seu significado
etimológico (urbanismo procede do latim urb, urbis, significando a cidade e
13
seus habitantes).
Acresça-se, também, que há uma forte ligação entre o urbanismo
contemporâneo e o meio ambiente, haja vista o inter-relacionamento entre a
qualidade ambiental e a qualidade de vida humana.
Nas lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto – autor do primeiro
livro de direito urbanístico brasileiro que se tem notícia, denominado Introdução ao
Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, de 1975 – o conceito de urbanismo está
relacionado à expressão “espaços habitáveis”. Conforme verifica:
[...] o Urbanismo transcedeu os problemas urbanos. Eles são
compreendidos e tratados dentro de um todo em que a cidade se integra
11
Ibid., p. 27-28.
Direito urbano e ambiental, p. 23.
13
Ibid., p. 24.
12
15
com os espaços circunvizinhos e com outras cidades, em plano local,
regional, nacional e, em próximo futuro, até mesmo continental e global.
[...]
A dimensão social veio somar-se à física para tornar o Urbanismo a
14
disciplina físico-social dos espaços habitáveis. (grifado no original).
Lúcia Valle Figueiredo observa o seguinte:
[...] Daí se vê a amplitude que vem ganhando o termo, pois, na realidade,
não se vai restringir apenas à cidade, à urbs, inserindo-se o problema do
solo rural quer nas normas referentes ao Direito Urbanístico, quer nas
15
concepções de Urbanismo.
Para Maria Sylvia Zanella di Pietro:
Embora difícil de definir os contornos do urbanismo, pode-se aí incluir tudo
o que se refere ao regulamento das construções, ao parcelamento do solo
urbano, ao zoneamento, à preservação do patrimônio histórico artístico
nacional, à higidez do meio ambiente, abrangendo a proteção das águas e
16
das florestas.
Por seu turno, José Afonso da Silva enfatiza que: “[...] o urbanismo
objetiva a organização dos espaços habitáveis visando à realização da qualidade de
vida humana” (grifado no original). 17
De acordo com o pensamento de Antônio Bezerra Baltar, que reflete
a concepção da famosa Carta de Atenas, elaborada em 1933:
o urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo
objetivo é a organização do espaço urbano visando ao bem-estar coletivo –
através de uma legislação, de um planejamento e da execução de obras
públicas que permitam o desempenho harmônico e progressivo das funções
urbanas elementares: habitação, trabalho, recreação do corpo e do espírito,
18
circulação no espaço urbano.
Corroborando as lições, aqui, trazidas, vale a pena reproduzir,
também, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual:
[...] Urbanismo é o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os
espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao
homem na comunidade. Entenda-se por espaços habitáveis todas as áreas
em que o homem exerce coletivamente qualquer das quatro funções
sociais: habitação, trabalho, circulação, recreação.
14
P. 50. Note-se, entretanto, que antes da referida obra, estudos relativos ao direito urbanístico
iniciaram-se com Hely Lopes Meirelles em capítulos de seu clássico Direito Municipal Brasileiro
(1957) e no seu Direito de Construir (1961), além de artigos publicados em revistas especializadas,
conforme observação trazida por José Afonso da Silva (Direito urbanístico brasileiro, explicações
na nota de rodapé 2, p. 36).
15
Disciplina urbanística da propriedade, p. 33.
16
Ibid, p. 31.
17
Ibid, p. 31.
18
Introdução ao planejamento urbano. Recife, 1947, p. 136 apud SILVA, José Afonso da. Direito
urbanístico brasileiro, p. 30.
16
Assim sendo, o Urbanismo é incumbência de todos os níveis de governo e
se estende a todas as áreas da cidade e do campo onde as realizações
humanas ou a preservação da Natureza posam contribuir para o bem-estar
individual e coletivo. Mas, como nas cidades se concentram as populações,
suas áreas exigem mais e maiores empreendimentos urbanísticos, visando
a oferecer o maior bem para o maior número – objetivo supremo do
19
moderno Urbanismo (grifado no original).
Mais adiante, o autor evidencia o papel tanto das normas técnicas
como das normas jurídicas para o alcance das finalidades urbanísticas, inferindo a
relação entre Urbanismo e Direito:
O urbanismo de hoje, como expressão do desejo coletivo na organização
dos espaços habitáveis, atua em todos os sentidos e em todos os
ambientes, através de normas de duas ordens: normas técnicas de
planejamento e construção, recomendadas pelas ciências e artes que lhe
são tributárias; e normas jurídicas de conduta social, exigidas e impostas
pelo ordenamento legal vigente. As primeiras disciplinam a utilização do
solo, o traçado urbano, as áreas livres e os espaços verdes, as edificações,
o sistema viário, os serviços públicos e o que mais se relacione com a
ordenação comunitária; as últimas visam assegurar coercitivamente a
observância das regras técnicas. Aquelas são normas-fins; estas, normasmeios. Ambas imprescindíveis para o atingimento dos objetivos
urbanísticos.
Aí está a íntima correlação entre Urbanismo e Direito, permitindo-nos
afirmar, mesmo, que não há, nem pode haver atuação urbanística sem
imposição legal. Isto porque o Urbanismo é feito de limitações de ordem
pública ao uso da propriedade particular e ao exercício de atividades
individuais, que afetam a coexistência social. Para a ordenação da vida em
sociedade, cada componente do agregado humano deve ceder parcela
mínima de seus direitos, recebendo em retribuição segurança, higiene,
conforto e bem-estar coletivos. Mas, como o egoísmo é da natureza
humana, necessário se torna que um poder superior aos indivíduos – o
Poder Público – intervenha imparcialmente na repartição dos encargos,
impondo a todos, indistintamente, as restrições reclamadas pelo interesse
da comunidade. Esta repartição de encargos só o Direito pode realizar, com
igualdade, coercitividade e justiça. Eis aí o fundamento e a razão de ser das
imposições de ordem urbanística. Imposições que se estendem a todos e a
tudo que possa propiciar o maior bem para o maior número. O estudo
20
dessas imposições é matéria do direito urbanístico (grifado no original).
1.3 Atividade urbanística
A atividade urbanística é tida como a essência do objeto do direito
urbanístico, razão pela qual não poderíamos deixar, aqui, de tecer algumas
considerações acerca de seu significado.
José Afonso da Silva, pautando-se nos ensinamentos de Joseff
Wolff, explica que essa atividade traduz-se na ação destinada a realizar os fins e
19
20
Direito municipal brasileiro, p. 522-523.
Op. cit., p. 524.
17
aplicar os princípios do urbanismo.21 Segundo pensa, a atividade urbanística é uma
função pública e consiste na “[...] intervenção do Poder Público com o objetivo de
ordenar os espaços habitáveis [...]”22
Se função pública “[...] é a atividade exercida no cumprimento do
dever
de
alcançar
o
interesse
público,
mediante
o
uso
dos
poderes
instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica”23, dizer que a
atividade urbanística é função pública significa que ela é exercida no cumprimento
do dever de alcançar um interesse público, que se traduz, no caso, no pleno
desenvolvimento das funções sociais das cidades.
Para José Afonso da Silva, a atividade urbanística se opera
mediante intervenção na propriedade privada e na vida econômica e social das
aglomerações urbanas (e, também, no campo). Por isso, gera conflitos entre o
interesse coletivo à adequada ordenação dos espaços habitáveis, para o melhor
exercício das funções sociais da cidade, e os interesses individuais. À medida que
se exerce constrangendo e limitando interesses privados, a atividade urbanística “há
de exercitar-se segundo normas de lei naquilo em que crie direitos ou imponha
obrigações aos particulares”.24
Ao conceituar a atividade urbanística como intervenção do Poder
Público e dizer que ela está submetida ao princípio da legalidade, poder-se-ia supor
que o autor pretendeu considerá-la, além de função pública, como função
administrativa, atrelada à idéia aplicação de atos concretos, baseados na lei, para
cumprir as finalidades assinaladas no ordenamento jurídico.
Entretanto, numa análise mais apurada, não se pode deixar de
reconhecer que se trata uma atividade complexa, que implica a expedição de atos
jurídicos da mais diversa natureza, resultantes de uma etapa intelectual e outra
material, ou seja, a atividade urbanística envolve tanto planejamento como
execução. Vale dizer, com base naquilo que é elaborado intelectualmente ou
planejado, a Administração deve tomar decisões, expedir ordens, firmar contratos,
realizar obras públicas, regulamentar o uso dos logradouros públicos, etc.
21
Direito urbanístico brasileiro, p. 31.
Ibid, p. 34.
23
Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 29.
24
Op. cit., p. 34-35.
22
18
Ao se referir à atividade urbanística, Mariana Mencio se manifesta
no sentido de que ela abrange tanto a função política como a função administrativa
do Estado:
[...] a atividade urbanística envolve o sentido amplo de Administração
Pública, pois abrange atividades de governo e administração, isto é,
planejamento e execução. No primeiro caso, encontra-se a vertente da
elaboração da política urbana, através da edição de leis de zoneamento,
uso e ocupação do solo, Planos Diretores, leis orçamentárias, e, no
segundo caso, das atividades de intervenção urbanística, que
compreendem atos de expedição de licenças de construção, autorizações,
25
concessão de outorga onerosa.
Segundo Daniela Libório, “de forma geral, melhor será colocar a
expressão no plural, atividades urbanísticas, tendo em vista que estas se reportam a
todas as ações destinadas a realizar o urbanismo e a urbanificação”26 (grifado no
original). No que diz respeito às divisões internas da atividade urbanística, a autora
explica que:
[...] a dinâmica da realização urbanística prescinde de certa seqüência entre
suas etapas: plano urbanístico; elaboração de normas jurídicas específicas;
execução de atividade urbanística e, dentro da execução, a utilização de
27
instrumentos urbanísticos [...].
Considerando-se que tanto a formulação da política urbana, como a
elaboração de normas jurídicas fazem parte da atividade urbanística, sem embargo
de entendimentos contrários, é forçoso reconhecer que tal atividade representa não
apenas exercício de função administrativa, mas envolve, também, as funções
políticas e legislativas do Estado.
Importante registrar que “o planejamento é – como diz Joseff Wolff –
o princípio de toda atividade urbanística, pois quem impulsiona e exerce essa ação
de ordenação precisa ter consciência do que quer alcançar com tal influxo [...]”.28
Depreende-se, portanto, que a atividade urbanística não pode
configurar um aglomerado de intervenções sem rumo, mas deve ser racionalmente
planejada.
25
Regime jurídico da audiência pública na gestão democrática das cidades, p. 27.
Elementos de direito urbanístico, p. 61.
27
Ibid., p. 62.
28
SILVA, José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro, p. 32.
26
19
1.4 Definição de direito urbanístico
Impõe-se, agora, dizer, com precisão, o que se entende por direito
urbanístico.
No conceito formulado por José Afonso da Silva, “O direito
urbanístico objetivo consiste no conjunto de normas que têm por objeto organizar os
espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na
comunidade” (grifado no original).29
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto “[...] pode-se conceituar o
Direito Urbanístico como o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos,
sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a
disciplina do comportamento relacionado aos espaços habitáveis”.30
O autor adverte, porém, que não se trata de um Direito Urbano, que
se refere à cidade, em oposição ao campo. De acordo com o seu pensamento,
direito urbanístico é a “disciplina jurídica do Urbanismo”, que não se opõe, mas se
integra ao rural, sendo aplicável a todos os espaços habitáveis.31
Dizer que as normas que compõem o Direito Urbanístico disciplinam
os espaços habitáveis significa, portanto, que elas alcançam não apenas o espaço
urbano, como, também, as áreas rurais que nele interferem, como, também, é o
entendimento esposado por Hely Lopes Meirelles:
As exigências urbanísticas desenvolveram-se de tal modo nas nações
civilizadas e passaram a pedir soluções jurídicas, que se criou em nossos
dias o direito urbanístico, ramo do direito público destinado ao estudo e
formulação dos princípios e normas que devem reger os espaços
habitáveis, no seu conjunto cidade-campo. Na amplitude desse conceito,
incluem-se todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer
de suas quatro funções essenciais na comunidade: habitação, trabalho,
circulação e recreação, excluídas somente as terras de exploração agrícola,
pecuária ou extrativa, que não afetem a vida urbana (grifado no original)
Segundo essa conceituação, cabem no âmbito do direito urbanístico não só
a disciplina do uso do solo urbano e urbanizável, de seus equipamentos e
de suas atividades, como a de qualquer área, elemento ou atividade em
zona rural que interfira no agrupamento urbano, como ambiente natural do
homem em sociedade. Essa concepção de ampla abrangência do direito
urbanístico é a dominante entre seus iniciadores alienígenas e seus
32
primeiros cultores no Brasil (grifado no original).
29
Direito urbanístico brasileiro, p. 49.
Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, p. 56.
31
Ibid., mesma página.
30
32
Direito municipal brasileiro, p. 525.
20
Assim, embora a etimologia do vocábulo “urbanismo” seja vinculada
à “urbs” (cidade), é preciso ter o desvelo para não se identificar o âmbito de
incidência do direito urbanístico como restrito às áreas urbanas dos Municípios. Na
verdade, suas normas abrangem o território municipal como um todo, inclusive, as
áreas rurais, que - embora em menor medida - também, podem estar voltadas ao
desenvolvimento de uma das funções sociais da cidade, que foram definidas, na
Carta de Atenas como: habitação, trabalho, circulação e lazer.
Neste sentido, manifesta-se Júlia Maria Plenamente Silva:
[...] Ainda que as funções sociais da cidade desenvolvam-se com maior
intensidade no núcleos urbanos, o Município, para atender o interesse local,
não pode deixar de promovê-las também no território rural. Deverá,
contudo, respeitar as características do território que ensejarão tratamento
diferenciado, bem como a competência da União para tratar de direito
33
agrário e, dessa forma, regular as atividades econômicas e rurais.
Hely Lopes Meirelles afirma que:
[...] o direito urbanístico visa precipuamente à ordenação das cidades, mas
os seus preceitos incidem também sobre as áreas rurais, no vasto campo
da ecologia e da proteção ambiental, intimamente relacionadas com as
condições da vida humana em todos os núcleos populacionais, da cidade e
34
do campo [...].
Segundo o autor, a ação urbanística do Município
[...] é plena na área urbana e restrita na área rural, pois que o ordenamento
desta, para suas funções agrícolas, pecuárias e extrativas compete à União,
só sendo lícito ao Município intervir na zona rural para coibir
empreendimentos ou condutas prejudiciais à coletividade urbana, ou para
35
preservar ambientes naturais de interesse público local.
Feita essa advertência, resulta que, de fato, as normas urbanísticas
incidem amplamente na zona urbana, mas isso não significa que estejam alheias às
zonas rurais, na medida em que estas possam afetar a vida urbana.
Corroborando esse entendimento, Carlos Ari Sundfeld aponta o
seguinte:
Tem se discutido se as áreas rurais são ou não alcançadas pela regulação
do direito urbanístico; pergunta a que os especialistas vêm dando resposta
enfaticamente positiva, baseados em uma visão integrada da cidade (visão,
essa, aliás, acolhida pelo art. 40, § 2º, do Estatuto da Cidade, segundo o
qual o plano diretor municipal “deverá englobar o território do Município
como um todo”). É preciso, porém, algum cuidado com as simplificações. A
Constituição isola, em capítulos separados, a política urbana (arts. 182-183)
e a política fundiária (arts. 184-191), esta última ligada ao problema social
33
O planejamento urbano enquanto dever jurídico do Estado, p. 51.
Op. cit., p. 526.
35
Ibid, p. 395.
34
21
da distribuição das terras (reforma agrária) e de sua exploração econômica.
Assim, o direito agrário é efetivamente um limite do direito urbanístico, pois
a política urbana não pode tomar para si definições que são próprias da
política fundiária (agrária). Mas isso não quer dizer que o direito urbanístico
seja alheio ao meio rural, pois a ele cabe a disciplina (a) da passagem de
uma área da zona rural para a zona urbana (segundo o art. 182, § 1º, da
CF, cabe ao plano diretor municipal fixar a “política de expansão urbana”),
(b) da proteção dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento da
cidade como um todo (como as águas e o ar), independentemente da zona
em que situados, (c) das relações em geral entre o meio rural e o meio
urbano e (d) das questões espaciais do meio rural, naquilo que não esteja
36
diretamente vinculado à política agrária.
Registre-se, portanto, que o objetivo do direito urbanístico não
consiste em ordenar as atividades agropastoris ou extrativas, mas suas normas
recaem sobre a ordenação do uso e ocupação das áreas rurais que estejam
relacionadas com o planejamento urbano.
Este raciocínio coaduna-se com o pensamento de Lúcia Valle
Figueiredo, que define o direito urbanístico como “[...] o conjunto de normas
disciplinadoras do ordenamento urbano”37.
Destaca-se, também, o pensamento do doutrinador espanhol
Antonio Carceller Fernández, segundo o qual:
O Direito urbanístico, ou talvez mais propriamente a legislação urbanística,
é um conjunto de normas jurídicas que, por si mesmas ou através do
planejamento que regulam, estabelecem o regime urbanístico da
propriedade do solo e a ordenação urbana e regulam a atividade
38
administrativa direcionada ao uso do solo, à urbanização e à edificação.
É de se notar, ainda, que, dentro de um mesmo município, existem
vários núcleos tipicamente urbanos que, apesar de situados na zona urbana, não
contêm a sede do governo municipal, ou seja, que não se ajustam ao conceito
jurídico-político de cidade39, mas nem por isso deixam de ser objeto de regulação do
direito urbanístico.
36
O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio.
Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/01, explicações na nota de rodapé 10.
37
Disciplina urbanística da propriedade, p. 32.
38
Tradução livre do autor. No texto original: “El Derecho urbanístico, o quizá más propriamente la
legislación urbanística, es um conjunto de normas jurídicas que, por sí mismas o a través del
planeamiento que regulan, establecen el regímen urbanístico de la propriedad del suelo y la
ordenación urbana y regulan la actividad administrativa encaminada al uso del suelo, la
urbanización y la edificación” (Introducción al derecho urbanístico, p. 17).
39
“Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de sistemas políticoadministrativo, econômico não agrícola, familiar e simbólico como sede do governo municipal,
qualquer que seja sua população. A característica marcante da cidade no Brasil consiste no fato de
ser um núcleo urbano, sede do governo municipal” (grifado no original) (SILVA, José Afonso da.
Direito urbanístico brasileiro, p. 26).
22
Por essas razões, é importante ressaltar que, para fins urbanísticos,
deve-se compreender por cidade tanto o território urbano – que seja ou não sede do
governo municipal – como, também, as áreas até então rurais à medida que passem
a ser utilizadas com atividades abrangidas pelo conceito funções sociais da cidade.
Este pensamento encontra-se afinado com a proposta trazida por
Júlia Maria Plenamente Silva, segundo a qual o direito urbanístico corresponde ao
[...] ramo do direito público que tem por objeto normas jurídicas de
ordenação de todo o território de um município, destinadas ao pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade, consistente em habitação,
trabalho, lazer e circulação.
Assim, [...] ao elaborar e executar o planejamento urbano, deverá o Poder
Público ter por finalidade a consecução das funções sociais da cidade,
interesse público qualificado que identifica o direito urbanístico enquanto
ciência, de modo que se não visar o alcance das funções sociais da cidade,
não estará o Estado cumprindo o dever jurídico decorrente das normas de
40
direito urbanístico.
Frise-se, portanto, que as normas urbanísticas têm por finalidade a
otimização das funções sociais da cidade e, por conseguinte, proporcionar a
melhora na qualidade de vida das pessoas que nela vivem.
