PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Direito ABORDAGEM CRÍTICA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À LUZ DA CF/1988: OS LIMITES DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA DO JUIZ Autora: Kellen Karolline da Silva Ferreira Orientador: Prof. Esp. Carlos André Bindá Praxedes KELLEN KAROLLINE DA SILVA FERREIRA ABORDAGEM CRÍTICA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: OS LIMITES DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA DO JUIZ Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Esp. Carlos André Bindá Praxedes Brasília 2009 Monografia de autoria de Kellen Karolline da Silva Ferreira, intitulada “ABORDAGEM CRÍTICA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: OS LIMITES DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA DO JUIZ”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharelado em Direito da Universidade Católica de Brasília, defendido e aprovado em __/__/__, pela Banca Examinadora abaixo assinada: ____________________________________________________ Orientador: Prof. Esp. Carlos André Bindá Praxedes Universidade Católica de Brasília ____________________________________________________ Integrante: Prof. Universidade Católica de Brasília ____________________________________________________ Integrante: Prof. Universidade Católica de Brasília Brasília 2009 Dedico este trabalho a Deus, criador da vida, força máxima para a conquista dos meus objetivos. Aos meus pais, Francisco e Hilda, pelo constante apoio, carinho, compreensão e incentivo na minha jornada. Pessoas de importância inestimável em minha vida, foi com eles que aprendi os valores da dignidade e da humildade. À minha irmã e amiga, Jacqueline, companheira inseparável de todos os momentos. Aos amigos que me acompanharam por essa longa jornada acadêmica, com os quais sempre pude contar. Por meio deles, agora tenho a certeza de que “nenhum caminho é tão distante quando um amigo nos acompanha”. A todos vocês, minha eterna gratidão. AGRADECIMENTO Agradeço ao querido Professor Carlos André Bindá Praxedes, que sempre se mostrou verdadeiro orientador e amigo. Mestre de grande sabedoria, tive com ele a oportunidade de enriquecer meus conhecimentos Exímio profissional do Direito, com certeza inspira seus alunos e serve de exemplo de coragem na busca por uma Justiça Penal mais humana. Obrigada, professor, pelo tempo despendido comigo na realização deste trabalho e pelos valiosos ensinamentos a mim dispensados. “Quem tiver um juiz por acusador precisa de Deus como defensor. [...]”. Ditado irônico advindo da Idade Média, citado por Geraldo Prado em seu estudo sobre o Sistema Acusatório, p. 157, Ed. Lumen Juris, 1999. RESUMO FERREIRA, Kellen Karolline da Silva. Abordagem crítica do sistema processual penal brasileiro à luz da Constituição Federal de 1988: os limites da atividade instrutória do juiz. 2009, 96 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação). Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009. O presente trabalho trata do sistema processual penal brasileiro ao lume da Constituição Federal de 1988, com enfoque nos limites da atividade instrutória do juiz. Nesse intuito, teceremos considerações acerca da evolução dos sistemas processuais, fazendo uma abordagem histórica dos modelos inquisitivo, misto e acusatório, salientando as principais características de cada um. Posteriormente, falaremos do sistema de processo desenhado pela Constituição da República, discorrendo sobre os mais importantes princípios norteadores do Direito Processual Penal. A seguir, serão abordadas as funções do juiz, do Ministério Público e da defesa no processo penal, bem como tratada a questão da natureza do modelo processual brasileiro. Para finalizar, serão trazidos à baila apontamentos sobre a atividade instrutória do juiz, incluindo a discussão doutrinária acerca do fato de comprometer ou não essa atividade a imparcialidade do magistrado. Palavras-chave: Sistema processual penal brasileiro. Constituição Federal. Processo penal. Atividade instrutória do juiz. Imparcialidade do magistrado. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...............................................................................................................09 CAPÍTULO 1 - EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS .....................11 1.1: SISTEMA INQUISITIVO ..........................................................................................12 1.2: SISTEMA ACUSATÓRIO ........................................................................................16 1.3: SISTEMA MISTO OU ACUSATÓRIO FORMAL .....................................................19 1.4: HISTÓRICO DO PROCESSO PENAL NO BRASIL ................................................22 CAPÍTULO 2 - O MODELO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ...........................................................................24 2.1: O DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL .........................................................25 2.1.1: Devido processo legal .......................................................................................26 2.1.2: Igualdade processual / Paridade de armas ......................................................27 2.1.3: Contraditório .......................................................................................................28 2.1.4: Ampla defesa ......................................................................................................30 2.1.5: Imparcialidade do juiz ........................................................................................33 2.1.6: Juiz natural .........................................................................................................36 2.1.7: Presunção de inocência ....................................................................................37 2.1.8: Direito à prova e decisões motivadas ..............................................................38 2.1.9: Publicidade .........................................................................................................40 2.1.10: Duplo grau de jurisdição .................................................................................41 2.2: OUTROS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO PROCESSO PENAL ........................................................................................................................................42 2.2.1: Ação ou demanda ..............................................................................................42 2.2.2: Impulso oficial ....................................................................................................43 2.2.3: Identidade física do juiz .....................................................................................43 2.2.4: Disponibilidade e indisponibilidade .................................................................44 2.2.5: Dispositivo e livre investigação das provas ....................................................45 2.2.6: “Favor rei” (“favor innocentiae” ou “favor libertatis”) ...................................46 2.2.7: Verdade real ........................................................................................................46 CAPÍTULO 3 – A NATUREZA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL PÁTRIO ..........49 3.1: SUJEITOS PROCESSUAIS – AS FUNÇÕES DE ACUSAR, DEFENDER E JULGAR .........................................................................................................................49 3.1.1: A função do juiz no processo penal .................................................................49 3.1.2: A função do Ministério Público no processo penal ........................................52 3.1.3: A função da Defesa no processo penal ...........................................................53 3.2: SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO: ACUSATÓRIO OU INQUISITIVO GARANTISTA? ...............................................................................................................57 CAPÍTULO 4 - OS LIMITES DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA DO JUIZ .......................64 4.1: A VERDADE NO PROCESSO PENAL: UMA VERDADE REAL? ..........................65 4.2: SISTEMAS INQUISITORIAL E ADVERSARIAL .....................................................68 4.3: ATUAÇÃO INSTRUTÓRIA DO MAGISTRADO NO PROCESSO PENAL: VIOLAÇÃO AO SISTEMA ACUSATÓRIO? ...................................................................71 4.3.1: Fundamentação legal da iniciativa instrutória do magistrado ......................73 4.3.1.1: Requisição da autoridade judiciária para o início do inquérito policial nos crimes de ação penal pública .....................................................................................................80 4.3.1.2: Requisição de diligências pelo juiz na fase de inquérito ...................................81 4.3.1.3: A valoração do arquivamento do inquérito policial pelo juiz ..............................81 4.3.1.4: A competência por prevenção do magistrado ...................................................83 4.3.1.5: A prisão preventiva decretada de ofício pela autoridade judiciária ...................84 4.3.1.6: A nova redação do art. 212, CPP, e a consagração do sistema acusatório .....84 4.4: NECESSIDADE DE REFORMAS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL .......86 CONCLUSÃO ................................................................................................................89 REFERÊNCIAS ..............................................................................................................92 9 INTRODUÇÃO Para a realização da presente monografia foi utilizado o método hipotético dedutivo, sendo a pesquisa de cunho bibliográfico, feita por meio de fontes doutrinárias, legais e jurisprudenciais. O conteúdo aqui desenvolvido tem por escopo apresentar uma visão acerca do sistema processual penal brasileiro ao lume da Constituição Federal de 1988, discutindo os limites da atividade instrutória judicial. A iniciativa de escrever sobre o tema surgiu a partir de um questionamento levantado pelo professor em uma das aulas de direito processual penal. Falava ele sobre as violações ao sistema processual pátrio. O estágio na Defensoria, na área penal, também me trouxe inquietação acerca do assunto, vez que, tendo a oportunidade de acompanhar audiências criminais, pude perceber em muitos momentos o confronto ao modelo acusatório na prática forense. No primeiro capítulo, preocupamo-nos com uma abordagem relativa à evolução dos sistemas processuais penais, inquisitivo, acusatório e misto, fazendo a inserção de cada um deles em seu respectivo contexto histórico. Procuramos enfatizar as principais peculiaridades inerentes a cada um, de modo a facilitar o entendimento sobre a adoção do atual sistema processual pela Constituição da República. No segundo capítulo, fazemos uma análise em relação aos direitos individuais previstos na Magna Carta, dos quais decorrem princípios de relevante importância para aplicação na seara penal. Faz-se necessária a releitura desses princípios frente ao Código de Processo Penal de 1941, cujas bases autoritárias não permitiram que se preocupasse com garantias fundamentais dos indivíduos. Assim, o referido diploma legal mostra-se totalmente ultrapassado pela nova Constituição, que trouxe em seu bojo regras e princípios indiscutivelmente amparados pelo devido processo legal. Uma nova visão de processo é ai instaurada, passando este a ser visto não como um fim em si mesmo e sim como instrumento de garantia do cidadão perante o poder estatal. 10 No capítulo três discorremos sobre as funções dos sujeitos processuais, juiz, Ministério Público e defesa, dando ênfase aos poderes conferidos ao magistrado, sobretudo os instrutórios. Abordamos também nesse tópico o importantíssimo papel desempenhado pela Defensoria Pública na condução de processos criminais, vez que a existência dessa instituição está atrelada à própria sobrevivência do sistema acusatório. Tratamos, ainda, da discussão que permeia a doutrina acerca da natureza do sistema processual penal pátrio. Será ele acusatório ou inquisitivo garantista (misto)? Apontamos posicionamentos diversos, inclusive jurisprudenciais. No quarto capítulo é levantada a discussão acerca dos limites da atividade instrutória do juiz. Mais uma vez, socorremo-nos da doutrina para tratar do tema, muito polêmico, aliás. Há quem entenda que conferir poderes instrutórios ao julgador é altamente prejudicial ao devido processo legal, e mais, ao sistema acusatório, uma vez que colocaria em risco a imparcialidade do magistrado. Existem também posicionamentos no sentido de que tais poderes devem, sim, ser conferidos a ele, pois o juiz dos tempos atuais não pode ser mero espectador da relação jurídica processual. Ele tem de ter papel ativo no processo, até porque incumbe a ele o exercício da jurisdição. No entanto, os poderes deveriam ser limitados face aos direitos e garantias fundamentais. Desse modo, o que se propõe neste trabalho é uma nova leitura do sistema acusatório, atrelada a preceitos de ordem constitucional. Para isso, faz-se necessária a reflexão sobre a atuação do magistrado no processo, com uma visão crítica acerca de todo e qualquer poder instrutório que lhe seja conferido. Não se pretende aqui repudiar a atividade instrutória do juiz no processo. Pelo contrário, o que pretendemos é fomentar a análise dessa atividade de forma crítica e construtiva, à luz do que dispõe o princípio acusatório. 11 CAPÍTULO 1 - EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS O processo penal deita raízes históricas no início da humanidade. Nas sociedades primitivas, inexistia um Estado capaz de controlar os anseios individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade destes, até porque sequer havia leis. Nessa época, havendo um conflito, aquele que tivesse sua vontade impedida por um comportamento alheio, tinha que, por si só, fazer prevalecer sua pretensão, mesmo que para isso fosse necessário fazer uso da força. Imperava, assim, a figura da autodefesa, refletida na imposição de vontade por uma das partes à outra, o que levava à vitória do mais forte sobre o mais fraco. Todavia, esse sistema de “justiça pelas próprias mãos” ou trazia a impunidade, na medida em que se o ofendido fosse mais fraco que o ofensor não poderia jamais vencê-lo pela força, ou irradiava a desproporcionalidade, pois se fosse o ofendido mais forte que o ofensor, a punição tenderia a ser mais lesiva que a própria ofensa. Assim, no curso da história da humanidade, deparamo-nos com um sistema punitivo marcadamente rigoroso e desprovido da preocupação com os valores atualmente preconizados, mas que com o tempo, mais precisamente a partir do iluminismo europeu, transformou-se num sistema de garantias individuais inerente ao Estado Democrático de Direito. E podemos ter certeza que a evolução do processo penal se dá cada dia de forma mais acentuada. É justamente nesse contexto que abordaremos os antecedentes dos sistemas processuais penais, pois tratar do histórico deles é resgatar o passado que nos ajudará a compreender o presente, mormente as leis que atualmente regem o ordenamento jurídico processual penal pátrio. A respeito da relevância de se estudar os antecedentes de um instituto antes de adentrar seus aspectos mais intrínsecos, Miguel Reale1, assevera que: É possível que a meditação da história nos torne mais conscientes das razões concretas da atividade jurídica, de maneira que as necessárias estruturas e 1 1956, p. 10 apud NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 2. 12 processos formais, garantidores da justiça, não se convertam em rígidos entraves à realização espontânea dos fins que compõem a constante ética do Direito. Faz-se também imprescindível definir o conceito do objeto deste capítulo, sistemas processuais penais, antes de adentrarmos o tema propriamente dito. Nesse sentido, vale trazer à baila as palavras do doutrinador Paulo Rangel2: Assim, sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto. Tecidas essas importantes considerações, passemos à análise individualizada de cada um dos modelos processuais que compõem a história do processo penal. 1.1: SISTEMA INQUISITIVO O Sistema Inquisitivo tem sua existência pautada nos regimes monárquicos. Teve notável expressão no Direito Canônico, sendo adotado por quase toda a Europa nos séculos XVI a XVIII. Seu fundamento se encontrava no fato de que já não era mais possível delegar a defesa dos cidadãos somente aos particulares, haja vista que eram estes que davam início à persecução penal. Era necessário que o Estado tomasse para si tal poder, no intuito de melhor reprimir os ilícitos penais. No Direito Romano, o processo penal se distinguia em público e privado. Neste, o Estado assumia o papel de árbitro, solucionando conflitos entre particulares. A apuração de tais delitos ficava a mercê do próprio ofendido ou de seu representante legal. O primeiro, ao contrário, recaía sobre os crimes mais graves, que colocavam em risco a segurança da sociedade, afetando a tranquilidade e a paz públicas. Em ambos os casos, o cidadão acusador ficava obrigado a depositar uma determinada quantia, a fim de garantir as despesas do processo, além de inibir 2 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 45. 13 acusações infundadas ou que visassem prejudicar terceiros. Se fosse o réu absolvido, fazia-se necessária a análise do comportamento do acusador. Assim, caso a quinta parte dos juízes entendesse fundada a acusação, este não sofria qualquer penalidade. Caso contrário, poderia lhe ser aplicada multa ou mesmo a interdição do direito de acusar. Por outro lado, se fosse o réu absolvido, o cidadão que o tivesse acusado poderia ser agraciado com parte dos bens confiscados daquele ou com um prêmio estimado de três quartos à metade da multa imposta ao condenado. No período monárquico romano teve grande preponderância a “cognitio”, definida como o conhecimento espontâneo da infração penal, tendo sido esta a base para o nascimento do sistema inquisitivo. Desse modo, o direito de ação nos delitos públicos incumbia ao monarca, que geralmente indicava um juiz para efetivá-lo. Este agia tão somente respaldado pela notícia do crime, procedendo às investigações, sendo desnecessária, portanto, uma acusação. Em relação aos delitos privados, para que estes chegassem ao conhecimento do rei ou do juiz, era preciso que o ofendido estivesse em pleno gozo de seus direitos. Todavia, no decorrer dos anos, a preocupação com o delito privado foi sendo gradativamente suprimida, enquanto o delito público ganhava cada vez mais espaço. Nesse sentido, o processo penal público passou a ser adotado na maior parte dos litígios penais, conferindo ao magistrado poderes amplos para iniciar o feito, instruí-lo e deliberar sobre ele. Era o próprio juiz quem recebia a notícia do crime e a investigava. Vê-se ai uma notável influência para o surgimento do sistema inquisitivo. O procedimento fundado na “cognitio” certamente impulsionou a formação do sistema inquisitivo. Todavia, como bem observa Mauro Fonseca Andrade3, o que verdadeiramente consolidou tal modelo processual não foi sua adoção pela monarquia romana e sim a consagração do cristianismo como religião oficial. Esse motivo foi o que deu ensejo à permanência do sistema em comento mesmo após a derrocada do Império Romano. 3 P. 297, apud Mauro Fonseca Andrade. Sistemas Processuais Penais e seus Princípios Reitores. Curitiba: Juruá, 2008, p. 267. 