Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul APROPRIAÇÃO INICIAL DA LÍNGUA ESCRITA EM UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL: UM DESAFIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Maria Aparecida Lapa de AGUIAR * (PPGE – UFSC) Bolsista do CNPq ABSTRACT: I have brought up questions to be taken in discussion concerning the initial process of taking up the written language which have emerged from my own experience as a professor in a Pedagogy class in Joinville in Santa Catarina. In response to discussions in the historic-cultural perspective that leads to the acknoledgement of the complexity of the literacy process. KEYWORDS: literacy; language; historic-cultural perspective. 0. Introdução: As discussões contemporâneas sobre a apropriação da língua escrita ressaltam que a criança desde muito cedo em nossa sociedade entra em contato com uma cultura letrada e muito precocemente tem noções a respeito da língua escrita e de seus usos sociais. Assim nos apontam autores contemporâneos e documentos oficiais, como por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais, algumas propostas curriculares de municípios e de estados brasileiros. Esses mesmos documentos e autores defendem ainda que o ato educativo deva ser concebido como um processo social que se realiza em cooperação, ou seja, em situações interativas e mediante uma intervenção pedagógica consciente. Como bem ressalta Di Nucci (In LEITE (org.), 2001: 62), o processo de alfabetização, atualmente, não deve se restringir apenas ao ensino das habilidades de ler e escrever, mas deve se pôr como interdependente ao ensino dos usos sociais da leitura e da escrita, só assim poderemos nos aproximar da dimensão do que seja letramento e do que seja alfabetizar letrando. Para a autora, A descoberta da escrita, pela criança, em uma sociedade instruída, ocorre muito antes do ingresso escolar: ela desenvolve noções de letramento da mesma forma que desenvolve outras aprendizagens significativas. Aprende a significar por escrito o idioma falado. À medida que a criança interage com eventos de letramento de sua cultura, ela elabora hipóteses sobre a função da escrita a partir do conhecimento que tem da língua oral. (DI NUCCI in LEITE (org.), 2001: 62) Desta maneira, alfabetizar na instituição escolar – em um sentido amplo – e nas atuais concepções deve favorecer às crianças (dentre outros aprendizados) a possibilidade de uso e aprimoramento da língua escrita e oral. Tudo isso aponta para um processo de alfabetização que deva assegurar desde o início que as crianças passem a ter contato com a materialidade da língua escrita (a compreensão da organização do sistema de escrita em si) por meio de textos significativos (escritos, lidos, falados, ouvidos). 1 Faz-se necessário ressaltar, que se entende por texto uma unidade de sentido, portanto, uma palavra, por exemplo, como o nome da criança, o nome de um produto, também é um texto, desde que esteja contextualizado e que a partir dele a criança possa ir estabelecendo relações tanto em termos de significado quanto de compreensão grafo-fônica do sistema de escrita. Cabe neste ponto ratificar o que ressalta Larocca e Saveli (in LEITE (org.) 2001) quando afirmam que a perspectiva vygotskiana dá um novo sentido para o processo de apropriação da língua escrita que permite compreender que a língua que se escreve e se lê não é um mero sistema de signos que contêm significações em si, há uma dimensão discursiva, isto é, escrever e ler implicam em produzir sentidos. Sendo assim, é preciso compreender que aprender a escrever envolve dois processos concomitantes: compreender os aspectos gráficos do sistema de escrita e os aspectos discursivos, isso faz com que tenhamos que considerar a escrita em seu aspecto cultural, por isso, as atividades metodológicas propostas * Doutoranda em Educação - Orientadora: Prof.a Dra. Nilcéa Lemos Pelandré. É procedente mencionar a título de ilustração e mesmo de complementação o texto “Letramento e alfabetização: as muitas facetas” apresentado por Magda Soares durante a 26.a Reunião Anual da ANPED (Poços de Caldas, out. 2003) em que a autora discute os conceitos de alfabetização e letramento, apontando para suas especificidades e para a necessária indissociabilidade desses conceitos nas discussões atuais sobre os processos de apropriação da escrita. Há também uma entrevista intitulada “Letrar é mais que alfabetizar” com a mesma autora, com publicação on-line no Jornal do Brasil em 26/11/2000, que aborda aspectos que se relacionam com os que aparecem no texto anteriormente mencionado. 