1.5 Interfaces entre o direito urbanístico e o direito administrativo
O direito urbanístico é considerado um ramo relativamente novo do
Direito, cujas normas passaram a ser desenvolvidas à medida que os aglomerados
urbanos foram adquirindo complexidade.
Igualmente inserido no campo do direito público, que se ocupa dos
interesses da coletividade, caracterizado pela idéia de função, de dever de
atendimento dos interesses públicos, não se pode deixar de reconhecer sua
imbricada relação com o direito administrativo. Aliás, boa parte da doutrina o
considera, apenas, um braço do direito administrativo, por considerar que suas
normas não passam de normas referentes ao poder de polícia.
José Afonso da Silva, embora discordante dessa posição a qual
considera reducionista, entende que as normas de direito urbanístico, todavia, não
adquiriram unidade substancial e, portanto, ainda, é cedo para atribuí-lo autonomia
científica. Segundo pensa: “[...] é prudente considerá-lo como uma disciplina de
40
Op. cit., p. 51-52.
23
síntese, ou ramo multidisciplinar do Direito, que aos poucos vai configurando suas
próprias instituições” (grifado no original).41
Por outro lado, o autor enfatiza que autonomia é um conceito
relativo, ou seja, dizer que uma disciplina jurídica é autônoma não implica que ela
seja independente, tendo em vista que o Direito é uma unidade. Por essa razão,
nenhuma disciplina jurídica possui autonomia jurídica, mas pode possuir autonomia
didática e autonomia científica:
[...] a primeira justificada pela oportunidade de circunscrever o estudo a um
grupo de normas que apresentam particular homogeneidade relativamente
a seu objeto mas ainda se acham sujeitas a princípios de outro ramo; a
segunda quando, além da necessidade indicada, verifica-se a formação de
42
princípios e institutos próprios.
Nessa ordem de raciocínio, um ramo do Direito só adquire
autonomia científica quando suas normas se desenvolveram a ponto de gerar, em
torno de seu objeto específico, princípios, conceitos e institutos próprios.
Para José Afonso da Silva, como já mencionado, o direito
urbanístico, ainda, não firmou essa autonomia científica “[...] dado que só muito
recentemente suas normas começaram a desenvolver-se em torno do objeto
específico que é a ordenação dos espaços habitáveis ou a sistematização do
território [...]”.43
Por sua vez, adverte Toshio Mukai:
De nossa parte, embora admitindo o posicionamento de José Afonso da
Silva, concebendo o direito urbanístico como disciplina de síntese, sem
autonomia própria, entendemos necessário, no estágio atual do urbanismo
brasileiro, não deixar de enfatizar a enorme vinculação ee dependência do
nosso direito do urbanismo ao direito administrativo, tendo em vista que ele
evolui basicamente, no Brasil, como um desenvolvimento técnico-jurídico do
direito administrativo (sua origem é esta), conforme se pode observar em
nossa doutrina, na jurisprudência e até mesmo em nossa parca legislação
44
existente.
Em contrapartida, já se vislumbram entendimentos doutrinários que
propugnam
a
autonomia
do
direito
urbanístico.
Nesta
esteira,
figura
o
posicionamento da prof° Daniela Campos Libório di S arno:
É possível falar em autonomia do Direito Urbanístico por ter ele objeto
próprio e específico, que o diferencia de todo e qualquer outro ramo da
ciência jurídica. Independe que alguns dos instrumentos utilizados também
41
Ibid., p. 44.
Direito urbanístico brasileiro, p. 42.
43
Ibid, p. 43.
44
Direito urbano e ambiental, p. 30.
42
24
encontrem guarida em outros ramos do Direito Público, pois se estão sob
sua égide, nada mais natural que seus ramos da ciência jurídica tenham
semelhanças próprias de teoria geral, porém não lhes inibindo a
particularidade de objetivos. Assim, não entendemos o Direito Urbanístico
45
como um simples capítulo do Direito Administrativo.
Pode-se afirmar que a tese da autonomia do direito urbanístico só se
revela sustentável à medida que é possível identificar um conjunto sistematizado de
normas - princípios e regras - que lhe conferem identidade. Em outras palavras, é
preciso que do universo do sistema jurídico se possa extrair um conjunto de normas
com unidade e coerência próprias, de tal sorte que passam a compor o objeto do
direito urbanístico.46
Consoante as lições de Márcio Cammarosano:
Falar em autonomia deste ou daquele ramo do direito implica identificar,
compondo cada qual, plexos normativos a respeito de um dado objeto, com
reconhecimento da incidência de princípios peculiares que conferem
identidade própria ao ramo considerado, ensejando estudá-lo como
47
sistema.
De acordo com as explicações trazidas pelo autor, o direito
urbanístico é composto de normas que eram objeto de estudo do direito
administrativo. Conforme verifica:
Essas normas consubstanciam a disciplina jurídica dos espaços
urbanizados e a urbanizar. E em razão mesmo do vertiginoso adensamento
populacional, formando grandes centros e conglomerados urbanos, com os
imensos e variados desafios daí decorrentes, a reclamar planejamento e
soluções da maior abrangência e complexidade, a disciplina normativa dos
espaços vocacionados para tanto adquiriu tal dimensão que passou a
reclamar estudos jurídicos nela concentrados, cada vez mais aprofundados
e sistematizados.
Referida produção normativa intensa e complexa, e a concomitante
exigência de estudos jurídicos especializados, chegou a tal ponto que
tornou-se forçoso reconhecer a formação de um novo ramo do direito: o
direito urbanístico, sem embargo de sua herança genética do direito
48
administrativo.
45
Elementos de direito urbanístico, p. 57.
A palavra sistema, consoante a lição de Geraldo Ataliba, denomina a composição de elementos
sob uma perspectiva unitária (Sistema constitucional tributário brasileiro, p. 04). Norberto Bobbio
traz as seguintes explicações: “Entendemos por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de
entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário
que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também
num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico
constitui um sistema nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento
de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação (grifado no original) (Teoria do
ordenamento jurídico, p. 71).
47
Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO,
Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 14.
48
Ibid., p. 15.
46
25
Mais adiante, o professor conclui dizendo tratar-se o direito
urbanístico de disciplina jurídica que possui identidade própria, com matriz
constitucional e princípios basilares a informá-lo, conquanto compartilhe categorias
já conhecidas do direito administrativo, do qual emana. Sustenta, portanto, sua
autonomia, ainda que sempre relativa.49
Convém lembrar, também, o que ensina Celso Antônio Bandeira de
Mello:
[...] um ramo jurídico é verdadeiramente “autônomo” quando nele se
reconhecem princípios que formam em seu todo uma unidade e que
articulam um conjunto de regras de maneira a comporem um sistema, “um
regime jurídico” que o peculiariza em confronto com outros blocos de regras
50
(grifado no original).
No que toca ao direito urbanístico, dentre os seus princípios
informadores, merecem destaque o da função social da propriedade e o das funções
sociais da cidade, por constituírem o núcleo da política urbana. É, precipuamente,
com base em tais princípios que se legitima a atividade urbanística.
José Afonso da Silva embora considere que os princípios do direito
urbanístico carecem de elaboração científica mais precisa, adverte que já é possível
perceber a formação de certas instituições e institutos que delineiam sua estrutura.
Em suas palavras:
[...] o conjunto de normas que configura a ordenação jurídica dos espaços
habitáveis dá origem a verdadeiras instituições de direito urbanístico, como:
o planejamento urbanístico (traduzido formalmente em planos urbanísticos),
o parcelamento do solo urbano ou urbanizável, o zoneamento de uso do
solo, a ocupação do solo, o reparcelamento. Em cada uma dessas
instituições encontramos institutos jurídico-urbanísticos, como: o
arruamento, o loteamento, o desmembramento, a outorga onerosa do direito
de construir, as operações urbanas consorciadas, o direito de superfície, o
direito de preempção, a transferência do direito de construir, a regularização
fundiária, os índices urbanísticos (taxa de ocupação do solo, coeficiente de
51
aproveitamento do solo, recuos, gabaritos) (grifado no original).
Conquanto a autonomia do direito urbanístico seja tema recorrente
entre os estudiosos do assunto, mais importante do que solucionar essa questão é
admitir que autonomia não é sinônimo de independência.
É certo que o Poder Público encontra no direito administrativo vários
institutos de que se utiliza no exercício de atividade urbanística. Além do mais,
muitos dos atos provenientes da atividade urbanística são expedidos no exercício de
49
Ibid., p. 16.
Curso de direito administrativo, p. 28.
51
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 45-46.
50
26
função administrativa. É ela que viabiliza os instrumentos que são considerados
próprios do direito urbanístico, como a licença urbanística, por exemplo.
Cumpre agregar, ainda, que, independentemente da questão de sua
autonomia, não pairam dúvidas no que diz respeito ao direito urbanístico ser ramo
pertencente ao direito público, porquanto: “[...] as relações que estabelecem têm
sempre como titular uma pessoa de direito público; protegem interesse coletivo e
são compulsórias”.52
Retomando-se as lições de Márcio Cammarosano, afirmar que o
direito urbanístico, assim como o direito ambiental e o direito administrativo, constitui
ramo do direito público implica reconhecer que suas normas são informadas por
alguns princípios de direito público comum - dentre os quais se reporta àqueles
explicitados no art. 37 da Constituição da República – além do fato de existirem
algumas categorias jurídicas compartilhadas, como as noções de limitação à
liberdade e à propriedade, função administrativa, ato e processo administrativo.53
52
53
Ibid, p. 44.
CAMMAROSANO, Márcio. Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS,
Clovis; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 13-17.
27
2. Política urbana e circulação
Cumpre, desde logo, ressaltar que “a Constituição de 1988, pela
primeira vez na história constitucional do País, consagra um capítulo à política
urbana”.54
Para melhor compreender o tratamento constitucional dispensado a
essa política, cumpre, antes, indagar o significado de políticas públicas.
2.1 Políticas públicas
Consoante a proposta trazida por Maria Paula Dallari Bucci, “[...] as
políticas são instrumentos de ação dos governos [...]” e apresentam como núcleo a
função de governar.55
Integram a função política ou de governo – conforme nos ensina
Celso Antônio Bandeira de Mello - “[...] atos de superior gestão da vida estatal ou de
enfrentamento de contingências extremas que pressupõem, acima de tudo, decisões
eminentemente políticas [...]”56. Segundo define, “política pública é um conjunto de
atos unificados por um fio condutor que os une ao objetivo comum de empreender
ou prosseguir um dado projeto governamental para o País”.57
Na mesma linha, Maria Sylvia Zanella di Pietro concebe a função
política como “[...] aquela que traça as grandes diretrizes, que dirige, que comanda,
que elabora os planos de governo nas suas várias áreas de atuação [...]”.58 Segundo
coloca, há uma estreita relação entre os conceitos de função política e função
administrativa: “Basicamente, a função política compreende as atividades colegislativas e de direção; e a função administrativa compreende o serviço público, a
intervenção, o fomento e a polícia”.59
No que tange ao exercício da função política, a par das demais
funções do Estado – legislativa, jurisdicional e administrativa – é preciso reconhecer
que ela se distribui entre os três poderes da União. Predomina, no entanto, a
atuação do Poder Executivo.
54
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 816.
Direito administrativo e políticas públicas, p. 252.
56
Curso de direito administrativo, p. 37.
57
Curso de direito administrativo, p. 814.
58
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 53.
59
Ibid, p. 51.
55
28
Na realidade, existe uma preponderância do Poder Executivo no exercício
das atribuições políticas; mas não existe exclusividade no exercício dessa
atribuição. No direito brasileiro, de regime presidencialista e com grande
concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, é
justificável a tendência de identificar-se o Governo como o Poder Executivo.
E quando se pensa em função política como aquela que traça as grandes
diretrizes, que dirige, que comanda, que elabora os planos de governo nas
suas várias áreas de atuação, verifica-se que o Poder Executivo continua,
na atual Constituição, a deter a maior parcela de atuação política, pelo
menos no que diz respeito às iniciativas, embora grande parte delas
sujeitas à aprovação, prévia ou posterior, do Congresso Nacional; aumenta
a participação do Legislativo nas decisões do Governo.
Pode-se dizer que no direito brasileiro as funções políticas repartem-se
entre Executivo e Legislativo, com acentuada predominância do primeiro
60
(grifado no original).
Neste mesmo sentido, Maria Paula Dallari Bucci sustenta que o mais
adequado seria a formulação das políticas públicas ficar a cargo do Poder Executivo,
a quem compete realizá-las de acordo com as diretrizes e limites aprovados pelo
Legislativo.61
A autora identifica certa proximidade entre as noções de política
pública e plano, uma vez que freqüentemente as políticas públicas são
exteriorizadas através de planos. No entanto considera que “a política é mais ampla
que o plano e define-se como o processo de escolha dos meios para a realização
dos objetivos do governo, com a participação dos agentes públicos e privados [...]”.62
Para Nelson Saule Júnior:
As políticas públicas compreendem o planejamento, os planos e programas
de ação e projetos. Com relação ao plano que é o principal instrumento de
planejamento, e que materializa a política pública os objetivos, as diretrizes,
as metas, os órgãos do sistema de gestão, os instrumentos e
63
procedimentos da política devem ser estabelecidos por lei.
Cumprem, aqui, algumas considerações acerca da idéia de
planejamento que, à luz do sistema constitucional, revela-se um dever jurídico.
Com base em José Afonso da Silva:
O processo de planejamento encontra fundamentos sólidos na CF de 1988,
quer quando, no art. 21, IX, reconhece a competência da União para
“elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território
e de desenvolvimento econômico e social”, quer quando, no art. 174, § 1°,
inclui o planejamento entre os instrumentos de atuação do Estado no
domínio econômico, estatuindo que “a lei estabelecerá as diretrizes e bases
do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual
60
PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 53.
Direito administrativo e políticas públicas, p. 271.
62
Ibid., p. 259.
63
A participação dos cidadãos no controle da Administração Pública, p. 09. Disponível em:
<http://www.polis.org.br/obras/arquivo_174.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2010.
61
29
incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de
desenvolvimento”, ou, ainda, quando, mais especificamente, atribui aos
Municípios competência para estabelecer o planejamento e os planos
urbanísticos para o ordenamento do seu território (arts. 30, VIII, e 182).
O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera
vontade dos governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão
legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar
planos, que são os instrumentos consubstanciadores do respectivo
64
processo [...] (grifado no original).
Importante ressaltar que o planejamento que - num primeiro
momento, envolve a elaboração de estudos técnicos multidisciplinares, destinados a
identificar necessidades e apontar soluções que se amoldem à realidade local - só
adquire sentido jurídico quando manifestado em planos que, em face do princípio da
legalidade, disposto no art. 5°, II e art. 37 da Co nstituição Federal, devem ser
aprovados por lei. Antes disso, o planejamento não passa de um processo técnico.65
Nelson Saule Júnior aponta que “na Constituição estão previstas as
políticas públicas que devem ser implementadas e os instrumentos desta política,
como os planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico e social [...]”.
Em se tratando de política urbana, infere que estão previstos os planos nacionais e
regionais de ordenação do território e, no âmbito do Município, o plano diretor, como
instrumento básico desta política.66
2.2 Política urbana
A Constituição de 1988 vinculou, expressamente, a política urbana
ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem-estar
de seus habitantes (art. 182, caput), estabelecendo o plano diretor como o
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182,
§1°), a ser executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes fixadas em
lei (art. 182, caput).
É notória a importância que a nossa Lei Maior representou para a
afirmação da existência e na fixação dos objetivos e instrumentos do direito
urbanístico, como expressa Carlos Ari Sundfeld:
64
Direito urbanístico brasileiro, p. 88.
O planejamento, em geral, é um processo técnico instrumentado para transformar a realidade
existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos [...]” (grifado no original). SILVA, José
Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 87.
66
Op. cit., p. 09.
65
30
O papel que a Constituição de 1988 implicitamente assinalou ao direito
urbanístico é o de servir à definição e implementação da “política de
desenvolvimento urbano”, a qual tem por finalidade “ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de
seus habitantes” (art. 182, caput). O direito urbanístico surge, então, como o
direito da política de desenvolvimento urbano, em três sentidos: a) como
conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos da política
urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos
normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos
urbanísticos, por exemplo); c) como conjunto de normas em que estão
previstos e regulados os instrumentos de implementação da política urbana
67
(o próprio Estatuto da Cidade, entre outros) (grifado no original).
Realizar as funções sociais das cidades importa criar condições para
que estas se prestem às necessidades sociais de moradia, habitação, trabalho,
educação, saúde, lazer, circulação, etc.
Trata-se de objetivo afeto diretamente à qualidade de vida daqueles
que vivem nas cidades – idéia, inclusive, reforçada no texto constitucional pela
expressão “bem-estar de seus habitantes”.
Feitos esses registros, impende, agora, analisar as competências
urbanísticas, para que seja possível compreender o papel de cada ente federativo
na consecução dos fins da política de desenvolvimento urbano.
2.2.1 A competência dos entes federativos
Até a promulgação da Constituição de 1988, não havia uma
distribuição constitucional de competências relativa ao Direito Urbanístico, mas a
doutrina já sustentava que a matéria incidia no âmbito tanto da União, como dos
Estados e dos Municípios.
Do texto constitucional, decorre que à União cabe editar normas
gerais de direito urbanístico (art. 24, I e § 1°), estabelecer planos urbanísticos
nacionais e regionais (art. 21, IX), além de instituir diretrizes para o desenvolvimento
urbano (art. 21, XX).
Aos Estados compete suplementar as normas gerais estabelecidas
pela União (art. 24, I e § 2°). A propósito, esclar ece José Afonso da Silva: “Abre-se
aos Estados, aí, no mínimo, a possibilidade de estabelecer normas de coordenação
67
O estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: Adilson Abreu Dallari; Sérgio Ferraz (coord.).
Estatuto da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001, p. 48-49.
31
dos planos urbanísticos no nível de suas regiões, além de sua expressa
competência para estabelecer regiões metropolitanas (art. 25, § 3°)”. 68
No que toca aos Municípios, cabe, primeiramente, lembrar que a
Constituição de 1988 reconhece expressamente sua autonomia, nos termos do art.
34, VII, alínea “c”.
Roque Carrazza apresenta a seguinte definição:
A autonomia municipal, sob a ótica do direito, é a faculdade que a pessoa
política município tem de, dentro do círculo de competência pré-traçado pela
Constituição, organizar, sem interferências, seu governo e estabelecer
sponte propria, suas normas jurídicas (João Mangabeira). Este último
aspecto (competência para legislar) ganha particular relevo, para que bem
69
se caracterize a autonomia jurídica do Município.
Quanto à competência constitucionalmente atribuída, aos Municípios
cumpre legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I). Neste ponto, Hely
Lopes Meirelles esclarece o seguinte: ”o que define e caracteriza o ‘interesse local’,
inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município
sobre o do Estado ou da União”.70
Mais adiante, conclui o autor “[...] que tudo quanto repercutir direta e
imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora possa
interessar também indiretamente e mediatamente ao Estado-membro e à União
[...]”.71
Conforme adverte José Afonso da Silva:
[...] A competência municipal não é meramente suplementar de normas
gerais federais ou de normas estaduais, pois não são criadas com
fundamento no art. 30, II. Trata-se de competência própria que vem do texto
constitucional.
Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características,
porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua
forma mais concreta e dinâmica. Por isso, as competências da União e do
Estado esbarram na competência própria que a Constituição reservou aos
Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua
atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do
desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e às regras genéricas de
72
coordenação expedidas pelo Estado.
68
Op. cit., p. 124.
