Poder Constituinte Originário, derivado e decorrente Prof. Esdras Boccato Mestre em Direito do Estado - USP Procurador da Fazenda Nacional 1. Primeiras ideias 1.1. Indagações sobre a Constituição Nos dias de hoje, é absolutamente incontroverso afirmar que a Constituição é a lei fundamental de um Estado, ou seja, o conjunto de normas jurídicas hierarquicamente superior que estão no ápice do ordenamento jurídico. Além disso, não mais se discute que a Constituição tem força vinculante capaz de conformar toda a legislação infraconstitucional. Entretanto, apesar da aparente obviedade, sempre é salutar questionar: a) Qual é fundamento de validade da Constituição? b) Por que a Constituição detém supremacia e, por isso, deve ser observada? Direito Constitucional I 1. Primeiras ideias 1.2. Fundamento da Constituição 1.2.1. Perspectiva positivista lógico-transcendental Norma hipotética fundamental Constituição Legislação infraconstitucional Sob uma perspectiva meramente positivista, o fundamento de validade da Constituição é a norma hipotética fundamental a estabelecer: “cumpra-se a Constituição”. Dela advém sua obrigatoriedade e supremacia. Direito Constitucional I 1. Primeiras ideias 1.2. Fundamento da Constituição 1.2.1. Perspectiva positivista lógico-transcendental Nessa perspectiva, “... a constituição não retira o seu fundamento de validade de um diploma jurídico que lhe seja superior, mas se firma pela vontade das forças determinantes da sociedade, que a precede” (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de direito constitucional, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, p. 117.). Por isso, “... o estabelecimento de uma Constituição é, para o positivismo jurídico, um mero fato, um fato que está fora da órbita da ciência jurídica, embora seja o ponto de partida da ciência jurídica” (FERREIRA FILHO, Manoel Ferreira, O poder constituinte, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 54). Direito Constitucional I 1. Primeiras ideias 1.2. Fundamento da Constituição 1.2.2. Perspectiva jusnaturalista Em linhas gerais, a tese do Direito Natural pressupõe a existência de direitos que decorrem diretamente da natureza humana e que, por isso, antecede o Direito positivado pelo Estado. Um desses é o direito natural de autodeterminação que, decorrente do direito à liberdade, assegura aos indivíduos a prerrogativa de estabelecerem as instituições a que vão submeter-se. Nessa perspectiva, a Constituição tem fundamento jurídico – e não somente sociológico – justamente porque decorre do exercício do direito de se autodeterminar. Direito Constitucional I 2. Origem da noção de Poder Constituinte 2.1. Noção inicial Seja na perspectiva positivista ou na jusnaturalista, admite-se que o fundamento da Constituição, sua origem e supremacia, não decorrem do direito positivado, mas sim do exercício de um Poder que a constitui, e que não se confunde com os Poderes instituídos pela Constituição já editada. Porém, o desenvolvimento da noção de ‘Poder Constituinte’ só ocorre no fim do século XVIII, às vésperas da Revolução Francesa, sob influência do jusnaturalismo e do iluminismo. Direito Constitucional I 2. Origem da noção de Poder Constituinte 2.2. Influências históricas No final do século XVIII, o absolutismo e o Ancien Régime da França fragilizaram-se em virtude da crise econômica vivida que se acentuara com o contraste entre a miséria e fome da população e a manutenção dos privilégios ao clero e à nobreza, dentre os quais estava o de não pagar tributos. Todavia, com a formatação da Assembleia dos Estados Gerais vigente desde o século XV, não havia perspectiva de mudanças, pois, formada por representantes da Nobreza, Clero e Burguesia, as decisões eram adotadas por maioria dos votos por Estado. Direito Constitucional I 2. Origem da noção de Poder Constituinte 2.3. A doutrina de Emmanuel Joseph Sieyès Em meio à crise pré-revolucionária, Abade Sieyès apresenta sua obra “Que é o terceiro Estado?”, desenvolvida a partir de três perguntas: (1) que tem sido o terceiro Estado?; (2) que é?; (3) que pretende ser?. Nela, demonstra que (a) o terceiro Estado nada era, por não contar com privilégios; que, apesar disso, (b) efetivamente era tudo, por desempenhar todas as tarefas necessárias à vida; e que, em razão desse antagonismo entre o que era e o que deveria ser, (c)pretendia ser alguma coisa. Para tanto, defendia ser necessário a revisão do próprio pacto social fundante do Estado