1 em torno do ensino de língua devem levar as crianças a terem acesso à diversidade de textos escritos que circulam no meio social, ou seja, “a aprendizagem da leitura e da escrita está marcada pelo processo de construção de sentidos; por isso é necessário recorrer à dimensão discursiva do ato de ler e de escrever.” (LAROCCA E SAVELI in LEITE (org.) 2001: 215). A partir destas primeiras reflexões, levanto algumas questões para fomentar a discussão sobre os processos iniciais de apropriação da língua escrita que vêm se constituindo ao longo de minha trajetória profissional e que emergiram a partir de minha experiência como professora em um curso de pedagogia de Joinville/SC no trabalho com disciplinas ligadas ao ensino de língua portuguesa. Não é minha intenção responder a todas as indagações, elas apenas balizam o desenvolvimento da linha de raciocínio que irá compor as reflexões pertinentes à discussão sobre os processos de apropriação da escrita presentes neste artigo: - O que é alfabetizar nos dias de hoje? - O que significa ultrapassar os limites da “decifração” do sistema lingüístico? - O que significa trabalhar com texto? O que é texto? - Como trabalhar a materialidade da língua (letras, sílabas) em outra perspectiva que não a dos métodos: silábico, alfabético etc.? - Como trabalhar a heterogeneidade que caracteriza os espaços da sala de aula? - Como ocorrem as interações? - Que concepções de linguagem subjazem os processos de alfabetização? - Que fatores vêm interferindo nas mudanças de concepções sobre a alfabetização? - Que procedimentos metodológicos tem sido usados no que diz respeito à tríade: leitura / produção escrita / análise lingüística? - Como vem ocorrendo a formação acadêmica dos professores para atuarem nas classes de alfabetização? - Como as redes de ensino vêm efetuando a formação continuada de seus quadros de professores alfabetizadores? Essas questões permeiam esse texto, não de forma linear, em alguns momentos se fundem, complementam-se, entrecruzam-se e apontam para o reconhecimento da natureza complexa do processo de alfabetização. Além dessa parte introdutória, este artigo compõe-se de três outros subtítulos e algumas considerações finais. No primeiro subtítulo, faço um breve panorama da perspectiva histórico-cultural no Brasil. No segundo subtítulo, recorro ao postulado de Vygotsky, para explicitar a importância que esse autor atribui à linguagem e mais especificamente ao aprendizado da língua escrita e as contribuições decorrentes desses pressupostos, que podem nos ajudar a pensar sobre a educação e mais especificamente sobre a formação de alfabetizadores para a atualidade. No último subtítulo, abordo a complexidade do processo de apropriação da escrita. Nós, educadores, nestas últimas duas décadas, estamos diante de um desafio: desvelar as multifacetas do processo de apropriação da língua escrita em uma perspectiva histórico-cultural, procurando esboçar um caminho metodológico em que a linguagem possa ser concebida como processo interativo, portanto, vivo, dinâmico e constituído historicamente. 1. Breve contextualização da perspectiva histórico-cultural no Brasil: Há alguns anos temos vivido momentos de grande efervescência nas discussões sobre os processos de ensino escolar: metodologias de ensino são questionadas, concepções sobre ensino/aprendizagem são postas em xeque, a formação do professor é colocada em pauta. Por outro lado, os dados estatísticos de evasão e repetência em nossas escolas nos impulsionam a buscar compreender essas questões e a criar alternativas de atuação pedagógica mais eficazes, mesmo reconhecendo nossas limitações diante da comp lexidade de relações que envolvem a questão educacional. É nesse contexto que chegaram até nós − educadores dos anos 80/90 2 − as discussões sobre a abordagem histórico-cultural desenvolvida por Vygotsky, entre a segunda e a terceira décadas do s éculo passado, que trazem importantes contribuições ao debate. Alguns conceitos elaborados por esse autor nos possibilitam um novo entendimento do que seja a apropriação do conhecimento e salientam a relevância da linguagem para os processos cognitivos. Vygotsky compreendia