Autonomia municipal, tributação e constituinte. Revista de direito constitucional e ciência política, p.
14 apud VICHI, Bruno de Souza. Política urbana: sentido jurídico, competências e
responsabilidades, p. 138.
70
Direito municipal brasileiro, p. 111.
71
Ibid., p. 112.
72
Direito urbanístico brasileiro, p. 63.
69
32
Aos Municípios cabe, ainda, promover, no que couber, o adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento
e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII) e executar a política de desenvolvimento
urbano, de acordo com as diretrizes gerais fixadas pela União (art. 182).
Hely Lopes Meirelles lembra que:
[...] Visando o Urbanismo, precipuamente, à ordenação espacial e à
regulação das atividades humanas que entendem com as quatro funções
sociais – habitação, trabalho, recreação, circulação -, é óbvio que cabe ao
Município editar normas de atuação urbanística para seu território,
especialmente para a cidade, provendo concretamente todos os assuntos
que se relacionem com o uso do solo urbano, as construções, os
equipamentos e as atividades que nele se realizam, e dos quais dependem
73
a vida e o bem-estar da comunidade local (grifado no original).
Entretanto, por mais que a atuação urbanística preponderante fique
a cargo dos Municípios, a quem compete executar a política urbana, através do
Plano Diretor, de forma a atender as peculiaridades locais, esta não deve ficar
atrelada, apenas, a objetivos intra-urbanos, mas fazer parte de uma política de
desenvolvimento econômico e social mais abrangente. Isso porque:
A concepção da política de desenvolvimento urbano da Constituição
decorre da compatibilização do art. 21, XX, que dá competência para
instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, com o art. 182, que
estabelece que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes e é executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei. Entenda-se: conforme as diretrizes
instituídas por lei federal nos termos do art. 21, XX. Por certo também que
essas diretrizes instituídas pela União é que consubstanciam a política de
desenvolvimento urbano, pois que uma política há de ser uma política
nacional de desenvolvimento urbano que, por seu turno, há de ser elemento
da política nacional de desenvolvimento em geral. Foi com base nesse
dispositivo que a União expediu o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)
74
(grifado no original).
A repartição constitucional de competências urbanísticas traduziu a
necessidade de envolver todos os entes federativos no enfrentamento dos
problemas urbano, como mostra Nelson Saule Júnior:
[...] a constitucionalização de normas referentes ao direito urbanístico foi
uma necessidade que se impôs diante dos problemas urbanos que não
podem mais ser compreendidos como uma questão local, de uma região
mais desenvolvida, mas sim como uma questão nacional pelos efeitos que
ocasiona nos aspectos econômicos e sociais para a maioria da população
brasileira que vive nas cidades, tornando-se relevante para o enfrentamento
73
74
Op. cit., p. 548.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 816.
33
dessa situação, a concretização do valor federativo da cooperação entre a
75
União, os Estados e Municípios [...].
Neste mesmo sentido, aponta Bruno de Souza Vichi: “[...] a
viabilidade dessa política urbana, que se dá no âmbito do Município, depende da
ação de todos os entes da federação (incluindo-se, portanto, a União e os Estados)
[...]”.76
Note-se que a importância do poder local para o enfrentamento da
problemática urbana tem sido cada vez mais destacada pela comunidade
internacional. Um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas
sobre Assentamentos Humanos - Habitat II - realizada no ano de 1996, em Istambul,
foi, justamente, a consagração do poder local e da descentralização.
É preciso considerar, ainda, que os problemas urbanos acabam por
repercutir
em
aspectos
essenciais
para
o
crescimento
econômico
ou
desenvolvimento nacional:
[...] Como não reconhecer a importância econômica de gigantescas
ocupações ilegais e informais do território urbano, que colocam em risco
mananciais de água potável como acontece em São Paulo e mesmo em
Curitiba? Qual o custo do tratamento dessa água crescentemente poluída?
Qual o custo de buscar fontes de água em bacias mais distantes? Qual o
custo de manter essa população em condições precárias de vida? E em
relação à questão fundiária urbana, quanto custa manter áreas servidas de
infra-estrutura em condições ociosas, devido ao espraiamento horizontal
das cidades? Quanto se perde pela ilegalidade fundiária de áreas de
ocupação consolidada que, em alguns municípios periféricos metropolitanos, ultrapassam em muito a metade da área urbana total? Quanto se
perde no sistema de saúde devido a doenças ligadas à falta de saneamento
ambiental? Quanto se perde em negócios, empregos, arrecadação e
recursos naturais pela ausência de uma política urbana e metropolitana?
Quanto se perde na falta de coordenação e planejamento dos investimentos
77
dos três níveis de governo nas cidades?
Desta forma, para atender os objetivos assinalados no art. 182, é
fundamental que - além de envolver a participação de todos os entes federativos,
cada qual nos limites de sua competência – a política urbana esteja articulada com
as demais políticas de desenvolvimento econômico e social do país.
Em que pese a tais considerações, a história revela que as políticas
públicas, no Brasil, foram marcadas por uma visão setorial, absolutamente,
deficitária para solucionar os problemas advindos com a urbanização.
75
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento
Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, p. 87.
76
Política urbana: sentido jurídico, competências e responsabilidades, p. 127.
77
BRASIL. Ministério das Cidades, Política nacional de desenvolvimento urbano, Cadernos MCidades
nº 1, p. 17.
34
Conforme noticia Bruno de Souza Vichi, na década de 90, o Governo
Federal adotou uma postura que acabou por desarticular os entes federativos no
que tange à implementação das políticas públicas:
Ao longo dos anos 90, apontou-se para uma ação de natureza defensiva do
Governo Federal sob o argumento (aparentemente neoliberal) de que este
não deveria interferir na autonomia dos demais entes da federação e, nesse
sentido, acabou por abandonar o seu papel de indutor e coordenador de
políticas públicas coordenadas, atribuição que, diga-se, está prevista na
Constituição Federal, art. 21, inciso IX, e que, portanto, para além de
questões político-administrativas, poderia ter ensejado implicações jurídicas
78
[...].
Baseando-se na lição de Pedro Luiz Barros Silva e Vera Lúcia
Cabral Costa, destaca, ainda:
No campo das políticas sociais há inúmeras indicações dessa falta de
clareza. A atuação do Governo federal “demolindo” as políticas nacionais de
habitação e de transporte coletivo urbano, caracteriza bons exemplos de
retiradas sem planejamento e sem a devida preocupação em dar
continuidade a essas políticas setoriais, em estados e municípios, o que
79
envolve uma nova articulação entre esferas de governo.
Uma mudança positiva neste cenário só foi apontada em 2003, com
o Ministério das Cidades, criado para tratar da política de desenvolvimento urbano e
das políticas setoriais de habitação, saneamento ambiental, transporte urbano e
trânsito, buscando promover a articulação entre as políticas.
2.2.2 O direito a cidades sustentáveis
A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer um capítulo próprio
para tratar da política urbana, representou uma vitória importantíssima na trajetória
das lutas sociais pela reforma urbana, formulada, inicialmente, em 1963.
Pela primeira vez, é bom frisar, a cidade foi tratada na Constituição Federal,
que nasceu com o intuito de assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
80
fundada na harmonia social.
Nada obstante, carecia o texto constitucional de normatização
suficiente para alcançar suas finalidades, à medida que postulava a edição de uma
78
Op. cit., p. 133.
Descentralização e crise da federação. In: AFFONSO; SILVA (org.). A federação em perspectiva, p.
270 apud VICHI, Bruno de Souza. Política urbana: sentido jurídico, competências e
responsabilidades, p. 133.
80
Isabel Cristina Eiras de Oliveira, Estatuto da cidade para compreender, p. 03.
79
35
norma geral que estabelecesse as diretrizes gerais da política de desenvolvimento
urbano.
Finalmente, em 10 de julho de 2001, foi publicada a Lei nº 10.257,
dispondo em seu Preâmbulo que “Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição
Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências”
(grifado no original).81
Com efeito, essa lei - autodenominada Estatuto da Cidade - veio
trazer a densidade normativa indispensável para a concretização dos preceitos
constitucionais.82
Em seu art. 2°, I, estabelece:
Art. 2°. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as
seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à
terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana,
ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações; (grifo nosso).
Por conseguinte, a lei federal direcionou o rumo da política urbana,
qual seja: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, de modo a garantir o direito a cidades sustentáveis”.83
Por cidades sustentáveis podemos entender aquelas em que o
desenvolvimento urbano ocorre de forma ordenada e com respeito ao direito difuso
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou seja, a realização do direito a
81
82
83
Vale registrar a advertência trazida por Márcio Cammarosano: “Conquanto consagrada, a
expressão “regulamenta tais e quais dispositivos da Constituição”, não é, em rigor, apropriada, e
isso ao menos por duas razões: em primeiro ligar porque quando se fala em regulamentar normas
jurídicas usa-se a expressão que a própria Constituição associa ao exercício da competência, que
ela mesma confere ao Chefe do Executivo, de expedir regulamentos para fiel execução das leis
(art. 84, IV); em segundo porque as normas regulamentares, no sentido estrito do termo, são de
nível hierárquico imediatamente infraconstitucional e têm por objeto não a lei em si mesmo
considerada, mas a atuação dos agentes que lhe devem dar aplicação, não podendo inovar
originariamente a ordem jurídica como as leis em geral”. Continua o autor: “Ora, a lei que
consubstancia o denominado Estatuto da Cidade não se limita a estabelecer regras orgânicas e
procedimentais para a execução dos dispositivos constitucionais que “regulamenta”. Inova
originariamente a ordem jurídica, estabelece obrigações e proibições a particulares e a agentes
públicos, cria institutos jurídicos, prevê sanções para os que violarem as regras que prescreve”.
(Fundamentos constitucionais do estatuto da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(coord.). Estatuto da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001, p. 23).
CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos constitucionais do estatuto da cidade. In: DALLARI,
Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da cidade: comentários à lei federal
10.257/2001, p. 25.
Calos Ari Sundfeld, O estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu;
FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da cidade (comentários à lei federal 10.257/2001), p. 48.
36
cidades sustentáveis implica, necessariamente, a leitura combinada dos dispositivos
relativos à Política Urbana com o art. 225 da Constituição.
Permeia o conceito a idéia da sustentabilidade do desenvolvimento
urbano, que denota, por assim dizer, a íntima relação entre o direito urbanístico e o
direito ambiental. Conforme acentua Toshio Mukai:
[...] é do âmbito de preocupação e de abrangência do direito urbanístico o
disciplinar, convenientemente, visando um ambiente sadio, disciplina todas
as ações humanas relacionadas com o uso do solo. Assim,
exemplificativamente, a legislação que cuida do zoneamento industrial visa,
através da disciplina do uso do solo, evitar ou minimizar a poluição
atmosférica em doses anormais; a legislação de proteção aos mananciais
visa, através de restrições profundas ao uso do solo, manter as fontes de
alimentação da água potável para as cidades; e, a legislação de
zoneamento e parcelamento do solo, contém, normalmente, dispositivos
que visam, de um lado, a segregação de atividades que seriam por natureza
prejudiciais, se indiscriminadamente misturadas em determinadas zonas (p.
e.: atividade industrial ao lado de residências), e de outro, a densificação
através de loteamentos, em áreas qu por seu interesse especial e ecológico
devam ser preservadas da urbanização intensiva.
Afigura-se o direito a cidades sustentáveis como o direito coletivo a
certa ordem urbanística, radicado na idéia de equilíbrio e sustentabilidade.84
No que tange aos direitos subjetivos conferidos pelo indigitado inciso
I do art. 2° (o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer),
Carlos Ari Sundfeld apresenta a seguinte ressalva:
[...] O dispositivo não pretendeu outorgar esses direitos individualmente e
em concreto, mas garanti-los como reflexo da obtenção do equilíbrio (da
cidade sustentável). Em outros termos: a população tem o direito coletivo a
uma cidade sustentável, o que deve levar à fruição individual das vantagens
85
dela decorrentes (grifado no original).
Com base em Nelson Saule Júnior:
O Direito à Cidade compreende os direitos inerentes às pessoas que vivem
nas cidades de ter condições dignas de vida, de exercitar plenamente a
cidadania, de ampliar os direitos fundamentais (individuais, econômicos,
sociais, políticos e ambientais), de participar da gestão da cidade, de viver
86
num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.
84
Ibid., p. 54-56.
Ibid., p. 55.
86
Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana.
Aplicação e eficácia do plano diretor, p. 22. Vale lembrar, ainda, que, para o autor, o direito a
cidades sustentáveis, fruto do princípio constitucional das funções sociais da cidade, foi adotado
como um novo direito fundamental, com base no § 2° do art. 5° da Constituição ( Direito urbanístico:
vias jurídicas das políticas urbanas, p. 51).
85
37
Assegurar o direito à cidade, especificando os direitos que são
inerentes às condições de vida na cidade (acesso de todos à moradia, transporte
público, saúde, educação, etc.) e com respeito às normas de direito ambiental é o
que objetiva as funções sociais da cidade, ao serem desenvolvidas.87
Evidentemente, viabilizar o pleno exercício do direito a cidades
sustentáveis deve ser a finalidade última de toda e qualquer política de
desenvolvimento urbano. Mais que o interesse público traduzido no pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade, deflui do ordenamento jurídico em
vigor, o direito coletivo a cidades sustentáveis.
2.2.3 O planejamento urbanístico
Estabelecido na Constituição Federal como um dever do Estado, o
planejamento constitui uma das diretrizes gerais da política urbana, trazidas pelo
Estatuto da Cidade (art. 2º, IV).
Conforme observa Carlos Ari Sundfeld, a política urbana se
apresenta como indispensável para implantar a ordem urbanística, que tem como
pressuposto o planejamento.88 Segundo explica:
Na lógica do Estatuto, o ordenamento urbanístico não pode ser um
aglomerado inorgânico de imposições. Ele deve possuir um sentido geral,
basear-se em propósitos claros, que orientarão todas as disposições. Desse
modo, o ordenamento urbanístico deve surgir como resultado de um
planejamento prévio – além de adequar-se sinceramente aos planos
89
(grifado no original).
Com relação aos planos, retomando a idéia de que são eles que
conferem sentido jurídico ao planejamento, José Afonso da Silva evidencia que:
[...] o planejamento urbanístico não é um simples fenômeno técnico, mas
um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em
duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais
normativos; e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação
concreta, de natureza executiva – como nota Joseff Wolff, em terminologia
adequada ao sistema de planejamento urbanístico alemão (grifado no
90
original).
87
Ibid, p. 240.
O estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu Dallari; FERRAZ, Sérgio
(coord.), Estatuto da cidade (comentários à lei federal 10.257/2001), p. 54 e 56.
89
Ibid, p.56.
90
Direito urbanístico brasileiro, p. 93.
88
38
Os planos configuram, portanto, os instrumentos fundamentais de
atuação urbanística e, em decorrência do princípio da legalidade, todo plano
urbanístico deve ser aprovado por lei. 91
Nos termos da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade, o
plano diretor é erigido como o instrumento básico da política de desenvolvimento e
de expansão urbana.
Cumpre agregar, ainda, a obrigatoriedade dos planos urbanísticos
serem resultado de um planejamento democrático, em que haja ampla participação
popular na identificação das prioridades, fixação de metas e programas de ações.
Com efeito, a Constituição de 1988, no art. 29, incisos XII e XIII,
substituiu a concepção de planejamento tecnocrático, que prevaleceu na década de
70 e início dos anos 80.
Por sua vez, o Estatuto da Cidade instituiu, também, como uma das
diretrizes da política urbana, a gestão democrática da cidade (art. 2°, II), tornando
obrigatória a participação popular por via de debates, audiências e consultas
públicas (art. 43, II) ou por iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas
e projetos de desenvolvimento urbano (art. 43, IV).
Evidenciada a relevância do planejamento urbanístico democrático
como um dos pilares da política urbana, impende, desde logo, ressaltar que,
necessariamente, ele deverá contemplar todos os aspectos relativos à circulação,
integrando o planejamento dos transportes, do trânsito e do uso do solo.
2.3 Circulação
A política urbana, no objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade, em prol da realização do direito a cidades
sustentáveis, deve, necessariamente, zelar pelas condições de circulação nas
cidades.
Observa-se que quanto maior os municípios, mais os seus
habitantes vão depender do sistema viário para ter acesso a escolas, hospitais e
oportunidades de trabalho e lazer. É através desse sistema que se possibilita o
exercício do direito à circulação das pessoas, concebido como “[...] a manifestação
91
Aliás, a obrigatoriedade do plano diretor ser aprovado por lei resultou expressa no art. 40, caput, do
Estatuto da Cidade.
39
mais característica do direito de locomoção, direito de ir e vir e também de ficar
(estacionar, parar), assegurado na Constituição Federal” (grifado no original).92 Além
de constituir meio para a circulação de pessoas, o sistema viário é condição
necessária, também, para a circulação de bens.
Tendo em vista a indispensabilidade das vias de circulação nos
assentos urbanos, José Afonso da Silva destaca a seguinte afirmativa:
[...] o sistema viário forma a estrutura da cidade, constituindo, talvez, seu
mais importante elemento. Este sistema determina, em grande parte, a
facilidade, a conveniência e a segurança como que o povo se locomove
através da cidade; estabelece o tamanho das quadras; constitui um canal
para luz e ar, bem como para instalação das redes aéreas e subterrâneas.
Nenhum outro elemento da composição material da cidade é tão
93
permanente quanto suas ruas.
A rede ou infra-estrutura viária corresponde ao aspecto estático do
sistema viário, que apresenta, também, um aspecto dinâmico, representado pelos
transportes. A esse respeito, mais uma vez, vale a pena reproduzir as palavras de
José Afonso da Silva:
Os transportes constituem, com a rede de vias sobre as quais correm, um
dos modos de uso do solo mais intensos nos dias de hoje. Cada vez mais
solo tem que ser reservado para a circulação nas cidades modernas,
especialmente por causa dos veículos a motor. As vias de circulação das
cidades um pouco mais velhas já são demasiado estreitas para conter o
tráfego urbano, sem contar com a escassez de área de estacionamento.
Sua influência sobre o traçado urbano torna-se avassaladora. As cidades
formam-se ou transformam-se em função dos transportes [...].
A vivência mostra que as cidades se renovam e se reconstroem rasgando
ruas e avenidas, ou alargando-as sempre, para abrir espaço ao ‘senhor
automóvel’. As leis urbanísticas de parcelamento do solo reservam um
mínimo de 20% da área em urbanificação somente para as vias de
94
circulação [...].
Em sentido amplo, o sistema viário equivale ao ”[...] conjunto das
redes, meios e atividades de comunicação terrestres, aquáticos e aéreos que
permitem o deslocamento de pessoas e coisas de um ponto a outro do território
nacional, estadual e municipal”.95 Para fins urbanísticos, importam apenas as vias
terrestres e, dentre elas, especialmente as rodovias e, de maneira ainda mais típica,
o sistema viário urbano. Logo, o conceito urbanístico de sistema viário corresponde
92
Direito urbanístico brasileiro, p. 179.
Associação Internacional de Administradores Municipais, Planejamento Urbano. Trad. De Maria de
Lourdes Lima Modiano. RJ: Fundação Getúlio Vargas (FGV), 1965, p. 128 apud SILVA, José
Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 179.
94
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 234-235.
95
Ibid., p. 181.