14 Ao analisarmos a história do processo penal, tendemos a achar que o sistema inquisitivo foi o primeiro a ser adotado pela Igreja Católica. No entanto, o modelo predominantemente adotado por esta era o acusatório, que veremos no tópico seguinte. Ocorre que, com o desenvolvimento expressivo do Cristianismo por toda a Europa Continental, tornando-o religião oficial, surgiu a necessidade de inibir a expansão de outras religiões, o que foi feito por meio da repressão aos hereges. Tal conduta por parte da Igreja Católica ressuscitou o modelo processual inquisitivo. Assim, no Direito Canônico havia a influência predominante da Igreja na lei penal. A jurisdição era exercida por juízes inquisidores, configurados nas pessoas dos Bispos, Arcebispos ou oficiais, que eram responsáveis pela persecução penal. Podiam agir de ofício ou por meio de acusação de qualquer cidadão, ou mesmo por simples denúncia sem comprovação alguma. Pelos problemas que originavam, a acusação por qualquer do povo e a denúncia anônima foram abolidas, dando-se ao processo criminal da época uma força considerável, vez que a persecução de ofício passou a ser utilizada largamente pela Igreja. Desse modo, os juízes podiam proceder à instauração do processo, independentemente de acusação, ao colhimento de provas e ao decreto de condenação, atuando ao mesmo tempo como acusador e julgador. Nesse contexto, a tortura foi formalmente admitida pela Igreja como instrumento de alcance da verdade, estando em conjunto com o sistema das provas legais, também adotado nesse período. Tal sistema, também denominado de prova tarifada, trazia em seu bojo a noção de que cada prova tinha um valor previamente estabelecido, fixo e imutável. Por consequência, partindo do entendimento de que era preciso atingir um certo número de pontos para a condenação de alguém, segundo esse rígido sistema de provas, quando não se atingia a meta partia-se para a prática de torturas, haja vista que esta era tida como prova plena. A confissão adquiriu valor inestimável, sendo considerada naquela época a rainha das provas. A atividade probatória girava em torno da busca pela confissão, valendo-se da tortura como forma de efetivá-la. 15 A respeito do assunto, interessante se faz observar o que diz Mauro Andrade 4. Com posicionamento bastante singular, assevera o citado autor que o objetivo da tortura não era a confissão do acusado. Pelo contrário, ela era utilizada proporcionalmente à gravidade do crime. Justamente por isso, durante a execução, o inquisidor fazia perguntas ao acusado e as respectivas respostas eram anotadas pelo escrivão. Havia, ainda, a presença de um médico, a fim de controlar possíveis abusos e, por conseguinte, a tortura atingir o fim colimado. Ressalte-se que a confissão obtida mediante tortura física deveria ser ratificada posteriormente para adquirir validade. Destarte, se fosse aprovada, o acusado era punido conforme as leis eclesiásticas. Do contrário, era novamente torturado. Por outro lado, a tortura psicológica não precisava ser corroborada, pois não era vista como uma forma violenta de obter a confissão do imputado. Mauro Andrade5 atenta, ainda, para o fato de que a ineficácia de tal medida para a obtenção da verdade era conhecida pela própria Igreja Católica. Na obra de Santo Agostinho, por exemplo, havia recomendações de que a aplicação da tortura fosse feita de forma ponderada. Sob o manto de valores religiosos pregados pelo Cristianismo, estabelecia-se um verdadeiro procedimento inquisitivo, caracterizado pela tortura, pela abolição da acusação e da publicidade no processo, enfim, pela total ausência de direitos e garantias ao acusado. É pertinente salientar que o princípio do contraditório e da ampla defesa, atualmente consagrado em nível constitucional no ordenamento jurídico pátrio, era bastante restrito ou nem mesmo existia no processo canônico da Inquisição Medieval. Nesse sentido, a nomeação de um defensor ao acusado era considerada uma forma de postergar o andamento processual. Por consequência, se o imputado tivesse confessado os fatos, fazia-se desnecessário ser assistido por advogado. Se tivesse negado, tinha o direito de ser patrocinado por defensor, desde que fosse admitido pelo inquisidor. 4 5 ANDRADE, 2008, p. 282. P. 1.895-1.896 apud ANDRADE, 2008, p. 282. 16 Por sua vez, o defensor se comprometia a ser sigiloso quanto ao que ocorresse no decorrer do processo; a ser verdadeiro, não fazendo uso de testemunhos ou documentos falsos; a não ser prolixo e a não defender a heresia. O processo inquisitorial era movido pelo segredo, pelo sigilo total. A publicidade era, portanto, suprimida. Exemplo disso é que nas cópias de declarações entregues ao acusado não constavam os nomes dos depoentes. Por fim, vale mencionar algumas das características que mais se destacaram no sistema inquisitório, de modo a compararmos com os outros sistemas processuais que trataremos a seguir. Isso nos facilitará a vislumbrar os avanços que o processo penal vem conquistando ao longo da história. No sistema inquisitivo, as funções de acusar, defender e julgar concentravam-se nas mãos do juiz, podendo este iniciar a persecução penal de ofício, fazendo com que o princípio da imparcialidade fosse totalmente violado. Ademais, a sigilosidade, a ausência do contraditório e da ampla defesa eram características marcantes, vez que o acusado era tão somente objeto do processo e não sujeito de direitos. O sistema de provas utilizado era o da prova legal ou tarifada, sendo a confissão a principal delas. Como bem exposto por Nicola Polansky6, o sistema inquisitório “oferece poucas garantias de imparcialidade e objetividade, por serem psicologicamente incompatíveis „a função do julgamento objetivo com a função da perseguição criminal‟”. 1.2: SISTEMA ACUSATÓRIO Em contrapartida ao sistema anterior, que demonstra-se totalmente dissonante do conceito de direitos e garantias fundamentais no qual deve se pautar um processo justo e coerente, surgiu o sistema acusatório, respaldado nos princípios e valores que devem reger um verdadeiro Estado Democrático de Direito. 6 P. 376, apud MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. São Paulo: Millennium, 2000. p. 65. 17 No sistema acusatório, são atribuídas a órgãos distintos as funções de acusar, defender e julgar. Assim, existem as figuras do juiz, do autor e do réu, representado pela Defesa. O processo é informado pelos princípios da publicidade, do contraditório e da ampla defesa. Impera, ainda, a imparcialidade e o livre convencimento do magistrado, que deve ser motivado de acordo com as provas dos autos. O juiz é, nesse contexto, sujeito equidistante das partes, devendo sempre prezar pelo equilíbrio na relação processual, dirigindo o processo com base na razoabilidade e proporcionalidade. A corrente majoritária afirma que o sistema acusatório teria surgido antes do inquisitivo, enquanto a minoritária reforça a idéia de que este foi o que primeiramente se manifestou. O sistema acusatório deita suas raízes em Atenas, nos tribunais populares da democracia ateniense. Era irrefutável o direito dos cidadãos terem assento e voto nas Assembléias e Conselhos, sendo que a publicidade e a oralidade marcavam os debates da época. O povo é quem dava uma resposta aos crimes cometidos, que estavam sujeitos à sua análise e solução. O processo penal ateniense funcionava sob o rito ordinário ou comum. Iniciavase com a citação do acusado por parte do autor na presença das testemunhas, sendo que antes de apresentar a acusação, este deveria fazer juramento de que não estava agindo de má-fé. Posteriormente, o magistrado recebia do autor a acusação com os fatos e fundamentos do pedido, bem como um depósito em dinheiro. As investigações começavam a partir do comparecimento do acusado e, estando o feito devidamente instruído com as provas, o juiz determinava a composição do tribunal e o dia dos debates. Nestes, a acusação tinha a palavra primeiro, depois, o réu, concedendo-se o mesmo tempo para cada um. Finalizados os debates, os juízes estavam aptos a proferir a sentença. Se julgassem pela condenação, havia necessidade de se realizar uma nova sessão, a fim de decidir a pena. Ressalte-se que os juízes não podiam ir além das penas requeridas. Insta destacar que as sentenças proferidas nos tribunais atenienses eram irrecorríveis. Isso porque o povo tinha decisão soberana, não existindo nenhum outro 18 órgão acima dele. O poder de acusar estava em suas mãos e negar isso seria desestruturar toda a organização social de Atenas. Assim, o processo penal na Grécia Antiga era pautado pela participação do povo na acusação e na jurisdição, por meio de debates caracterizados pela oralidade e publicidade. O juiz não interferia diretamente na produção de provas nem nos debates, atuando como sujeito imparcial. Percebe-se, pois, um modelo de processo vinculado ao que hoje entendemos por acusatório. Enfatize-se que os delitos, à essa época, eram divididos em públicos e privados. Em que pese termos tratado da matéria no capítulo anterior, vale frisar que os delitos públicos eram aqueles em que qualquer cidadão poderia exercer o direito de acusação, tratando-se, portanto, de crimes que colocavam em risco toda a sociedade. No tocante aos delitos privados, a legitimidade era conferida somente ao ofendido. Em Roma, também temos manifestações do sistema acusatório. No período Republicano, o poder se concentrava nas mãos dos magistrados, dos senadores e das assembléias populares. O processo se desenvolvia na presença do povo, sendo, portanto, público. Ademais, era respaldado no exercício do direito de acusação, defesa, contraditório e julgamento, sendo que tudo o que ocorria no processo era registrado em ata pelos escrivães. As atas consignavam o nome do acusado e do acusador, as declarações das testemunhas, o fundamento da acusação. A defesa era obrigatória sempre que havia acusação e a instrução probatória cabia ao acusador, não podendo o juiz nela interferir A pena era previamente estabelecida por lei, não podendo ser modificada pelos julgadores. Ressalte-se que no processo acusatório romano, as partes não podiam se socorrer de recursos que viabilizassem a reforma das decisões emitidas pelos julgadores. Isso não era motivo, no entanto, para que algumas delas não fossem reformadas posteriormente. Exemplo é a existência da reabilitação geral, cuja interposição servia para anular os julgamentos providos com base em acusação falsa ou nos quais houvesse desrespeito a formalidades, coação ao acusado, corrupção dos julgadores ou incompetência do tribunal para julgar. 19 Inexistia, ainda, a proteção à coisa julgada. Assim, uma decisão já tomada anteriormente, inclusive decretando a absolvição do acusado, não impedia que a ele fossem novamente imputados os mesmos fatos. No Direito Germânico, predominava o procedimento acusatório, regido pelos princípios da oralidade, concentração, imediatidade e publicidade. Quem tivesse os seus direitos lesados e não optasse por revidar a agressão, podia convocar a assembléia, cuja função era atuar na solução da controvérsia e julgar o acusado. Assim, as partes deveriam fornecer testemunhas, prestar juramento, produzindo provas oralmente, na presença de todos. Na maioria das vezes, era necessário partir para os duelos judiciários, que podiam ocorrer pessoalmente ou por meio de lutadores profissionais, sempre que os julgadores não tivessem outra maneira de decidir o caso em questão. Por outro lado, a confissão tinha, no Direito Germânico, valor inestimável. Cabia ao próprio réu o ônus da prova, devendo ele, portanto, demonstrar sua inocência, sendo as principais provas as “ordálias” ou “juízos de Deus”, e os duelos judiciários. Destarte, o acusado tinha que passar por provas de inocência como de água fria ou fervente e de ferro em brasa, por exemplo. Se as suportasse, era absolvido. 1.3: SISTEMA MISTO OU ACUSATÓRIO FORMAL O sistema misto é assim denominado porque agrega características inquisitoriais, vislumbradas na fase do inquérito policial, e características específicas do sistema acusatório, já que a acusação criminal, a defesa e o julgamento ficam nas mãos de órgãos distintos. Tal sistema processual abarca grandes influências do sistema acusatório privado de Roma e do sistema inquisitivo do período do Direito Canônico. Surgiu, dentre outros motivos, como uma forma de contornar as entraves originadas com o sistema acusatório, no qual o poder de acusação se encontrava nas mãos do povo. 20 Isso porque não era sempre que os cidadãos levavam ao conhecimento das autoridades a prática de crimes, seja por simples falta de interesse ou por ausência da estrutura necessária para arcar com as despesas geradas por uma acusação. Por outro lado, quando acusavam, muitas vezes o fazia por vingança, sem preocupação, portanto, com a real finalidade de aplicação das penas. Importa dizer que somente a partir dos séculos XVII e XVIII, em plena eclosão do iluminismo, deu-se início a um período mais moderno e humano do direito penal e do processo penal, mormente na França, onde se destacaram grandes filósofos como Beccaria, Rousseau, Montesquieu, Bentham, Voltaire, cujas obras foram movidas pelo espírito do “Movimento Científico” da época. Nesse contexto, o Código de Napoleão (“Code d‟Instruction Criminelle”), de 1808, procurou minimizar as arbitrariedades desenvolvidas pelo Inquisitorialismo, sopesando esse modelo com o acusatório. Da necessidade de conciliar esses dois sistemas, surgiu o modelo misto ou “inquisitivo reformado”, o qual tentou equilibrar os direitos e garantias daqueles que sofriam a persecução criminal com a repressão estatal às condutas delituosas. Nessa mesma época, o sistema processual misto entrou em vigor na França, tendo sido ratificado pelo Códe de Procédure Pénale, de 1959. O processo era, então, realizado em três etapas: a da Polícia Judiciária, a da Instrução e a do Julgamento. Num primeiro momento, na fase de instrução preparatória, o juiz procedia às investigações, de forma escrita, sigilosa e sem contraditório e ampla defesa. Num segundo momento, correspondente ao julgamento, assumia o processo feições acusatórias, pautando-se na oralidade, no contraditório e na publicidade dos atos. O sistema misto predominou no cenário da legislação francesa até 1897, quando passou a vigorar a “Lei Constans”, que eliminou o inquisitorialismo da instrução, tornando-a contraditória. Somente em 1933 houve o retorno da aplicação de tal sistema na França, vigorando até os dias atuais. Segundo o modelo processual adotado pelo “Code d‟Instruction Criminelle” de 1808, o processo estruturava-se em duas etapas: a de investigação criminal e a de julgamento. 21 Saliente-se que o acusado deveria oferecer defesa pessoalmente ou por intermédio de advogado, podendo apresentar testemunhas. Estas, que poderiam ser qualquer pessoa, mesmo os menores de quinze anos, eram ouvidas pelo juiz separadamente, sendo o testemunho obrigatório. O julgamento era caracterizado pela publicidade, sob pena de ser considerado nulo. Passou-se a adotar o critério do livre convencimento do magistrado. Assim, o juiz deveria fundamentar suas decisões, sob pena de nulidade. Contra estas, era admitido o recurso de apelação, recebido com efeito suspensivo. Impende destacar que o “Code d‟Instruction Criminelle” de 1808 se preocupava com a celeridade processual, haja vista que estabelecia prazos para a prática de atos processuais quase nunca superiores a três dias. Importante ressaltar que o modelo acusatório formal teve espaço nos países da Europa Continental no século XIX até o início do século XX. Podemos citar o Código de Processo Penal da Hungria, de 1896; da Áustria, de 1873; da Espanha, de 1882; da Itália, de 1913. O sistema misto é basicamente dividido em duas fases, a preliminar e a judicial. A primeira é, via de regra, conduzida por um juiz auxiliado pela Polícia Judiciária, que procede à colheita de informações prévias que possibilitem o exercício da acusação. Essa fase é nitidamente inquisitória, sendo escrita, sigilosa, não contando com as garantias do contraditório e da ampla defesa. Ressalte-se, por oportuno, que há separação entre as atribuições de acusar e julgar, sendo a acusação condição “sine qua non” para a existência de um processo. A fase judicial se inicia com a ação penal, sendo marcada pela existência de contraditório, ampla defesa, publicidade dos debates, que são orais, enfim, pela igualdade de direitos entre acusação e Defesa. Ademais, todos os atos são realizados em audiência, ao lume do Princípio da Concentração. O réu é, nessa fase, sujeito de direitos, sendo-lhe assegurados direitos e garantias processuais, inclusive a de presunção de inocência. 22 1.4: HISTÓRICO DO PROCESSO PENAL NO BRASIL É de suma importância tecermos ainda algumas considerações relativas ao desenvolvimento do processo penal no Brasil antes de passarmos ao próximo capítulo. Quando o Brasil foi descoberto, as Ordenações Afonsinas vigiam em Portugal, em homenagem a Afonso V, tendo perdurado pelo período de 1446 a 1520. Podemos dizer que o Direito Canônico e seu procedimento inquisitorial tiveram espaço, no Brasil, em tais Ordenações, no livro que regulava o Direito Processual Penal. Posteriormente, passaram a vigorar as Ordenações Manuelinas. Destarte, os processos criminais que antes se iniciavam por clamores agora eram instaurados mediante “querelas”, ou seja, acusações, por particulares, de práticas infracionais, seja no seu próprio interesse ou no interesse da coletividade. Os processos também podiam ser iniciados por meio de denúncias, realizadas nos casos de devassas (investigações). Estas e o processo se davam sem a participação do acusado. Mais tarde surgiram as Ordenações Filipinas, que traziam em seu livro V um direito penal cujas penas eram as mais bárbaras possíveis. A pena de prisão não era muito utilizada, sendo aplicada em seu lugar a de morte, os castigos corporais e as mutilações, por exemplo. A ausência de um processo penal pautado pela proporcionalidade das sanções aplicadas, pela igualdade, pelo contraditório e a ampla defesa, e, principalmente, pelo ideal de justiça, começou a causar o sentimento de revolta na sociedade. Era preciso uma reforma humanitária da justiça penal, para que direitos mínimos passassem a ser garantidos ao autor do delito. Dessa forma, a vitória da Revolução Francesa, a Proclamação dos Direitos Humanos e o surgimento das idéias liberais atuaram como fatores decisivos para a reforma da justiça penal, impulsionando o surgimento, em 1832, do primeiro Código de Processo Criminal do Brasil, síntese da sede de mudança que movimentava a sociedade da época. Esse Código extinguiu as “devassas” e as “querelas”, as quais passaram a ser chamadas de “queixas”. A competência passou a ser, regra geral, do Tribunal do Júri, 23 exceto nos crimes menos gravosos e nas contravenções. Ademais, as denúncias podiam ser oferecidas pelo Ministério Público ou por qualquer cidadão, sendo permitido o procedimento “ex officio” em todos os casos. Contava-se, ainda, com a previsão legal do “habeas corpus”. Muito tempo depois, em 1941, foi elaborado o nosso atual Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942, trazendo em seu bojo o sistema acusatório. O novo diploma manteve a estrutura escrita e burocrática e o inquérito policial, além de ter limitado a competência do Tribunal do Júri. Por outro lado, primou pelo contraditório e a ampla defesa, bem como pela separação das atribuições de acusar, defender e julgar. Segundo Eugênio Pacelli de Oliveira7, “[...] inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 1941, em pleno regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias [...]”. Feitas todas essas considerações no que tange ao desenvolvimento do processo penal no Brasil e no mundo, torna-se mais fácil o entendimento sobre o sistema processual adotado pela legislação vigente, englobando os motivos que o levaram a tomar as feições que hoje assume. 7 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 1. 24 CAPÍTULO 2 - O MODELO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 No presente capítulo, faremos uma abordagem acerca do modelo processual penal brasileiro frente à Constituição Federal de 1988. Para tanto, discorreremos sobre os princípios preconizados pela Carta Magna que têm reflexo direto no processo penal, sendo decorrentes dos direitos e garantias fundamentais. Trataremos, ainda, de outros princípios que, embora não tenham expressa previsão na Constituição, também atuam como norte para a atividade processual penal. Sabe-se que o nosso Código de Processo Penal data de 1941, tendo suas raízes na legislação penal italiana produzida em um contexto no qual predominava o regime fascista. Fundado em bases notoriamente autoritárias, não é de se estranhar que o CPP de 1941 tenha adotado posicionamentos no mesmo sentido, sempre preocupado com a segurança pública e pautado na presunção de culpabilidade por parte do agente. Com as alterações realizadas em seu texto ao longo de todos esses anos, como a Lei nº 5.349/67, houve uma maior flexibilidade no tocante às regras restritivas do direito à liberdade, por exemplo, o que já representa um grande progresso. Entretanto, não há que se comparar com a Constituição de 1988, que caminha em direção totalmente oposta a do Código de Processo Penal ao instituir um amplo sistema de proteção aos direitos e garantias individuais. A começar pelo fato de que a nova Lei Fundamental passou a preconizar a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, enfim, um arsenal de direitos açambarcados pelo devido processo legal. A atual ordem constitucional instituiu uma nova visão acerca do processo, a fim de que o mesmo passasse a ser visto como instrumento de garantia do indivíduo frente ao poder estatal e não um fim em si mesmo, um simples veículo de aplicação das leis penais. Nesse sentido, Eugênio Pacelli de Oliveira8, ensina que: 8 OLIVEIRA, 2009, p. 26. 