o ser humano como um ser social que se constitui pela sua participação em atividades compartilhadas com outros seres, em sua luta pela sobrevivência, ou seja, no decurso do trabalho consciente de homens e mulheres. Em sua perspectiva, por conseguinte, o desenvolvimento humano é concebido 2 É procedente lembrar que as obras de Vygotsky, mesmo sendo escritas nas décadas de 20 e 30 deste século, começaram a ser conhecidas pela maioria dos educadores brasileiros só a partir da década de 80. como um processo culturalmente organizado, sendo um campo aberto de possibilidades, a intervenção pedagógica intencional em contextos específicos de ensino é fundamental. Os pressupostos de Vygotsky sobre a apropriação do conhecimento e a relevância da linguagem para os processos cognitivos instigaram e instigam muitas reflexões sobre as questões da linguagem e mais especificamente sobre a língua escrita, ao ponto de se tornar matriz teórica de propostas curriculares e influenciar documentos oficiais, como por exemplo, a Proposta Curricular de Santa Catarina, a Proposta do Município de Florianópolis e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s). 2. A abordagem vygotskiana:3 Em sua investigação, Vygotsky procurou demonstrar como ocorre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores − próprias da espécie humana: o controle consciente do comportamento, a atenção voluntária, o pensamento abstrato, a capacidade de planejamento, a memória lógica, a formação de conceitos etc. Para tal estudo, ele recorreu à infância, pois entendia que, mediante a compreensão do processo de apropriação de conhecimento, nessa fase da vida do ser humano, conseguiria-se capturar a gênese de duas formas de conduta tipicamente humanas: o uso dos instrumentos e a linguagem. Para Vygotsky, as raízes genéticas dessas duas formas de conduta que seriam fundamentalmente culturais, apareceriam ainda na primeira infância. Tal fato poderia ser considerado a pré-história do desenvolvimento cultural, porque estaria posta a possibilidade de desenvolvimento dessas formas de conduta cultural no aparato fisiológico (mãos e aparelho fonador, respectivamente). No entanto, seria a mediação social que iria proporcionar a apropriação desses dois aspectos eminentemente humanos: o uso consciente de instrumentos e da fala. De acordo com o autor, há entre os seres humanos relações diretas e mediadas. As relações diretas correspondem às formas primitivas, instintivas, de movimentos e ações expressivas. Por exemplo, as primeiras formas de contato da criança: os gritos, as tentativas de puxar o outro pelo braço etc. As relações mediadas são aquelas em que se interpõe a mediação cultural − o signo − graças ao qual se estabelece a comunicação. É na imbricação dessas duas relações que se processam as formas superiores de conduta. A comunicação, que se baseia na compreensão racional e na transmissão premeditada do pensamento, utiliza-se de um sistema de meios que tem sido, é e será a linguagem humana, surgida da necessidade de comunicação no trabalho. Essa comunicação pressupõe a generalização e o desenvolvimento do significado verbal. Ou seja, a linguagem funciona como um instrumento mediador. Através dela, a criança vai formando conceitos sobre o mundo que a cerca. Vygotsky aponta para dois tipos de conceitos, os cotidianos e os sistematizados ou científicos. Este autor utilizou-se do aprendizado da linguagem escrita como um exemplo do processo de elaboração de um conceito científico. Para ele, a linguagem escrita não é a simples tradução da linguagem oral em signos escritos, e o domínio da escrita não se reduz a assimilar simplesmente a técnica de escrever. Trata-se de uma função totalmente especial da linguagem, distinta da oralidade, tanto como são diferenciadas a linguagem interna e externa, por sua estrutura e modo de funcionamento. Vygotsky afirmou que a linguagem escrita se constitui em um sistema especial de símbolos e signos cujo domínio significa uma virada crítica em todo o desenvolvimento cultural da criança. O significado do domínio da linguagem escrita para a criança corresponde ao domínio de um sistema de signos simbólicos extremamente complexos. Sendo assim, ele conclui que é evidente que o domínio da linguagem escrita é o resultado de um longo desenvolvimento das funções superiores do comportamento infantil. Assim, para Vygotsky (1995), para que