93
40
à “[...] ordenação do espaço para o exercício da função de circular” (grifado no
original).96
Com efeito, os espaços destinados à circulação comportam
disciplina, para que haja o melhor funcionamento das cidades. Ordená-los implica
delimitá-los, no sentido do uso que as pessoas poderão deles fazer. José Afonso da
Silva, seguindo os ensinamentos de Pedro Escribano Collado, aponta que:
A Administração – claro está – tem o poder de estabelecer a
regulamentação do uso dos logradouros públicos, inclusive, certamente, das
vias urbanas, pelo qual pode determinar o tipo de circulação de cada via, a
imposição de limitações e proibições à circulação de veículos, o controle
prévio de determinados tipos de circulação, a imposição de requisitos para
circular a determinadas categorias de veículos, a proibição de circulação de
determinados animais, a imposição de sanções aos contraventores das
normas estabelecidas, a vigilância permanente por seus próprios agentes
97
(grifo nosso).
Existem, no entanto, limites a esse poder regulamentar da
Administração, pois independentemente do meio através do qual se circula – seja a
pé, de bicicleta ou de veículo motorizado – ao transeunte é assegurado o direito
fundamental de circulação nos logradouros públicos, que são bens de uso comum
ou especial do povo. “Ressalvadas, pois, as restrições de trânsito e as demais
limitações de interesse comum, ninguém poderá ser impedido do direito de transitar
e permanecer neles [...]”.98
Vislumbramos, aqui, a possibilidade do Poder Público criar
limitações à circulação de veículos, com o intuito de melhorar a fluidez no trânsito
nas cidades, conquanto sejam respeitados certos limites. Essa atividade estatal destinada a criar condições para o exercício da circulação - possui, evidentemente,
finalidade urbanística, à medida que busca a otimização de uma das funções sociais
da cidade.
2.3.1 O modelo centrado nos automóveis
A necessidade de circular – segundo Vasconcellos – está ligada ao
desejo de realização das atividades sociais, culturais, políticas e econômicas,
consideradas necessárias na sociedade.99
96
Ibid., mesma página.
Ibid., p. 214.
98
Ibid, p. 213.
99
Transporte urbano, espaço e eqüidade, p. 85.
97
41
O meio básico de locomoção das pessoas é o andar a pé. Todavia,
nas longas distâncias a percorrer, que caracterizam as grandes metrópoles, torna-se
cada vez mais imprescindível o uso do transporte motorizado.100
As maiores cidades brasileiras foram, na verdade, adaptadas para o
uso eficiente do automóvel, através da ampliação do sistema viário e da utilização
de técnicas garantidoras de boas condições de fluidez. Por outro lado, o crescimento
da frota de veículos particulares foi estimulado, também, pela oferta inadequada do
serviço de transporte público. Com mais automóveis circulando nas vias, aumentase o nível de congestionamento, a poluição e a ineficiência do transporte público
(que se torna mais lento e menos confiável). Esse uso ampliado do transporte
individual, por sua vez, estimula a expansão urbana e a dispersão das atividades,
elevando o consumo de energia e dificultando o deslocamento e a acessibilidade
daqueles que não podem dispor do automóvel. 101
A relação entre pobreza e mobilidade – entendida esta como os
movimentos das pessoas dentro das cidades ou entre elas com determinadas
finalidades - foi objeto de um estudo aprofundado pelo Instituto de Desenvolvimento
e Informação em Transporte (Itrans), no ano de 2004, que apontou os problemas
relativos à mobilidade como agravantes da exclusão social e da pobreza.102
De acordo com a referida pesquisa, a mobilidade da população de
baixa renda é muito baixa, o que indica sérios problemas de acesso ao trabalho e às
oportunidades de emprego, às atividades de lazer e integração social e aos
equipamentos sociais básicos.
Ainda, com base nesse estudo do Itrans, os motivos dos baixos
índices de mobilidade, estão relacionados com as altas tarifas do transporte coletivo
100
De acordo com o Relatório Geral de Mobilidade Urbana 2008: “A maior parte das viagens foi
realizada a pé e por bicicleta (41,0%), seguidos dos meios de transporte individual motorizado
(29,8%) e do transporte público (29,4%). Quando as viagens são classificadas por porte dos
municípios, percebe-se que a participação do transporte público gira em torno de 20%, à exceção
das cidades acima de 1 milhão de habitantes, nas quais ela atinge 36%. A participação dos autos é
maior nas cidades entre 500 mil e 1 milhão de habitantes (31%), decrescendo com a diminuição da
população. As viagens a pé são sempre dominantes, mas na maioria das vezes têm sua
participação diminuída à medida que aumenta a população. Tanto as viagens de moto como as
viagens de bicicleta aumentam significativamente nos municípios menores. Do ponto de vista da
relação entre transporte não motorizado e transporte motorizado, vê-se que o primeiro é dominante
(mais de 50% das viagens) nas cidades com menos de 100 mil habitantes”. Disponível em:
<http://portal1.antp.net/site/simob/Lists/rltgrl08/rltgrlc.aspx?AspXPage=g_208EA817AB414706B02
A11A82309B7D6:%2540%255Fx0069%255Fd1%3D1>. Acesso em 19 jul. 2010.
101
ANTP - Associação Nacional de Transportes Públicos. Transporte humano: cidades com qualidade
de vida, p. 18-19.
102
Mobilidade
e
Pobreza
(Relatório
Final).
Disponível
em:
<http://brasil.indymedia.org/media/2006/12//369479.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2010.
42
urbano e com graves deficiências na qualidade dos serviços de transporte,
sobretudo em termos de freqüência (longos tempos de espera) e de acesso às
linhas e terminais (pontos distantes). Os gastos com transporte pesam no orçamento
das famílias pobres, que acabam por substituir os meios motorizados por longas
caminhadas a pé ou de bicicleta, levando até mesmo à supressão das viagens.
Sob outro prisma, o crescimento sistemático do preço das tarifas de
ônibus urbanos acima da inflação, aliado às melhoras nas condições de renda da
população, evidenciadas a partir de 2003, também, estimula a substituição das
viagens de transporte coletivo por outros modos individuais.103
Não poderíamos deixar de mencionar, ainda, que a preferência da
população pelo automóvel incorporou-se à cultura da população urbana. Além de ser
considerado o meio mais confortável para o deslocamento, o carro transformou-se
em sinônimo de “status” e independência. E mais: possuir um automóvel passou a
ser desejo atrelado à própria idéia de liberdade, intrínseca ao ser humano.
Em contrapartida, a hegemonia dos automóveis como modo de
circulação revela um paradoxo: as pessoas adquirem um carro almejando liberdade
e conforto, mas vão parar em engarrafamentos e ser cada vez mais vítimas da
poluição
e
dos
acidentes
de
trânsito.
Devido
às
horas
perdidas
nos
congestionamentos, resta cada vez menos tempo para elas se dedicarem ao lazer, à
família e à educação.
Em face dos inúmeros problemas gerados pela intensificação do uso
do transporte motorizado - sobretudo dos automóveis - a qualidade de vida nas
cidades resta absolutamente comprometida. É evidente que esse modelo de
circulação urbana centrado nos automóveis não se sustenta.
A realidade paulistana ilustra bem essa crise de mobilidade. De
acordo com um estudo realizado pela IBM, São Paulo é o município que tem o sexto
trajeto mais penoso entre casa e trabalho, dentre vinte metrópoles mundiais
analisadas.104
103
104
CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro de; PEREIRA, Rafael Henrique Moraes. Efeitos da variação
da tarifa e da renda da população sobre a demanda de transporte público coletivo urbano no
Brasil. Boletim Regional, Urbano e Ambiental, n. 3, p. 90. Disponível em:
<http://agencia.ipea.gov.br/images/stories/PDFs/100406_boletimregio3.pdf>. Acesso em 20 jul.
2010.
Estudo da IBM traz radiografia do trânsito em 20 metrópoles mundiais. Disponível em:
<http://www-03.ibm.com/press/br/pt/pressrelease/32027.wss>. Acesso em 19 jul. 2010.
43
Ainda, com base em um levantamento realizado pelo Ibope, em
meados de 2009, o trânsito está entre as áreas mais problemáticas deste município
(38%), atrás somente de saúde (65%) e educação (41%). De cada 10 moradores, 07
avaliam a situação do trânsito como “ruim” ou “péssima”. E mais: 50% dos domicílios
possuem veículos de passeio, sendo que em 1/3 deles foram adquiridos no último
ano; caiu de 29% para 21% os que dizem não utilizar automóvel para se locomover
e o tempo médio de deslocamento do paulistano – que, em 2008 era de duas horas
e meia – passou para duas horas e quarenta e cinco minutos; 90% dos
entrevistados consideram a poluição um problema grave e que afeta a qualidade de
vida ou saúde, havendo a opinião de que os maiores causadores do problema são
os veículos, também, citados como os principais responsáveis pelo aquecimento
global.105
Vale lembrar, ainda, que os problemas relacionados ao aumento de
veículos em circulação não é exclusiva das grandes metrópoles. O município de
Taubaté, no interior de São Paulo, por exemplo, registrou um crescimento de 11%
da frota, apenas nos cinco primeiros meses de 2010. Esse índice - superior ao
registrado em todo o ano anterior - é incompatível com as ruas estreitas da região
central, que não comporta tanto movimento.106
2.3.2 A construção de um novo paradigma
Dentro da perspectiva
da
realização do
direito
a cidades
sustentáveis, as condições de circulação de pessoas e bens no espaço urbano são
pontos que, evidentemente, devem ser considerados no âmbito da política de
desenvolvimento urbano, em face dos prejuízos econômicos e sociais que acarretam
e, em última análise, por afetarem de maneira direta a qualidade de vida das
pessoas.
Como vimos anteriormente, as cidades brasileiras foram se
expandindo a partir da abertura de bairros de moradia cada vez mais distantes das
áreas centrais, onde se localiza a maior parte dos locais de trabalho e lazer. Esse
crescimento descontrolado exigiu recursos financeiros para a construção de ruas e
105
106
Pesquisa Ibope & Movimento Nossa São Paulo: Dia mundial sem carro 2009. Disponível em:
<http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/pesquisas>. Acesso em 19 jul. 2010.
Crescimento da frota de veículos de Taubaté já supera 2009. Vnews. Disponível em:
<http://www.vnews.com.br/noticia.php?id=75145>. Acesso em: 22 jul. 2010.
44
avenidas, que logo se mostraram saturadas, devido ao aumento de veículos
motorizados particulares circulando nas vias e a oferta insuficiente de ônibus, trens e
metrôs.
Independentemente de outros fatores que contribuíram para essa
situação, é forçoso reconhecer que ela reflete decisões passadas nas políticas, que
dissociaram o planejamento do uso do solo, do trânsito e dos transportes.
Na tentativa de reverter esse quadro, o Estatuto da Cidade, trouxe
sua contribuição, ao estabelecer, no art. 41, §2°, a obrigatoriedade para cidades com
mais de 500.000 habitantes elaborarem de um plano de transporte urbano integrado,
o qual deve ser compatível com o plano diretor ou nele estar inserido. Também, no
art. 2°, VI, d, ao prescrever que a ordenação e o controle do uso do solo deve ser
realizada de forma a evitar a instalação de empreendimentos ou atividades
geradores de tráfego sem a previsão da infra-estrutura correspondente. E, no art. 37,
V, ao inserir a geração de tráfego e a demanda por transporte público como uma das
questões a serem analisadas pelo Estudo de Impacto de Vizinhança.
Nesse mesmo caminho, merece destaque a criação do Ministério
das Cidades, cujos debates contribuíram para o desenvolvimento do conceito de
mobilidade urbana e culminaram no Projeto de Lei 1.687/2007, dispondo sobre a
política de mobilidade urbana sustentável, como será melhor elucidado, a seguir.
2.3.3 A mobilidade urbana
Tida como um atributo das cidades, a mobilidade urbana está
relacionada com a facilidade de deslocamentos de pessoas e bens no espaço
urbano. Ela é o resultado da interação entre os deslocamentos de pessoas e bens
com a cidade. Por exemplo: a disponibilidade de meios de transporte adequados
contribui para o desenvolvimento de uma determinada área, assim como à medida
que esta se desenvolve, cada vez mais serão necessários meios e infra-estrutura
adequada para pessoas e bens se locomoverem. Planejar a mobilidade urbana,
portanto, requer mais que o planejamento dos meios de transporte e do trânsito,
mas o planejamento do uso e da ocupação do solo, de forma a garantir o acesso a
locais de emprego, escolas, hospitais, praças e áreas de lazer.107
107
VAZ, José Carlos Vaz; SANTORO, Paula. Cartilha Mobilidade urbana é desenvolvimento urbano!
Disponível em: <http://www.polis.org.br/obras/arquivo_194.pdf>. Acesso em 01 jul. 2009.
45
Desta forma:
O novo conceito (mobilidade urbana) é em si uma novidade, um avanço na
maneira tradicional de tratar, isoladamente, o trânsito, o planejamento e a
regulação do transporte coletivo, a logística de distribuição das mercadorias,
a construção da infra-estrutura viária, das calçadas e assim por diante. Em
seu lugar, deve-se adotar uma visão sistêmica sobre toda a movimentação
de bens e de pessoas, envolvendo todos os modos e todos os elementos
108
que produzem as necessidades destes deslocamentos (grifo nosso).
Perante o dever de se garantir o direito de todos circularem com
qualidade revela-se cada vez mais patente a necessidade da atividade urbanística
direcionada a reduzir o número de veículos motorizados que circulam nas cidades,
ampliando os modos coletivos e os meios não motorizados de transporte, diminuindo
as necessidades de deslocamentos – através da aproximação dos locais de moradia
dos locais de trabalho e de acesso aos equipamentos públicos – e criando soluções
para evitar o trânsito congestionado, como o programa de rodízio, por exemplo.
Sob a égide da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade,
impossível dissociar a idéia de sustentabilidade do conceito de mobilidade urbana,
de maneira que:
A Mobilidade Urbana Sustentável pode ser definida como o resultado de um
conjunto de políticas de transporte e circulação que visa proporcionar o
acesso amplo e democrático ao espaço urbano, através da priorização dos
modos não-motorizados e coletivos de transporte, de forma efetiva, que não
gere segregações espaciais, socialmente inclusiva e ecologicamente
sustentável. Ou seja: baseado nas pessoas e não nos veículos (grifo
109
nosso).
2.3.4 Projeto de Lei n° 1.687/2007
A partir do Ministério das Cidades, criado em 2003, vislumbrou-se
uma atuação mais ativa da União, que passou a reconhecer a questão urbana como
parte importante da política nacional de desenvolvimento em geral, incorporando,
assim, o que determina a nossa Lei Maior.
Instituído para exercer um trabalho de integração entre as políticas
que concorrem para o desenvolvimento urbano, o Ministério das Cidades reuniu as
108
BRASIL. Ministério das Cidades Brasil, Caderno de referência para elaboração de plano de
mobilidade
urbana,
p.
21.
Disponível
em:
<http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/transporte-e-mobilidade/biblioteca/caderno-de-referencia-para-elaboracao-de-plano-demobilidade-urbana/>. Acesso em: 01 jul. 2009.
109
Política nacional de mobilidade urbana sustentável (Cadernos MCidades, 6), p. 14 Disponível em:
<
http://www.cidades.gov.br/ministerio-das-cidades/biblioteca/cadernos-do-ministerio-dascidades/?searchterm=cadernos%20minist%C3%A9rio%20das%20cidades>. Acesso em: 01 jul.
2009.
46
políticas de trânsito e transporte urbano, que antes se encontravam dispersas,
buscando articulá-las, também, com as políticas setoriais de habitação e
saneamento ambiental.
De uma série de debates promovidos, em que foi assegurada ampla
participação popular, resultou a elaboração do Projeto de Lei n° 1.687/2007, com o
objetivo de “[...] configurar um novo paradigma - o da mobilidade urbana para a
cidade sustentável.110
Dentro da sistemática constitucional que reconhece e preceitua a
exigibilidade de políticas nacionais para o desenvolvimento urbano, sob o princípio
da cooperação federativa, esse projeto visa estabelecer princípios e fornecer
instrumentos que possibilitem aos municípios executarem uma política de
mobilidade urbana que promova o desenvolvimento sustentável das cidades
brasileiras.
Nos termos do seu art. 1°:
Art. 1° A política de mobilidade urbana é instrumen to da política de
desenvolvimento urbano de que tratam os arts. 21, inciso XX, e 182 da
Constituição, e tem como objeto a interação dos deslocamentos de pessoas
e bens com a cidade.
A política de mobilidade urbana apresenta-se fundamentada, de
acordo com os seguintes princípios:
Art. 5° [...]
I - acessibilidade universal;
II - desenvolvimento sustentável
socioeconômicas e ambientais;
das
cidades,
nas
dimensões
III - eqüidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo;
IV - eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte
urbano;
V - transparência e participação social no planejamento, controle e
avaliação da política de mobilidade urbana;
VI - segurança nos deslocamentos das pessoas;
VII - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos
diferentes meios e serviços; e
VIII - eqüidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros.
110
EM
Interministerial
nº
7/2006
MCIDADES/MF,
p.
19.
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/EMI/2006/7%20%20MCID%20MF.htm>. Acesso em: 01 ago. 2010.
Disponível
em:
47
Por sua vez, em seu art. 6°, estão previstas as dir etrizes que
orientam a referida política:
Art. 6° [...]
I - integração com as políticas de uso do solo e de desenvolvimento urbano;
II - prioridade dos meios não-motorizados sobre os motorizados, e dos
serviços de transporte coletivo sobre o transporte individual motorizado;
III - complementaridade entre os meios de mobilidade urbana e os serviços
de transporte urbano;
IV - mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos
deslocamentos de pessoas e bens na cidade;
V - incentivo ao desenvolvimento científico-tecnológico e ao uso de energias
renováveis e não-poluentes; e
VI - priorização de projetos de transporte coletivo estruturadores do território
e indutores do desenvolvimento urbano integrado.
O Sistema de Mobilidade Urbana é definido como o conjunto
organizado e coordenado dos meios, serviços e infra-estruturas, que garante os
deslocamentos de pessoas e bens na cidade (art. 3°) . Contempla, portanto, a
interação equilibrada entre os serviços de transporte (coletivo e individual; público e
privado), os meios (motorizados e não-motorizados) e a infra-estrutura associada.111
É através do planejamento e da gestão do Sistema de Mobilidade
Urbana que a política de mobilidade urbana poderá alcançar seu objetivo, qual seja:
contribuir para o acesso universal à cidade (art. 2º).
No que diz respeito ao uso dos veículos particulares motorizados, o
Projeto busca fornecer as bases para sua racionalização, estabelecendo, no art. 20,
entre os instrumentos a ser utilizados pelos municípios:
Art. 20. [...]
I - restrição e controle de acesso e circulação, permanente ou temporário,
de veículos motorizados em locais e horários predeterminados;
[...]
III - aplicação de taxas sobre meios e serviços e de tarifas sobre a utilização
da infra-estrutura visando desestimular o uso de determinados meios e
serviços de transporte urbano;
[...]
111
EM
Interministerial
nº
7/2006
MCIDADES/MF,
p.
18.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/EMI/2006/7%20-%20MCID%20MF.htm>.
Acesso em: 01 ago 2010.
48
VI - controle do uso das vias urbanas destinadas a cargas e descargas,
concedendo prioridade ou restrições;
[...]
Como instrumento de efetivação da política, remete ao art. 41, §2°,
da Lei n° 10.257/01, mas preferiu denominar “Plano de Mobilidade Urbana” aquilo
que o Estatuto designou “plano de transporte urbano”, o que reforça que o objeto da
política de mobilidade urbana é mais amplo que os serviços de transporte urbano.
Da proposta contida no Projeto de Lei da Mobilidade Urbana, inferese que ela é mais um passo importante no reconhecimento de que a realização do
direito a cidades sustentáveis passa pelo desafio de inverter a lógica de políticas que
foram centradas em favor dos veículos e não no bem-estar das pessoas.