25 Então, que o Direito Processual Penal brasileiro não pode mais ser aplicado com base na estrutura do ainda vigente Código de Processo Penal parece não haver dúvidas. As mudanças, inúmeras, trazidas pela Constituição da República, anunciam novos tempos para o trato da matéria, não só por força de uma interpretação explícita de normas constitucionais em sentido contrário ao Código, mas, sobretudo, pelo grau de maturidade cultural alcançado pelo Estado brasileiro pós-constituinte. Nessa ótica, incrementa o autor aduzindo que “o Direito Processual Penal, portanto, é, essencialmente, um Direito de fundo constitucional”.9 Desse raciocínio, surgem os princípios norteadores da atividade processual penal. Antes de tudo, vale lembrar que os princípios que trataremos agora são reflexos do devido processo legal, que encontra guarida no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, sendo por ele abrangidos. Ademais, decorrem do sistema processual adotado pela Constituição pátria: o acusatório. 2.1.: O DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL É de bom alvitre trazermos à tona o conceito de princípios antes de falarmos sobre os norteadores da atividade processual propriamente ditos. Assim, vejamos o conceito dado por Celso Antônio Bandeira de Mello10: Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. 9 OLIVEIRA, 2009, p. 27. P. 841-842 apud SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006. p. 28. 10 26 2.1.1.: Devido processo legal Esse princípio constitucional, também denominado “due process of law”, é originário do direito anglo-americano e encontra respaldo no art. 5º, inciso LIV, da CF, o qual assegura que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Assim, significa dizer que antes de ser cerceado o direito de liberdade do indivíduo ou de este ser privado de seus bens, necessário se faz o preenchimento de todas as formalidades previstas em lei, visando-se à tramitação regular e legal do processo, na qual se preza pelo respeito aos direitos dos cidadãos. Alexandre de Moraes11, ao tratar do princípio em comento, faz uma brilhante observação. Vejamos: O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal). Desse modo, o “due process of law” assegura ao indivíduo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ser julgado perante o juiz competente, de poder se manifestar sempre depois da acusação, direito à defesa técnica, à publicidade, a decisões motivadas e imutabilidade das mesmas, quando favoráveis e transitadas em julgado, dentre outras garantias. Por sua vez, Frederico Marques12 assegura que O processo só atende a sua finalidade quando se externa em procedimento adequado à lide que nele se contém, de forma a garantir amplamente os interesses das partes em conflito. E no processo penal esse procedimento tem de plasmar-se segundo o modus operandi que assegure “aos acusados a ampla defesa, com recursos a ela inerentes” (art. 153, § 18). Isto significa a consagração do devido processo legal como norma fundamental de procedimento e garantia suprema do ius libertatis. (grifo do autor) 11 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2006. p. 93. 1980, p. 93 apud DEMERCIAN, Pedro Henrique. A oralidade no processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 1999. p. 31. 12 27 Impende destacar que o devido processo legal está consolidado em uma gama de garantias conferidas às partes e ao próprio processo. Ressalte-se, mais uma vez, que do “due process of law” se originam os demais princípios orientadores do processo. 2.1.2: Igualdade processual / Paridade de armas O princípio da igualdade processual é decorrente da idéia de que todos são iguais perante a lei, trazida no bojo do art. 5º da Constituição Federal. Assim, vale dizer que as partes devem ter no processo os mesmos direitos e oportunidades, devendo sempre serem tratadas de forma igual, na proporção de suas igualdades, e de modo desigual, na medida de suas desigualdades. Destaque-se que, no processo penal, tal princípio sofre certa mitigação pelo princípio do “favor rei”, também de status constitucional, que assevera a prevalência do interesse do réu em detrimento da pretensão punitiva. Ou seja, a dúvida deve sempre beneficiar o acusado, absolvendo-o se for o caso, por insuficiência de provas, por exemplo. Vale lembrar que a igualdade pode ser entendida no sentido formal e no sentido material. Aquele determina que todos sejam tratados de modo absolutamente igual, sem distinção de qualquer natureza. A intenção é uniformizar as diferenças, o que por vezes acaba por tratar de forma igualitária o que não o é. O sentido material, por outro lado, compreende que existem desigualdades e que as mesmas devem ser levadas em consideração no momento da aplicação do princípio em comento. Assim, as pessoas devem ser tratadas de forma diferenciada, na proporção de suas desigualdades. A paridade de armas também pode ser vista sob os aspectos formal, ou absoluto, e material. O primeiro diz respeito à concessão de direitos e deveres idênticos às partes, conferindo-lhes as mesmas possibilidades e oportunidades, a fim de que possam desempenhar a atividade de convencimento do magistrado. O defeito dessa 28 visão é que ela acaba por desconsiderar as marcantes desigualdades entre acusação e defesa, que podem ser vislumbradas na prática processual. No tocante ao aspecto material, este encerra a noção de que há patentes disparidades no processo sobre as quais não podemos fazer vistas grossas. Daí a necessidade de se criar mecanismos legais que permitam a criação de desigualdades, de modo a equilibrar realidades ou situações. É necessário, contudo, que, para isso, haja uma fundamentação dotada de plausibilidade. 2.1.3: Contraditório O princípio do contraditório é assegurado pela Constituição Federal no art. 5º, inc. LV, in verbis: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. O contraditório é decorrente do modelo processual acusatório, sendo intrínseco ao direito de defesa. Deriva, sem dúvidas, do devido processo legal, vez que não se pode admitir a existência de um processo, que opera na busca da verdade real, sem dar a oportunidade ao acusado de se defender aos fatos a ele imputados na exordial acusatória. A citação é o ato por meio do qual se dá ciência ao réu de que sobre ele pesa alguma acusação, a fim de que ela possa vir ao processo exercer o seu direito de defesa. No processo penal, por se estar em pauta a liberdade do indivíduo, esse ato jurídico é interpretado de forma diferente do processo civil. Desse modo, o fato de o réu, ainda que citado, não comparecer, não dá ensejo à presunção de veracidade dos fatos contra ele alegados. Pelo contrário, ainda assim terá o juiz, por expressa previsão legal (art. 261, CPP), de nomear-lhe defensor para fazer sua defesa técnica. Observe-se que a nomeação de um defensor ao réu se fundamenta na garantia da paridade de armas, visando se atingir o equilíbrio na relação processual, a fim de 29 que acusador e acusado fiquem no mesmo patamar de igualdade. Tal princípio possibilita, assim, a ambas as partes a produção de provas relativa às suas pretensões. Insta salientar que para o juiz formar seu convencimento e, por conseguinte, dizer o direito, é imprescindível que se dê às partes o direito de produzir provas e sustentar suas razões. O magistrado não pode dar o provimento jurisdicional sem que tenha sido aberto prazo para a manifestação das partes acerca dos atos praticados no processo. A respeito do princípio em comento, Fernando Capez13 faz interessante observação, aduzindo que sua importância foi enfatizada com a Lei 11.690/2008, reformadora do Código de Processo Penal, que deu nova redação ao art. 155, CPP. O referido dispositivo proíbe o juiz de fundamentar sua decisão com base exclusivamente nos elementos informativos colhidos no inquérito policial, ressalvadas as provas cautelares não repetíveis e antecipadas. Deve, portanto, formar sua convicção pela apreciação da prova produzida em contraditório judicial. Depreende-se, então, a relevância do contraditório para a formação do convencimento do magistrado. Destarte, o contraditório pode se visto também com uma forma de conhecimento do caso penal, pois a partir dele forma-se uma estrutura dialética que passa a consistir em um importante instrumento de constituição da decisão judicial, haja vista que permite uma análise mais ampla de toda a matéria de fato e de direito discutida ao longo do processo. Por consequência, o entendimento judicial que é embasado na participação efetiva das partes no processo, com seus argumentos e contra-argumentos, aproximase mais da realidade dos fatos e do direito aplicado a eles, alcançando mais facilmente as expectativas das partes e, muitas vezes, da própria sociedade. Por sua vez, Marco Antônio Marques da Silva14 ensina que: [...] o princípio do contraditório consiste na regra segundo a qual, sendo formulado o pedido ou oposto um argumento a ser culpada certa pessoa, devese dar a esta a oportunidade de se pronunciar; não se decidindo antes de tal oportunidade. O contraditório impõe a conduta dialética do processo. Isso significa dizer que em todos os atos processuais às partes deve ser 13 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 21. P. 46 apud BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório – os limites da atividade instrutória do juiz. São Paulo: LED Editora de Direito Ltda, 2002. p. 44. 14 30 assegurado o direito de participar, em igualdade de condições, [...] de sorte que se produza a verdade processual com equilíbrio e não unilateralmente. O mesmo doutrinador assevera que o contraditório se confunde com a ampla defesa, sendo a exteriorização desta, formando esses dois princípios o alicerce da garantia do devido processo legal. Tal garantia visa, dentre outros objetivos, ao estabelecimento de uma sentença que se adeque perfeitamente ao caso concreto. Dessa maneira, torna-se necessário que o contraditório se produza de forma efetiva e não apenas formal.15 É de bom alvitre destacar que o princípio do contraditório constitui o verdadeiro quesito de validade do processo. A sua não observância implica até mesmo na nulidade absoluta do ato quando causar prejuízo ao acusado. Se houver violação dessa garantia em relação à acusação, deverá ser feita a alegação expressa da irregularidade em sede de recurso, mesmo que se trate de nulidade absoluta, sob pena de preclusão. O próprio Supremo Tribunal Federal, no intuito de assegurar o mais amplo cumprimento desse preceito constitucional, preconizou o seguinte entendimento na súmula 707: “Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”. Configura-se, sem dúvida, uma forma de fazer prevalecer a garantia do contraditório. 2.1.4: Ampla defesa O princípio constitucional da ampla defesa também encontra respaldo legal no art. 5º, inc. LV, CF. Implica no dever do Estado de propiciar ao acusado o direito à defesa plena, englobando a assistência jurídica gratuita aos necessitados. 15 P. 46 apud BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório – os limites da atividade instrutória do juiz. São Paulo: LED Editora de Direito Ltda, 2002. p. 44. 31 Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly16 asseguram que o direito de defesa tem duplo aspecto: subjetivo, que consiste na faculdade de desdizer a acusação, e objetivo, relacionado à defesa propriamente dita, abarcando a autodefesa, a defesa técnica, o direito de produzir provas lícitas e de vê-las apreciadas. No que tange à defesa técnica, corolário do princípio da ampla defesa, temos que para o exercício desta, faz-se exigível a participação de um defensor em todos os atos do processo, até como forma de assegurar a paridade de armas. Na esteira desse posicionamento, vale trazer à baila as palavras do autor Rogério Lauria Tucci17: [...] para ser assegurada a liberdade e, sobretudo, a igualdade das partes fazse imprescindível que, durante todo o decorrer do processo, sejam assistidas e/ou representadas por um defensor, dotado de conhecimento técnico especializado, e que, com sua inteligência e domínio dos mecanismos procedimentais, lhe propicie a tutela de seu interesse e determine o estabelecimento ou o restabelecimento do equilíbrio do contraditório. Justamente em decorrência da necessidade de existência de defesa técnica no processo é que o art. 261, caput, do Código de Processo Penal dispõe expressamente que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. No mesmo sentido, vale transcrever a súmula 708 do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe: “É nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”. Preocupado com o exercício da ampla defesa, o Supremo elaborou também duas outras súmulas, a de nº 705 e a de nº 707. A primeira assegura que “a renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta”. A súmula 707, por sua vez, assevera que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”. 16 DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2001. p. 48. 17 1993, p. 110-111 apud DEMERCIAN, 1999. p. 35. 32 Do entendimento emanado da primeira, temos que nela o conhecimento técnico do defensor é privilegiado, uma vez que a apelação será apreciada por um órgão colegiado. Adicione-se a isso o fato de que o réu, ao ser intimado da sentença e interrogado pelo Oficial de Justiça se deseja ou não apelar dela, muitas vezes nem entende o que lhe é perguntado. Assim, não é justo que não possa ter sua situação modificada em razão da falta de esclarecimento. Em virtude disso é que o defensor pode apelar, mesmo tendo o sentenciado renunciado a esse direito, como forma de exercitar efetivamente o direito de ampla defesa. A seu turno, a súmula 707 é uma novidade no tocante a não ser suficiente a nomeação de defensor dativo para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, se o réu não foi intimado para tal fim. Ela enuncia a prevalência dos princípios constitucionais orientadores do processo penal, haja vista que o direito de se irresignar contra a acusação tão logo esta se inicie já consiste na mais pura manifestação do contraditório e da ampla defesa. O art. 306 do CPP também merece nossa atenção como matéria correlata à defesa, uma vez que em seu bojo encontramos a expressa previsão de que a prisão de qualquer pessoa e o local em que ela se encontre serão imediatamente comunicados ao juiz competente e à família do preso dentro de 24h (vinte e quatro horas), além de ter de ser encaminhada cópia integral do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, caso o indiciado não tenha advogado particular. Reside ai outra notável manifestação da ampla defesa. Indo ainda mais longe, Pacelli18 advoga pela tese de que mesmo as provas obtidas ilicitamente, que são inadmissíveis no processo, devem ser aproveitadas pelo réu, como garantia à ampla defesa, devendo ser esta a posição adotada por um verdadeiro Estado Democrático de Direito. O autor justifica aduzindo que a amplitude do princípio em comento faz com que ele também abarque qualquer espécie de prova existente no ordenamento jurídico, englobando até mesmo aquelas que são vedadas à acusação. Em acréscimo, se se tratar de prova que visa a demonstrar a inocência do réu, pode-se alegar até a supressão de sua ilicitude. 18 OLIVEIRA, 2009, p. 36. 33 Destarte, além de a defesa se realizar por meio da defesa técnica, da autodefesa e da defesa efetiva, ela também se faz por meio de provas capazes de demonstrar a inocência do denunciado, mesmo que sejam ilícitas. Tecendo ainda importantes considerações no tocante à idéia de ser a ampla defesa apenas o “outro lado” ou a “outra medida” do contraditório, o referido autor assevera que, partindo da teoria do processo, o contraditório fica limitado à garantia de participação, ou seja, de a parte poder confrontar qualquer alegação que vá de encontro aos seus interesses. Entretanto, não há maiores indagações a respeito da efetividade com que se exerce esse direito de impugnação.19 Complementa, ainda, o citado doutrinador20: Enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o princípio da ampla defesa vai além, impondo a realização efetiva desta participação, sob pena de nulidade, se e quando prejudicial ao acusado. (grifo nosso) Nesse sentido, temos o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL PENAL – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DEFESA PLENA: Dois princípios incidem no processo penal: contraditório e defesa plena. Esta, por seu turno, é bifronte: defesa técnica e defesa pessoal. A primeira se impõe, ainda que haja oposição do réu. A segunda pode ser desprezada, todavia, o réu tem o direito de exercê-la como parte processual, querendo, tem direito à atuação. O DPP moderno exige que o réu participe, seja ator, não se resumindo a mero espectador do processo. Não é mero pieguismo. Resulta da maneira civilizada de aplicar a sanção penal. O Estado que prende não pode colocar-se na cômoda situação de afirmar que não sabia da prisão por isso, não promoverá a intimação. O Código de Processo Penal precisa ser relido com os princípios modernos do Direito, pois urge repelir o processo com simples esquema formal. (STJ, Sexta Turma, REsp 36.754-9/RJ, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, v. u., DJ, 3 abr. 1995; grifo nosso) 2.1.5: Imparcialidade do juiz Na relação processual são três os sujeitos: acusador, representado pelo Órgão Ministerial ou pelo ofendido, juiz e réu. Aliado ao fato de que não defende interesses de 19 20 OLIVEIRA, 2009, p. 34. Ibid., p. 35. 34 terceiros em nome próprio nem atua em conflito de interesses com as partes, o julgador deve primar sempre por sua imparcialidade. Esta consiste na capacidade subjetiva do órgão jurisdicional, sendo um dos pressupostos para constituir uma relação processual válida. Dessa forma, como o Estado tem a incumbência de administrar a justiça, no intuito de inibir a autodefesa, exige-se do magistrado que tenha desinteresse pelas partes do processo, devendo ele atuar sempre como sujeito equidistante e acima delas, de modo a solucionar os conflitos que lhe são apresentados. Ou seja, deve o juiz prezar pela busca da verdade processual, sem abrir mão de sua posição de sujeito imparcial. Na perspectiva de assegurar essa imparcialidade, a própria Constituição Federal confere garantias aos magistrados, com podemos ver em seu art. 95, impõe vedações, como no parágrafo único do mesmo artigo, além de proibir juízes ou tribunais de exceção, previsão do art. 5º, inc. XXXVII, também do diploma constitucional. Portanto, a imparcialidade do julgador tem por objetivo afastar qualquer possibilidade de interferência em sua atividade de julgar, podendo ele realizar seu trabalho com o máximo de independência possível, primando por uma efetiva prestação jurisdicional. A respeito desse tão importante princípio, Paulo Rangel21 nos aponta interessante posicionamento: A imparcialidade do juiz tem perfeita e íntima correlação com o sistema acusatório adotado pela ordem constitucional vigente, pois, exatamente visando retirar o juiz da persecução penal, mantendo-o imparcial, é que a Constituição Federal deu exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando, nitidamente, as funções dos sujeitos processuais. (grifo nosso) O mesmo autor critica a redação dada ao art. 26 do CPP, qual seja: “A ação penal, nas contravenções, será iniciada com o auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade judiciária ou policial”. Assevera ele que o mencionado dispositivo legal viola frontalmente a imparcialidade do magistrado, 22 vez que autoriza a iniciação da ação penal por portaria expedida pelo juiz. Estaria o órgão 21 22 RANGEL, 2004, p. 20. Ibid. 35 jurisidicional exercendo as funções de acusador e julgador ao mesmo tempo, o que é vedado pelo então sistema processual vigente: o acusatório. Aduz, ainda, o respeitável doutrinador que do mesmo modo, o art. 13, inc. II, do CPP, afronta o princípio em voga, pois permite que o juiz requisite diligências investigatórias na fase do inquérito policial. Na ótica do modelo processual adotado por nossa legislação, o magistrado deve se manter distante da persecução criminal.23 O autor entende que ambos dispositivos de lei foram revogados pela nova ordem constitucional vigente. No entanto, é fato que ainda estão previstos no Código de Processo Penal. De qualquer modo, o juiz, no exercício de sua atividade jurisdicional, deve afastar-se ao máximo da persecução criminal, de maneira a não comprometer seu livre convencimento. Até porque no sistema de provas adotado pelo atual CPP, toda previsão de lei que imponha ao magistrado a colheita de provas é de todo contrária ao ideal de imparcialidade que deve orientar o processo. No tocante a esse ponto, brilhantes são as palavras do mestre Afrânio Silva Jardim24: [...] a tendência de nossa legislação é purificar ao máximo o sistema acusatório, entregando a cada um dos sujeitos processuais funções não apenas precípuas, mas absolutamente exclusivas, o que dá ao réu a segurança de um processo penal mais democrático, na medida em que o órgão julgador tem a sua neutralidade integralmente preservada [...]