a criança chegue a esse descobrimento fundamental deve compreender que, não somente se podem desenhar as coisas, e sim também a linguagem. Esse foi o descobrimento que levou a humanidade ao método da escrita por letras e palavras. Esse fato eqüivaleria a passar do desenho de objetos ao de palavras. Na perspectiva do autor, a linguagem escrita possui uma longa história, complexa, que se inicia muito antes que a criança comece a estudar a escrita na escola. A primeira tarefa de investigação científica é a de descobrir a pré-história da linguagem escrita da criança, para que se possa conhecer as etapas preparatórias desse desenvolvimento. Segundo Vygotsky (1993), na apropriação da linguagem escrita, há a exigência da tomada de 3 As sínteses que se fazem presentes neste texto no que diz respeito à abordagem vygotskiana têm uma relação efetiva com minha dissertação de mestrado (1998) e também com minha trajetória profissional anterior. Fui professora na Rede Municipal de Educação de Florianópolis na época da implementação do “Movimento de Reorientação Curricular” e participei de um projeto piloto (1a a 4a série) em que pude trabalhar dentro do enfoque da perspectiva histórico-cultural, pois a discussão que se estabelecia apontava como teoria oficial a perspectiva da pedagogia histórico-crítica, incorporando as contribuições da psicologia histórico-cultural. Esse movimento ocorreu durante a gestão 93/96 da Administração Popular (Essa administração foi formada pela coligação de partidos da Frente Popular (PCdoB, PT, PCB, PPS, PDT, PSB) − uma frente de oposição que teve como Prefeito Sérgio Grando; vice-prefeito Afrânio Boppré e como Secretária da Educação Doroti Martins). O projeto pedagógico se efetivou nos anos de 1994/95, com o acompanhamento mensal de alguns membros da equipe pedagógica da Secretaria da Educação. consciência da estrutura fônica das palavras para que possam ser representadas em signos. A linguagem escrita obriga a criança a atuar de modo consciente sobre o próprio processo da fala e consequentemente eleva-se o desenvolvimento da linguagem a um grau superior. Vygotsky pôs, dessa forma, a linguagem escrita na ordem de um conceito científico. Sendo assim, só poderia ser desenvolvida mediante intervenção pedagógica intencional, ou seja, através de processo de ensino que levasse a esse aprendizado: produto do desenvolvimento históricocultural dos seres humanos. Nas palavras de Oliveira (1995, P. 12), [...] o indivíduo não tem instrumentos endógenos para percorrer, sozinho, o caminho do pleno desenvolvimento, o mero contato com objetos do conhecimento não garante a aprendizagem, assim como a imersão em ambientes informadores não promove, necessariamente, o desenvolvimento, balizados por metas culturalmente definidas. A intervenção deliberada dos membros mais maduros da cultura no aprendizado das crianças é essencial ao seu processo de desenvolvimento. Na perspectiva de Vygotsky, o bom ensino é aquele que parte do que a criança é capaz de realizar em colaboração com adultos ou crianças mais exp erientes. Pois o que ela consegue fazer com ajuda em um determinado momento, poderá superar e fazer por si só, em outro momento. A distância entre o que a criança é capaz de realizar sozinha (nível real) e o que ela é capaz de realizar com a ajuda de pessoas mais experientes (nível potencial) constitui a categoria que Vygotsky denominou de “Zona de Desenvolvimento Próximal”. Vygotsky compreendia o ser humano como um ser social que se constitui pela sua participação em atividades compartilhadas com outros seres, em sua luta pela sobrevivência, ou seja, no decurso do trabalho consciente de homens e mulheres. Em sua perspectiva, por conseqüência, o desenvolvimento humano é concebido como culturalmente organizado, decorre daí a ênfase nos processos educativos. Quando refletimos a partir deste ponto de vista levantado por Vygotsky sobre a relevância dos processos educativos, podemos remetê-los também a necessidade do próprio professor ver-se como um profissional, cuja característica principal, deveria ser (se não o é) a busca pelo conhecimento e aprimoramento teórico-metodológico. Baquero (1998) salienta a importância que Vygotsky atribuía à educação, afirmando que o campo educativo constituía-se em um problema inerente a sua teoria geral do desenvolvimento psicológico. Por isso, sua ênfase no domínio dos meios