Essa nova ordem requer medidas que potencializem o transporte
coletivo e os modos não motorizados de deslocamento, dissuadindo o uso dos
automóveis.
A par dessas medidas, também, limitar a circulação de veículos
motorizados – sejam automóveis, ônibus, motos ou caminhões – em determinadas
regiões da cidade, ou em certos dias e horários, tem se mostrado cada vez mais
necessário para melhorar as condições do trânsito.
Se, por um lado, o direito coletivo a cidades sustentáveis - ou
mesmo o interesse público ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
- fundamenta a atividade do Poder Público, que cria essas limitações, os direitos dos
indivíduos circularem mediante tais veículos não podem ser preteridos.
Neste contexto, compreender como ambos os direitos coexistem, à
luz do direito positivo brasileiro, requer como premissa a análise do tratamento
conferido às limitações à liberdade e à propriedade.
49
3. Limitações à liberdade e à propriedade
3.1 Considerações preliminares
Tendo em vista que ao Estado compete a realização do bem
comum112, é evidente que o exercício dos direitos individuais deve estar em
consonância com o bem-estar coletivo.
Leciona Celso Antônio Bandeira de Mello:
Através da Constituição e das leis os cidadãos recebem uma série de
direitos. Cumpre, todavia, que o seu exercício seja compatível com o bemestar social. Em suma, é necessário que o uso da liberdade e da
propriedade esteja entrosado com a utilidade coletiva, de tal modo que não
implique uma barreira capaz de obstar à realização dos objetivos públicos
113
(grifado no original).
Note-se, entretanto, que limitar o exercício do direito não se
confunde com limitar o próprio direito. A esse respeito, imprescindível lembrar a lição
de Celso Antônio Bandeira de Mello, mais uma vez, quando afirma:
Convém desde logo observar que não se deve confundir liberdade e
propriedade com direito de liberdade e direito de propriedade. Estes últimos
são as expressões daquelas, porém tal como admitidas em um dado
sistema normativo. Por isso, rigorosamente falando, não há limitações
administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a
brilhante observação de Alessi – uma vez que estas simplesmente integram
o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia
normativa dele. Há, isto sim, limitações à liberdade e à propriedade (grifado
114
no original).
O autor enfatiza que “[...] descaberia falar em limitação a direitos,
pois os atos restritivos, legais ou administrativos, nada mais significam senão a
formulação jurídica do âmbito do Direito [...]”.115
112
Como explica Dalmo de Abreu Dallari: “[...] verifica-se que o Estado, como sociedade política, tem
um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam
atingir seus respectivos fins particulares. Assim, pois, pode-se concluir que o fim do Estado é o
bem comum, entendido este como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas
as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da
personalidade humana. Mas se essa finalidade foi atribuída à sociedade humana no seu todo,
não há diferença entre ela e o Estado? Na verdade, existe uma diferença fundamental, que
qualifica a finalidade do Estado: este busca o bem comum de um certo povo, situado em
determinado território. Assim, pois, o desenvolvimento integral da personalidade dos integrantes
desse povo é que deve ser o seu objetivo, o que determina uma concepção particular de bem
comum para cada Estado, em função das peculiaridades de cada povo” (Elementos de teoria
geral do Estado, p. 107).
113
Curso de direito administrativo, p. 818.
114
Ibid, mesma página.
115
Op. cit., p. 820.
50
As limitações, portanto, correspondem ao perfil do direito à liberdade
e à propriedade. Não importam em sacrifício a tais direitos.
Evidentemente, para que sejam legítimas, devem estar de acordo
com os princípios e regras constitucionais.
3.2 Poder de polícia: sentido amplo e sentido estrito
Em que pese aos inconvenientes do uso da expressão “poder de
polícia” para designar a atividade estatal que delineia o âmbito da liberdade e da
propriedade, prevalece, ainda, o referido termo na doutrina.116
Averba Celso Antônio Bandeira de Mello:
A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as
aos interesses coletivos designa-se “poder de polícia“. A expressão, tomada
neste sentido amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo.
Refere-se, pois, ao complexo de medidas do estado que delineia a esfera
juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos [...].
A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito,
relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas,
como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações,
as licenças, as injunções) do Poder Executivo destinadas a alcançar o
mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades
particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais
117
limitada responde à noção de polícia administrativa (grifado no original).
116
Conforme menciona Celso Antônio Bandeira de Mello: “Trata-se de designativo manifestamente
infeliz. Engloba, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de
inconciliável diversidade: leis e atos administrativos; isto é, disposições superiores e providências
subalternas. Já isto seria, como é, fonte das mais lamentáveis e temíveis confusões, pois leva,
algumas vezes, a reconhecer à Administração poderes que seriam inconcebíveis (no Estado de
Direito), dando-lhe uma sobranceria que não possui, por ser imprópria de quem nada mais pode
fazer senão atuar com base em lei que lhe confira os poderes tais ou quais e a serem exercidos
nos termos e forma por ela estabelecidos.
Além disso, a expressão ‘poder de polícia’ traz consigo a evocação de uma época pretérita, a do
‘Estado de Polícia’, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de
prerrogativas dantes existentes em prol do ‘príncipe’ e que se faz comunicar inadvertidamente ao
Poder Executivo. Em suma: raciocina-se como se existisse uma ‘natural’ titularidade de poderes
em prol da Administração e como se dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato
‘poder de polícia’.
[...] Atualmente, na maioria dos países europeus (de que a França é marcante exceção), em
geral, o tema é tratado sob a titulação ‘limitações administrativas à liberdade e à propriedade’, e
não mais sob o rótulo de ‘poder de polícia’ [...].
O certo é que, embora nos pareça uma terminologia indesejável, ela persiste largamente utilizada
entre nós, não se podendo, então, simplesmente desconhecê-la [...]” (grifado no original). Op. cit.,
p. 821.
117
Op. cit., p. 822.
51
Como é possível observar, o poder de polícia, em sentido amplo,
abarca tanto os atos do Legislativo como do Executivo e, em sentido estrito, referese, apenas às intervenções do Executivo.
Cumpre ressaltar que, no Estado de Direito, toda atividade estatal
está submetida ao princípio da legalidade, cujo conteúdo evoluiu ao longo da
História.
Esse modelo de Estado sucedeu, cronologicamente, o denominado
Estado de Polícia e teve início na segunda etapa do Estado Moderno.118
Na primeira etapa, conhecida como Estado de Polícia, a forma de
Governo era a monarquia absoluta.119 Nesta época, não havia limites para a atuação
do monarca. A manutenção da “ordem social” era realizada a partir da leitura que o
Príncipe fizesse dessa expressão, ou seja, a “polícia” realizava-se ao talante das
decisões arbitrárias, como manifestação da força pela força e era sinônimo da
atividade estatal, incluindo tanto as atividades de administrar como as de legislar e
julgar.120
Como explica Luis Manuel Fonseca Pires – valendo-se da expressão
utilizada por Clóvis Beznos - somente “[...] no Estado de Direito, sob a primeira de
suas formas, o Estado Liberal de Direito, que o homem é valorizado como titular de
direitos naturais e a liberdade passa a ser entendida como ‘(...) algo imanente à
condição humana’ “.121
Prossegue o autor:
Recebe o nome de Estado de Direito porque ao Direito foi conferida a
atribuição de assegurar as liberdades individuais. O fundamento deste novel
modelo de Estado – de Direito – encontra-se no direito natural: direitos
inerentes à natureza humana que por isto devem ser respeitados pelo poder
institucionalizado, pois, segundo esta doutrina, tais direitos precedem a
própria existência do estado e são a razão, o fundamento e a finalidade do
ente estatal. O Direito, por esta perspectiva, deve promover a igualdade e
prestigiar a liberdade individual, o que leva a estruturar mecanismos de
contenção do poder do Estado, e desta forma as restrições e
condicionamentos são pertinentes na medida em que apenas visam o bom
122
convívio social [...] (grifado no original).
118
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 17.
Note-se, com base nos ensinamentos da autora, que o Estado Moderno teve início na Europa,
após o Renascimento.
119
Ibid., p. 17-18
120
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 139.
121
Ibid., p. 141.
122
Ibid., p. 141-142.
52
Note-se, ainda, que, neste modelo de Estado, a idéia da vontade do
rei como fonte do Direito foi substituída pela idéia da lei como resultante da vontade
geral. Em outras palavras, o poder só é legítimo quando resultante da lei.
Consagra-se, portanto, o princípio da legalidade sob a idéia de que o único
poder legítimo é o que emana da vontade popular, e por tal se entende a
manifestação da lei como expressão desta vontade que ocorre por
representantes da sociedade os quais congregam sob um órgão estruturado
e intitulado com Poder Legislativo. Por esta ordem de idéias, o Legislativo,
dentro da divisão de poderes, contempla uma primazia em relação às
demais funções públicas (Judiciário e Executivo). Estrutura-se o Estado de
Direito, portanto, sob os princípios da legalidade, da igualdade e da
123
separação de poderes (grifado no original).
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella di Pietro:
Na segunda etapa do Estado Moderno, instaurou-se o chamado Estado de
Direito, estruturado sobe os princípios da legalidade, igualdade e separação
de poderes, todo objetivando assegurar a proteção dos direitos individuais,
não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o
estado. É da mesma época o constitucionalismo, que vê na Constituição um
instrumento de garantia da liberdade do homem, na medida em que impões
124
limites às prerrogativas dos governantes (grifo nosso).
Inseparável dos princípios da legalidade e da igualdade - acrescenta
a autora – é o controle judicial dos atos do poder público, ou de modo mais amplo, o
princípio da justicialidade.125
Como pontos fundamentais da concepção clássica do Estado de
Direito, menciona:
1. o reconhecimento da liberdade dos cidadãos, dotados de direitos
fundamentais, universais, inalienáveis;
2. o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém pode ser afetado em
sua liberdade senão em virtude de lei e que traz, como conseqüência, a
vinculação da Administração Pública à lei;
3. o princípio da justicialidade, que exige a existência de um órgão
independente para decidir os litígios;
4. o princípio da igualdade de todos perante o direito, vedado qualquer tipo
de discriminação;
5. a concepção substancial do direito que, fazendo-o decorrer da natureza
126
do homem, imprime-lhe caráter de justiça (grifado no original).
123
Ibid., p. 142.
Op. cit., p. 20.
125
Op. cit., p. 22.
126
Op. cit., p. 22-23.
124
53
Quanto ao princípio da legalidade, no Estado Liberal de Direito,
embora vinculasse a Administração, esta podia fazer não só o que a lei
expressamente autorizasse, como, também, o que a lei não proibisse.
Se, conforme assinala Manuel Manuel Maria Diez, no Estado Liberal abriuse caminho à tese conhecida pela denominação de “matérias reservadas à
lei”, cuja virtude era reconhecer a antijuridicidade de qualquer forma de
intervenção estatal sobre os direitos individuais de liberdade e de
propriedade acaso não houvesse uma lei formal permitindo esta
possibilidade, por outro lado, acrescentamos que é forçoso reconhecer que
remanescia um campo livre à atuação da Administração Pública: era a
chamada vinculação negativa, que na explanação de Eduardo García de
Enterría e Tomás-Ramon Fernandez, consistia em propugnar a idéia de que
a Administração podia fazer não só o que a lei expressamente autorizava,
mas ainda o que a lei não proibia, e era na seara desta autonomia que se
entendia haver a “discricionariedade” do Poder Público. Não a
discricionariedade no sentido contemporaneamente compreendido como a
possibilidade de proceder a um juízo de conveniência e oportunidade dentro
de parâmetros traçados pela lei, mas como um espaço livre de lei.
Esta “discricionariedade”concebida com tão franca larguesa e sem critérios,
conduzia a Administração a agir isenta de qualquer controle jurisdicional
127
toda vez que não houvesse disposição legal a respeito.
O modelo liberal revelou-se insuficiente, ao longo do tempo,
conduzindo o Estado a rever sua postura de inércia e passar a intervir nas relações
econômicas e sociais, para ajudar os menos favorecidos, dando início ao chamado
Estado Social de Direito, em que a preocupação se desloca da liberdade para a
igualdade.128 Em outras palavras, passou a vigorar a concepção de que o Estado
deveria intervir nas relações econômicas e sociais de modo a garantir a igualdade.
Observa-se que, no Estado Social de Direito, houve o fortalecimento
do Poder Executivo, porque a Administração tornou-se prestadora de serviços.
Como conseqüência do grande volume de atribuições assumidas pelo Estado,
concentrado, sobretudo, nas mãos do Executivo, este passou a ter atribuição
normativa, valendo-se de Decretos-Leis, Leis Delegadas, etc, uma vez que sua
atuação não poderia depender do demorado procedimento legislativo. Além disso,
ao Poder Executivo foi outorgada grande parte da iniciativa das leis.129
Contemporânea à construção do Estado Social de Direito é a
doutrina de Hans Kelsen, cuja teoria pura do direito contribui para reduzir o campo
da discricionariedade, pois enquanto no Estado Liberal era possível à Administração
127
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Op. cit., p. 144-145.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 29.
129
Ibid., p. 31.
128
54
fazer ou deixar de fazer o que a lei não previsse, no Estado Social, a Administração
só pode fazer o que a lei permite.
O princípio da legalidade passa, assim, a apresentar outro sentido,
substituindo-se a doutrina da vinculação negativa pela vinculação positiva da
Administração à lei. A discricionariedade é concebida, então, como um poder
jurídico, uma vez que a razão, os meios e os seus fins devem encontrar fundamento
de validade na lei.130
Se, por um lado, ao submeter toda a atividade da Administração
Pública à lei, o Estado Social de Direito (ou Estado Legal) representa avanço, sob o
aspecto da evolução sofrida pela própria idéia de lei, houve um retrocesso, pois à
medida que o Executivo passou a editar normas, a lei deixou de ser manifestação da
vontade geral do povo e instrumento de garantia dos direitos fundamentais.131
Mas, uma nova fase do Estado de Direito se desenvolve: a do
Estado Social e Democrático de Direito, onde o princípio da legalidade parece
reencontrar o seu prestígio.132
De acordo com as lições de Maria Sylvia Zanella di Pietro:
As conseqüências negativas produzidas pelo positivismo formalista (Estado
Legal) e o insucesso do chamado Estado Social na conquista dos valores
não apregoados pelo liberalismo acabaram por provocar reações no plano
jurídico-constitucional, em que se procuraram introduzir novas concepções
pretensamente mais aptas para produzir a justiça social. Acrescenta-se ao
conteúdo do Estado Social de Direito um elemento novo, que é a
participação popular no processo político, nas decisões de Governo, no
controle da Administração Pública.
Além disso, protesta-se pelo retorno do Estado Legal ao Estado de Direito;
quer-se novamente vincular a lei aos ideais de justiça; pretende-se
submeter o Estado ao Direito, não à lei em sentido puramente formal. Daí
hoje falar-se em Estado Democrático de Direito, que abrange os dois
aspectos: o da participação popular (Estado Democrático) e o da justiça
133
material (Estado de Direito) (grifado no original).
A lei, no Estado de Direito, tem sentido formal, pelo fato de que,
ressalvadas algumas hipóteses, emana do Poder Legislativo, mas, também, sentido
material, à medida que deve realizar os valores consagrados pela Constituição, sob
130
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 150.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 31.
132
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. Op. cit., p.
151-2.
133
Op. cit., p. 40.
131
55
a
forma
de
princípios
fundamentais
(enunciados
no
Título
I
do
texto
134
constitucional).
No mesmo sentido, as lições de José Afonso da Silva:
O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É, também,
por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, [...]
porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e
fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se ao império da lei, mas da lei
que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade,
mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais.
Toda a sua atividade fica sujeita à lei, entendida como expressão da
vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em
que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação
popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição.
É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o
Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem
impor qualquer abstenção nem mandar tampouco proibir nada aos
135
administrados, senão em virtude de lei.
Em decorrência do princípio da legalidade, que, além de radicar na
própria estrutura do Estado de Direito, está previsto expressamente nos arts. 5°, II;
37, caput, e 84, IV, da Constituição Federal, a Administração só pode concretizar
aquilo que já estiver estabelecido na lei, ou seja, não pode impor nenhuma limitação
à liberdade e à propriedade se não houver lei que previamente a autorize.136
Celso Antônio Bandeira de Mello traz o seguinte ensinamento:
Michel Stassinopoulos, em fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de
não poder atuar contra legem ou praeter legem, a Administração só pode
agir secundum legem. Aliás, no mesmo sentido é a observação de Alessi,
ao averbar que a função administrativa se subordina à legislativa não
apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à
Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei
antecipadamente autoriza. Afonso Rodrigues Queiró afirma que a
Administração “é a longa manus do legislador” e que a “atividade
administrativa é atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias
137
legais” (grifado no original).
Consoante a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “[...] o poder de
polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos
individuais em benefício do interesse público”.138 Segundo explica:
O poder de polícia reparte-se entre Legislativo e Executivo. Tomando-se
como pressuposto o princípio da legalidade, que impede à Administração
impor obrigações ou proibições senão em virtude de lei, é evidente que,
quando se diz que o poder de polícia é a faculdade de limitar o exercício de
134
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 43.
Curso de direito constitucional positivo, p. 420.
136
Curso de direito administrativo, p. 102.
137
Ibid., p. 101.
138
Direito administrativo, p. 108.
135
56
direitos individuais, está-se pressupondo que essa limitação seja prevista
em lei.
O Poder Legislativo, no exercício do poder de polícia que incumbe ao
Estado, cria, por lei, as chamadas limitações administrativas ao exercício
das liberdades públicas.
A Administração Pública, no exercício da parcela que lhe é outorgada do
mesmo poder, regulamenta as leis e controla a sua aplicação,
preventivamente (por meio de ordens, notificações, licenças ou
autorizações) ou repressivamente (mediante imposição de medidas
139
coercitivas).
No caso, por exemplo, do Programa de Redução ao Trânsito de
Veículos Automotores no Município de São Paulo - popularmente conhecido como
“rodízio de veículos” - criado pela Lei n° 12.490/9 7 e regulamentado pelo Decreto n°
37.085/97 - o Estado, através do exercício de seu poder de polícia, limitou a
circulação de veículos em determinadas vias públicas e em certos dias e horários,
com o objetivo de melhorar as condições do trânsito.
Note-se, portanto, que essa atividade estatal, por se tratar de
exercício do poder de polícia, não implica em violação ao direito de circulação das
pessoas, mas apenas limita o exercício desse direito individual em prol da realização
de um interesse público, como, inclusive, já pronunciou o Superior Tribunal de
Justiça. 140
Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em
vários julgados, afastou a inconstitucionalidade da referida lei municipal e respectivo
decreto que regulamentou os “rodízios”, entendendo não haver ofensa ao direito de
ir e vir das pessoas.141
139
Ibid, mesma página.
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. LEI MUNICIPAL.
PROGRAMA DE RESTRIÇÃO AO TRÂNSITO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES (RODÍZIO
MUNICIPAL). DECADÊNCIA. TERMO INICIAL DO PRAZO PREVISTO NO ART. 18, DA LEI Nº
1.533/51. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
NECESSÁRIA DILAÇÃO PROBATÓRIA.
[...]
4. Nada obstante, e apenas obiter dictum, há de se considerar que, no caso sub examine, a
atividade engendrada pelo Estado atinente à implementação do programa de restrição ao trânsito
de veículos automotores no Município de São Paulo, cognominado de rodízio", insere-se na
conceituação de Poder de Polícia, que, consoante cediço, é a atividade engendrada pelo Estado
com vistas a coibir ou limitar o exercício dos direitos individuais em prol do interesse público [...]”