. Impõe-se banir do nosso sistema processual os resquícios do inquisitorialismo ainda existentes, tais como as regras dos arts. 5º, inc. II, 26, 23, inc. II, 531, todos do Código de Processo Penal, bem como a Lei nº 4.611/65. Tal se deu com a nova Constituição: art. 129 [...]. Destarte, entendemos vedada aos órgãos do Poder Judiciário qualquer atividade persecutória na fase inquisitória, préprocessual. Não é mais o juiz um dos destinatários da notitia criminis, em qualquer de suas modalidades. Não pode mais o magistrado requisitar a instauração de inquérito policial, desempenhando função anômala dentro do sistema acusatório, que se apresenta como pressuposto do “devido processo legal”. (Grifo nosso) Na prática, é uma atividade difícil para o magistrado manter-se imparcial a todo instante, pois ele é um ser humano como qualquer outro, sendo natural que se posicione, de acordo com seus próprios princípios e valores, diante das situações que 23 24 RANGEL, 2004, p. 20. P. 322 apud RANGEL, 2004, p. 23. 36 lhe são apresentadas. Paulo Rangel cita alguns exemplos nos quais a imparcialidade do magistrado pode restar comprometida: o julgamento de um crime de estupro no qual a vítima tem a mesma idade da filha do juiz ou o julgamento de um roubo, sendo que o juiz já passou pela mesma situação da vítima.25 Por isso, torna-se difícil a aplicação cotidiana do princípio da imparcialidade. A esse respeito, Marques da Silva26 assevera que “[...] o magistrado não escapa do impulso de colocar um pouco de si na apreciação das proposições jurídicas e das versões do fato [...]”. 2.1.6: Juiz natural O art. 5º, inc. LIII, da Carta Magna, assegura que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Decorre daí o princípio do juiz natural, segundo o qual todo cidadão tem o direito de ser julgado por um juiz competente, competência esta determinada tanto pela Constituição quanto pela legislação infraconstitucional. Em outras palavras, deve ser o magistrado investido do poder de julgar. Dessa forma, o juiz natural, isto é, constitucionalmente competente, para julgar os crimes dolosos contra a vida, é o Tribunal do Júri, cuja competência encontra respaldo no art. 5º, inc. XXXVIII, da CF. Por outra via, o juiz competente para julgar membros do Ministério Público, bem como os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios é o Tribunal de Justiça do respectivo Estado, por disposição constitucional prevista no art. 96, III, CF. Esse princípio está intimamente ligado à imparcialidade do juízo, apresentando duas vertentes: vedação ao tribunal de exceção (“ad hoc”), pela regra contida no art. 5º, inc. XXXVII, CF, e garantia do juiz competente. 25 26 RANGEL, 2004, p. 21. P. 61 apud BARROS, 2002, p. 42. 37 2.1.7: Presunção de inocência Dispõe a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Tal dispositivo refere-se à presunção de inocência, uma das garantias mais importantes em um Estado Democrático de Direito que se assenta sobre os princípios basilares do sistema acusatório. O princípio da presunção de inocência remonta ao século XVIII, período do Iluminismo, momento em que a sociedade européia lutava contra o sistema inquisitivo então vigente. Era patente a necessidade de proteger os cidadãos contra o poder arbitrário do Estado, que desejava a condenação a qualquer custo, adotando como regra a presunção de culpabilidade. A Revolução Francesa deu origem ao anseio pela proteção dos direitos e garantias fundamentais do homem, fazendo surgir, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em seu art. 9º assim dispunha: Todo homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário, empregado para a efetuar, deve ser severamente reprimido pela lei. Na ótica de parte da doutrina, qualquer medida de coerção pessoal contra o acusado só deve ser efetivada se tiver natureza cautelar, ou seja, se for extremamente necessária. Faz parte dessa corrente o mestre Fernando da Costa Tourinho Filho 27, que diz: [...] Aí está o ponto nevrálgico da questão devidamente solucionado: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. Sendo este presumidamente inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória apenas poderá ser admitida a título de cautela. [...]. Paulo Rangel destoa de parte da doutrina ao não adotar a terminologia “presunção de inocência”, aduzindo para tanto que se o réu não pode ser considerado 27 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 29 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. vol. 1, p. 64. 38 culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória, da mesma forma não pode ser tido por presumidamente inocente.28 Adiciona, ainda, o citado doutrinador, a fim de sustentar seu ponto de vista, que a Lei Fundamental não presume a inocência, apenas declarara que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Assim, para ele, uma coisa é a certeza de culpa e outra é a presunção de culpa.29 Nesse diapasão, ao condenar, o juiz presume a culpa e ao absolver presume a inocência. Para o autor, não há lógica alguma no pensamento de que ao condenar o magistrado presume ser o réu inocente. Em suma, considera que tanto a presunção de culpa quanto a de inocência não têm o condão de violar a Constituição Federal.30 Importa, ainda, salientar que, segundo Capez31, do princípio em comento depreendem-se três aspectos: na instrução processual, inverte-se o ônus da prova como presunção relativa de inocência; no momento destinado à apreciação da prova, sendo esta favorável ao acusado na existência de dúvidas (“in dubio pro reo”); no decorrer do processo penal, mormente no que tange à necessidade de prisão cautelar. Ademais, impende trazer à baila o entendimento emanado do Superior Tribunal de Justiça na súmula 9: “a exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. 2.1.8: Direito à prova e decisões motivadas O direito à prova está intimamente relacionado à ampla defesa, refletindo-se na possibilidade de produzir provas lícitas, participar efetivamente de todos os atos da instrução e, principalmente, influir no convencimento do juiz. Segundo Ada Pellegrini Grinover32: 28 RANGEL, 2004, p. 24. Ibid. 30 Ibid., p. 25. 31 CAPEZ, 2009, p. 39. 32 P. 19 apud DEMERCIAN, Pedro Henrique. A oralidade no processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 1999. p. 37. 29 39 O concreto exercício de ação e defesa, tendo por escopo influir sobre o desenvolvimento e o resultado do processo, fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de se representar ao juiz a realidade do evento posto como fundamento da ação ou da exceção: ou seja, à possibilidade de a parte servir-se das provas. A sistemática adotada pelo Código de Processo Penal confere ao juiz o direito à livre apreciação das provas. No entanto, terá ele de motivar suas decisões, que devem sempre condizer com os elementos trazidos aos autos. Assim, não pode o magistrado relegar as provas produzidas nem os debates e as razões proferidas pelas partes, nos quais tiveram a oportunidade de exercer o contraditório e ampla defesa, colaborando para a formação do convencimento do juiz. Caso contrário, estará o juiz proferindo decisão absolutamente nula. Na esteira desse posicionamento, vale trazer o entendimento do Tribunal de São Paulo, que assim já se manifestou: MOTIVAÇÃO: Ainda que se admita ao juiz, no relatório da sentença, mencionar de forma sucinta as razões de acusação e de defesa, na fundamentação deve abordar as questões relevantes trazidas pelas partes, enfrentando toda a matéria alegada e discutida. Ignorá-la, relegá-la ao omisso, constitui indubitável cerceamento de defesa e implica nulidade por ausência de consideração do exame sobre os pontos debatidos nos autos. (TACrimSP, AC 330/453; grifo nosso) A regra da motivação das decisões está expressa no art, 93, inc. IX, da CF, que assim dispõe: Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (grifo nosso) Ressalte-se que a necessidade de fundamentação das decisões judiciais serve tanto para beneficiar as partes, que terão como impugnar o provimento jurisdicional, via recurso, quanto para a própria sociedade, que poderá avaliar melhor a qualidade dos serviços prestados pelo Judiciário. Além disso, pressupõe uma forma de as instâncias 40 superiores analisarem os motivos que ensejaram a tomada de determinada decisão judicial, a fim de valorá-lo e, por consequência, reformá-lo ou não. Como dissemos anteriormente, o sistema adotado pelo direito pátrio é o do livre convencimento motivado ou da persuasão racional. Tal sistema é divergente do da prova legal, no qual os elementos probatórios têm valor absoluto, não podendo o juiz fazer qualquer valoração subjetiva sobre eles. Também é diferente do sistema do julgamento “secundum conscientiam”, segundo o qual a decisão não tem de obedecer a critério algum. 2.1.9: Publicidade O princípio da publicidade preleciona que os atos processuais serão públicos. Ele encontra previsão tanto no Código de Processo Penal quanto na Constituição da República. Nesta está disposto no art. 5º, inc. LX, o qual assim ensina: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Naquele está disposto no art. 792, caput, segundo o qual: As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos ou tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. Por sua vez, o art. 93, inc. IX, da CF, traz em seu bojo a seguinte redação: Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (grifo nosso) A publicidade do processo é uma garantia do sistema acusatório, vez que neste não se admite mistérios, por ser impossível estabelecer-se o devido processo legal sem serem públicos os atos que lhe compõem. No sistema inquisitivo imperava um 41 procedimento secreto, alheio aos direitos e garantias fundamentais que devem reger um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Em que pese ainda termos em nosso direito um procedimento inquisitivo e sigiloso, o inquérito policial, vale lembrar que o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), relaciona como direito do advogado, no art. 7º, inc. XIV, o de examinar, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, podendo copiar peças e tomar apontamentos. Depreende-se dos artigos supra que vigora no direito pátrio a regra da publicidade absoluta ou publicidade externa, consistente na fiscalização dos atos da Justiça por qualquer um do povo, já que qualquer um de nós pode assistir audiências, julgamentos. Em alguns casos, porém, a publicidade poderá ser restrita (publicidade interna restrita), como no Tribunal do Júri, no momento de votação na sala secreta. Outro exemplo é a interceptação telefônica (art. 1º da Lei nº 9.296/96), a qual a própria lei determina que deve ser realizada sob segredo de Justiça. Isso porque, sendo medida de caráter cautelar incidental, não teria eficácia alguma caso o réu soubesse antecipadamente que seu telefone seria interceptado. Registre-se, por oportuno, que a publicidade restrita é uma exceção à regra. 2.1.10: Duplo grau de jurisdição O princípio do duplo grau de jurisdição constitui uma das mais importantes garantias do Estado Democrático de Direito e decorre do devido processo legal. Consiste na possibilidade de revisão da sentença de primeiro grau, via recurso. Não encontra expressa previsão constitucional, sendo advindo do 5º, inc. LV, in verbis: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (Grifo nosso). 42 Por outro lado, a própria Constituição da República atribui a vários órgãos do Poder Judiciário a competência recursal, como nos arts. 102, II, 105, inc. II e 108, inc. II. Prevê, ainda, no art. 102, inc. I, a inexistência do duplo grau de jurisdição em caso de competência originária do Supremo Tribunal Federal. 2.2: OUTROS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO PROCESSO PENAL Os princípios a seguir elencados não estão expressamente previstos na Constituição de 1988, mas também são decorrentes do sistema acusatório por ela adotado, sendo grandes norteadores do processo penal. 2.2.1: Ação ou demanda Significa que cabe à parte provocar o juiz, vez que este é inerte. Dessa forma, o magistrado não pode ir além do que foi pleiteado pela parte. Aqui se faz interessante abordar questão relativa aos arts. 383 e 384 do CPP, que trazem os institutos da “emendatio libelli” e da “mutatio libelli”, respectivamente. O primeiro assenta que o juiz pode, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência disso, tenha de aplicar pena mais grave. É certo que nesse caso estará o magistrado modificando a capitulação jurídica imputada ao acusado. No entanto, este se defende dos fatos a si atribuídos e não da capitulação jurídica. Dessa forma, tal conduta por parte do juiz não importa em julgamento “ultra petita” (além do pedido). Pelo contrário, ocorre em virtude do princípio “jura novit curia” (o juiz conhece o direito). A anterior redação do art. 384 do CPP dava a entender que o juiz podia mudar a imputação de ofício, sem necessidade de aditamento da denúncia pelo Ministério Público. Somente se houvesse a possibilidade de nova definição jurídica que 43 importasse em aplicação de pena mais grave é que o magistrado baixaria os autos para o Promotor de Justiça aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta tivesse sido instaurado processo em crime de ação penal pública. Com a nova redação advinda da Lei nº 11.719/08, fica claro que o juiz, independentemente da gravidade da pena, não pode atuar de ofício em casos tais, sendo de extrema necessidade o aditamento pelo Órgão Ministerial. Destarte, podemos dizer que o princípio da ação ou da demanda tem suas raízes no sistema acusatório, no qual as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a órgãos distintos. Se é o próprio juiz quem inicia o processo, há uma quebra de sua imparcialidade, tornando-se ele propenso a decidir de modo favorável à pretensão acusatória. É o que ocorria no modelo inquisitivo. 2.2.2: Impulso oficial O juiz não pode iniciar o processo de ofício, mas, segundo o princípio do impulso oficial, sendo aquele instaurado, incumbe ao magistrado impulsioná-lo de ofício, movendo o procedimento de fase em fase até a prestação da tutela jurisdicional. Diferentemente do que ocorre no processo civil, no qual esse princípio é entendido de forma mitigada, vez que as partes podem abreviar ou prorrogar prazos mediante acordo, no processo penal é absoluto, em razão da indisponibilidade. 2.2.3: Identidade física do juiz O princípio supramencionado assegura a vinculação do magistrado aos feitos cuja instrução acompanhou. Com a recente reforma do CPP, realizada pela Lei nº 11.719/08, a identidade física do juiz passou a ser decorrente de lei, com base na 44 redação dada ao art. 399, parágrafo 2º, do diploma processual penal: “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”. Antes, tal princípio só existia no processo penal no que dizia respeito ao Tribunal do Júri, procedimento no qual os mesmos jurados que assistissem aos depoimentos das testemunhas e aos debates deveriam julgar. Com a alteração legislativa, a consagração da identidade física do juiz veio para elevar o princípio da oralidade, que preconiza a concentração dos atos processuais em uma só audiência e o contato do magistrado com as provas dos autos. 2.2.4: Disponibilidade e indisponibilidade Disponibilidade refere-se à liberdade que as pessoas têm de optarem por exercer ou não os direitos que lhes são conferidos pela lei. No processo penal, entretanto, impera o princípio da indisponibilidade, em virtude do caráter público das normas penais materiais. Dessa forma, o Ministério Público não pode desistir da ação penal intentada nem do recurso que interpôs. O Delegado de Polícia não pode deixar de proceder a investigações preliminares do mesmo modo que não pode ordenar o arquivamento do inquérito policial. Por outro lado, a própria lei abranda em alguns momentos a regra da indisponibilidade. É o caso, por exemplo, dos crimes de ação penal privada, que dependem da manifestação do ofendido, podendo este exercer ou não seu direito. Outro exemplo é o da ação penal pública condicionada à representação, que, como o próprio nome enuncia, depende da manifestação da vítima para ser instaurada. 45 2.2.5: Dispositivo e livre investigação das provas O princípio do dispositivo assinala a regra de que na instrução do processo, o juiz depende da iniciativa das partes em produzir provas e proferir alegações nas quais motivará sua decisão. Esse princípio impõe a necessidade de se preservar a imparcialidade do magistrado. Assim, a doutrina majoritária afirma que o dispositivo está relacionado aos poderes instrutórios, impedindo que o juiz tenha iniciativa instrutória no processo penal. A esse respeito, Marcos Vinicius de Abreu Sampaio33 aduz que o princípio em comento “exprime a idéia de que o juiz só poderá proferir uma decisão, com base em fatos provados pelas partes, sendo-lhe vedada a produção de provas outras, mesmo que necessárias ao deslinde da causa”. Em outra vertente, Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Dinamarco, ressaltam que, embora a ampliação demasiada dos poderes do juiz possa restringir a diferenciação entre os processos dispositivo e inquisitivo, a natureza publicista do processo não se coaduna com o fato de o juiz se portar como mero espectador inerte da relação jurídico-processual. Pelo contrário, condiz com uma posição ativa do magistrado, tanto no que tange ao andamento do processo quanto no tocante à determinação, de ofício, de provas e outras providências que dependam da iniciativa exclusiva das partes.34 O mesmo posicionamento é adotado por Fernando Capez35. Segundo ele: É dever do magistrado superar a desidiosa iniciativa das partes na colheita do material probatório, esgotando todas as possibilidades para alcançar a verdade real dos fatos, com fundamento da sentença. Nesse aspecto, Antonio Milton de Barros controverte dizendo que o alargamento dos poderes instrutórios do magistrado soa como afronta ao princípio do dispositivo e ao sistema acusatório, ressurgindo, por conseguinte, o modelo processual inquisitivo. 33 1993, p. 60 apud BARROS, 2002, p. 47. BARROS, 2002, p. 48. 35 CAPEZ, 2009, p. 25. 34 46 Desse modo, resta comprometida a imparcialidade do juiz. 36 A investigação das provas é, assim, livre ao magistrado. O mesmo não se pode dizer quanto à sua produção. Essa importantíssima discussão será melhor abordada no quarto capítulo. 2.2.6: “Favor rei” (“favor innocentiae” ou “favor libertatis”) Esse princípio preconiza que no confronto entre o “ius puniendi” estatal e a liberdade do cidadão, deve ter prevalência esta última. A dúvida deve sempre beneficiar o acusado. Havendo duas interpretações divergentes acerca de uma mesma norma penal, deverá preponderar a que mais beneficie o réu. Reflexos ainda do “favor rei” é o fato de só a Defesa possuir certos recursos, como os embargos infringentes. Ademais, a revisão criminal só pode ser “pro reo”, nunca “pro societate”. 2.2.7: Verdade real Esse princípio tem suma importância no processo penal, já que nesse ramo jurídico trabalha-se com a possibilidade de retirar a liberdade do cidadão. Isso porque esta é a regra; a punição é exceção. Para se punir alguém, é preciso ter provas precisas e suficientes. Desse modo, o processo penal deve ter como objetivo primeiro a busca da verdade real, vez que a pretensão punitiva só pode fazer-se valer diante daquele que efetivamente praticou uma conduta delituosa. O juiz não deve, portanto, conformar-se com a verdade formal trazida nos autos. Muito além disso, tem o dever de averiguar e descobrir como os fatos se deram na realidade, a fim de que possa proferir uma sentença mais próxima do justo. 36 BARROS, 2002, p. 50. 47 A verdade processual consiste na colheita de elementos probatórios suficientes para comprovar, com certeza absoluta, os quesitos de autoria e materialidade. Ademais, é uma forma de reconstituir os fatos, apresentado-os ao juiz como se ele estivesse assistindo a eles. Vale lembrar que a verdade dos autos pode não corresponder à verdade do mundo de fora dos autos. Mesmo assim, faz-se imprescindível que o magistrado disponha de dados necessários, obtidos por meio de provas, para a efetiva prestação da tutela jurisdicional. A esse respeito, Paulo Rangel37 assevera: Afirmar que a verdade, no processo penal, não existe, é reconhecer que o juiz penal decide com base em uma mentira, em uma inverdade. Ao mesmo tempo, dizer que ele decide com base na verdade real, como se ela fosse única, é uma grande mentira. Na mesma linha desse posicionamento, diz Ferrajoli 38: “Se uma justiça penal integralmente „com verdade‟ constitui uma utopia, uma justiça penal completamente „sem verdade‟ equivale a um sistema de arbitrariedade”. Insta ressaltar que a busca da verdade encontra limitações no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo vedado pelo ordenamento jurídico pátrio as provas obtidas por meios ilícitos. Nesse ponto, entram em choque os valores defesa social e liberdade do cidadão, ficando o magistrado impedido de continuar averiguando a verdade em virtude da ofensa ao citado princípio constitucional. Capez39 lista algumas exceções ao princípio da verdade real: vedação de depor imposta a pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, consoante art. 207, CPP; recusa de depor por parte de parentes do réu, segundo art. 206, CPP; impossibilidade de leitura de documento ou a exigência de exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência a outra parte, conforme art. 479, CPP. Via de regra, a verdade real tem natureza absoluta, vez que não é admissível transação entre o infrator da norma e o Estado. Todavia, excepcionalmente, terá caráter relativo, o que ocorre nas infrações de menor potencial ofensivo, nas quais se admite o 37 RANGEL, 2004, p. 5. P. 38 apud RANGEL, 2004, p. 5. 