culturais. Na abordagem vygotskiana, “... ganha primazia a ‘linha cultural’ de desenvolvimento dos processos superiores especificamente humanos” (BAQUERO, 1998: 28). Ainda de acordo com Baqueiro (1998), muito embora Vygotsky não dedicasse consideração especial ao aspecto biológico da espécie humana, salientou a distinção entre este e o social e os compreendeu na história individual de cada ser como estritamente imbricados, como uma unidade de formação sócio-biológica. A linha natural de desenvolvimento diz respeito aos processos de maturação e crescimento, enquanto que a ‘linha cultural’ trata dos processos de apropriação e domínio dos recursos e instrumentos de que a cultura dispõe. Esse processo de formação de funções superiores, que caracteriza os seres humanos, não pode ser visto como um processo linear. Ao contrário, trata-se de um movimento complexo de mútua apropriação entre sujeito e cultura, pautado nas operações com signos. A formação das funções psíquicas superiores constitui-se em uma das idéias centrais do pensamento vygotskiano. E a linguagem é o exemplo paradigmático que Vygotsky usa para descrever os processos de formação dessas funções, constituindo-se no instrumento central de mediação na interiorização desses processos psíquicos. (BAQUERO, 1998) Morato (1996) também acentua a importância das contribuições vygotskianas para as discussões atuais sobre a linguagem e o processo cognitivo. Para a autora, as idéias de Vygotsky nos indicam que a interação social e o processo educacional se constituem como o motor da transformação qualitativa da cognição humana. Assim, a perspectiva histórico-cultural, ao lidar com uma compreensão de desenvolvimento que se efetiva no decurso da humanização, concebe as duas facetas do ato educativo − aprendizado/ensino − como uma unidade construída na dinâmica da sociedade e da cultura e permeada pela atividade simbólica que exerce um papel primordial na apropriação do real. A linguagem, como sistema simbólico básico de todos os grupos humanos, irá fornecer ao sujeito formas de perceber e organizar o real. Neste sentido, a contribuição de Vygotsky é fundamental para as reflexões no campo educacional. Ao se pensar sobre os processos de ensinoaprendizagem, portanto, temos que enfocar também a formação dos docentes como uma prioridade para que se objetivem as mudanças que se fazem necessárias. Diante de todas essas reflexões, a nosso ver, o professor alfabetizador precisa ser conscientizado sobre a relevância da linguagem na constituição humana e sobre o fato de que a apropriação da linguagem escrita não se dá naturalmente, ou seja, acontece por intermédio da mediação de falantes/escribas da língua, portanto, precisa reconhecer o seu papel significativo como mediador desse processo. Em nosso entendimento, os estudos vygotskianos constituem-se em um dos fundamentos para subsidiar essas reflexões que deverão estar na pauta de discussão de quem trabalha com formação de professores das séries iniciais do ensino fundamental. Se a linguagem é entendida como um dos aspectos básicos mais significativo do comportamento cultural do ser humano, se é signo mediador por excelência entre seres humanos e a natureza, produção da história social da humanidade, então, é inegável sua importância na e para a Educação. A linguagem auxilia na organização do pensamento, nos processos de generalização e síntese, na compreensão e interpretação da realidade, na auto-regulação da conduta etc. Ela é parte constitutiva do processo de humanização, por isso a importância de se ter acesso a suas várias modalidades (oral, gestual, pictórica, escrita etc.) e considerar que o aprendizado da língua escrita por ser uma especificidade da linguagem, distinta da oralidade, com características próprias, pode favorecer o aperfeiçoamento dos processos psíquicos em níveis cada vez mais complexos de generalização e síntese. Para que esse processo possa ocorrer, o papel de uma educação sistematizada é fundamental. Nossa função, portanto, como educadores, torna-se muito importante para o desenvolvimento de nossas crianças, visto que, as funções psíquicas superiores (memória lógica, formação de conceitos, autoregulação da conduta, raciocínio abstrato, atenção voluntária etc.), por serem um processo social, constituem-se mediante o domínio: do idioma, da escrita, do cálculo, do desenho etc.. que de certa forma compõem aspectos abordados no cotidiano de nossas instituições educacionais. 