(RMS n° 19.820 – SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 09.10.2 007).
141
Ap. 178.419-5/5-00, 6ª Câmara de Direito Público, TJSP, rel. Des. Afonso Faro, j. 01-12-2003; Ap.
89.195-5/8, Primeira Câmara de Direito Público de Férias, TJSP, rel. Des. Luis Ganzerla, j.
23.11.99, entre outras.
140
57
Importante frisar que “não existe qualquer incompatibilidade entre os
direitos individuais e os limites opostos pelo poder de polícia do Estado [...]”.142
Nas palavras de Themístocles Brandão Cavalvanti, o poder de
polícia “constitui um meio de assegurar os direitos individuais porventura ameaçados
pelo exercício ilimitado, sem disciplina normativa dos direitos individuais por parte de
todos”. Trata-se de “limitação à liberdade individual mas tem por fim assegurar esta
própria liberdade e os direitos essenciais ao homem”.143
Por oportuno, merece destaque, também, o pensamento de Clóvis
Beznos, no sentido de que tanto a atividade legislativa que estabelece o perfil dos
direitos assegurados no sistema, quanto a atividade de polícia administrativa,
constituem elementos entrópicos negativos do sistema jurídico, ou seja, necessários
à própria sobrevivência do sistema.144
No que tange, à polícia administrativa, que se manifesta tanto por
atos normativos e de alcance geral – como os regulamentos – quanto por atos
concretos e específicos, seu fundamento repousa na supremacia geral da
Administração. Como explica Celso Antônio Bandeira de Mello:
O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que
resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. É a
contraface de seu dever de dar execução a estas leis. Para cumpri-lo não
pode se passar de exercer autoridade – nos termos destas mesmas leis –
indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império
145
destas leis. Daí a “supremacia geral” que lhe cabe (grifado no original).
É o que Luis Manuel Fonseca Pires considera como fundamento
jurídico das limitações. O fundamento político o autor imputa à necessidade de
conformar as normas que restringem a liberdade e a propriedade à realização do
interesse público.146
Lúcia Valle Figueiredo, por sua vez, menciona que “[...] o
fundamento jurídico-constitucional das limitações administrativas consiste na
necessidade de conformar a liberdade e a propriedade, nos termos dos vetores
142
Ibid, p. 105.
Tratado de direito administrativo. São Paulo-Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, t. 3, p. 6-7 apud
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 105.
144
Poder de polícia, p. 71. O autor, tomando por base os ensinamentos de Tércio Sampaio, Ferraz,
aduz o seguinte: “[...] todo sistema é dotado de entropia negativa. De fato, todo sistema vivo tende
à sua desintegração. É essa a ordem natural das coisas. Daí a luta do sistema por sua
sobrevivência, isto é, todo sistema vivo deve ser dotado de uma capacidade de fugir da morte, sob
pena de sua extinção. Entropia negativa é, portanto, a luta pela sobrevivência do sistema” (p. 66).
145
Curso de direito administrativo, p. 823.
146
Op. cit., p. 177.
143
58
constitucionais”.147 Segundo afirma, ”as limitações à liberdade e à propriedade
somente irão se justificar se e na medida em que os direitos coletivos e difusos –
também enumerados no texto constitucional, bem como o interesse público primário
– postulem”.148
3.1 Limitações e sistema jurídico constitucional
Notoriamente, a Constituição é a lei suprema do Estado. Infere-se da
teoria de Hans Kelsen, que ela constitui o fundamento de validade de toda ordem
jurídica. 149
De acordo com o conceito formulado por Konrad Hesse:
A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela
determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade
política e tarefas estatais ser exercidas. Ela regula procedimentos de
vencimento de conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a
organização e o procedimento da formação da unidade política e da
atividade estatal. Ela cria bases e normaliza traços fundamentais da ordem
150
total jurídica [...].
Acresça-se, ainda, que todas as normas constitucionais são
vinculativas e obrigatórias, ou seja, “não há, numa Constituição, cláusulas a que se
deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm
força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus
órgãos.151 É o que se denomina força normativa da Constituição, cuja importância
merece destaque:
Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX
foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superouse, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado,
no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente
político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de
suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de
conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao
147
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p. 307.
Op. cit., p. 305.
149
Segundo Kelsen: “[...] A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no
mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes
camadas ou níveis de norma jurídica. A sua unidade é produto da conexão de dependência que
resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se
apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por
diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental
hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade
desta interconexão criadora (Teoria pura do direito, p. 247).
150
Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha, p. 37.
151
Ruy Barbosa, Comentários à Constituição Federal brasileira, v. 2, p. 489 apud José Afonso da
Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 75.
148
59
Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do
conteúdo da Constituição
[...] Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o
reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório
de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de
imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua
inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de
152
cumprimento forçado.
Luís Roberto Barroso sustenta, ainda, a idéia de constitucionalização
do Direito, no sentido de que o conteúdo material e axiológico das normas
constitucionais se irradia, com força normativa por todo o sistema jurídico. Segundo
afirma:
Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos
princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o
sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a
constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e
153
notadamente nas suas relações com os particulares [...].
Ressalta Agustin Gordillo que a Constituição é “[...] ordem jurídica
imperativa tanto para o Estado como para os habitantes” (grifado no original).154
Segundo explica:
[...] A Constituição oferece um certo equilíbrio das atribuições que outorga:
por um lado reconhece algumas atribuições ao Estado porém, por outro
lado, admite certos direitos inalteráveis dos indivíduos. Nem uma e nem
outros podem ter supremacia: ambos devem harmonizar-se mutuamente
155
dentro dos lindes da ordem jurídica constitucional [...].
Por tais razões, o autor infere que os direitos individuais preexistem
às leis e aos atos administrativos, de maneira que: “As leis poderão regular os
direitos dos indivíduos fixando seus alcances e limites; porém, ainda que nenhuma
lei seja ditada, o direito individual existe não obstante por império da
Constituição”.156
Seguindo este raciocínio, o direito individual mantém sua vigência
ainda que eventual lei ou ato administrativo pretendam negá-lo, cumprindo aos
juízes declarar a inconstitucionalidade destes. Infere Gordillo:
152
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio
do Direito Constitucional no Brasil, p. 03-04. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 22 ago. 2010.
153
Ibid., p. 07.
154
Princípios gerais de direito público, p. 66.
155
Ibid,mesma página.
156
Ibid., mesma página.
60
Por isso é possível afirmar que as normas constitucionais, e em particular
aquelas que estabelecem os direitos dos indivíduos frente ao Estado, são
imperativas e devem ser aplicadas tanto se não há lei que as reforcem,
como existindo uma lei que pretenda negá-las; vale dizer, existem e devem
ser aplicadas tanto com, contra ou sem a lei. São, pois, absolutamente
independentes da vontade dos órgãos do estado precisamente porque elas
157
integram uma ordem jurídica constitucional superior ao Estado.
A Constituição de 1988, em seu art. 5°, II, estabel ece:
Art. 5° [...]
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei;
Depreende-se, por conseguinte, que a Constituição outorgou ao
legislador ordinário competência para dizer aquilo que se pode ou não fazer, dentro
dos limites nela estabelecidos. É dizer: a Constituição admite que as leis possam
traçar o perfil dos direitos individuais, fixando os limites de tais direitos, mas
direciona a atividade legislativa ao alcance das finalidades de interesse público, que
são ditadas pelo próprio texto constitucional.
A propósito, vale lembrar:
O princípio de supremacia do interesse público sobre o privado não significa
que interesses particulares juridicamente protegidos possam ser
postergados com a mera invocação do que convém à maioria, à sociedade.
A Constituição e as leis é que, num Estado democrático conformam a
liberdade e a propriedade, do que resultam o direito de liberdade e o direito
de propriedade. Segue-se que quando se fala em supremacia do interesse
público sobre o interesse privado, quer-se dizer supremacia, prevalência
nos termos em que estabelecido pelo ordenamento jurídico (grifado no
158
original).
No mesmo sentido, manifesta-se Clóvis Beznos:
É claro pois, que a necessidade de sobrevivência do sistema jurídico, impõe
uma limitação a toda atuação humana, que lhe seja atentatória. Tal
limitação, entretanto, não implica em sacrificar-se direito, pois os direitos
159
albergados no sistema são tais como o sistema os concebe [...]” .
Luis Manuel Fonseca Pires fala em “limites” às limitações, para
realçar que estas devem estar de acordo com os princípios e regras
constitucionais160.
Frise-se, portanto, que é na Constituição que devemos encontrar o
fundamento de validade de toda limitação à liberdade e à propriedade.
157
Ibid, p. 67-68.
Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO,
Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 18.
159
Poder de polícia, p. 68.
160
Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p.248.
158
61
4. Limitações à circulação de veículos
4.1 Limitações à liberdade de trânsito e tráfego
Quando se fala em limitar a circulação de veículos nas vias, como
atividade do Poder Público direcionada ao aprimoramento das condições de
circulação de pessoas e bens nas cidades, está se referindo àquela atividade estatal
de condicionar a liberdade e a propriedade individual em favor do interesse público.
Por se tratar de atividade afeta à otimização de uma das funções
sociais da cidade, constitui um importante instrumento de atuação urbanística a ser
utilizado no âmbito da política urbana.
Conforme se verifica, as limitações à circulação de veículos,
enquanto limitações de direito urbanístico, compartilham com o direito administrativo
das noções de limitação à liberdade e à propriedade, o que - na linha defendida pelo
pensamento de Márcio Cammarosano161 - denota, evidentemente, as interfaces
entre esses dois ramos do direito público. No mesmo sentido, José Afonso da Silva
manifesta que: “[...] o poder de polícia, relevante instituição do direito administrativo,
ainda é um meio fundamental para a atuação urbanística [...]”162.
As limitações à circulação de veículos sobre determinadas áreas das
cidades recaem sobre o uso das vias, que são bens de uso comum do povo. Como
dizem respeito ao uso, que está ligado à idéia de atuação humana, tais limitações
relacionam-se à liberdade das pessoas, mais especificamente: à liberdade de
trânsito e tráfego.163
Consoante as lições de Hely Lopes Meirelles:
[...] trânsito é o deslocamento de pessoas ou coisas (veículos ou animais)
pelas vias de circulação; tráfego é o deslocamento de pessoas ou coisas
pelas vias de circulação em missão de transporte. Assim, um caminhão
vazio quando se desloca por uma rodovia está em trânsito; quando se
164
desloca transportando mercadoria está em tráfego [...].
161
CAMMAROSANO, Márcio. Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS,
Clovis; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 16.
162
Direito urbanístico brasileiro, p. 48.
163
Note-se que, quando se fala em limitação à propriedade, na verdade, o que se limita é o uso do
bem objeto de propriedade e que esse uso diz respeito à ação humana, é possível afirmar que, em
rigor, toda limitação é à liberdade.
164
Direito municipal brasileiro, p. 453.
62
Em acatamento ao princípio da legalidade, somente a lei pode limitar
a atuação humana. Significa, portanto, que deve haver lei específica para quaisquer
limitações à liberdade de trânsito e tráfego que o Poder Público pretenda impor.
4.2 Competência legislativa sobre trânsito e tráfego
O trânsito e o tráfego, conforme ensina Hely Lopes Meirelles,
admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal:
De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobe os
assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete
regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu
território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu
interesse local (CF, art. 30, I e V). O art. 24 do CTB elenca as várias
competências municipais nos incisos I-XXI [...]
O tráfego sujeita-se aos mesmos princípios enunciados para o trânsito no
que concerne à competência para sua regulamentação: cabe à União
legislar sobre o tráfego interestadual; cabe ao Estado-membro prover sobre
o tráfego regional; e compete ao Município dispor sobre o tráfego local,
especialmente o urbano.
E assim é na generalidade das nações civilizadas, que reconhecem às
comunidades locais o direito-dever de zelar pala circulação e pelo
transporte em seu território, preservando seu sistema viário – urbano e rural
– contra o congestionamento do trânsito e os excessos do tráfego [...]
165
(grifado no original).
Depreende-se, portanto, que a competência do Município para
disciplinar o trânsito e o tráfego local deflui do art. 30, I, da Constituição Federal, e
abarca os assuntos que se subsumem no conceito de interesse local, nos aspectos
relativos ao uso das vias públicas.166
Conforme dispõe art. 1°, § 1°, da Lei n ° 9.503/97,
que instituiu o
Código de Trânsito Brasileiro:
165
166
Op. cit., p. 454-456.
A esse respeito, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal: “CONSTITUCIONAL. MUNICÍPIO:
COMPETÊNCIA: IMPOSIÇÃO DE MULTAS: VEÍCULOS ESTACIONADOS SOBRE CALÇADAS,
MEIOS- FIOS, PASSEIOS, CANTEIROS E ÁREAS AJARDINADAS. Lei nº 10.328/87, do
Município de São Paulo, SP. I. - Competência do Município para proibir o estacionamento de
veículos sobre calçadas, meios-fios, passeios, canteiros e áreas ajardinadas, impondo multas aos
infratores. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. Exercício de competência própria"
CF/67, art. 15, II, CF/88, art. 30, I "que reflete exercício do poder de polícia do Município. II. Agravo não provido.” (RE-AgR 191.363, Min. Carlos Velloso, j. 11.12.1998).
“CABE AO MUNICÍPIO REGULAR A UTILIZAÇÃO DAS VIAS PUBLICAS DENTRO DE SUA
ÁREA TERRITORIAL DE VEICULOS, INCLUSIVE DE LINHAS INTER-ESTADUAIS E
INTERNACIONAIS, DESDE QUE, EM RELAÇÃO A ESTAS, NÃO PROCEDA COM ABUSO DE
PODER, DE MODO A IMPOSSIBILITAR OU EMBARACAR ATIVIDADES REGULADAS PELOS
PODERES ESTADUAIS E FEDERAIS.” (RMS 9.190, Min. Victor Nunes, j. 22.1.1962).
63
Art.1° [...]
§ 1° Considera-se trânsito a utilização das vias po r pessoas, veículos e
animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação,
parada, estacionamento e operação de carga e descarga.
Em seu art. 24, II, assim, estabelece:
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos
Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
[...]
II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de
pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da
segurança de ciclistas;
Veja-se, portanto, que o trânsito da cidade é matéria municipal e
nela se inclui a competência do Município para disciplinar a circulação de veículos e
suas restrições em seu território.
Como afirma Hely Lopes Meirelles:
[...] compete ao Município regulamentar o uso das vias sob sua jurisdição;
conceder, autorizar ou permitir exploração de serviço de transporte coletivo
para as linhas municipais; regulamentar o serviço de automóvel de aluguel
(táxi); determinar o uso de taxímetro nos automóveis de aluguel; limitar o
número de automóveis de aluguel. Essa enumeração é meramente
exemplificativa, pois pode ser acrescida de outros assuntos não
enumerados mas que se enquadrem no interesse local do Município, que é
o atributo constitucional indicativo de sua competência. Na competência do
Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias
urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas
e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais
167
que afetar a vida da cidade (grifo nosso).
Impende verificar, ainda, se o trânsito e o tráfego constituem
matérias de iniciativa privativa do Poder Executivo. Alguns esclarecimentos, no
entanto, fazem-se necessários.
A respeito do que se entende por iniciativa legislativa, João
Jampaulo Júnior afirma que “[...] é um poder ou faculdade que se atribui a alguém ou
a algum órgão, para apresentar projetos de lei ao Poder Legislativo. Esse poder ou
faculdade concedida caracteriza o seu destinatário como o titular da iniciativa”
(grifado no original).168
Com base nas explicações trazidas pelo autor, a iniciativa que
compete a mais de uma pessoa ou órgão denomina-se concorrente ou geral. Essa
167
168
Ibid., p. 456.
O processo legislativo municipal, p. 79.
64
modalidade é a regra e se aplica tanto ao processo legislativo estadual como o
municipal.169
No caso dos Municípios, a iniciativa concorrente:
[...] é a que compete a qualquer Vereador, à Mesa ou Comissão da Câmara,
ao Prefeito, ou, ainda, à população, na forma e nos casos previstos na Lei
Orgânica de cada Município, obedecendo-se ao que dispõe o art. 61 da
Constituição Federal. São ainda de iniciativa concorrente todas as demais
que a Constituição Federal e a Lei Orgânica Municipal não reservaram
exclusivamente ao Executivo, excetuando-se os projetos de resolução
(efeitos internos) e de decretos legislativos (efeitos externos), que são de
iniciativa privativa das Câmaras de Vereadores, não sujeitas a sanção e
veto do Executivo. São exemplos de iniciativa concorrente: lei que delimita o
perímetro urbano; projetos de lei que alterem o Plano Diretor; projetos de lei
170
sobre matéria tributária (grifado no original).
Por seu turno, a iniciativa privativa (exclusiva ou reservada) é a
exceção:
[...] Tal é conferida a apenas um órgão, agente ou pessoa, ou seja, é a que
cabe exclusivamente a um titular, seja o Prefeito, seja a Câmara. As
matérias de iniciativa privativa do Chefe do Executivo são aquelas que a
Constituição da República reserva exclusivamente ao Presidente da
República, e que por simetria e exclusão aplica-se ao Prefeito Municipal.
171
Encontram-se elencadas nas alienas do inciso II do § 1° do art. 61 da CF.
Sustenta Hely Lopes Meirelles:
[...] As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1°, e 165 da CF, as que s e inserem no âmbito da
competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como
chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação,
estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração
Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de
execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou
empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do
Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores públicos
municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as
diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e
especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à
172
Câmara, na forma regimental.
Cumpre ressaltar que as regras que dispõem sobre a iniciativa
privativa não se presumem e tampouco comportam interpretação extensiva, vale
dizer, o rol estabelecido no art. 61, §1°, da Const ituição Federal, é taxativo, pois, do
contrário, implicaria violação do princípio da independência e harmonia entre os
poderes.
169
O processo legislativo, p. 93.
JAMPAULO JÚNIOR, João. O processo legislativo municipal, p. 79-80.
171
Ibid, p. 81.
172
Op. cit., p. 620.
170
65
Observando-se o referido artigo constitucional, que trata da iniciativa
privativa das leis pelo Presidente da República, infere-se que, em nenhum dos casos
está o trânsito e o tráfego. Logo, ante os ensinamentos trazidos a lume, por simetria
e exclusão, a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre tais matérias não é
privativa do Prefeito.
Sendo assim, na hipótese da Câmara Municipal identificar a
necessidade de limitar a circulação de veículos em determinadas regiões da cidade,
ante a inércia do Poder executivo, entende-se que nada lhe impede de apresentar
um projeto de lei dispondo a esse respeito.
Entretanto, a questão não é pacífica e, na jurisprudência, verifica-se
tendência em sentido contrário, ou seja, julgados atribuindo competência privativa ao
chefe do Poder Executivo do Município para matérias que versem sobre o trânsito e
o tráfego local.173
Tendo em vista os princípios do planejamento e da gestão
democrática das cidades, o ideal, certamente, é que a lei que imponha a medida
restritiva esteja baseada em um plano. Neste sentido, pronuncia-se Daniela Libório:
[...] mesmo que a Constituição Federal não tenha deixado clara a vinculação
da elaboração de leis urbanas específicas com a existência de um Plano
Diretor, o desenvolvimento urbano adequado e harmônico, compatível com
as necessidades dos habitantes locais, só será plenamente atingido se
houver um diagnóstico da realidade, aliado à participação popular, que
deverá definir as prioridades na cidade. E o resultado da compatibilização
de todos os interesses deverá estar transcrito em um plano urbanístico.