39 CAPEZ, 2009, p. 31. 38 48 instituto da transação penal. Em casos tais, o princípio da verdade real é mitigado, já que em virtude de um acordo entre o Parquet e o acusado interrompe-se a busca por provas contundentes acerca da autoria e materialidade do delito. É também em decorrência da verdade processual que a confissão do acusado não deve ter valor absoluto. Ela deve apresentar perfeita consonância com as demais provas dos autos, conforme preleciona o art. 197 do CPP. Grande discussão gira em torno do art. 156 do CPP, agora com nova redação dada pela Lei nº 11.690/08, a qual confere ao juiz a faculdade de determinar, de ofício, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Além disso, ao lume do mesmo dispositivo legal, pode ainda o juiz ordenar a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, mesmo que não iniciada a ação penal, observando-se a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. A reflexão que se propõe é a de que se estaria sendo violado ou não o sistema acusatório preconizado pela Constituição Federal de 1988, já que nas hipóteses supra prevê-se a figura de um juiz investigador e, por conseguinte, resquícios do processo inquisitivo. A Lei Fundamental vedou a prática pelo magistrado de atos típicos das partes, fazendo distinção entre as atribuições de acusar, defender e julgar, as quais devem ser conferidas a pessoas distintas. Assumir o juiz uma posição de julgador é questionável, pois se estaria colocando em risco sua imparcialidade e, consequentemente, os direitos e garantias decorrentes do devido processo legal. Essa discussão será melhor aprofundada no quarto capítulo. 49 CAPÍTULO 3 – A NATUREZA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL PÁTRIO Levantaremos, neste capítulo, a discussão acerca da natureza do sistema processual pátrio. Muito se indaga na doutrina se ele é acusatório ou inquisitivo garantista. Antes, porém, trataremos das atribuições do Juiz, do Ministério Público e da Defesa no âmbito do processo penal, vez que essa é matéria importantíssima para se identificar o sistema processual de um país. 3.1: SUJEITOS PROCESSUAIS – AS FUNÇÕES DE ACUSAR, DEFENDER E JULGAR Abordaremos neste tópico os principais sujeitos existentes na relação jurídica processual: o juiz, o acusado e o autor. Este último pode tanto ser o Ministério Publico quanto o ofendido. O primeiro representa o Estado, no exercício da função jurisdicional. No processo penal, o autor é aquele que almeja a satisfação de sua pretensão punitiva em relação ao réu, sujeito acusado de ter infringido as normas penais, praticando conduta ilícita. Frise-se que autor e acusado são partes parciais e o juiz, sujeito imparcial. 3.1.1: A função do juiz no processo penal O juiz coloca-se em posição superior às partes, substituindo a vontade delas e dizendo o direito aplicável no caso concreto. Segundo o art. 251 do Código de Processo Penal “ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo, 50 para tal fim, requisitar a força pública”. Depreende-se daí que o magistrado tem função dupla na relação processual. Os poderes conferidos ao magistrado podem ser jurisdicionais, os exercidos dentro do processo, e administrativos, os voltados para a garantia do desenvolvimento regular do processo. Os poderes jurisidicionais podem ser instrumentais ou decisórios, ou poderesmeios e poderes-fins. Os primeiros relacionam-se ao exercício da função jurisdicional. Os segundos, à função de declarar o direito. Dentro dos poderes-meios conferidos ao magistrado podemos encontrar os ordinatórios e os instrutórios. Os ordinatórios pressupõem a condução dos atos do processo até a sentença, sem deixar que vícios maculem o processo, velando sempre pela paridade de armas e pela celeridade processual. São exemplos marcação de audiências, citação por edital, nomeação de advogado para o querelante pobre, nomeação de curador para o ofendido, dentre outros. Já os instrutórios condizem com a colheita de provas a fim de formar a decisão judicial, podendo o juiz até mesmo determinar, de ofício, a realização de diligências, consoante art. 156, inc. II, do CPP, com a nova redação dada pela Lei 11.690/08. Podemos citar como poderes instrutórios do magistrado o art. 168, CPP, que o autoriza a determinar exame complementar em caso de lesões corporais, nos quais o primeiro exame pericial tenha sido incompleto; o art. 176, CPP, que o permite formular quesitos até o ato da diligência; o art. 196, CPP, que o permite a proceder, a todo tempo e de ofício, novo interrogatório do réu; o art. 209, CPP, que o faculta a ouvir outras testemunhas além das arroladas pelas partes; o art. 234, CPP, que diz que o juiz providenciará a juntada aos autos, de ofício, de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa. Por sua vez, os poderes-fins do magistrado compreendem os de decisão e os de execução, como decretação de prisão provisória, concessão de fiança ou de liberdade provisória, absolvição ou condenação, extinção da punibilidade do agente. O juiz conta, ainda, com poderes administrativos, os quais são relativos à prática de atos de polícia, no sentido de manter a ordem no decurso do processo. Para tal fim, pode o magistrado requisitar força policial quando necessário. O art. 792, parágrafo 1º, 51 do CPP, por exemplo, permite ao juiz limitar a publicidade da audiência, sessão ou ato processual quando puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem. Por sua vez, o art. 794, CPP, leciona que a polícia das audiências e das sessões compete aos respectivos juízes, que poderão adotar medidas convenientes para a manutenção da ordem. No mesmo sentido, determina o art. 497 do CPP, com a nova redação dada pela Lei 11.689/08, que compete ao juiz presidente do Tribunal do Júri regular a polícia das sessões e prender os desobedientes, requisitar o auxílio da força pública, mandar retirar da sala o acusado que dificultar a realização do julgamento, dentre outras atribuições. Antonio Milton de Barros40 classifica, ainda, outros dois poderes conferidos aos magistrados: os de disciplina e os decisórios. Os de disciplina englobam as ações positivas do juiz, quando ele determina o que deve ser feito, e as ações negativas, quando desfaz o mal feito pelos auxiliares, partes ou terceiros que venham a intervir no processo. Podemos citar a negação de perícia quando não for necessária ao esclarecimento da verdade, a não permissão de que a testemunha manifeste opiniões pessoais, a negação de acareação por carta precatória, quando for inconveniente. Os poderes decisórios abrangem as medidas coercitivas e cautelares que podem ser determinadas até mesmo de ofício pelo juiz, além de outras como a decretação de ofício da extinção da punibilidade, a ordenação do exame mental do acusado, a decretação e a revogação da prisão preventiva, a determinação de busca e apreensão. Também incumbe ao juiz funções anômalas a exemplo das quais temos a fiscalização do princípio da obrigatoriedade em matéria de ação penal, a requisição de instauração de inquérito policial, o arquivamento do inquérito, o recebimento da “notitia criminis”. 40 BARROS, 2002, p. 69-71. 52 3.1.2: A função do Ministério Público no processo penal A Constituição Federal, em seu art. 127, leciona que: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Destaque-se que na esfera penal, o Ministério Público exerce a função de acusador, sendo essa sua atribuição primordial, já que o processo deve pautar-se no contraditório. Isso não o impede, todavia, de opinar favoravelmente à absolvição do réu, caso se convença da sua inocência. É de bom alvitre não nos esquecermos da função do Órgão Ministerial como fiscal da lei. No exercício desta, ele deve agir de forma imparcial, pleiteando, inclusive, soluções mais benéficas ao réu. A atuação do Ministério Público, no âmbito penal, dá-se por meio da persecução criminal, como exclusivo titular da ação penal pública, seja ela condicionada ou incondicionada. Exceção a essa regra é a ação penal privada subsidiária da pública, cuja titularidade é conferida ao ofendido em havendo desídia por parte do Ministério Público. No tocante à natureza das funções ministeriais, temos quatro correntes. A primeira analisa o Ministério Público como um quarto poder, não fazendo parte, portanto, da visão tripartite dos poderes estatais. A segunda vê o Ministério Público como órgão pertencente ao Poder Judiciário. De acordo com a terceira, do ponto de vista das garantias, vedações e finalidades, assemelha-se o Parquet aos juízes. Do ponto de vista processual, equipara-se às partes privadas. Na ótica da quarta corrente, o Ministério Público é visto como parte comum. Insta salientar que o posicionamento predominante no direito pátrio é o emanado da terceira corrente. Assim, como exerce funções probatória e postulatória no curso do processo, o Ministério Público é parte na relação jurídica processual. Entretanto, é parte que age não na defesa de interesses privados e sim de interesses públicos, exercendo, portanto, acusação pública. Desse modo, nada impede que ele recorra em favor do réu. 53 Dispõe o art. 257 CPP que incumbe ao Parquet promover privativamente a ação penal pública e fiscalizar a execução da lei. O art. 129, CF, reforça aquela primeira atribuição. Da combinação desses dispositivos, verificamos a atividade desempenhada pelo Ministério Público no processo penal, sendo ele “o órgão estatal da pretensão punitiva”41. Na verdade, a necessidade de sua criação se deve ao processo acusatório, no qual a função de acusar não pode ficar nas mãos do órgão que irá julgar, sob pena de restar violado o devido processo legal. O Parquet também possui funções investigatórias, nos termos do disposto no art. 129, incs. VI e VIII, CF, que asseguram ao citado órgão as funções institucionais de expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, e requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Ressalte-se, ademais, que a Lei Fundamental também confere ao Ministério Público a função de exercer o controle externo da atividade policial. Além do mais, cabe a ele a prática de atos que forem necessários ao bom desempenho das atribuições que lhe foram conferidas pela lei. Assim, poderá impetrar mandado de segurança, mesmo que seja contra ato judicial, e “habeas corpus”, por exemplo. 3.1.3: A função da Defesa no processo penal A função da Defesa no processo penal está estritamente ligada aos princípios do contraditório e da ampla defesa, sendo imprescindível para que se tenha um processo consoante o “due process of law”. Impende relembrar que a ampla defesa divide-se em autodefesa e defesa técnica, sendo esta última a que a lei julga cogente. Nesse contexto, a própria Constituição Federal, no art. 133, reconhece o advogado como indispensável à administração da justiça, o que também é reafirmado pelo art. 2º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. O Código de Processo Penal, por sua vez, assegura que 41 BARROS, 2002, p. 80. 54 nenhum acusado será processado ou julgado sem defensor, mesmo que ausente ou foragido (art. 261). O defensor é o representante do acusado, agindo em nome e consoante o interesse deste. Ressalte-se, todavia, que no âmbito processual penal, a representação exercida por ele independe da vontade do acusado, sendo “sui generis”, vez que pode atuar mesmo que o réu não queira. Exemplo disso é a súmula 705 do Supremo Tribunal Federal, que torna possível o conhecimento da apelação interposta pela defesa, mesmo tendo o réu renunciado a esse direito, sem a assistência de defensor. Isso ocorre porque tem o advogado de atuar além dos interesses privados do réu, atingindo os interesses coletivos, para a concreta realização da justiça. Assim, as prerrogativas do defensor nascem da própria legislação processual penal, que torna imprescindível a defesa técnica, indo além da nomeação realizada pelo magistrado bem como do mandato outorgado pelo réu ao advogado. Tem, portanto, o defensor o papel de promover a defesa efetiva do acusado. Essa função é tão importante que o Supremo, por meio da súmula 523, entende que no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta. Faz-se mister aduzir que o defensor pode ser constituído, quando lhe é outorgada procuração; nomeado ou dativo, quando é nomeado pelo juiz, nos casos em que o acusado não tem advogado; e “ad hoc”, quando é nomeado pelo magistrado apenas para um ato específico, ocorrendo na hipótese em que o defensor do réu não comparecer. Destaque-se, por oportuno, que o defensor dativo deverá aceitar a função, sob pena de incorrer em infração disciplinar, a não ser que tenha motivo justificado. Ademais, a qualquer momento pode o réu constituir advogado, dispensando, assim, o defensor dativo. É de bom tom abordar, também, o papel da Defensoria Pública no acompanhamento de processos criminais. Temos, em nosso ordenamento jurídico, a previsão constitucional da Defensoria. A esse respeito, dispõe o art. 5º, inc. LXXIV, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. No mesmo sentido, o art. 134 da Magna Carta assevera: 55 A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, inc. LXXIV. Observe-se que há distinção entre o defensor dativo e o defensor público. Enquanto este é reservado aos necessitados, aquele é responsável pela defesa dos que, mesmo podendo, não constituíram procurador. Já que o acesso à Justiça é direito de todos, nada mais justo do que conferir assistência jurídica gratuita àqueles que não têm condições de contratar um advogado. Essa idéia contribui com o ideal democrático, colaborando para o exercício pleno da cidadania, e mais, com a paridade de armas no âmbito processual. Nesse contexto, é a Defensoria Pública elevada à categoria de função essencial à Justiça, sendo uma forma de assegurar o direito de todos a uma ordem jurídica justa. Em seu exercício, o defensor deve operar com parcialidade, mas essa não é tão ampla como a de seu cliente, e sim limitada pela obrigação de atuar no processo respaldado pela boa-fé, honestidade e lealdade. O defensor público é integrante de carreira organizada do Estado, a quem são conferidas, para o melhor desempenho da função, determinadas garantias, como estabilidade, irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade, independência funcional, dentre outras. Frise-se que a defesa técnica é garantia do devido processo legal, devendo estar presente em toda a persecução criminal, de modo a conferir real legalidade às decisões que emanam do Poder Judiciário. Devendo ser a defesa efetiva, faz-se imprescindível a atuação das Defensorias. O § 1º do art. 134, CF, acrescentado pela EC nº 45/2004, confere à legislação infraconstitucional a atribuição de criar e regulamentar a Defensoria Pública. Já o § 2º, também acrescentado pela mesma Emenda, prevê a autonomia funcional e administrativa das Defensorias Públicas Estaduais, bem como a iniciativa de sua proposta orçamentária. Mesmo assim, pode-se perceber que a Defensoria Pública ainda é uma instituição incipiente e carente de estrutura em nosso país. Muitos estados da federação sequer contam com a figura dos defensores públicos, o que reflete um 56 grande prejuízo para a concretização da justiça, vez que muitas vezes há deficiência de defesa no processo. No entender de Danielle Souza de Andrade e Silva 42, Juíza Federal em Pernambuco: Em geral, é a deficiência da defesa, ou a disparidade verificada entre as partes no plano material (pois, no plano formal, o ordenamento as equipara), que tem servido de alicerce para o incremento da atividade instrutória do juiz em alguns sistemas, adotando-se a relativização do postulado da disponibilidade da prova. Note-se que essa intervenção assistencialista do Estado-juiz em prol de uma das partes não pode ter espaço dentro de um sistema que se diz acusatório. Deve-se, pelo contrário, fomentar a atividade da Defensoria Pública, investindo-se mais nessa instituição de tão grande importância, no intuito de conferir plena efetividade ao direito de defesa, mormente no processo penal, no qual pode restar suprimido o direito de liberdade. Ressalte-se, pois, que a atuação das Defensorias corrobora a adoção do sistema acusatório, sendo um de seus principais suportes. Por fim, insta salientar que a defesa, seja ela dativa, nomeada ou constituída, deve ser efetiva, ou seja, deve ser realizada em prol dos interesses do acusado, sendo analisado cada caso concreto de acordo com suas peculiaridades, mas sempre colocando-se na balança as provas juntadas pela acusação e a possibilidade de seu cotejo pela defesa. 42 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p. 104. 57 3.2: SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO: ACUSATÓRIO OU INQUISITIVO GARANTISTA? Em que pese a Constituição Federal ter adotado o sistema acusatório, ainda que não expressamente, há notável divergência na doutrina acerca da natureza do modelo processual penal brasileiro. Questiona-se se é acusatório ou inquisitivo garantista (misto), vez que traz em seu bojo características inquisitoriais, marcadamente na fase de inquérito policial, somadas a características típicas do modelo acusatório. A esse respeito, Eugênio Pacelli de Oliveira43 assevera com propriedade que como o inquérito policial não é processo e a análise do sistema processual, como o próprio nome já diz, deve limitar-se ao exame da atuação do magistrado no processo, não há que se falar em um sistema misto. O modelo processual brasileiro é, por conseguinte, acusatório, seja em relação às funções de investigação, de acusação ou de julgamento. Sustenta, ainda, o doutrinador que a atuação do magistrado na fase do inquérito policial não viola o sistema acusatório, já que existe apenas no intuito de tutelar as liberdades públicas. Do mesmo modo, não infringe a imparcialidade do juiz e o devido processo legal o fato de o inquérito ser anexado à exordial acusatória. Isso porque toda decisão judicial deverá ser fundamentada, sob pena de nulidade. 44 É uma forma de se fiscalizar o trabalho da Justiça. Desse modo, o inquérito policial é dirigido com exclusividade ao Ministério Público, sendo vedado ao juiz motivar sua decisão tão somente nos elementos informativos coletados na fase investigatória, segundo leciona o art. 155, caput, CPP. A posição ocupada pelo Órgão Ministerial na sala de audiências é vista como inadequada por Pacelli, haja vista que, por estar ao lado do juiz, pode de certa forma intimidar no réu. Todavia, não tem, segundo o autor, o condão de interferir na imparcialidade do magistrado nem muito menos de violar o sistema acusatório pátrio.45 Por fim, salienta que: 43 OLIVEIRA, 2009, p. 8/9. Ibid., p. 9. 45 Ibid. 44 58 [...] limitada a iniciativa probatória do juiz brasileiro ao esclarecimento de dúvidas surgidas a partir de provas produzidas pelas partes no processo – e não na fase de investigação – e ressalvada a possibilidade de produção ex officio daquela (prova) para a demonstração da inocência do acusado, pode-se qualificar o processo penal brasileiro como um modelo de natureza acusatória, tanto em relação às funções de investigação quanto às funções de acusação, e 46 por fim, quanto àquelas de julgamento. (Grifo do autor) Por sua vez, Paulo Rangel47 aduz que nosso sistema não é acusatório puro, pelo ranço do inquisitivismo que paira sobre ele. Nesse sentido, cita o inquérito policial, que, marcado pela sigilosidade e pela falta de contraditório, o indiciado é tido como mero objeto de investigação. Ressalta que o inquérito integra o processo, o que não é correto. O Ministério Público deveria, assim, oferecer a denúncia e retirar dos autos esse instrumento pré-processual, permanecendo apenas as provas não renováveis, como os exames de corpo de delito e as provas periciais. 