3. A complexidade do processo de apropriação da escrita: Muitas reflexões se põem a partir do que nos é oferecido pela obra de Vygotsky que podem nos ajudar na discussão metodológica sobre os processos iniciais de apropriação da língua escrita. Concordamos que o postulado vygotskiano, se não trouxe soluções imediatas, pelo menos apontou rumos para discussões no campo educacional que podem mexer com os ânimos de posturas fossilizadas e nos permitir rever, dentre algumas dessas atitudes, o próprio ensino de língua portuguesa, que deveria estar ancorado no papel relevante que possui a linguagem para o desenvolvimento humano, como produção de signos e sentidos, constituídos nas interações. É preciso portanto, ressaltar que a linguagem constitui-se no curso da história social e permite aos seres humanos extrapolarem os limites imediatos e interpretarem o mundo por intermédio de relações complexas, generalizações e abstrações que se utilizam de representações semióticas. Trata-se de uma concepção de linguagem como interação humana4 , portanto, constitui-se por intermédio das relações entre os seres humanos no processo de transformação da natureza, ou seja, no trabalho, este entendido dentro da concepção marxiana, em uma visão dialética, em que o ser humano transforma a natureza e ao transformá -la, transforma -se a si mesmo. A linguagem, que surge da necessidade de comunicação entre os seres humanos no processo do trabalho, é parte constitutiva do processo de humanização e transforma-se em fator decisivo no conhecimento humano. Além de representar objetos, sensações do real etc., abstrai propriedades essenciais e as relaciona em categorias, facilitando o processo de transmissão de conhecimento compilados ao longo de séculos de prática histórico-social. O ser humano não reinventa suas descobertas anteriores a cada nova geração, pode prescindir da experiência imediata e estabelecer relações simbólicas cada vez mais sofisticadas. A linguagem reorganiza os processos de percepção, memória e imaginação, influi sobre o pensamento e o reorganiza, complexificando os processos psíquicos em níveis superiores. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 2001), documento oficial elaborado pelo Ministério da Educação, já citado anteriormente, defendem aspectos do ensino de Língua Portuguesa que vêm ao encontro de renomados autores contemporâneos que traçam novas concepções para a alfabetização. Já na apresentação dos PCN’s há a afirmação de que O domínio da língua, oral ou escrita, é fundamental para a participação social efetiva, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Por isso ao ensiná-la, a escola tem a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes lingüísticos, necessários para o exercício de cidadania, direito inalienável de todos. (BRASIL, 2001: 15) A partir desse trecho, já se vislumbra a função social da escrita e o quanto esta – como um direito de todos – influencia no exercício pleno da cidadania. Em sua introdução, o documento nos remete às dificuldades encontradas no ensino da língua e as perspectivas e discussões que se iniciam a partir da década de 80 em nosso país para sanar esses entraves. Os PCN’s defendem que a “A linguagem é uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua história.” (BRASIL, 2001: 24). Sendo assim, produzir linguagem significa produzir discursos, ou seja, dizer algo para alguém, de uma determinada maneira, com finalidades específicas e num determinado momento histórico. Portanto, ao se pensar na ampliação do que seja o ensino de língua portuguesa haveremos de considerar os aspectos discursivos 4 Conferir Geraldi em seu livro “O texto na sala de aula” (2001) que nos oferece um panorama sobre as concepções de linguagem bastante procedente para essa discussão. (quem produz o quê, para quem e com qual objetivo) e compreendermos que a produção desses discursos se dá por meio de textos – entendidos como unidades significativas – que são organizados dentro de determinados gêneros, adequados às situações reais . Toda essa discussão nos remete a outro conceito abordado nos PCN’s, que já foi mencionado no início desse texto, o letramento, que é entendido como produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas. (BRASIL, 2001: 23) Esse pequeno inserto nos leva a refletir sobre o cotidiano das