173
“ADIN - LEI MUNICIPAL QUE PROÍBE A CIRCULAÇÃO DE VEÍCULOS DE CARGA EM
CORREDORES DE TRÂNSITO E A CARGA DE BENS E MERCADORIA NO HIPERCENTRO DA
CIDADE DE BELO HORIZONTE - INICIATIVA DE VEREADOR E PROMULGAÇÃO PELO
PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES, APÓS DERRUBAR O VETO DO EXECUTIVO INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI. Resulta inconstitucional Lei que versa sobre matéria
pertinente à área administrativa e já regulada pela Lei Federal nº 9.503/97 - CTB - art. 63 e 24, II,
se tal Lei resultou de projeto de iniciativa de Vereador e da promulgação pelo Presidente da
Câmara Municipal, após rejeitar veto do PREFEITO MUNICIPAL, caracterizando inversão de
competência. Inconstitucionalidade que se declara, suspendendo-lhe a eficácia” (ADIn n°
1.0000.00.313096-0/000/Belo Horizonte, TJMG, Rel. Des. Orlando Carvalho, j. 26.11.03).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 1.703/2007,
PROVENIENTE DO MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO/RS, QUE AUTORIZA O FECHAMENTO
DE RUAS RESIDENCIAIS SEM SAÍDA, IMPOSSIBILITANDO O TRÁFEGO DE VEÍCULOS
ESTRANHOS AOS MORADORES. VÍCIO DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO LOCAL. Lei de
iniciativa da Câmara de Vereadores não poderia dispor sobre o fechamento de ruas residenciais
sem saída, inviabilizando o tráfego de veículos estranhos aos moradores. Embora não se esteja
diante da hipótese de incidência da regra contida no inc. XI, do art. 22 da Constituição da
República, sendo matéria de interesse local, é evidente a competência exclusiva do Poder
Executivo para estabelecer diretrizes sobre o crescimento e dispersão do Município. Vício de
iniciativa constatado. Afronta aos arts. 8º, 10 e 82, VII, da Constituição Estadual. AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME”. (ADIN nº
70026580266/Novo Hamburgo, Tribunal Pleno, TJRS, Rel. Des. José Aquino Flores de Camargo,
j. 17.08.09)
66
Elaborar leis de cunho urbanístico, estando estas dissociadas deste
processo, não contribuirá, em nada, para o equilíbrio do desenvolvimento
174
urbano.
O pensamento da autora ilustra de maneira satisfatória a importância
dos planos para a consecução dos objetivos da atividade urbanística. O plano de
mobilidade urbana, tal como previsto no projeto de lei n° 1.687/2007, certamente,
contribui para uma atuação urbanística mais eficaz.
Todavia, é preciso ressalvar que as limitações a circulação de
veículos não estão condicionadas à existência prévia de um plano. Vale dizer, ainda
que não haja plano anterior, inexiste norma impeditiva da elaboração de eventual lei
que restrinja a circulação de veículos, que pode ser de iniciativa tanto do Prefeito,
como da Câmara de Vereadores, ou, ainda, dos cidadãos, na forma e nos casos
previstos na Lei Orgânica de cada Município, obedecendo-se ao que dispõe o art. 61
da Lei Maior.
4.3 O que pode ser objeto de ato infralegal
A Constituição, haja vista o princípio da legalidade, veda a edição de
atos infralegais que criem obrigações ou estabeleçam proibições aos administrados.
Com efeito, o princípio da legalidade permeia todas as limitações e
figura no texto constitucional como uma garantia dos administrados, ao condicionar
a disciplina das limitações à lei.
Tomando por base o a redação do seu art. 5°, II, Ce lso Antônio
Bandeira de Mello adverte que o “[...] o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’,
‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor
obrigações aos administrados” (grifado no original).175
O autor enfatiza a supremacia da lei sobre o regulamento, o que
implica que este ato não pode contrariar a lei e a esta se subordina. Além disso,
repisando a assertiva de O. A. Bandeira de Mello, adverte que só a lei pode inovar
originariamente na ordem jurídica.176
174
Elementos de direito urbanístico, p. 66.
Curso de direito administrativo, p. 344-345.
176
Ibid., p. 344.
175
67
Explica, ainda, que, no Brasil – nos termos do art. 84, I, da CF -a
função regulamentar restringe-se à produção de regulamentos para “fiel execução”
da lei os quais a doutrina estrangeira denomina “executivos”.177
E mais: conjugando o art. 37, que submete a Administração ao
princípio da legalidade com os indigitados artigos 5°, II e 84, I, da Lei Maior, infere
que “[...] a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão
legal que lhe faculte ou imponha o dever de atuar”. E, por isso, o regulamento, além
de ato inferior, subordinado, é dependente de lei.178
Tendo em vista que o decreto é o meio através do qual são
expedidos os regulamentos, depreende-se que ele tem como objetivo minudenciar
as disposições da lei de modo a facilitar sua execução. No entanto, de forma
alguma, pode aumentar ou reduzir o conteúdo da lei, e tampouco inovar matéria que
não foi por ela prevista.
Assim, aos decretos regulamentares, que são de competência de
chefes de Executivo, é defeso criar limitações diversas das que foram estabelecidas
previamente na lei regulamentada.
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele
específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam
estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há
inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito,
dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não
estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação
não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se
reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus
pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.
É, pois, à lei, e não ao regulamento, que compete indicar as condições de
aquisição ou restrição de direito. Ao regulamento só pode assistir, à vista
das condições preestabelecidas, a especificação delas. E esta
especificação tem que se conter no interior do conteúdo significativo das
palavras legais enunciadoras do teor do direito ou restrição e do teor das
condições a serem preenchidas. Deveras, disciplinar certa matéria não é
conferir a outrem o poder discipliná-la. Fora isto possível, e a segurança de
que “ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei” deixaria de se constituir em proteção constitucional.
Em suma: não mais haveria a garantia constitucional aludida, pois os
ditames ali insculpidos teriam sua valia condicionada às decisões
infraconstitucionais, isto é, às que resultassem do querer do legislador
ordinário
É dizer: se à lei fosse dado dispor que o Executivo disciplinaria, por
regulamento, tal ou qual liberdade, o ditame assecuratório de que “ninguém
177
178
Ibid., p. 345.
Ibid., p. 346-347.
68
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei” perderia o caráter de garantia constitucional, pois o administrado seria
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa ora em virtude de
regulamento, ora de lei, ao líbito do Legislativo, isto é, conforme o legislador
ordinário entendesse de decidir. É óbvio, entretanto, que, em tal caso, este
último estaria se sobrepondo ao constituinte e subvertendo a hierarquia
entre Constituição e lei, evento juridicamente inadminssível em regime de
179
Constituição rígida (grifado no original).
Acresça-se, ainda, que não só o decreto regulamentar, mas
qualquer ato através do qual a Administração exerce seu poder normativo – sejam
resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o
Chefe do Executivo – não pode contrariar a lei, nem criar direitos, impor obrigações,
proibições, penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao
princípio da legalidade.180
Ratifica Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os
limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de
instruções, portarias, regimentos ou normas quejandas. Desatendê-los
implica inconstitucionalidade. A regra geral contida no art. 68 da Carta
Magna, da qual é procedente inferir vedação a delegação ostensiva ou
disfarçada de poderes legislativos ao Executivo, incide e com maior
evidência quando a delegação se faz em prol de entidades ou órgãos
administrativos sediados em posição jurídica inferior à do Presidente e que
181
se vão manifestar, portanto, mediante atos de qualificação menor.
Nada obstante, não raras vezes, o Executivo baixa normas
infralegais criando limitações, em profundo descaso com esse princípio basilar do
Estado Democrático de Direito.
Cite-se, por exemplo, a Portaria n° 58/09 – SMT.GAB , de
27/07/2009, que limitou a área de circulação de ônibus fretados na região central do
município de São Paulo.
Para dar cumprimento ao art. 47, da Lei n° 14.933/0 9,182 o Poder
Executivo, por meio da Secretaria Municipal de Transportes, criou a referida portaria,
que organizou o trânsito dos ônibus fretados em duas áreas distintas (Zona de
Máxima Restrição de Fretamento – ZMRF - e Área Livre) e passou a exigir, dentre
179
Op. cit., p. 355-356.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, p. 85.
181
Op. cit., p. 370.
182
Lei que institui a Política de Mudança do Clima no Município de São Paulo. Reza o seu art. 47: “O
Poder Público Municipal estabelecerá, por lei específica, no prazo de 60 dias, as regras gerais de
circulação, parada e estacionamento de ônibus fretados, bem como a definição de bolsões de
estacionamento para este modal.
Parágrafo único. O Poder Executivo implementará as medidas de sua competência até a edição da
lei específica de que trata o ‘caput’ deste artigo”.
180
69
outras regras, "Autorização Especial de Trânsito" para as operadoras que realizam o
transporte rotineiro de passageiros circularem na denominada ZMRF, no período
das 05h00 às 21h00, de 2ª a 6ª feira.
Como condições para obterem essa autorização as operadoras,
além de cumprirem as exigências quanto à regularidade dos veículos, são obrigadas
a apresentar um “Plano de Operação”, que deve prever o local de embarque e
desembarque dos passageiros, conter a relação completa dos usuários do serviço
de fretamento, bem como indicar a origem, destino e itinerário da viagem, para
estudo do impacto viário.
Evidentemente, à luz do princípio da legalidade, tais regras não
poderiam ter sido veiculadas mediante portaria - ato administrativo que não pode
inovar o ordenamento jurídico - e, por conseguinte, padece de vício formal.
Vários sindicatos das empresas de transporte de passageiros por
fretamento e para turismo se uniram e propuseram ação cautelar contra a aplicação
das disposições contidas na portaria e chegaram a obter uma liminar que lhes
assegurava o direito de circulação na cidade, sem as restrições e sanções por ela
impostas.
Dentre os argumentos que embasaram o deferimento da medida,
destaca-se:
É certo que o fretamento está sujeito à regulamentação e prévia autorização
do Poder Público, que tem o dever de impedir abusos e evitar prejuízos à
população, porém, as medidas necessárias que podem ser implementadas
pelo Executivo não se confundem com a criação de obrigações ou
restrições à liberdade e atividades dos indivíduos, sob pena de ofensa ao
183
princípio da legalidade.
No entanto, a liminar foi suspensa por decisão do Tribunal de Justiça
de São Paulo e, posteriormente, extinto o processo, sob o argumento de que a
portaria foi convertida na Lei n° 14.971, de 25 de agosto de 2009 e, por isso, houve
perda do objeto da ação.184
183
Cf. notícia disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-jul-31/juiza-libera-onibus-fretadoscircular-todas-areas-sp>. Acesso em: 31 jul. 2009.
184
O processo encontra-se em grau de recurso. Informações disponíveis em
<http://esaj.tj.sp.gov.br/cpo/pg/show.do?processo.foro=53&processo.codigo=1H0000ZZX0000&cdF
oro=53&cdComarca=-1>. Acesso em: 20 ago. 2010 (Processo n° 053.09.026295-9 – Medida
Cautelar - 9ª Vara da Fazenda Pública, juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti). Com relação à
Lei n° 14.971/09, cumpre anotar que ela é objeto de ação direta de inconstitucionalidade n°
990.10.103736-0 - TJSP, ainda em curso.
70
É evidente que os problemas de trânsito desafiam as Administrações
locais e é comum medidas restritivas suscitarem conflitos. No caso da Portaria n°
58/09, as primeiras semanas, após sua entrada em vigor, foram marcadas por uma
série de manifestações.
Segundo a Prefeitura, a portaria foi criada com o objetivo organizar
a circulação dos veículos fretados, para oferecer maior conforto aos passageiros e
maior fluidez ao trânsito.185 Todavia, cumpre ressaltar que por mais louvável que
tenha sido a iniciativa governamental, quando editou a referida portaria, não o fez de
acordo com o que reza o ordenamento jurídico.
Com efeito, “o Brasil, Estado Democrático de Direito, sob a forma
federativa, com governo republicano e sistema presidencial, tem na supremacia da
Constituição e no princípio da legalidade suas balizas impostergáveis”.186
Retomando-se as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] é livre de qualquer dúvida ou entredúvida que, entre nós, por força dos
arts. 5º, II, 84, IV e 37 da Constituição, só por lei se regula liberdade e
propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer e não fazer. Vale
dizer: restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se
não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma
lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir
187
decretos e regulamentos (grifado no original).
A ordem jurídica em vigor, sem sombra de dúvidas, não tolera a
imposição de qualquer medida restritiva à circulação de veículos que não esteja
previamente delineada em lei.
4.4 A razoabilidade e a proporcionalidade das limitações
A origem e o desenvolvimento do princípio da razoabilidade estão
ligados à garantia do devido processo legal, que remonta à cláusula law of the land,
inscrita na Carta Magna de 1215.
O devido processo legal, por sua vez, relaciona-se à idéia de
controle do poder estatal, no sentido de que o Estado não pode impor restrições aos
bens individuais de maneira arbitrária.
185
Prefeitura anuncia portaria que organiza circulação de ônibus fretados. Disponível em:
<http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=30504>.
186
Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO,
Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 12.
187
Curso de direito administrativo, p. 349.
71
Na sua origem, foi concebido como uma garantia meramente
processual, ou seja, assegurava tão apenas a observância de ritos procedimentais
previstos em lei.
Em momento posterior, passou a estar relacionado à idéia de justiça,
tornando-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, possibilitando
o controle do arbítrio do legislativo e da discricionariedade da Administração.
O princípio da razoabilidade decorre, justamente, dessa dimensão
substantiva do devido processo legal, que, nas palavras de Luís Roberto Barroso:
“[...] enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador
e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins [...]”.188
Mais adiante, observa o autor:
A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente far-se-á
diante de certas circunstâncias concretas; será destinada à realização de
determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados meios.
Desse modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante
para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os
meios. Alem disso, há de se tomar em conta, também, os valores
fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a
ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A
razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver
189
entre esses elementos.
Essa
razoabilidade
-
explica
Barroso
-
deve
ser
aferida,
primeiramente, dentro da lei, buscando identificar uma relação racional e
proporcional entre os motivos, meios e fins da norma. É o que ele denomina
razoabilidade interna e ilustra com a seguinte situaação:
[...] se, diante de um surto inflacionário (motivo), o Poder Público congela o
preço dos medicamentos vitais para certos doentes crônicos (meio) para
assegurar que pessoas de baixa renda tenham acesso a eles (fim), há uma
relação racional e razoável entre os elementos em questão, e a norma, em
princípio, afigura-se válida. Ao revés, se, diante do crescimento estatístico
da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoólicas
durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cidadãos (fim), a
medida será irrazoável. Isso porque estará rompida a conexão entre os
motivos, os meios e os fins, já que inexiste qualquer relação direta entre o
190
consumo de álcool e a contaminação.
Percebe-se que esta última hipótese – relacionada a uma limitação
administrativa - é facilmente apreendida como desarrazoada pelo próprio senso
comum. Por isso é correta a afirmação no sentido de que: “Não há grande novidade
188
Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora, p. 220.
189
Ibid., p. 226.
190
Ibid., mesma página
72
no conceito jurídico de ‘razoabilidade’, que corresponde ao sentido usual desse
vocábulo. A novidade está na crescente utilização que se vem fazendo desse
princípio” (grifado no original).191
Como explica Maria Paula Dallari Bucci:
O princípio da razoabilidade, na origem, mais que um princípio jurídico, é
uma diretriz de senso comum ou, mais exatamente, de bom senso, aplicada
ao Direito. Esse “bom senso jurídico”s e faz necessário à medida que as
exigências formais que decorrem do princípio da legalidade tendem a
reforçar mais o texto das normas, a palavra da lei, que o seu espírito. A
razoabilidade formulada como princípio jurídico, ou como diretriz de
interpretação das leis e atos da Administração, é uma orientação que se
contrapõe ao formalismo vazio, à mera observância dos aspectos exteriores
da lei, formalismo esse que descaracteriza o sentido finalístico do Direito
192
(grifado no original).
Retomando-se as lições de Barroso, ainda que se constate aquela
razoabilidade interna, é preciso verificar se a norma está adequada aos meios e fins
previstos no texto constitucional, ou seja, impende que se analise a denominada
razoabilidade externa, como por exemplo:
[...] diante da impossibilidade de conter a degradação acelerada da
qualidade da vida urbana (motivo), a autoridade municipal impedisse o
ingresso nos limites da cidade de qualquer não-residente que não fosse
capaz de provar estar apenas em trânsito (meio), como o que reduziria
significativamente a demanda por habitações e equipamentos urbanos (fim).
Norma desse teor poderia até ser internamente razoável, mas não passaria
no teste de razoabilidade diante da Constituição, por contrariar princípios
193
como o federativo, o da igualdade entre brasileiros etc.
Além do requisito da adequação, Barroso menciona que - por
decorrência dos estudos desenvolvidos pelos autores alemães – a necessidade (ou
exigibilidade) e a proporcionalidade em sentido estrito, também, qualificam o
princípio a que mais comumente se referem como princípio da proporcionalidade.
Segundo explica: a adequação exige que as medidas adotadas pelo Poder Público
se mostrem aptas para alcançar os objetivos pretendidos; a necessidade impõe
verificar se inexiste meio menos gravoso para o atingimento desses fins; a
proporcionalidade em sentido estrito corresponde à ponderação entre o ônus
imposto e o benefício trazido.194
191
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo, p. 79.
O princípio da razoabilidade em apoio à legalidade, Cadernos de direito constitucional e ciência
política 16/173 apud FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo, p. 79.
193
Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora, p. 226-227.
194
Ibid., p. 229.
192
73
Observa-se uma forte tendência na doutrina, bem como na
jurisprudência em tratar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como
se
fossem
sinônimos.
Para
Barroso,
em
linhas
gerais,
o
princípio
da
proporcionalidade mantém uma relação de fungibilidade com o da razoabilidade.195
No mesmo sentido, manifesta-se José Roberto Pimenta Oliveira, ao tratar dos
princípios no direito administrativo brasileiro:
É possível verificar que, do mesmo modo em que o “direito administrativo”
existente no âmbito da common law desenvolveu historicamente a noção
jurídica do razoável, enquanto standad, na sindicabilidade judicial da
discrição administrativa nos quadros do rule of law, os sistemas da família
jurídica romano-germânica (civil law) encontraram na noção do proporcional
equivalente instrumental axiológico para promover a contenção da
arbitrariedade no exercício dos poderes administrativos no seio do Estado
196
de Direito (grifado no original).
Tirante as divergências relativas à questão terminológica, é
importante firmar que mesmo para aqueles que diferenciam a razoabilidade da
proporcionalidade, ambos os princípios são tidos como forma de controle dos atos
estatais, como critério limitador das restrições a direitos.
Ao tratar do princípio da razoabilidade no direito administrativo,
Celso Antônio Bandeira de Mello descreve o seguinte:
Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício
de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista
racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e
respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência
exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas
inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente
invalidáveis -, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou
praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam
atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e
disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição
197
manejada.
Com relação à proporcionalidade, expõe:
195
Ibid., p. 224.
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro, p. 192.
Note-se que diverso é o pensamento da administrativista Lúcia Valle Figueiredo, segundo o qual o
princípio da proporcionalidade é entendido como um plus ao princípio da razoabilidade. Para a
autora, “[...] é o sentido estrito o diferenciador da razoabilidade. Na verdade, os princípios se
imbricam de tal sorte que se poderia confundi-los. Todavia, não nos parece impossível fazer a
diferença” (Curso de direito administrativo, p. 51). Por sua vez, Maria Sylvia Zanella di Pietro
entende a proporcionalidade como um dos aspectos contidos na razoabilidade (Direito
administrativo, p. 76). Nessa mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello menciona que “[...] o
princípio da proporcionalidade não é senão uma faceta do princípio da razoabilidade [...]” (Curso de
Direito administrativo, p. 111).