48 Desse modo, o juiz estaria, de certa forma, imune à contaminação da formação de seu convencimento exclusivamente por provas colhidas em uma fase pré-processual. Em relação ao modelo misto, Paulo Rangel49 tece importantes considerações. Vejamos: Entendemos que o sistema misto (juizado de instrução), não obstante ser um avanço frente ao sistema inquisitivo, não é o melhor sistema, pois ainda mantém o juiz na colheita de provas, mesmo que na fase preliminar da acusação. Acrescenta o autor que: 50 A função jurisdicional dever ser ao máximo preservada, retirando-se, nos Estados democráticos de direito, o juiz da fase persecutória e entregandose a mesma ao Ministério Público, que é quem deve controlar as diligências investigatórias realizadas pela polícia judiciária, ou, se necessário for, realizálas pessoalmente, formando sua opinio delicti e iniciando a ação penal. (grifo nosso) 46 OLIVEIRA, 2009, p. 9. RANGEL, 2004, p. 52/53. 48 Ibid., p. 53. 49 RANGEL, 2004, p. 51/52. 50 Ibid., p. 52. 47 59 Destaque-se a importância das palavras do referido doutrinador ao aduzir que deve ser retirado do magistrado o contato com a fase de colheita de provas, devendo esta ficar a cargo do órgão do Ministério Público, vez que este é o responsável pela acusação penal. Percebe-se que a preocupação gira em torno do fato de restar prejudicado todo o processo em virtude da participação do juiz na fase persecutória. Efetivamente, sua imparcialidade pode vir a ser comprometida, com um juízo prévio de reprovação acerca da conduta do indiciado. Além disso, sob a ótica proposta pelo sistema acusatório, adotado pela legislação brasileira, as funções de acusar e julgar são incumbências de órgãos distintos, Ministério Público e Juiz, respectivamente. O magistrado, ao participar ativamente da persecução penal, estaria extrapolando os limites de suas atribuições e, consequentemente, violando os direitos e garantias que permeiam o sistema processual vigente. Em contraponto ao que pensa Paulo Rangel a respeito do sistema misto, Jacinto Nelson Miranda Coutinho afirma que o modelo processual penal brasileiro é inquisitivo garantista. Aduz para tanto que: O sistema, assim, é tomado como acusatório somente enquanto discurso porque não há, por definição, um sistema com tal natureza, de modo que o dizer misto, aqui, é o reconhecer como um sistema inquisitório que foi recheado com elementos da estrutura do sistema acusatório (por ex: exigência de processo devido, de contraditório, de parte, etc.), o que lhe não retira o cariz 51 inquisitório. Do mesmo modo pensa o professor e juiz Guilherme de Souza Nucci 52, para quem nosso sistema processual é misto. Vejamos: O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal, poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimentos, recursos, provas, etc.) é 51 COUTNHO, Jacinto Nelson Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada. Boletim IBCCRIM, ano 13, n. 159, p. 2, fev. 2006. 52 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 104-105. 60 regido por Código Específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir). Continua o autor: Logo, não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constituição e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje. Sem dúvida que se trata de um sistema complicado, pois é resultado de um Código de forte alma inquisitiva, iluminado por uma Constituição imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. Por tal razão, seria fugir à realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um Código de Processo Penal, que estabelece as regras de funcionamento do sistema e não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto. Na ótica do mestre José Frederico Marques, o processo penal pátrio é acusatório, já que não há a figura do juiz inquisitivo, estando separadas as funções de acusar e de julgar.53 Do mesmo entendimento partilha Tourinho Filho54, com a diferença de que não considera o sistema processual brasileiro um acusatório ortodoxo, vez que cabe ao juiz praticar atos que deveriam ser incumbidos às partes, como requisitar inquérito, decretar, de ofício, prisão preventiva, conceder, sem ter sido provocado, “habeas corpus”, ouvir testemunhas além das arroladas pelas partes, dentre outras atribuições. Ressalte-se, por oportuno, que a jurisprudência pátria tem preconizado a adoção do sistema acusatório pelo direito brasileiro. Esse é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que assim já se manifestou: HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO TRIBUNAL IMPETRADO. JULGAMENTO IMPROCEDENTE. RECURSO INTERPOSTO EM RAZÃO DO RITO ADOTADO EM AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. EXEGESE DO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. [...] 3. A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, 53 54 MARQUES, 2000, p. 67. TOURINHO FILHO, 2007, p. 95. 61 defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma. [...] (HC 121.216/DF, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 19/05/2009, DJ 01/06/2009; grifo nosso) HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO CONDENATÓRIA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTO APRESENTADO PELA DEFESA IGNORADO PELO ÓRGÃO JULGADOR. VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO PENAL E INFRINGÊNCIA AOS ARTIGOS 231 E 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. [...] 2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. [...] (HC 27.684/AM, Rel. Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, julgado em 15/03/2007, DJ 09/04/2007, p. 267; grifo nosso) No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios faz menção em vários de seus julgados ao sistema acusatório. Vejamos alguns: RECLAMAÇÃO REGIMENTAL. JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS ESTADUAIS. SISTEMA PROCESSUAL ACUSATÓRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. DOMINIS LITIS DA AÇÃO PENAL. PRINCÍPIO DA DEVOLUÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 28 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CRIME DE USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI N.11.343/06. JUSTIÇA RESTAURATIVA. DELITO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. PROCEDIMENTO. ART. 79, §2º, DA LEI N.9.099/95 E ARTIGO 48, §5º, LEI N. 11.343/06. TRANSAÇÃO PENAL. JUSTIÇA RESTAURATIVA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. IGUALDADE REAL OU MATERIAL. [...] A decisão que ordena o retorno do Termo Circunstanciado ao Ministério Público para oferecimento de denúncia ou arquivamento caracteriza inequívoca sublevação do Magistrado às normas que informam o sistema processual acusatório brasileiro em que as funções de acusação e de julgamento estão reservadas a órgãos distintos. [...]. (20070210024082DVJ, Relatora Diva Lucy Ibiapina, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, julgado em 25/11/2008, DJ 30/01/2009, p. 82; grifo nosso) CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VARA CRIMINAL E JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. INQUÉRITO POLICIAL. CRIME DE RECEPTAÇÃO. DIVERGÊNCIA DE CAPITULAÇÃO ENTRE A AUTORIDADE POLICIAL E O MINISTÉRIO PÚBLICO. Segundo o sistema acusatório vigente em nosso ordenamento jurídico 62 penal, compete exclusivamente ao Ministério Público a opinio delicti, nos casos de ação penal pública incondicionada, não lhe sendo vinculante a capitulação dada pela autoridade policial. [...]. (20030020097237CCP, Relatora Aparecida Fernandes, Câmara Criminal, julgado em 17/03/2004, DJ 15/06/2004, p. 113; grifo nosso) Por fim, não no intuito de pôr termo a essa discussão, mas tão somente na intenção de abreviá-la, vez que é infindável, transcrevemos as brilhantes e sábias palavras de Geraldo Prado55: Se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, pois que se excluem as jurisdições de exceção, com a plenitude do que isso significa, são elementares do princípio do acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República adotou-o. Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade do processo, pelo menos como regra para as infrações de menor potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que filiou-se, sem dizer, ao sistema acusatório. Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a dinâmica que, pelas relações jurídicas ordenadas e sucessivas, entrelaçam a todos, de acordo com as posições predominantes nos tribunais (principalmente, mas não exclusivamente no Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo admitir, lamentavelmente, que prevalece, no Brasil, a teoria da aparência acusatória. Muitos dos princípios opostos ao acusatório verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal brasileiro, o que melhor implica em considerá-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatório são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar realidade. (grifo nosso) Destaque-se a relevância das palavras de Geraldo Prado. Efetivamente, não temos, na realidade, um sistema acusatório, já que esse é violado todos os dias na prática forense. Vivemos uma verdadeira “teoria da aparência acusatória”, na qual verificamos a extrema e urgente necessidade de reformulação das leis processuais 55 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 195. 63 penais, as primeiras a violarem frontalmente o processo penal acusatório. Faz-se imprescindível a perfeita adequação delas à Lei Maior, de modo a efetivar os direitos e garantias nela previstos. 64 CAPÍTULO 4 - OS LIMITES DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA DO JUIZ A concessão de poderes instrutórios ao juiz sempre foi tema de grande discussão na doutrina pátria. Enquanto parte dela prefere deixar exclusivamente nas mãos das partes o ônus da prova, a outra opta pelo entendimento de que deve o juiz ter iniciativa probatória. Muito se indaga se a iniciativa instrutória do magistrado traria algum prejuízo à sua imparcialidade, e mais, ao princípio acusatório. Com a consagração deste pela Constituição Federal de 1988, como vimos, restou patente a proteção estatal aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, englobando, sobretudo, o devido processo legal, regulamentador de toda a atividade processual. Nesse contexto, seria necessário estabelecer limites aos poderes instrutórios do magistrado no âmbito do processo penal? Antonio Milton de Barros56 assevera que sim, aduzindo que a nova Lei Fundamental apontou novos rumos para a ciência penal e o motivo preponderante para aquela limitação seria o sistema acusatório adotado pela Constituição de 1988, motivo este que se sobrepõe, segundo o autor, até mesmo à questão da imparcialidade do magistrado. Salienta, ainda, que “mais do que poderes, o que o juiz tem, sempre, são deveres”. Em ótica diametralmente oposta, Barbosa Moreira57 sustenta que a neutralidade do juiz não é violada quando realiza atividade instrutória: Há certos tipos de processos dos quais ninguém duvida da possibilidade e da conveniência de uma atividade instrutória ex officio por parte do juiz; por exemplo, o Processo penal. Pergunta-se: porventura no Processo penal é menos valiosa a imparcialidade do juiz? Porventura no Processo penal não será também necessário que o juiz se revele imparcial? (Grifo nosso) Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover 58, em que pese afirmar a importância e a efetividade da iniciativa instrutória do magistrado, frisa que tal atuação do juiz encontra 56 BARROS, 2002, p. 143. P. 180, BARROS, 2002, p. 142-143. 58 BARROS, 2002, p. 178. 57 65 limites no respeito ao contraditório, na obrigatoriedade de motivação das decisões e na licitude e legitimidade das provas, devendo estas estarem de pleno acordo com as normas processuais. Barros59 enfatiza que se o juiz for realmente tomar iniciativa probatória, visando à busca da verdade real, deve ele consultar previamente as partes. Se uma delas não manifestar interesse, o magistrado deve se privar da produção da prova. Acrescenta o autor que, ao se posicionar desfavoravelmente à iniciativa instrutória do juiz no processo penal, não pretende ver diminuído o poder de comando que desempenha o magistrado no processo, ocupando este o lugar de mero espectador. Pelo contrário, muitas outras são as tarefas que lhe são incumbidas e que têm até maior grandeza que a própria produção probatória.60 Analisaremos neste capítulo, dentre outros aspectos, os impactos da atividade instrutória do magistrado no processo penal, bem como seus reflexos na garantia constitucional de um julgador imparcial para atuar na solução das controvérsias. 4.1: A VERDADE NO PROCESSO PENAL: UMA VERDADE REAL? Vimos que o princípio da verdade real coaduna-se com a colheita de elementos probatórios suficientemente capazes de apontar com real clareza a autoria e materialidade dos fatos, no sentido de que a pretensão punitiva estatal só pode realizarse em face daquele que efetivamente praticou uma conduta delituosa. Mais uma vez repetimos, a liberdade é a regra, a prisão é exceção. O problema é a perfeita correlação entre o fato juridicizado, ou seja aquele sobre o qual incide o Direito, e o resultado da atividade jurisdicional exercida pelo Estado-juiz. Assim, o provimento judicial deve se aproximar o quanto puder da norma jurídica, sem se afastar, contudo, do caso concreto e das próprias transformações sociais. 59 60 BARROS, 2002, p. 179. Ibid., p. 180. 66 De acordo com a noção orientadora do processo, deve o juiz analisar os elementos probatórios trazidos aos autos e daí extrair a expressão mais próxima da verdade, a fim de julgar com retidão e justiça. A questão é que, muitas vezes, torna-se difícil, por meio de documentos e depoimentos de testemunhas, por exemplo, reproduzir a verdade dos fatos passados, até mesmo pela impossibilidade de se lembrar de detalhes, muitas vezes importantes, em virtude do decurso do tempo. Assim, o magistrado fica limitado a decidir com base no que efetivamente se encontra nos autos, por mais que sejam elementos não tão esclarecedores da verdadeira realidade dos fatos. Ademais, o conhecimento da verdade esbarra no sistema de garantias imbuídas na Carta Magna, que não admite as provas obtidas por meios ilícitos, por exemplo. Por outra via, a verdade emanada de uma sentença judicial muitas vezes não corresponde ao significado normativo dos fatos. Assim, não é de se estranhar que casos semelhantes julgados por juízos distintos terão, por vezes, soluções totalmente diferentes. O que não se pode admitir, contudo, é que o juiz se valha de elementos estranhos ao processo para formar sua convicção. Desse modo, segundo a Juíza Federal Danielle Souza de Andrade e Silva61, não pode ele produzir provas, “a pretexto de suprir falhas ou omissões apresentadas pelas partes”, sob pena de tornar-se sujeito parcial, favorecendo a uma delas, e, por conseguinte, violar o sistema processual moderno. Assim, na seara processual penal, a dificuldade que se encontra é justamente a de delimitar os poderes instrutórios do magistrado. Considerando que nem tudo o que efetivamente ocorreu no mundo real está nos autos, o juiz acaba por adotar premissas no intuito de formar seu raciocínio. Todavia, essas premissas não são de todo favoráveis, vez que imbuídas dos valores e sentimentos do magistrado. Não nos esqueçamos de que este também é um ser humano, dotado de características, conceitos e posicionamentos próprios. Destarte, do mesmo modo que a verdade fática pode não ser dotada da mais pura certeza, a verdade jurídica sobre a qual paira subjetivismo também é incerta. 61 SILVA, 2005, p. 21. 67 Outro ponto interessante é o fato de a dialética processual respaldar o poder de argumentação, capaz de construir ou de destruir os fatos, deturpando a verdadeira forma como aconteceram. Daí decorre o perigo de se perder a noção de verdade, devendo o magistrado tomar esse cuidado. Assim, não deve ele se basear em verdades intocáveis, mas sim analisar a sustentação das verdades que se pretende atingir. Registre-se que a atual noção de processo justo e humano não comporta violações aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos para se atingir a verdade real. A busca pela verdade deve ser prudente, pautada na razoabilidade, e não desenfreada. Nesse sentido, Francisco Baptista62 ensina que justo é o processo que: [...] não se compadece com violação alguma de garantia fundamental do indivíduo [...]. A verdade necessária à conclusão justa do processo é a que se pode atingir sem arranhaduras na integridade humana do cidadão, não uma verdade real arrancada a qualquer preço. (grifo nosso) A esse respeito, Pacelli63 afirma que talvez o maior desastre causado pelo princípio da verdade real tenha sido a propagação de uma cultura inquisitória, segundo a qual a verdade estava ao alcance do Estado. Este devia persegui-la a qualquer custo, como objetivo primordial do processo penal. Segundo o mesmo autor, tal princípio funcionava para acobertar arbitrariedades por parte das autoridades públicas, bem como para justificar a concessão de amplos poderes probatórios ao juiz, autorizando sua atuação até mesmo de forma substitutiva a do Ministério Público. Com a nova ordem constitucional, isso não é mais possível, assegura Pacelli.64 Ao contrário do que parece, a verdade real não tem caráter absoluto e sim relativo. Isso porque o juiz fica adstrito aos fatos apontados pelas partes, não sendo, portanto, livre para buscar a verdade. Some-se a isso o fato de que não pode valer-se de qualquer meio para acertamento fático. Pelo contrário, deve obedecer ao procedimento que tiver eficácia probatória perante a lei. 62 BAPTISTA, Francisco da Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 186. 63 OLIVEIRA, 2009, p. 294. 64 Ibid., p. 294. 68 No tocante a esse aspecto, Marcos Alexandre Coelho Zilli 65 tece importante consideração. Vejamos: A obtenção da “verdade plena” configura, pois, um mito que não se sustenta diante da realidade imposta pela obediência aos métodos de acertamento regrados por um Estado de Direito. A reconstrução processual-histórica, quando muito, permitirá o descortinamento de aspectos da verdade, situados, assim, em um ponto possível de ser atingido neste caminhar. (grifo nosso) Assim, estaríamos diante não de uma verdade real e sim de uma verdade processual, obtida por vias formalizadas. 4.2: SISTEMAS INQUISITORIAL E ADVERSARIAL Também conhecidos como “inquisitorial system” e “adversarial system”, respectivamente, tais sistemas estão relacionados aos poderes instrutórios do magistrado. O primeiro é originário da Europa continental e dos países que por ela foram influenciados, enquanto o segundo é característico do sistema anglo-saxão. Ambos se manifestam sob a égide do modelo acusatório, em que pese o nome dado ao primeiro. No “adversarial system”, a marcha processual e a produção de provas ficam nas mãos das partes. São atribuídos a estas poderes investigatórios e instrutórios. Incumbem a elas, dessa forma, a inquirição de testemunhas e a consulta de peritos, a título de exemplo. É patente a passividade e a imparcialidade do julgador. O juiz é, portanto, sujeito inerte. O “adversarial system” segue uma ideologia de cunho privatista e liberal, que prega a iniciativa individual e o auto-interesse, a participação dos particulares e o distanciamento, mesmo que aparente, da responsabilidade estatal. 65 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 114. 69 O controle das partes sobre a marcha processual apresenta-se como um freio contra eventuais arbitrariedades por parte do Estado. Além disso, como são as partes que produzem a prova, é mais difícil o magistrado fazer pré-julgamentos, muitas vezes irreversíveis, o que interferiria em sua neutralidade. O juiz reservaria a formação de seu convencimento para o momento oportuno: a sentença. Em acréscimo, o fato de as partes terem a responsabilidade de provar os fatos faz com que elas se esforcem ao máximo para o deslinde da causa. Quanto à inércia do órgão julgador, esta serve para assegurar a sua imparcialidade. Resta clara, mais uma vez, a intenção do sistema adversarial de distinguir as funções de investigar e colher provas das funções de valorar essas provas e proceder ao seu julgamento. Outra característica do sistema em comento é a sustentação de uma disputa bilateral, ou seja, a alternância na produção da prova. Assim, a inquirição de uma testemunha realizada por uma das partes é imediatamente seguida da reinquirição pela outra. Essa dinâmica propicia uma melhor produção da prova, haja vista que permite observar as mais variadas reações das testemunhas frente às perguntas, além de possibilitar um melhor entendimento das informações por parte do juiz, fatores que podem ajudar muito no esclarecimento dos fatos. Outro aspecto é a equidade de limitações e de oportunidades conferidas às partes. É fato que a acusação detém melhores condições no que diz respeito à investigação, por poder contar com vários órgãos encarregados dessa tarefa. No entanto, essa disparidade é compensada quando se confere outras oportunidades à defesa, como a obrigatoriedade da acusação de apresentar todas as provas que beneficiem o réu. Embora propicie todas essas benesses, o sistema adversarial não agrada a todos. As críticas mais comumente dirigidas a ele questionam sua atuação na real descoberta da verdade. Isso porque muitas vezes, as partes, já que são elas quem produzem as provas, utilizam-se de evasivas, subterfúgios que, ao invés de ajudarem o juiz na busca da verdade real, acabam causando mais dúvidas. 