crianças brasileiras, anterior à entrada na instituição escolar. Essas crianças já chegam à escola com conhecimentos prévios, hipótese acerca da escrita e de seus usos reais, um certo grau de letramento, que será diverso a depender das possibilidades reais e das condições sociais, econômicas, culturais em que essas crianças estão imersas e por isso encontraremos em uma mesma sala de alfabetização uma heterogeneidade que é constitutiva, formada por diferenças de conhecimento; diferenças entre classes sociais; diferenças entre regiões geográficas. Um outro aspecto a destacar é que essas mesmas crianças que chegam à escola com noções elementares sobre a escrita também são falantes da língua portuguesa e trazem consigo uma bagagem lingüística oral que pode se chocar com a modalidade de língua que a escola privilegia, quando, por exemplo, o domínio da variedade lingüística da criança não for o padrão estabelecido pela escola. As crianças das classes menos favorecidas tendem a usar uma variedade lingüística distinta, que a escola não reconhece e que muitas vezes leva à discriminação e ao fracasso escolar. No entanto, o papel da escola não deveria ser o de discriminar, mas atuar no sentido de reconhecer as variedades lingüísticas e ampliar/facilitar as possibilidades de acesso à variedade reconhecida socialmente. Para que isso possa ocorrer é preciso que se propicie condições para as crianças na própria instituição e que o adulto seja mediador nesse processo, crie situações de envolvimento com leituras diversas, produções textuais, momentos de exploração da oralidade e da escuta desde a educação infantil. Os PCN’s vêm confirmar essas discussões, enfatizando que “a finalidade do ensino de Língua Portuguesa é a expansão das possibilidades do uso da linguagem” e portanto, “as capacidades a serem desenvolvidas estão relacionadas às quatro habilidades básicas: falar, escutar, ler e escrever.” (BRASIL, 2001: 43). Um outro aspecto reconhecido por autores/as contemporâneos como necessário a ser discutido e que aparece nos PCN’s é o preconceito lingüístico. De acordo com os Parâmetros Curriculares, “O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença” (BRASIL, 2001: 31). Bagno5 , um autor que tem se destacado nas discussões sobre o preconceito lingüístico, pontua que “como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta. Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua (2001: 16).” Na perspectiva deste autor, esses brasileiros também falam português, mas uma variedade não-padrão que acaba por ser discriminada, ridicularizada por muitos dos falantes do português -padrão e mais uma vez as classes menos favorecidas sofrem pela falta de compreensão do que gerou essa diversidade lingüística que temos. Para este autor, o reconhecimento da existência de muitas normas lingüísticas diferentes é fundamental para que o ensino em nossas escolas seja conseqüente com o fato comprovado de que a norma lingüística ensinada em sala de aula é, em muitas situações, uma verdadeira ‘língua estrangeira’ para o aluno que chega à escola proveniente de ambientes sociais onde a norma lingüística empregada no quotidiano é uma variedade de português não-padrão (2001: 18-19). Procuraremos fundamentar ainda mais o que os PCN’s defendem apresentando como Bagno (2002) se posiciona quando questiona sobre quais são os verdadeiros objetivos do ensino de língua na escola em seu ensaio “A INEVITÁVEL TRAVESSIA: da prescrição gramatical à educação lingüística.” Esse autor responde a essa questão afirmando que é preciso: “propiciar condições para o desenvolvimento pleno de uma educação lingüística.” ( 2002:17) e mais adiante apresenta os principais elementos constitutivos dessa Educação Lingüística. Vejamos a seguir: 5 Marcos Bagno em “Preconceito Lingüístico” (2001) nos apresenta oito mitos que compõem a “Mitologia do preconceito lingüístico.” Essa leitura colabora para muitas discussões que se põem em relação aos preconceitos com as variedades lingüísticas. (i) o desenvolvimento ininterrupto das habilidades de ler, escrever, falar e escutar; (ii) o conhecimento e reconhecimento da realidade intrinsecamente múltipla, variável e heterogênea da língua, realidade sujeita aos influxos das ideologias e dos juízos de valor; (iii) a construção de um conhecimento sistemático sobre a língua, tomada como objeto de análise, reflexão e investigação. (BAGNO, 