196
Curso de direito administrativo, p. 111.
197
Ibid, p. 108
196
74
Este princípio enuncia a idéia – singela, aliás, conquanto freqüentemente
desconsiderada – de que as competências administrativas só podem ser
validamente exercidas na extensão e intensidade correspondentes ao que
seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse
público a que estão atreladas. Segue-se que os atos cujos conteúdos
ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da
competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do
âmbito da competência; ou seja, superam os limites que naquele caso lhes
corresponderiam.
Sobremodo quando a Administração restringe situação jurídica dos
administrados além do que caberia, por imprimir às medidas tomadas uma
intensidade ou extensão supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade
de sua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições
em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação
198
do interesse público (grifado no original).
Reportando-se à razoabilidade como sinônimo de proporcionalidade,
Barroso explica que tal princípio era, tradicionalmente, utilizado como mecanismo de
controle judicial dos atos administrativos e funcionava como medida da legitimidade
do exercício do poder de polícia. Posteriormente, passou a alcançar, também, os
atos do Poder Legislativo e tem ganhado cada vez mais relevo na doutrina e na
jurisprudência, inclusive e, especialmente, na do Supremo Tribunal Federal.199
No que concerne à atuação do Judiciário, haja vista que o juiz não
pode substituir o administrador e o legislador, Barroso apresenta essa ressalva:
Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio delicado,
deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso ter em linha de
conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas
deve recair sobre órgãos que têm o batismo da representação popular, o
que não é o caso dos juízes e tribunais. Mas, quando se trate de preservar
a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de
maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de
constitucionalidade se exerce, precisamente, para assegurar a preservação
200
dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais [...].
Paulo Bonavides, referindo-se à proporcionalidade, apesar de
admitir que tal princípio ocasiona uma controvertida ascendência do juiz sobre o
legislador, sustenta que ela não fere a separação de poderes, e arremata, dizendo:
Com efeito, a limitação aos poderes do legislador não vulnera o princípio da
separação, de Montesquieu, porque o raio de autonomia, a faculdade
política decisória e a liberdade do legislador para eleger, conformar e
determinar fins e meios se mantém de certo modo plenamente resguardada.
198
Ibid, p. 110.
Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora, p.229-238.
200
Op. cit., p. 232.
199
75
Mas tudo isso, é óbvio, sob a regência inviolável dos valores e princípios
201
estabelecidos pela Constituição.
Na visão do autor, o princípio da proporcionalidade fundamenta um
novo Estado de Direito, no qual vigora a supremacia da Constituição. Em suas
palavras:
As limitações de que hoje padece o legislador, até mesmo o legislador
constituinte de segundo grau – titular do poder de reforma constitucional –
configuram, conforme já assinalamos, a grande realidade da supremacia da
Constituição sobre a lei, a saber, a preponderância sólida do princípio de
constitucionalidade hegemônico e moderno, sobre o velho princípio de
legalidade ora em declínio nos termos de sua versão clássica, de fundo e
inspiração liberal.
Mas essa supremacia, introduzida de maneira definitiva pelo novo Estado
de Direito, somente cobra sentido e explicação, uma vez vinculada à
liberdade, à contenção dos poderes do Estado e à guarda eficaz dos
direitos fundamentais. Aqui o princípio da proporcionalidade ocupa seu lugar
primordial. Não é sem fundamento, pois, que ele foi consagrado por
princípio ou máxima constitucional.
Fica assim erigido em barreira ao arbítrio, em freio à liberdade de que, à
primeira vista, se poderia supor investido o titular da função legislativa para
estabelecer e concretizar fins políticos. Em rigor, não podem tais fins
contrariar valores e princípios constitucionais; um destes princípios vem a
ser precisamente o da proporcionalidade, princípio não escrito, cuja
observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto
pertence à natureza e essência mesma do Estado de Direito (grifo
202
nosso).
Diante da falta de previsão expressa ao princípio no texto
constitucional, Barroso aponta que se abrem duas linhas de construção
constitucional: uma mais inspirada na doutrina alemã, que vislumbrará o princípio da
razoabilidade como inerente ao Estado de direito, integrando de modo implícito o
sistema; e outra, influenciada pela doutrina norte-americana, pretenderá extrair o
princípio da cláusula substantiva do devido processo legal. O importante é que
ambas as linhas conduzem ao mesmo resultado, qual seja: “[...] o princípio da
razoabilidade integra o direito constitucional brasileiro, devendo o teste de
razoabilidade ser aplicado pelo intérprete da Constituição em qualquer caso
submetido ao seu conhecimento [...]”.203
Ao final, sintetiza:
O princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da
discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário
invalidar atos legislativos ou atos administrativos quando: (a) não haja
201
Curso de direito constitucional, p. 399.
Ibid., p. 400.
203
Op. cit., p. 237.
202
76
relação de adequação entre o fim visado e o meio empregado; (b) a medida
não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao
mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja
proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida
é de maior relevo do que aquilo que se ganha.
Um certo positivismo arraigado na formação jurídica nacional retardou o
ingresso do princípio da razoabilidade na jurisprudência brasileira, por falta
de previsão expressa na Constituição. Inequivocamente, contudo, ele é uma
decorrência natural do Estado democrático de direito e do princípio do
devido processo legal. O princípio, naturalmente, não liberta o juiz dos
limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de
voluntarismo que se trata. A razoabilidade, no entanto, oferece uma
alternativa de atuação construtiva do Judiciário para a produção do melhor
resultado, ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que
204
mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei.
Das explicações trazidas, infere-se, evidentemente, que não basta
que as limitações à circulação de veículos sejam estabelecidas por lei. É imperioso
que a norma não veicule qualquer conteúdo irrazoável, ou seja, o Estado, ao legislar
sobre matéria que repercuta direta ou indiretamente no exercício da liberdade
individual, está necessariamente sujeito ao princípio constitucional da razoabilidade.
O mesmo vale para a Administração quando implementa medidas restritivas.
No município, o que o Poder Público está autorizado a fazer - seja
no exercício de função legislativa ou administrativa - é atuar em favor da
comunidade, observando sempre as peculiaridades locais.
Para que o interesse local não se confunda com o interesse da
autoridade local, os administrados, evidentemente, contam a seu favor com o
princípio da razoabilidade, que serve como parâmetro de valoração dos atos do
Poder Público, que podem ser declarados inconstitucionais pelo Judiciário, caso
emanados em descompasso com tal princípio.
Cite-se, para ilustrar, o Decreto nº 29.231, de 24 de abril de 2008,
editado pelo prefeito do Rio de Janeiro, que proíbe a circulação de veículos de carga
e a operação de carga e descarga nos períodos das 6h às 10h e das 17h às 20h, de
segunda à sexta-feira, em dias úteis, na orla marítima e nas vias que especifica.
A razoabilidade e a proporcionalidade da matéria veiculada pelo
Decreto foram submetidas à análise do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do
recurso em mandado de segurança nº 29.990 – RJ, cuja ementa vale a pena ser
reproduzida:
204
Op. cit., p. 245.
77
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE
SEGURANÇA. DECRETO MUNICIPAL N. 29.231/2008. RESTRIÇAO DE
HORÁRIO PARA CIRCULAÇAO DE VEÍCULOS DE CARGA E SUAS
OPERAÇÕES NO ÂMBITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.
COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE A
CIRCULAÇAO DE VEÍCULOS NA SUA CIRCUNSCRIÇAO. PRINCÍPIOS
DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE ATENDIDOS.
PRECEDENTES DO STF.
1. À luz do art. 22, XI, combinado com o art. 30, I e II, ambos da Carta
Magna de 1988, o município ostenta competência constitucional para
legislar acerca das questões de interesse local.
2. Em âmbito infraconstitucional, o Código Nacional de Trânsito ruma para o
mesmo norte e atribui competência ao município para legislar a respeito do
trânsito de veículos no seu âmbito territorial, consoante se infere do seu art.
24, I e XVI.
3. Logo, não se vislumbra que o Decreto n. 29.231, de 24 de abril de 2008,
padeça de qualquer ilegalidade, porquanto tão somente restringiu o horário
de circulação de veículos de carga e suas operações nos períodos
compreendidos entre 06 horas às 10 horas e das 17 horas às 20 horas, no
interior da área delimitada pela orla marítima da cidade do Rio de Janeiro.
4. Também não revela atentatório ao princípio da razoabilidade decreto
municipal que restringe o horário de circulação de veículos de carga e suas
operações em determinada área da cidade, na qual o trânsito é
sabidamente caótico.
5. As informações prestadas pela autoridade coatora dão conta que DE a
restrição do tráfego de veículos de carga reduziu em mais de 50%
(cinquenta por cento) o número de horas de congestionamento em "nível F"
(nível crítico de classificação de fluidez em via pública), bem como diminuiu
de 18% (dezoito por cento) para 11% (onze por cento) o número de veículos
que enfrentam congestionamento.
6. Os 10 (dez) dias concedidos pelo Decreto n. 29.231/2008 para adaptação
às alterações não se mostra exíguo, máxime porque as alterações foram
apenas de cunho logístico e o aludido prazo mostra-se razoável para esse
mister.
7. Recurso ordinário não provido (grifo nosso).
205
Convém observar que o referido Decreto dispõe em seu Preâmbulo:
“CONSIDERANDO que o aumento recente do número de veículos nas vias da
Cidade, vem provocando congestionamento impondo à população gastos adicionais
consideráveis no tempo de deslocamentos;”,
Logo, ao reduzir o número de horas em congestionamento bem
como o número de veículos que enfrentam congestionamento, a medida estatal
mostrou-se apta para atingir o fim pretendido.
205
Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 08.09.2009.
78
Pode-se agregar, ainda, que a limitação à circulação dos veículos de
carga, na ausência de uma medida alternativa igualmente eficaz, revelou-se
necessária para a melhoria do trânsito nas vias municipais. E, sob a perspectiva da
proporcionalidade em sentido estrito, as vantagens obtidas com a limitação - que
acabam por beneficiar a população como um todo - supera as desvantagens
sofridas por algumas indústrias e fornecedores.
Oportuno, também, transcrever um excerto da decisão proferida pelo
Ministro Gilmar Mendes - no bojo da Suspensão de Segurança n° 3.629/RJ, ajuizada
pelo Município do Rio de Janeiro - que julgou válido o Decreto n° 29.231/08, bem
como o Decreto n° 29250/08:
Os estudos técnicos realizados pelos órgãos municipais indicam que o
trânsito de veículos de carga e a realização de operações de carga e
descarga nos horários de pico contribuem de forma decisiva para a maior
lentidão do fluxo de veículos, a dificuldade de locomoção da população, a
ocorrência de colisões de grandes proporções e de congestionamentos
ocasionados por defeitos nos veículos (fls. 597-611).
A existência de atos administrativos anteriores, que restringiram a
circulação de veículos em outras vias da cidade, evidenciam a
previsibilidade de tais medidas (fls. 563-579).
As matérias veiculadas na imprensa local demonstram a efetividade das
restrições impostas pela Prefeitura para a melhoria do trânsito na cidade
(fls. 581-595).
O documento juntado pelo Município informa que a adoção de medidas
restritivas à circulação de veículos representa uma economia de R$
104.000.000,00, valor correspondente à redução da emissão de gases
poluentes, à diminuição do custo das operações dos veículos em função da
redução do tempo de viagem e a melhor utilização do tempo dos cidadãos
com a diminuição das horas gastas no trânsito (fl. 609).
Note-se, portanto, que os estudos técnicos configuraram um
instrumental importante na verificação entre o meio empregado (restrição à
circulação de veículos de carga e da operação de carga e descarga nos horários de
pico) e o fim visado pela medida estatal (melhoria do trânsito na cidade).206
No que diz respeito à limitação da circulação dos veículos fretados,
no centro do município de São Paulo, uma das polêmicas levantadas é a de que a
medida ocasionaria o aumento dos veículos particulares nas vias e, por conseguinte,
206
Sem embargo da plausibilidade da decisão sob o aspecto da razoabilidade da restrição, vale
registrar que o Decreto 29.250/08, ao estabelecer que vans, kombis ou caminhonetes, que venham
a ser utilizadas em substituição aos veículos de carga como forma de burlar o Decreto nº 29.231,
serão apreendidas e levadas a depósitos, inovou matéria que não foi prevista em lei e, portanto,
entende-se que padece de inconstitucionalidade.
79
não atenderia o propósito de beneficiar o trânsito, que foi o principal argumento para
justificar a restrição. Dentro desta perspectiva, a medida não seria razoável.
Em contrapartida, segundo avaliação realizada pela Companhia de
Engenharia de Tráfego (CET), após um ano da regulamentação da Zona Máxima de
Restrição aos Fretados (ZMRF), a fluidez no trânsito em São Paulo teve um
aumento de 11%. De acordo com a CET, a nova regulamentação da circulação dos
fretados, aliada a outras ações em parceria com o Governo do Estado, como a
ampliação da Marginal do Tietê e do Rodoanel, trouxe mais fluidez para o trânsito
nos principais corredores da cidade.207
O objetivo, aqui, não é oferecer solução para este impasse, mas
apenas reforçar a idéia de que os estudos técnicos contribuirão, muitas vezes, para
a aferição da razoabilidade das medidas adotadas pelo Poder Público.
Não se poderia deixar de lembrar, ainda, a importância de não se
lesionar um princípio, registrada por Celso Antônio Bandeira de Mello, em lição
lapidar:
Princípio [...] é mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce
dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por
nome sistema jurídico positivo
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do
princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
208
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Também, o pensamento de Paulo Bonavides, ao afirmar:
A lesão ao princípio é indubitavelmente a mais grave das
inconstitucionalidades, porque sem princípio não há ordem constitucional e
sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades, cujo exercício
209
somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes absolutos.
207
Trânsito em SP melhorou 11% após regulamentação de fretados, diz CET. Estadão. Disponível
em:<http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,transito-em-sp-melhorou-11-aposregulamentacao-de-fretados-diz-cet,587135,0.htm>. Acesso em: 26 ago. 2010.
208
Curso de direito administrativo, p. 958-959.
209
Curso de direito constitucional, p. 435.
80
Por fim, no que diz respeito à importância da proporcionalidade
como princípio limitador dos excessos do Estado e defensor dos direitos e
liberdades constitucionais, destaca o autor:
Admitir a interpretação de que o legislador pode a seu livre alvedrio legislar
sem limites, seria pôr abaixo todo o edifício jurídico e ignorar, por inteiro, a
eficácia e majestade dos princípios constitucionais. A Constituição estaria
210
despedaçada pelo arbítrio do legislador.
210
Ibid., p. 436.
81
Conclusão
O modo como se desenvolveu o processo de urbanização, no Brasil,
marcado pela ocupação desenfreada do solo urbano, desencadeou diversos
problemas no campo da qualidade de vida da população.
Ante a necessidade de intervenção do Poder Público para ordenar o
espaço físico da cidade, surgiu o urbanismo, como técnica e ciência. Com o passar
do tempo, seu conceito evoluiu para um sentido social, correlacionado à finalidade
de realizar a qualidade de vida humana.
Firmou-se a idéia de urbanismo como um conjunto de medidas
estatais destinadas a organizar todas as áreas – sejam urbanas ou rurais - em que
são desenvolvidas uma das funções sociais da cidade, consistentes em habitação,
trabalho, lazer e circulação.
Uma vez que para impor tais medidas são necessárias normas
jurídicas, o Poder Público desencadeou produção normativa neste sentido.
Desenvolveu-se, portanto, o direito urbanístico como um conjunto de normas
destinadas a realizar os fins do urbanismo, ou seja, como o conjunto de princípios e
regras que visam disciplinar os espaços urbanizados e a urbanizar, de modo a
possibilitar o equilíbrio entre as funções sociais da cidade e, mediatamente,
contribuir para a melhoria da qualidade de vida.
Pode-se afirmar que o âmbito de aplicação das normas que compõe
o direito urbanístico corresponde à cidade desde que por esta se entenda qualquer
núcleo urbano – sede ou não do governo municipal – como os núcleos até então
rurais à medida que passem a ser utilizados com atividades abrangidas pelo
conceito funções sociais da cidade.
Como essência do objeto deste ramo do direito público, figura a
atividade urbanística, que abrange desde a formulação da política urbana, passando
pelo planejamento, pela elaboração de leis, até atividades de execução, mediante a
utilização de instrumentos urbanísticos.
A atividade estatal destinada a criar condições para a circulação nas
cidades subsume-se ao gênero “atividade urbanística”, à medida que se destina a
otimizar uma daquelas funções sociais da cidade.
82
A Constituição de 1988, ao vincular a política urbana ao pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seus habitantes,
reflete, no direito positivo, o esforço doutrinário em delimitar o campo de atuação do
direito urbanístico.
Por sua vez, o Estatuto da Cidade, ao estabelecer a garantia do
direito a cidades sustentáveis como uma das diretrizes da política urbana,
representa
mais
um
avanço
na
consecução
dos
objetivos
assinalados
constitucionalmente. Além do interesse público traduzido no pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade, há o direito a cidades sustentáveis, que deve ser
buscado e realizado pelo Poder Público, através da política urbana.
Direcionar essa política para a consecução de cidades sustentáveis
remete, indubitavelmente, à necessidade de melhorar as condições de circulação,
reduzindo-se a quantidade de automóveis nas ruas, priorizando-se os meios
coletivos e não motorizados de transportes, desafogando o trânsito e os níveis de
poluição que acarreta.
A proposta trazida no Projeto de Lei n° 1.687/2007 vem neste
sentido. Nos termos do seu art. 1° § 1°, a política
de mobilidade urbana é
instrumento da política urbana.
No que toca ao desafio de se melhorar o trânsito e o tráfego nas
cidades, medidas restritivas da circulação de veículos motorizados tornam-se
inevitáveis, apesar de encontrarem resistência por parte dos administrados.
Não obstante a finalidade urbanística das limitações à circulação de
veículos, seu regime jurídico se vale das noções de limitações à liberdade e
propriedade.
Portanto, sob a égide do Estado Democrático de Direito, devem ser
estabelecidas por lei, uma vez que estão relacionadas à liberdade de trânsito e
tráfego. Em outras palavras, a ordem jurídica em vigor não tolera a imposição de
qualquer medida restritiva que não esteja previamente delineada em lei.
Os Municípios são competentes para legislar sobre o trânsito e o
tráfego local. Essa matéria não é de iniciativa legislativa privativa do Executivo, visto
que a Constituição Federal não a excepcionou.
Sem prescindir da importância do planejamento democrático para a
consecução dos objetivos da política urbana, as limitações à circulação de veículos
não estão necessariamente condicionadas à existência de um plano anterior.
83
Significa, portanto, que identificada a necessidade de se restringir a circulação de
veículos sobre determinadas áreas, em favor da mobilidade urbana ou, por assim
dizer, para que haja o melhor funcionamento das cidades, o Poder Público deve
valer-se de tal medida, ainda que ela não esteja vinculada a um plano.
Imperioso, no entanto, que a limitação esteja prevista em lei,
emanada de acordo com as regras de competência, e que esta lei – assim como o
ato administrativo que a regulamente - atenda aos princípios constitucionais da
razoabilidade e/ou proporcionalidade, que figuram como critérios limitadores do
arbítrio estatal.
84
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