Junho| 2014 A desaceleração do “setor mais importante do mundo” Na última vez que escrevemos sobre a China, no nosso Comentário Macroeconômico de agosto de 2013, os temas mais relevantes, sem dúvida, eram as consequências da transição de governo e o risco de crise financeira. Embora esses continuem sendo temas absolutamente relevantes, recentemente ganhou destaque no debate econômico a desaceleração do mercado imobiliário na China, setor que chegou a ser chamado (talvez com algum exagero) de “o setor mais importante do universo”1. Esse é tópico que motiva o Comentário Macroeconômico deste mês. A fim de convencer o leitor sobre a importância do tema, basta dizer que, isoladamente, o setor de construção residencial representa aproximadamente 10% do PIB na China, valor substancialmente maior, por exemplo, que o pico de 6% atingido nos EUA em 2005. Além disso, deve-se lembrar que esse é um setor bastante integrado às cadeias produtivas em diferentes setores, não só da indústria (materiais de construção, máquinas e equipamentos, indústria extrativa, etc.), mas também de diversos serviços imobiliários. Em suma, os efeitos diretos e indiretos sobre o PIB tendem a ser bastante relevantes. Ao longo dos últimos anos, a China experimentou ciclos no setor imobiliário. Em 2010, após uma forte elevação dos preços de imóveis e a crescente percepção de que estava se formando uma bolha – num contexto de condições financeiras bastante frouxas – o Governo passou a implementar uma série de medidas de restrição à demanda por residências. Além disso, houve também um aperto monetário com aumento de juro e compulsório. Essas políticas provocaram uma desaceleração das vendas e, consequentemente, o arrefecimento nas novas construções. A partir do segundo semestre de 2010, contudo, a atividade imobiliária já mostrava novo folego, o que motivou, em 2011, uma nova rodada de medidas restritivas. Ao mesmo tempo em que o governo almejava conter a elevação dos preços de imóveis, era necessário estimular a economia, a fim de evitar uma desaceleração indesejada. Em 2012 esse segundo objetivo tornou-se premente, o que motivou políticas de afrouxamento monetário, bem como maiores facilidades para a compra da primeira casa, o que, consequentemente, motivou um período de recuperação no setor, que se manteve até meados de 2013. Fica evidente, portanto, que a política econômica teve papel destacado na realização dos ciclos observados nesse setor. O susto, porém, ocorreu quando, no início deste ano, observamos uma queda relevante no início de novas construções, apontando para uma desaceleração na atividade de construção residencial. Especificamente, após crescer 13% em 2013, as novas construções mostram queda de 22% no acumulado até abril deste ano contra igual período de 2013. Da mesma forma, as vendas, que cresceram 17% em 2013, mostram queda de 7% neste ano. De fato, houve uma clara superestimação da demanda por parte dos empresários do setor, evidenciada pela elevação dos estoques para níveis acima da média histórica. Embora já se pudesse observar algum aperto das condições financeiras a partir de meados de 2013, não houve qualquer restrição adicional específica para o setor, ao contrário do que ocorreu nas desacelerações anteriores. Desta vez o ajuste parece conter um componente mais estrutural. Sabe-se que uma parte relevante da demanda por imóveis das famílias chinesas tem por finalidade o investimento. Basicamente, isso é resultado do ambiente de repressão financeira2, no qual existem poucas alternativas de investimento, além de limites para a remuneração dos depósitos bancários, impondo muitas vezes um rendimento real negativo. Essa realidade, contudo, está mudando. Existem cada vez mais alternativas de investimentos, com maior rentabilidade e sem restrições sobre o rendimento máximo. Esse é um processo que deve se aprofundar nos próximos anos, o que implicará um deslocamento cada vez maior da demanda por investimento em imóveis, em direção a outras modalidades de aplicação. Outra peculiaridade do momento atual está relacionada ao risco de uma crise financeira, fruto da forte expansão do crédito desde 2008. O governo parece ter entendido o problema e tomou medidas para reduzir a velocidade de expansão do crédito, o que significa