2002:18) Como vemos, Bagno nos remete também as mesmas habilidades citadas nos PCN’s, assim como destaca as variedades dialetais e os juízos de valor, recaindo na discussão sobre o preconceito lingüístico e, como último ponto, enfatiza a importância da construção de um conhecimento sobre a língua vista como objeto de análise e reflexão que nos remete às atividades epilingüísticas. Se direcionarmos esses pontos para uma reflexão específica sobre a formação do professor alfabetizador, enfatizaremos que é fundamental que este se dê conta das várias facetas do processo de alfabetização e que considere o fato de que a criança que está sendo inserida no mundo da escrita precisa concomitantemente ser conscientizada sobre os usos sociais da escrita e sobre os aspectos grafo-fônicos como condição para se apropriar desse objeto social. Subjacente a toda essa discussão está uma determinada concepção de linguagem, que segundo Bortolotto (2001: 5) , pode assim ser definida: “ (...) como uma construção social, resultado da interação humana que se atualiza na enunciação dialógica concreta e única. A própria consciência é resultado do processo interacional em que o sujeito está continuamente imerso; ela se explica pelo social, tendo por base mediações semióticas onde a linguagem ocupa presença obrigatória.” Sendo assim, os seres humanos são vistos como sujeitos que interagem dinamicamente na busca de sentidos para o mundo que o rodeia e a linguagem é constitutiva desse processo. Considerações finais: No desenrolar das reflexões feitas neste artigo, deparamo -nos com a complexidade do que vem a ser o processo de apropriação da linguagem escrita e de como esse processo exige posicionamentos teóricos de compreensão ampla de um fenômeno que é social e por isso requer um olhar que se paute na contribuição de várias ciências ligadas à educação e atreladas a uma concepção de desenvolvimento humano que possa ultrapassar os limites dos processos biológicos e estabelecer relações com os processos histórico-culturais. Essas mesmas discussões nos levam a refletir sobre vários aspectos que envolvem o processo inicial de apropriação da escrita, dentre eles, os aspectos grafo-fônicos, os discursivos, a mediação, a interação, o preconceito lingüístico e a própria postura do professor para lidar com a riqueza das possibilidades interlocutivas que ocorrem no interior da sala de aula e que passam por suas escolhas metodológicas de trabalho e por sua concepção de linguagem. Portanto, sob a ótica da perspectiva histórico-cultural, ao lidar com os processos iniciais de alfabetização, o professor irá se deparar com a complexidade que demanda esse aprendizado e deverá lidar com uma heterogeneidade constitutiva da apropriação do conhecimento por sujeitos que são singulares, que trazem conhecimentos prévios, que estão situados em determinados contextos históricos e sociais e por isso interagem com as possibilidades colocadas de formas distintas e a depender das mediações, poderão dar saltos de qualidade na compreensão do que seja a escrita e do que sejam os seus usos sociais, isto é, poderão se tornar leitores/produtores de texto, fazendo uso da modalidade escrita da língua em prol de seu processo de desenvolvimento humano. RESUMO: Neste artigo levanto questões para provocar a discussão sobre os processos iniciais de apropriação da língua escrita que emergiram a partir de minha experiência como professora em um curso de pedagogia de Joinville/SC. Respaldo minhas argumentações na perspectiva histórico-cultural que aponta para o reconhecimento da complexidade do processo de apropriação da linguagem. PALAVRAS-CHAVE: alfabetização; linguagem; abordagem histórico-cultural. REFERÊNCIAS: AGUIAR, Maria Aparecida Lapa de. A Relevância da Linguagem para o Desenvolvimento Humano: Contribuições da Perspectiva Vygotskiana para a Educação. Florianópolis, 1998. 123 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. BAGNO, Marcos et al. Língua Materna: Letramento, Variação e Ensino. São Paulo: Parábola, 2002. _____. Preconceito Lingüístico: o que é, com se faz. São Paulo: Loyola, 2001. BAQUERO, Ricardo. Vygotski e a aprendizagem escolar. Porto Alegre : Artes Médicas, 1998. BORTOLOTO, Nelita. A Interlocução na Sala de Aula. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. GERALDI, João Wanderley. (org.) 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