70 Os críticos também dizem que a idéia de equidade processual pregada por tal sistema é ilusória, haja vista que as partes não estão, na realidade, em pé de igualdade, mormente no que diz respeito à busca da prova, atividade muito mais fácil para a acusação, que conta com um aparato investigatório mais amplo que o da defesa. Questionamentos acerca do controle das partes na instrução também são frequentes, vez que, na opinião dos críticos, elas acabam abusando de tal poder. Citam como exemplo a preparação das testemunhas para a sua oitiva, no que diz respeito ao conteúdo de seu depoimento. Argumenta-se que essa conduta dificulta a busca pela verdade no processo, interferindo de forma negativa na formação do convencimento do julgador. Destarte, o sistema adversarial não propiciaria ao juiz o real conhecimento dos fatos. O que ele teria seria meras percepções da realidade formuladas pelas partes processuais. Os defensores do sistema adversarial, em contraponto, asseveram que o fato de as partes terem o controle da instrução é benéfico, sob o ponto de vista de que resta efetivada a dignidade humana a partir do momento em que se dá a elas a oportunidade de controlar o processo que decidirá suas vidas. Ademais, aduzem que o sistema em comento comporta regras rigorosas que inibem fraudes ao longo da marcha processual. Por outro lado, indaga-se sobre a morosidade do processo no “adversarial system”, uma vez que se deve respeitar plenamente a oportunidade de argumentação e demonstração de provas, bem como a excessiva dialética acrescida das objeções comumente realizadas pelas partes. Tudo isso torna o procedimento mais lento, segundo até mesmo os seguidores do sistema. No tocante ao “inquisitorial system”, também denominado “processo de desenvolvimento oficial”, este confere participação ativa ao magistrado na produção de provas. Sendo o processo penal de interesse público, deve o juiz preocupar-se com a realização da justiça, prezando sempre pela busca da verdade real. Destaque-se que a base do sistema inquisitorial está no impulso oficial, ou seja, respeitado o princípio da demanda, segundo o qual cabe à parte a propositura da ação, o processo se desenrola por impulso oficial. 71 Insta salientar que pesa sobre o sistema em comento duras críticas advindas de determinados setores da doutrina que se posicionam desfavoravelmente a um julgador ativo na fase probatória. Segundo eles, não há como ser resguardada a neutralidade do juiz nessas condições, uma vez que logo seria tomado por julgamentos prematuros, difíceis de serem vencidos, comprometendo a equidistância necessária para o pronunciamento de uma decisão justa. Defensores do sistema argumentam que conceder poderes instrutórios ao magistrado tem meramente o fim de impedir a ocultação de provas e fatos pelas partes, o que é inadmissível sob a perspectiva do interesse público no processo. 4.3: ATUAÇÃO INSTRUTÓRIA DO MAGISTRADO NO PROCESSO PENAL: VIOLAÇÃO AO SISTEMA ACUSATÓRIO? A marcha processual realiza-se mediante o conjunto entre o juiz e as partes. Na busca da pacificação social, na qual se mostra evidente o interesse público e o respeito às garantias individuais, é necessário que haja cooperação entre os sujeitos do processo. Como assegura Marcos Alexandre Coelho Zilli66, “se a estas (partes) é defeso caminhar sozinhas, tampouco será conveniente a figura de um julgador solitário em sua jornada”. Nesse contexto, o apuramento dos fatos exige iniciativa voltada para a busca de elementos úteis, no intuito de se formar o convencimento do magistrado. Assim, não se trata, segundo Zilli67, de tarefa investigatória, mas tão somente instrutória. Destarte, o que movimenta a iniciativa instrutória do juiz, segundo o citado autor, é um poder de ordem discricionária, limitado a regras que conferem ao magistrado alternativas e possibilidades para a justa e correta aplicação da lei.68 Todavia, o poder-dever de acertamento fático dado ao juiz, embora seja discricionário, deve ser analisado sob o prisma de que o poder é condicionado pelo 66 ZILLI, 2003, p. 117. Ibid. 68 Ibid., p. 120-121. 67 72 dever. Ou seja, os poderes devem ser exercidos tendo em vista o cumprimento dos deveres, de forma a propiciar o efetivo exercício da jurisdição. Desse modo, a iniciativa instrutória do magistrado torna-se de fundamental importância para a concretização do poder jurisdicional. No entender de Marcos Zilli69: [...] o reconhecimento de uma iniciativa instrutória do julgador, nos moldes aqui delineados, não é incompatível com um sistema processual penal de índole acusatória, desde que seja caracterizado, apenas, pela outorga das funções de julgar e acusar a diferentes órgãos. Ao contrário, a função jurisdicional em um Estado de Direito supõe que a aplicação do ordenamento seja efetuada de forma correta e apropriada, o que exige, quando necessário (vale dizer quando as partes processuais fracassam nesta tarefa) uma iniciativa instrutória deflagrada pelo julgador a ser devidamente acompanhada pelas partes. Nestes estritos limites, não haverá violação às características essenciais do sistema acusatório, tampouco aproximação com o sistema inquisitório. Observe-se que o referido doutrinador deixa claro, conforme seu ponto de vista, que a iniciativa instrutória do juiz não destoa do modelo acusatório, sendo, pelo contrário, uma forma efetiva de afirmar e exercer a função jurisdicional em um Estado Democrático de Direito. Há quem entenda diferente. Entretanto, o importante é saber que a iniciativa instrutória do juiz deve guardar perfeita consonância com os parâmetros firmados pela instituição do Estado Democrático de Direito. Destarte, deve observar os princípios orientadores do devido processo legal, como o do juiz natural, o da imparcialidade do julgador, o da presunção de inocência, o da necessidade de motivação das decisões judiciais, o da razoável duração do processo, o da legitimidade das provas, o da publicidade dos atos processuais, o do contraditório e da ampla defesa, dentre outros. Caso contrário, restarão flagrantemente violados os primados de um justo processo. Pode-se, assim, dizer que a iniciativa instrutória do julgador esbarra em princípios constitucionais. Se exorbitar de seus limites, restará prejudicado o sistema acusatório, havendo o resgate de modelos processuais já suplantados. Nos tópicos seguintes, teceremos importantes considerações a esse respeito. 69 ZILLI, 2003, p. 124. 73 4.3.1: Fundamentação legal da iniciativa instrutória do magistrado O anteprojeto do Código de Processo Penal de 1941 trouxe uma inovação bastante expressiva ao consagrar o modelo acusatório puro, afastando o inquisitorialismo até então presente no processo penal brasileiro. Ao lermos a exposição de motivos do CPP de 194170, na parte em que trata da ação penal, deparamo-nos com um modelo de processo especificamente acusatório. Vejamos: O projeto atende ao princípio ne procedat judex ex officio, que, ditado pela evolução do direito judiciário penal e já consagrado pelo novo Código Penal, reclama a completa separação entre o juiz e o órgão da acusação, devendo caber exclusivamente a este a iniciativa da ação penal. [...]. (Grifo do autor) No entanto, mais adiante, o mesmo texto assevera que: [...] o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, 71 as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. [...]. (Grifo nosso) Ao analisar a legislação processual em vigência, o art. 156, CPP, pode ser visto como o dispositivo que fundamenta, de um modo geral, a iniciativa instrutória do julgador. Observe-se que o citado artigo recentemente sofreu alteração em sua redação pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, passando a expor o seguinte: A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. 70 71 Exposição de motivos do código de processo penal, Ed. Revista dos Tribunais, p. 343. Ibid., p. 345. 74 A antiga redação do mesmo artigo dizia: A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Percebe-se que, não obstante o ônus da prova recaia preponderantemente, senão exclusivamente, sobre o acusador, em virtude do princípio da presunção de inocência, é fato que o legislador deixou uma brecha na lei para que o julgador buscasse maiores esclarecimentos, durante a instrução ou antes da sentença, determinando a realização de diligências, a fim de sanar dúvidas sobre ponto relevante. A esse respeito, Marcos Zilli72 ensina que: Não se trata, porém, de uma aventura irresponsável e sufocadora da atuação dos sujeitos parciais. Em um processo penal democrático, cujos contornos acusatórios foram reforçados pela Constituição Federal de 1988, cabe aos sujeitos processuais parciais, originariamente, porém não exclusivamente, a condução do caminhar pela trilha instrutória. Tarefa árdua, sem dúvida, mas jamais aniquiladora da atuação judicial. Afinal, a marcha processual, como mencionado, realiza-se de maneira cooperatória. De acordo com o posicionamento daquele autor, uma vez que o processo decorre da atuação do magistrado em conjunto com as partes, numa atitude amplamente cooperatória, é preciso despir-se do conceito de que o juiz é sujeito superior às partes processuais, sendo, portanto, inatingível. Pelo contrário, é necessário vê-lo como sujeito que caminha ao lado delas.73 Nesse contexto, a iniciativa instrutória do magistrado deve ter caráter complementar. Não consiste ela em enfraquecimento do exercício da jurisdição. Ao invés disso, confere ao poder jurisdicional contornos mais condizentes com um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Ademais, prudência e bom senso devem norteá-la.74 72 ZILLI, 2003, p. 181. Ibid. 74 Ibid. 73 75 No que tange à nova redação do art. 156, CPP, Capez75 salienta que ela é bastante discutível frente ao modelo de processo penal acusatório, haja vista prever um juiz investigador, consequentemente trazendo em seu bojo resquícios do sistema inquisitório. Sob essa ótica, argumenta o autor que: [...] colocar o juiz na posição de parte, incumbindo-lhe atribuições investigatórias e probatórias típicas de acusador, implica vulnerar sua imparcialidade e violar o due process of law. A colheita de prova pelo juiz compromete-o psicologicamente em sua imparcialidade, transformando-o quase em integrante do pólo ativo da lide penal, colidindo frontalmente com diversas normas constitucionais. À vista do exposto, o juiz que participar da colheita da prova, atuando como verdadeiro inquisidor, não estará atuando na função típica de magistrado, ficando, destarte, sujeito ao comprometimento psicológico com a tese acusatória, tão comum às partes. Por essa razão, estará impedido de proferir qualquer sentença ou decisão no processo criminal que vier a se instaurar (CPP, art. 252, II). Esse parece ser o único meio de conciliar o dispositivo em comento com o modelo acusatório brasileiro. [...]. (Grifo nosso) Na esteira do mesmo posicionamento, Paulo Rangel76 certifica que tal dispositivo de lei é a consagração clara do princípio da verdade real, originária do inquisitorialismo, fazendo com que o magistrado assuma o papel de julgador, abandonando sua postura de sujeito distante dos interesses das partes. Torna-se, de fato, um verdadeiro juiz inquisidor. Por sua vez, Pacelli77 entende que é incontestável a inconstitucionalidade do art. 156, I, CPP. Para ele, “o juiz não tutela e nem deve tutelar a investigação”. Isso porque sua atuação no processo somente se inicia com o exame da exordial acusatória. Assim, no inquérito policial, não há justificativa para a atividade jurisdicional enquanto tutela do procedimento inquisitorial. Na verdade, quando determina uma interceptação telefônica ou uma prisão cautelar, o magistrado atua em prol do interesse público, no exercício do “controle constitucional das restrições às inviolabilidades”, e não da investigação criminal em si. Justamente por isso, entende o doutrinador que o juiz não deve tomar providência alguma de ofício na fase de inquérito. Como reflexo dessa afirmativa, traz à 75 CAPEZ, 2009, P. 32. RANGEL, 2004, p. 8-9. 77 OLIVEIRA, 2009, p. 296. 76 76 tona o art. 155, CPP, segundo o qual resta clarividente que o magistrado não poderá decidir com base exclusivamente nas provas colhidas na fase de investigação criminal.78 Posicionamento interessante é adotado por Pacelli ao entender que “dúvida sobre ponto relevante”, da qual trata o inciso II do art. 156, CPP, pressupõe conclusões diversas em torno do conjunto probatório produzido e não sobre o que não foi produzido. Desse modo, apenas a dúvida do juiz sobre alguma prova já realizada é que deve ser admitida, não devendo preponderar o mesmo entendimento quanto à insuficiência ou ausência de provas.79 Nesse sentido, enfatiza que a iniciativa probatória do juiz não pode ser adotada como uma forma subsidiária da atuação do órgão acusador, devendo girar em torno somente de dúvida sobre algum ponto relevante do processo, sob pena de passar a ser uma iniciativa acusatória. No entanto, se for para integrar a prova produzida pela defesa, deve ser aceita sem mais questionamentos, em razão de princípios como a paridade de armas e a presunção de inocência. Dessa forma, o juiz pode requerer de ofício provas não requeridas pela defesa, quando patente a possibilidade de inocentar o réu por meio delas.80 Quanto àquelas não requeridas pela acusação, o juiz deve ter mais cautela, pois se determiná-las de ofício, incorre em sério risco de se concretizar a figura do super juiz dentro do processo, fazendo com que o réu não só tenha de enfrentar o órgão acusador, mas também o juiz travestido de acusador. Por fim, salienta o autor que: [...] o Supremo Tribunal Federal não hesitará em afirmar e, assim, extirpar da ordem processual penal a inconstitucionalidade do disposto no art. 156, I, do CPP, com a redação dada pela Lei 11.690/08. Da fase de investigação, devem cuidar a autoridade policial, que, precipuamente, por ela é responsável, e, também, o Ministério Público, a quem compete, ao final das investigações, emitir juízo acerca da questão penal [...]. Não cabe ao magistrado a aferição e/ou o controle da idoneidade do material investigativo. E isso por uma razão muito simples: não cabe a ele julgá-lo, por ocasião do exercício da jurisdição; o julgamento tem em mira o material produzido essencialmente [...] na fase instrutória, realizada em contraditório, com a 78 OLIVEIRA, 2009, p. 297. Ibid., p. 298. 80 Ibid., p. 397. 79 77 ampla participação e atuação da defesa. Aqui, então, a inconstitucionalidade da medida parece-nos patente, já que relativa à atividade nitidamente acusatória, cuja tutela é constitucionalmente atribuída ao Ministério Público e à 81 autoridade policial. (Grifo nosso) Álvaro Mayrink da Costa82, compactua do mesmo entendimento de Eugênio Pacelli ao afirmar que a iniciativa instrutória do juiz não deve funcionar como atividade supletiva da atuação do Ministério Público. Por consequência, o juiz somente pode impulsionar fase probatória quando já se encontram no processo as provas produzidas. Exemplo é a determinação de acareação ou de nova inquirição de testemunha quando já estão nos autos depoimentos sobre os quais o juiz tenha dúvidas. O que ele não pode fazer, portanto, é buscar a prova, tarefa que incumbe ao Órgão Ministerial. Enfatiza o doutrinador que a dúvida do magistrado deve recair sobre a prova produzida, jamais sobre a insuficiência ou a ausência de atividade probatória.83 Segundo Guilherme de Souza Nucci84, o magistrado não deve se contentar com as provas produzidas pelas partes, principalmente se puder dispor de outros meios para buscá-las. Destarte, assegura o autor que a verdade real na seara processual penal objetiva inserir no magistrado o impulso de busca, não devendo ele se portar como sujeito passivo, como mero espectador da relação jurídica processual, haja vista que estão em pauta a segurança social, de um lado, e, do outro, direitos individuais do cidadão. Grinover85 afirma que o direito processual é ramo jurídico autônomo, orientado por princípios publicistas. Ele está intimamente ligado à jurisdição, cujos fins não se destinam às partes nem a seus interesses privados, e sim ao interesses do Estado, ou seja, à sociedade como um todo. Por conseguinte, o Estado tem por obrigação zelar pelo cumprimento das normas materiais e processuais, a fim de atingir o escopo maior do processo: a 81 OLIVEIRA, 2009, p. 397. COSTA, Álvaro Mayrink da. Limitações da atuação do juiz no sistema acusatório. In: Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 24, jul./dez. 2006. p. 52. 83 Ibid., p. 52-53. 84 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008. p.346. 85 GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 7, n. 27, jul./set. 1999. p. 73. 82 78 pacificação social. Diante essas condições, não pode o juiz ser sujeito passivo, inerte, conformista, e simplesmente se limitar a analisar as provas que as partes produziram. Pelo contrário, deve determinar a produção de outros elementos quando entender necessário, como por exemplo, a oitiva de testemunhas não arroladas pela acusação nem pela defesa. Nas palavras de Grinover86: Nesse quadro, não é possível imaginar um juiz inerte, passivo, refém das partes. Não pode ele ser visto como mero espectador de um duelo judicial de interesse exclusivo dos contendores. Se o objetivo da atividade jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, para o atingimento da paz social, o juiz deve desenvolver todos os esforços para alcançá-lo. Somente assim a jurisdição atingirá seu escopo social. (Grifo nosso) E continua, argumentando que: O papel do juiz, num processo publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo. Deve ele estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto. Deve suprir as deficiências dos litigantes, para superar a desigualdades e favorecer a par condicio. E não pode satisfazer-se com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova. (Grifo nosso) O juiz deve decidir se as provas trazidas aos autos servem de sustentáculo para o seu convencimento, o que não quer dizer que o fim do processo seja a busca da verdade e o julgador só deva proferir sentença quando encontrá-la. De fato, torna-se fundamental sua iniciativa instrutória, e quanto maior ela for, maior grau de certeza terá o magistrado no momento de decidir.87 Essa iniciativa, ao contrário do que muitos pensam, não interfere na imparcialidade do juiz, pois quando ele determina que se produza outras provas não requeridas pelas partes, bem como ouve testemunha não arrolada, ou solicita esclarecimento de perito, ele ainda não sabe o reflexo que essa provas terão, isto é, não sabe se elas beneficiarão o autor ou o réu. Até porque não interessa ao juiz que vença o processo este ou aquele e sim quem tem razão 88, de modo a dar uma satisfação também para a sociedade. 86 GRINOVER, 1999, p. 73. Ibid., p. 74. 88 Ibid. 87 79 Por outra via, a iniciativa instrutória do magistrado não pode ser ilimitada. Ela encontra óbices, segundo Grinover89, no respeito ao contraditório, na obrigatoriedade de motivação e na observância da licitude e da legitimidade das provas. Quanto à primeira limitação, aduz que todas as provas, tanto as produzidas pelas partes quanto as determinadas de ofício pelo juiz, devem ser submetidas ao crivo do contraditório. No que tange à segunda, a decisão que determina uma prova bem como a que profere juízo de valor acerca desta deve sempre ser motivada, sob pena de invalidade da prova. No tocante à terceira, não pode o magistrado determinar a produção de provas que violem a regra da licitude e da legitimidade. Do contrário, elas estarão proibidas de fazer parte do processo. Isso porque “a certeza buscada em juízo deve ser ética, constitucional e processualmente válida” 90. Grinover91 deixa claro, ainda, que a iniciativa instrutória do juiz está adstrita ao processo, o que implica em dizer que não lhe podem ser conferidos poderes para buscar elementos de prova na fase de inquérito, sob pena de se instaurar um verdadeiro juízo-inquisidor, característico do sistema inquisitório. Durante a investigação criminal, o magistrado do sistema acusatório tem a incumbência de determinar tão somente providências cautelares porventura necessárias. No tocante a esse ponto, Sérgio Demoro Hamilton92 ensina: [...] em qualquer medida cautelar, seja ela de caráter pessoal, seja ela de natureza real, desde que observado o sistema acusatório de forma ortodoxa, será vedada a atuação de ofício do magistrado. A providência dependerá, sempre e sempre, da iniciativa do Ministério Público ou do querelante [...]