francês, mediante uma nova Assembleia Nacional Constituinte para a modificação da então “Constituição” vigente. Direito Constitucional I 2. Origem da noção de Poder Constituinte 2.3. A doutrina de Emmanuel Joseph Sieyès Resumidamente, a lógica apresentada por Abade Sieyès é a de que todo Estado tem uma Constituição que, por sua vez, é obra de um Poder, ou seja, um Poder Constituinte. Este é necessariamente anterior à Constituição, permanente, capaz de instituir os demais Poderes que regem os interesses da sociedade, e, por isso, pertencente à nação já que manifesta sua vontade. Com este raciocínio, Abade Sieyès justificou racionalmente a legitimação do poder, até então oriundo da tradição e da lei divina. Direito Constitucional I 2. Origem da noção de Poder Constituinte 2.3. Elementos do Poder Constituinte Das lições de Abade Sieyès se extrai os elementos que caracterizam o Poder Constituinte (originário): • ilimitado: não se submete à qualquer limite imposto pela ordem jurídica anterior; • incondicionado: não se submete a nenhuma forma previamente estabelecida para que seja manifestado por seu titular; • inicial: capaz de inaugurar uma nova ordem jurídica mediante a instituição de nova Constituição, superior às demais leis; • permanente: seu exercício anterior não impede que novamente seja exercido. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.1. Conceito Poder constituinte originário é a força política efetivamente capaz de inaugurar uma nova ordem jurídica mediante a edição de uma Constituição a substituir a anterior ou organizar um novo Estado. PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO consensus INSURREIÇÃO CRIMINOSA Art. 5º, LXIV, CF/88 Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.2. Titularidade Na concepção de Sieyès, o titular do Poder Constituinte originário era a nação, assim entendida como a expressão dos interesses permanecentes de uma sociedade, e não propriamente o conjunto de homens que a compõe. Nos dias de hoje, entendese que o titular é o povo, entendido como “conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano”. (DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de teoria geral do Estado, 24ª ed., São Paulo, 2003, p. 100). Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.2. Titularidade Porém, se aparentemente o conceito de povo é amplo e irrestrito, observa-se que, nesta acepção, “povo” é somente os cidadãos de um Estado, isto é, os indivíduos aos quais a Constituição anterior atribui direitos políticos. Só que entender “povo” como conjunto de cidadãos para fins de caracterização do titular do Poder Constituinte originário poder implicar tautologia, porque previamente impõe condicionantes àqueles cuja vontade será traduzida em uma nova Constituição. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.2. Titularidade Exemplo disto é a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ao tratar de povo: Art. 1º. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 14. § 1º. O alistamento eleitoral e o voto são: II – facultativos para: c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. § 2º. Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período de serviço militar obrigatório, os conscritos. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.3. Agentes do Poder Constituinte Apesar de o titular do Poder Constituinte ser o povo, não é factível supor que ele, povo, em sua totalidade, seja capaz de, per si, elaborar e instituir uma (nova) Constituição. Na verdade, o povo é um titular passivo, pois sempre há de haver agentes que pretensamente falam pelo povo e que, por isso, arrogam-se na prerrogativa de manifestarem a vontade popular mediante a (nova) Constituição instituída. São, assim, os titulares ativos do Poder Constituinte, que podem ter recebido delegação do povo para estabelecer a Constituição ou auto imputar-se na qualidade, como ocorre com as revoluções. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.4. Veículos do Poder Constituinte Para que o Poder Constituinte produza sua nova Constituição, é indispensável que a Constituição anterior perca sua eficácia e, assim, haja um prévio vazio constitucional. O veículo capaz de provocar a abrupta perda da eficácia da Constituição anterior é a revolução no sentido jurídico, isto é, a modificação anormal da ordem constitucional realizada mediante procedimentos que não são os previstos na Constituição até então vigente. Apesar de ser intrinsecamente uma quebra da ordem jurídica, não se confunde com revolução no sentido de fenômeno social (lutas armadas, etc.). Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.4. Veículos do Poder Constituinte Sob a ótica jusnaturalista, o Poder Constituinte originário decorre do exercício do direito natural à liberdade e à autodeterminação que cada indivíduo tem de governar sua própria vida e de firmar como deve ser governado coletivamente. Desta liberdade advém o direito à revolução, assim entendido como o direito de mudar a organização constitucional que, segundo a doutrina clássica, deve observar três condições: (a) utilizar-se da força apenas se os demais meios estiverem sido esgotados; (b) ser o uso da força o meio necessário à obtenção da nova Constituição; (c) houver razoáveis possibilidades de sucesso, sem guerra civil. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.5. Formas de expressão Apesar de ser essencialmente incondicionado, há modos básicos mediante os quais o Poder Constituinte originário manifesta-se. São elas a (a) outorga, que é o estabelecimento da Constituição pela declaração unilateral do agente do Poder Constituinte que, ao fazê-la, autolimita seu poder; e a (b) convenção/promulgação, que é a instituição de uma nova Constituição a partir de uma assembleia de representantes populares. Esta última ainda pode ser submetida à referendum popular (procedimento constituinte direito) ou não (procedimento constituinte representativo). Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.5. Formas de expressão Costuma-se afirmar que as Constituições brasileiras de 1824 e de 1937 foram outorgadas, enquanto as de 1891, 1934, 1946 e 1988 foram promulgadas. Discute-se se a Constituição de 1967 foi outorgada ou promulgada, uma vez que, apesar de ter sido aprovada pelo Congresso Nacional (Ato Institucional nº 4), não teria havido efetiva liberdade para a discussão do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.6. Efeitos da Constituição na ordem jurídica • Constituição anterior: doutrinariamente, há quem sustente a tese da desconstitucionalização das normas constitucionais que forem compatíveis com a nova Constituição, permanecendo em vigor como legislação ordinária recepcionada. Autores como Manoel Gonçalves Ferreira Filho defendem que o fenômeno ocorre apenas com as normas formalmente constitucionais. No entanto, tal tese não foi acolhida pelo STF no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 386.820/RS. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.6. Efeitos da Constituição na ordem jurídica • Constituição anterior: “A vigência e a eficácia de uma nova Constituição implicam a supressão da existência, a perda de validade e a cessação de eficácia da anterior Constituição por ela revogada, operando-se, em tal situação, uma hipótese de revogação global ou sistêmica do ordenamento constitucional precedente, não cabendo, por isso mesmo, indagar-se, por impróprio, da compatibilidade, ou não, para efeito de recepção, de quaisquer preceitos constantes da Carta Política anterior, ainda que materialmente não-conflitantes com a ordem constitucional originária superveniente”. Direito Constitucional I 3. Poder Constituinte originário 3.6. Efeitos da Constituição na ordem jurídica • Legislação ordinária: é jurisprudencial e doutrinariamente aceita a tese da recepção da legislação ordinária anterior à nova Constituição, segundo a qual toda lei infraconstitucional perde sua eficácia com a entrada em vigor da nova Constituição, mas a recobra imediatamente se for materialmente compatível com ela. O fundamento de validade passa a ser a nova Constituição, e não mais a Constituição revogada. Direito Constitucional I 4. Poder Constituinte derivado 4.1. Primeiras ideias Como resultado do Poder Constituinte originário, a Constituição é sempre editada com o propósito de durar no tempo e de impor aos Poderes instituídos a observância de valores tidos pelo titular do Poder Constituinte como os mais relevantes a balizar a relação Estado e sociedade civil. Por outro lado, a realidade mostra serem nefastos os efeitos da tentativa de se engessar a Constituição e de não permitir qualquer alteração, ainda que pontual. Desta forma, a fim de evitar tanto a inalterabilidade da Constituição quanto a banalização da vontade ali externada é que se adota a técnica da rigidez constitucional. Direito Constitucional I 4. Poder Constituinte derivado 4.1. Primeiras ideias A rigidez constitucional é “a estipulação de um procedimento especial para a modificação das normas constitucionais, distinto e mais gravoso do que o procedimento legislativo ordinário” (RAMOS, Elival da Silva, Controle de constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução, São Paulo, Editora Saraiva, 2010, p. 42). Com a rigidez, garante-se a supremacia nas normas constitucionais e evitam-se mudanças na Constituição por maiorias ocasionais e influenciadas por caprichos momentâneos. Do mesmo modo, assegura às Constituições a capacidade de se atualizarem aos novos fatos sociais, por meio de um Poder que deriva do originário. Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.1. Conceito Poder constituinte derivado reformador pode ser entendido como o poder de modificar Constituições rígidas segundo os preceitos e formas nela estabelecidos, adaptando-as às nova necessidades sociais, sem que se tenha de fazer uso da revolução em sentido jurídico. Logo, o Poder Constituinte derivado reformador é essencialmente subordinado, secundário e condicionado, pois só pode agir no âmbito e nos moldes fixados pelo Poder Constituinte originário na Constituição rígida vigente. Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.2. Limites • temporais: proibição de alteração constitucional durante certo período de tempo pré-determinado. Apesar do art. 3º do ADTC estabelecer que a revisão constitucional seria realizada após 5 (cinco) anos da promulgação da Constituição, mediante maioria absoluta, não se trata de um limite temporal, uma vez que não nunca se vedou o exercício do Poder Constituinte reformador nos moldes estabelecidos no art. 60, § 2º, isto é, mediante três quintos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado. Portanto, não há limites temporais na Constituição de 1988. Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.2. Limites • circunstanciais: proibição de alteração constitucional enquanto persistirem determinadas situações fáticas que presumivelmente provocam coação aos representantes do Poder reformador. Na Constituição de 1988, há a proibição de que a Constituição seja emendada durante a vigência de intervenção federal (art. 34), do estado de defesa (art. 136) e do estado de sítio (art. 137). Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.2. Limites • materiais: proibição de modificação constitucional concernente a determinados assuntos considerados mais relevantes e que integram o núcleo essencial da Constituição vigente. As matérias que não podem ser alteradas pelo Poder Constituinte derivado compõe as chamadas cláusulas pétreas, cuja finalidade é “inibir a mera tentativa de abolir o seu projeto básico” e, com isso, “obviar a ruptura com princípios e estruturas essenciais da Constituição”. (MENDES, Gilmar Ferreira, Curso de direito constitucional,..., p. 140) Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.3. Cláusulas pétreas O art. 60, § 4º da Constituição de 1988 fixa as cláusulas pétreas da República Federativa do Brasil, estabelecendo que as propostas de emendas constitucionais tendentes a abolir as matérias a seguir mencionadas não serão deliberadas • • • • forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.3. Cláusulas pétreas Além dos limites materiais explicitamente estipulados no art. 60, § 4º, doutrinariamente se defende que há limites materiais implícitos que também vinculam o exercício do Poder Constituinte derivado reformador. No Brasil, seu precursor foi Nelson de Souza Sampaio em “O poder de reforma constitucional”, em que contemplou 4 limites implícitos: (1) a manutenção dos direitos fundamentais; (2) inalterabilidade do titular do Poder Constituinte originário; (3) a inalterabilidade do titular do Poder Constituinte derivado; (4) proibição da alteração das regras que regem o Poder Constituinte derivado (atualmente, o art. 60 da Constituição de 1988). Direito Constitucional I 5. Poder Constituinte derivado reformador 5.3. Cláusulas pétreas Por causa disto, a doutrina brasileira é refratária à tese da chamada dupla revisão desenvolvida por Jorge Miranda, segundo a qual é possível emendar a Constituição em afronta às cláusulas pétreas se, primeiramente, aprovar-se emenda constitucional a revogá-las total ou parcialmente e, depois, aprovar outra emenda constitucional a tratar de matéria então proibida. Nesta concepção, se as cláusulas pétreas são duplamente protegidas, só podem ser alteradas também de maneira dupla, em duas etapas. Direito Constitucional I