que hoje existe uma maior resistência em utilizar algumas medidas de estímulo aplicadas nas desacelerações anteriores, como redução de juro e compulsório. Tendo em vista a relevância do setor e as peculiaridades da desaceleração atual, convém entender os potenciais canais de transmissão desse movimento, via consumo e investimento. Em particular, é interessante separar essas demandas entre públicas e privadas. Com relação aos gastos públicos, embora aproximadamente 55% das receitas dos governos locais venham da transferência da propriedade de terrenos, parece pouco provável que, neste ano, isso signifique uma redução equivalente pelo lado das despesas. Tipicamente, a demanda pública (especialmente na China) tem um caráter mais autônomo, inclusive atuando de maneira contracíclica, ou seja, funcionando como um estabilizador da atividade. Nesse sentido, não acreditamos que a redução das receitas deva afetar substancialmente o gasto, ainda que isso implique um aumento do endividamento público. Junho| 2014 No que toca à demanda privada, os efeitos podem ser relevantes. Pelo lado do investimento, o impacto é direto. Existe a necessidade de um ajustamento de estoques, que por si só implicaria um ritmo de investimento mais lento (como temos observado). Some-se a isso o quadro de maior incerteza e de continuidade na piora da demanda, que tende a arrefecer ainda mais o ritmo de construção necessário para corrigir os estoques. Ademais, embora uma queda de preços seja um processo natural de ajuste, é possível que ela induza os consumidores a postergar a decisão de compra, esperando preços ainda mais baixos. Isso prejudicaria adicionalmente a demanda, adiando a decisão de investimento das construtoras. O impacto sobre as famílias e, consequentemente, no consumo tende a se dar mediante um efeito riqueza. Na medida em que algo em torno de 40% do patrimônio das famílias chinesas está alocado em ativos residenciais, uma redução no valor dos imóveis poderia impactar fortemente a riqueza dessas famílias. O canal pelo qual isso se transforma em redução do consumo é mediante a indução de uma menor tomada de crédito e/ou aumento da poupança. É interessante notar, nesse sentido, que o hábito de consumo das famílias chinesas já envolve muito pouco crédito, o que sugere que esse canal seja mais limitado. Ademais, o caso chinês é particularmente distinto daquele existente nos EUA pré-crise imobiliária, onde não só a penetração do crédito total para as famílias já era alta, como houve uma forte expansão da demanda por casas, mediante a tomada de novos empréstimos lastreados em hipotecas. Em outras palavras, era uma situação em que as famílias estavam alavancadas em créditos diretamente ligados aos preços de imóveis. Nos EUA, o estoque de crédito residencial chegou a 86% do PIB em 2007, enquanto na China ele representa apenas 18%. Portanto, um cenário de crise como visto nos EUA em 2008 parece pouco provável. Entendidos alguns dos principais canais de transmissão, a pergunta central é: qual seria o efeito de uma desaceleração no setor imobiliário sobre o PIB? Por ora, a melhor estimativa que conhecemos vem do FMI (2012)3. Os autores estimam econometricamente que um choque negativo de 10% nos investimentos imobiliários, reduziria o PIB em 1%. Portanto, embora não seja uma situação dramática, a desaceleração do setor imobiliário é um risco importante para o crescimento deste ano. Por fim, na medida em que a economia vai desacelerando de maneira mais intensa do que se supunha, parece aumentar a probabilidade que o governo tome medidas adicionais de estímulo. Até aqui, contudo, a reação tem sido bastante comedida, o que sugere que a resposta das autoridades não será suficiente para que o crescimento do PIB atinja a meta de 7,5%. Daniel Machry Brum Economista do Opportunity e Mestre em Economia pela PUC-Rio. 1 Jonathan Anderson, ex economista-chefe para mercados emergentes do UBS. 2 Esse termo designa a situação na qual um governo, de diferentes formas, induz uma redução da remuneração obtida pelos poupadores e favorece determinados tomadores de recursos, em geral ligados ao próprio setor público. 3 Uhuja, A.; Myrvoda, A. (2012). The Spillover Effects of a Downturn in China’s Real Estate Investment. IMF Working Paper No. 12/266