. Do contrário, teremos, como ainda ocorre em nossa legislação, um simulacro de sistema acusatório. (Grifo nosso) 89 GRINOVER, 1999, p. 74. Ibid., p. 75. 91 Ibid. 92 HAMILTON, Sergio Demoro. A ortodoxia do sistema acusatório no processo penal brasileiro: uma falácia. In: Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 12, jul./dez. 2000. p. 206. 90 80 Passemos, agora, à análise de alguns dispositivos do Código de Processo Penal relacionados à iniciativa instrutória do juiz que, na opinião de parte da doutrina, violam os primados do princípio acusatório. Saliente-se que iremos trazer à análise apenas alguns exemplos. Uma leitura do diploma processual penal consentânea com o princípio acusatório logo irá mostrar que existem outros inúmeros dispositivos em confronto com o sistema adotado pelo nosso ordenamento jurídico. 4.3.1.1: Requisição da autoridade judiciária para o início do inquérito policial nos crimes de ação penal pública Dispõe o art. 5º, II, do CPP: Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. (Grifo nosso) Vejamos que a determinação pelo juiz de instauração de inquérito policial pode comprometer de forma irreversível sua neutralidade no processo, não tendo sido essa medida recepcionada pela Carta Constitucional. Por esse motivo, o magistrado deve afastar-se da persecução penal, reservando-se apenas à decretação de medidas cautelares reais ou pessoais nessa fase. Desse modo, se tiver ciência de fatos que ensejam a instauração do citado procedimento administrativo, deve o juiz proceder conforme os ditames do art. 40, CPP, remetendo as cópias e os documentos necessários ao Ministério Público, para o oferecimento de denúncia. Ressalte-se que o Anteprojeto Frederico Marques previa a vedação da requisição pelo juiz de instauração de inquérito, aduzindo, no art. 251, que “o inquérito policial será iniciado com portaria da autoridade policial, ordem do Ministério Público ou com o auto de prisão em flagrante delito”. 81 4.3.1.2: Requisição de diligências pelo juiz na fase de inquérito O art. 13, II, CPP, leciona que “incumbirá ainda à autoridade policial realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público”. A mesma observação realizada no artigo do tópico anterior deve ser aqui refeita. Para não violar o sistema acusatório e, por conseguinte, tornar-se sujeito parcial, o juiz deve se manter distante das investigações criminais, até porque ainda não houve, nessa fase, o início da fase processual, não devendo haver, portanto, a intervenção do Estado-juiz. O próprio art. 129, VIII, CF, diz que é função institucional do Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”. Por tal motivo, entende Paulo Rangel93 que o art. 13, II, CPP, também não foi recepcionado pela Constituição de 1988. 4.3.1.3: A valoração do arquivamento do inquérito policial pelo juiz A regra predisposta no art. 28, CCP, aduz que: Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procuradorgeral, e este oferecerá denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender. Danielle Silva94 certifica que conferir ao juiz a possibilidade de negar o pedido de arquivamento de inquérito feito pelo Ministério Público configura verdadeira afronta ao 93 RANGEL, 2004, p. 59. 82 sistema acusatório, vez que incumbe a este órgão a análise da viabilidade da ação penal de acordo com os elementos informativos colhidos. Desse modo, não cabe ao magistrado, face à necessidade de manutenção de sua imparcialidade, adentrar aos autos de inquérito e avaliar a qualidade do material coletado, bem como intervir na atuação Ministerial e no seu convencimento. Por sua vez, o art. 18 do diploma processual penal confere ao juiz a incumbência de arquivar o inquérito. Diz ele: “depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”. A respeito do citado dispositivo, Paulo Rangel95 entende que a legitimidade para arquivar o inquérito policial pertence ao Ministério Público e não ao juiz, em virtude do princípio acusatório. Caso o Órgão Ministerial entenda pelo arquivamento, deverá submetê-lo ao crivo judicial, para que exerça a fiscalização da obrigatoriedade da ação penal pública. O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de não haver violação à imparcialidade do juiz no caso do art. 28, CPP. Vejamos: HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. DELAÇÃO PREMIADA. JUIZ FEDERAL QUE DETERMINA A REMESSA DOS ELEMENTOS COLIGIDOS PARA INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO. DISCORDÂNCIA DO MAGISTRADO. DEVOLUÇÃO DO FEITO AO PROCURADOR DA REPÚBLICA EM VEZ DE REMETÊ-LO AO PROCURADOR-GERAL. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE. EFETIVA APLICAÇÃO DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 28 DO CPP POR ORDEM DO TRF. ALEGADA IMPARCIALIDADE DO JUIZ NÃO EVIDENCIADA. 1. Não macula a imparcialidade do Juiz a colheita de elementos indiciários tomados em interrogatório em que o réu, por confissão espontânea, revela toda a trama delituosa visando à redução de pena prevista no § 2º do art. 25 da Lei nº 7.492/86, incluído pela Lei nº 9.080/1995 ("Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços."). 2. Ao devolver os autos ao Parquet para reavaliação da opinio delicti não está o Juiz impedido de atuar no processo-crime que venha a ser instaurado, porque age como fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal, sem malferir sua imparcialidade de julgador. Inteligência do art. 28 do Código de Processo Penal. 94 95 SILVA, 2005, p. 113. RANGEL, 2004, p. 59. 83 3. É irrelevante, outrossim, o fato de o Juiz Federal, discordando do pedido de arquivamento, ter devolvido os autos do inquérito para o Procurador da República oficiante no feito, a fim de que reconsiderasse, em vez de remetê-lo diretamente para o Procurador-Geral, como determina o art. 28 do Código de Processo Penal, na medida em que, de um lado, esse modo de proceder não configura nenhuma demonstração de imparcialidade e, de outro lado, o Tribunal a quo, em sede de habeas corpus, determinou o estrito cumprimento do procedimento da lei processual penal, tendo sido a denúncia regularmente processada, depois de ratificada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. 4. Ordem denegada. (HC 58502/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 12/08/2008; DJ 08/09/2008; grifo nosso) 4.3.1.4: A competência por prevenção do magistrado O art. 83, CPP, assim dispõe: Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3º, 71, 72, § 2º, e 78, II, c). (Grifo nosso) Essa regra acarreta incontestável afronta ao sistema acusatório, vez que o juiz, ao determinar, na fase pré-processual, a adoção de medidas cautelares, interceptação telefônica, por exemplo, já começa a realizar uma série de pré-julgamentos. Posteriormente, estará esse mesmo juiz prevento para receber o processo, atentandose para o fato de que ele já estará imbuído daquelas idéias anteriormente concebidas, daqueles pré-juízos acerca dos fatos e das pessoas envolvidas no caso. Por esse motivo, a prevenção do juízo deveria ser uma causa de exclusão de competência e não de fixação da mesma. 84 4.3.1.5: A prisão preventiva decretada de ofício pela autoridade judiciária O decreto de prisão preventiva tem fundamento no art. 311, CPP, in verbis: Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. Paulo Rangel96 se posiciona desfavoravelmente à decretação de prisão “ex officio” durante a fase de investigação, pelas razões já aventadas quanto à imparcialidade do juiz. Assim, entende ele que, enquanto não se instaurar o processo, não pode o magistrado, sem provocação, decretar a prisão preventiva do acusado. 4.3.1.6: A nova redação do art. 212, CPP, e a consagração do sistema acusatório O art. 212, CPP, foi alterado recentemente pela Lei nº 11.690/08, passando a vigorar com a seguinte redação: As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único: Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. (Grifo nosso) A nova estrutura obedece aos ditames do sistema acusatório, reafirmando a necessidade de o juiz manter-se o mais equidistante possível das partes, conservando sua neutralidade na produção da prova e evitando, assim, correr o risco de atuar como substituto do acusador. Dessa forma, resta configurada a produção de provas pelas partes, ficando o juiz, nesse momento, na posição de espectador, sendo-lhe assegurada posteriormente a prerrogativa de complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos. 96 RANGEL, 2004, p. 63. 85 Alguns autores comemoram, portanto, a nova redação, argumentando que foi abolido o sistema presidencialista, no qual o juiz detinha ampla atividade instrutória nessa fase. É o caso de Aury Lopes Júnior97, que assim entende: O antigo sistema „presidencial‟, onde as perguntas eram feitas ao juiz e este as (re)formulava à testemunha, felizmente foi abandonado com a nova redação do art. 212 do CPP. Acerca do assunto, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela nulidade de audiência realizada em desconformidade com o disposto no dispositivo legal em comento, por entender que nessas hipóteses resta amplamente infringido o devido processo legal. Esse foi o caso do julgamento do HC nº 121.216. Vejamos: HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO TRIBUNAL IMPETRADO. JULGAMENTO IMPROCEDENTE. RECURSO INTERPOSTO EM RAZÃO DO RITO ADOTADO EM AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. EXEGESE DO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. 1. A nova redação dada ao art. 212 do CPP, em vigor a partir de agosto de 2008, determina que as vítimas, testemunhas e o interrogado sejam perquiridos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição quando entender necessários esclarecimentos. 2. Se o Tribunal admite que houve a inversão no mencionado ato, consignando que o Juízo Singular incorreu em error in procedendo, caracteriza constrangimento, por ofensa ao devido processo legal, sanável pela via do habeas corpus, o não acolhimento de reclamação referente à apontada nulidade. 3. A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma. 4. Ordem concedida para, confirmando a medida liminar, anular a audiência de instrução e julgamento reclamada e os demais atos subsequentes, determinando-se que outra seja realizada, nos moldes do contido no art. 212 do CPP. (HC 121.216/DF, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 19/05/2009, DJ 01/06/2009; grifo nosso) 97 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 602. 86 Como dito anteriormente, não pretendemos aqui esgotar o tema. Apenas trouxemos, a título de exemplo, alguns dispositivos do CPP questionados por afrontarem, na opinião de muitos doutrinadores, o sistema acusatório. No entanto, há vários outros que sofrem o mesmo questionamento. 4.4: NECESSIDADE DE REFORMAS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL Analisando a atual legislação penal, resta patente a necessidade de que a mesma seja reestruturada a fim de atender aos primados do sistema acusatório. Nesse sentido, assevera Marcos Zilli98 que “a iniciativa instrutória do juiz, está, pois, sujeita a uma nova releitura que a amolde ao espírito democrático e participativo que norteia o Estado agasalhado pela Constituição Federal”. De acordo com Danielle Silva99, isso só será possível com uma reforma eficaz na legislação processual penal. Isso porque o Código de Processo Penal de 1941 encontra-se totalmente ultrapassado pela nova realidade constitucional, sendo que o sistema penal desenhado por esta conflita fortemente com algumas regras daquele diploma. Desse modo, a autora cita algumas modificações do sistema que considera de grande relevância para a reestruturação do mesmo. Faz-se de suma importância a eliminação do ordenamento jurídico penal de dispositivos marcados pela inconstitucionalidade. Também merecem reforma alguns aspectos relacionados à administração de órgãos da Justiça Penal, de modo a tornar mais fácil a operacionalização do sistema. Em relação ao inquérito policial, seria interessante manter sua estrutura básica com a Polícia Judiciária atuando na promoção das investigações. No entanto, é imprescindível aperfeiçoá-lo e distanciá-lo do juiz, que somente terá contato com ele no que tange aos incidentes que necessitem de sua atuação. 98 99 ZILLI, 2003, p. 177. SILVA, 2005, p. 141. 87 É importante, ainda, o controle do trabalho investigatório por parte do Parquet, bem como a simplificação do inquérito, a fim de evitar que diligências sejam repetidas em juízo. Ademais, o aniquilamento das medidas cautelares de ofício é outra solução. Enfatize-se que como é o Ministério Público o autor da ação, a ele é dirigido o inquérito, sendo, portanto, a única instituição que tem legitimidade para dispor e opinar sobre as investigações. Impende ressaltar que uma reforma total do sistema seria bastante válida para a perfeita adequação das leis processuais penais à Constituição Federal de 1988. Todavia, a morosidade decorrente da aprovação de um novo CPP frustra um pouco as expectativas. A saída seria a feitura de reformas específicas, voltadas à modificação de institutos processuais e não somente de dispositivos de lei. Não podemos deixar de citar, porém, a tramitação do anteprojeto de um novo Código de Processo Penal Brasileiro. Uma comissão de nove juristas, presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Hamilton Carvalhido, redigiu o texto com as propostas de reforma, que já foi assinado por José Sarney. O senador Renato Casagrande (PSB-ES) foi autor do requerimento que instalou a referida comissão. A intenção primordial do projeto é adequar a legislação penal aos princípios da Magna Carta. Ele visa desburocratizar a parte investigatória, fazendo com que o processo penal tenha uma tramitação mais célere, restando aos órgãos de investigação a responsabilidade pela parte acusatória e pela formação da culpa. Outra inovação do projeto é introduzir no ordenamento a figura de um juiz garante, incumbido do exame das provas, bem como a necessidade de autorização do Órgão Ministerial para a propositura de ações relacionadas a crimes contra a honra. Há novidade também relativa à derrubada da prisão especial para presos com nível superior de ensino. Por outro lado, visa-se à redução do número de crimes nos quais o Ministério Público tem de intentar ação a despeito do interesse da vítima. Teria-se, então, uma maior quantidade de crimes que exigem a representação desta para se iniciar a ação penal. Uma importante modificação proposta e que se encontra intrinsecamente relacionada ao sistema acusatório é o encaminhamento do Inquérito Policial 88 diretamente ao Ministério Público e não mais ao juiz, como é feito hoje. Isso porque a tarefa de investigação não é incumbência do magistrado. Entra ai a criação da figura de um juiz de garantia, cujo um dos papéis é o exame das provas. O juiz de garantia atuaria, na fase investigatória, somente quando houvesse violação aos princípios fundamentais, como a quebra de sigilo telefônico. Tudo isso para preservar a integridade de sua imparcialidade. 89 CONCLUSÃO Nas sociedades primitivas, não existia a figura do Estado para impor ordens e resolver os conflitos que surgiam. Assim, imperava o instituo da autodefesa, por meio do qual o indivíduo prejudicado impunha sua vontade, fazendo uso da força, se necessário. Com a evolução dos tempos, passamos a contar com o poder estatal, criado no intuito de solucionar as controvérsias que lhe fossem apresentadas. Surge, então, o Estado-juiz, a quem incumbe o poder-dever de dizer o direito. A análise da história revela a existência de um processo inquisitivo, surgido nos regimes monárquicos e que adquiriu notável expressão no Direito Canônico. Ele adveio da idéia de que já não era mais possível deixar a tarefa de acusação nas mãos dos particulares. Era preciso transferi-la ao Estado, quem realmente gozava de melhor estrutura para reprimir os ilícitos penais. Caracterizava-se o sistema inquisitivo pela tortura, pela falta de contraditório e ampla defesa, pela abolição da acusação e da publicidade no processo, enfim, pela total ausência de direitos e garantias fundamentais do acusado. A presunção era de culpabilidade e não de inocência. Ademais, as funções de investigar, acusar, defender e julgar concentravam-se nas mãos do mesmo órgão. O juiz era responsável por todas essas tarefas, havendo, por conseguinte, quebra de sua imparcialidade. O sistema acusatório, pelo contrário, é baseado em princípios e valores consoantes com um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Preza pela publicidade do processo, pelo contraditório e ampla defesa, pela imparcialidade e o livre convencimento do magistrado, que deve ser motivado de acordo com as provas dos autos. Além disso, as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a órgãos distintos, a fim de que não fique o juiz comprometido psicologicamente, vez que é inconcebível atribuir a ele três atribuições tão distintas, sob pena de restar comprometida sua equidistância e imparcialidade no processo. 90 O sistema misto, por sua vez, agrega características inquisitoriais, na fase de inquérito, e características relativas ao princípio acusatório, na fase processual. Com a Constituição de 1988, o Código de Processo Penal hodierno ficou notavelmente ultrapassado, vez que foi inspirado em um regime fascista, amplamente autoritário. A nova ordem constitucional trouxe uma perspectiva diferenciada acerca do processo, não podendo este ser um fim em si mesmo, e sim um amplo sistema voltado aos interesses sociais e às garantias fundamentais de todo cidadão. Isso implica dizer que o Estado brasileiro passou a se assentar sobre as bases do sistema acusatório, sendo inconcebível a partir de agora não analisar a relação processual ao lume dos direitos e garantias previstos constitucionalmente. Nesse contexto, se sobressai o poder-dever do juiz de dizer o direito. Para o exercício da jurisdição, no entanto, faz-se necessário conferir ao magistrado, além de garantias, determinados poderes, dentre eles, os instrutórios. Justamente por isso, passou-se a questionar na doutrina se a iniciativa instrutória do magistrado teria reflexos na imparcialidade que a ele deve ser inerente. E mais, se essa iniciativa traria prejuízos, muitas vezes irremediáveis, ao devido processo legal, e consequentemente, ao processo acusatório. Há quem diga que a atividade instrutória do juiz não pode ser desenfreada. Deve, pelo contrário, ser limitada pelos direitos trazidos no bojo do art. 5º da Magna Carta. A busca da verdade real no processo não deve, portanto, funcionar a qualquer custo, nem ser o escopo maior do processo, sob pena de desrespeito às garantias mais basilares do acusado. Para outros, o juiz deve produzir provas que sejam necessárias para o seu convencimento, desde que elas não tenham sido requeridas por nenhuma das partes. Todavia, há quem entenda que somente na falta de uma prova que deveria ter sido solicitada pela defesa é que o magistrado pode ter iniciativa instrutória, senão atuaria como verdadeiro substituto do órgão da acusação. O réu teria, então, de enfrentar, além deste, a figura do super juiz, travestido de acusador. 91 Inúmeros são os posicionamentos a respeito do tema. No entanto, o que não se pode perder de vista é que o juiz, ao aplicar a lei, tem de fazê-lo pautado pelo bom senso, pela razoabilidade, no intuito de atingir a tão almejada justiça no processo. Mais uma vez, enfatizamos que o nosso objetivo com esse trabalho não é o de repudiar a atividade instrutória do juiz, mas o de tão somente propiciar o espaço adequado para reflexões críticas acerca dessa iniciativa por parte do órgão julgador. E mais, fomentar uma visão mais humana sobre o processo penal, que atenda ao conjunto de direitos e garantias trazidos no bojo da Constituição de 1988. Um Estado que se diz Democrático de Direito não pode comportar atrocidades ao sistema processual preconizado pelo Diploma Legal Maior. Se nosso modelo de processo é acusatório, como afirma boa parte da doutrina, vivemos uma verdadeira aparência acusatória, pois todos os dias os preceitos mais basilares desse sistema são violados na prática forense. Diante essa realidade, é nosso dever sermos mais que operadores do direito. Devemos ir além desse rótulo e atuar como verdadeiros críticos do direito. Operá-lo com prudência é o primeiro passo. 92 REFERÊNCIAS AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Dos sistemas processuais penais. Tipos ou formas de processos penais. Jus navigandi, Teresina, ano 9, n. 727, 2 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6948>. Acesso em: 24 fev. 2009. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Ed. Juruá, 2008. AZEVEDO, Luiz Carlos de. 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