PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Direito ANÁLISE DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA Autora: Juliana da Silva Tavares Pellegrin Orientador: Prof. MSc. Fabrício Dias Rodrigues JULIANA DA SILVA TAVARES PELLEGRIN ANÁLISE DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. MSc. Fabrício Dias Rodrigues. Brasília 2009 Monografia de autoria de Juliana da Silva Tavares Pellegrin, intitulada “ANÁLISE DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em ___/___/___, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: __________________________________________________________ Prof. MSc. Fabrício Dias Rodrigues Curso de Direito – UCB ___________________________________________________________ Prof. (titulação). (Nome do membro da banca) Curso de Direito - UCB ___________________________________________________________ Prof. (titulação). (Nome do membro da banca) Curso de Direito - UCB Brasília 2009 AGRADECIMENTOS A Deus, por sempre guiar meu caminho e me acompanhar em todas as trajetórias. Aos meus pais, Antonio e Ana, pelo amor e apoio incondicionais, por estarem sempre ao meu lado e por me proporcionarem os melhores momentos de minha vida. Aos meus queridos irmãos, Antonio e Gabriel, pelos indispensáveis momentos de companheirismo e diversão. Aos amigos, pela presença e importância em todas as ocasiões, sem os quais eu nunca estaria completa. Ao professor Fabrício, pelo conhecimento compartilhado, auxílio, presteza e orientações sempre pertinentes. RESUMO PELLEGRIN, Juliana da Silva Tavares. Análise dos requisitos de admissibilidade do recurso especial à luz do princípio do acesso à justiça. 2009. 72 p. Trabalho de conclusão de curso em graduação (Direito) - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009. O presente trabalho busca traçar um paralelo entre os requisitos de admissibilidade do recurso especial, apelo de natureza extraordinária direcionado ao Superior Tribunal de Justiça, e o princípio do acesso à justiça, direito fundamental disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Primeiramente, procede-se a uma breve abordagem histórica da garantia, sua relação com os institutos da jurisdição, da ação e do processo e a atual interpretação que lhe é conferida no âmbito constitucional e processual. Após, examina-se o recurso especial nas suas principais características para, enfim, analisar seus requisitos específicos de admissibilidade, sua importância na afirmação do sistema federativo e sua ligação com os aspectos compreendidos no conceito de acesso à justiça, relacionando-os ao entendimento que melhor se adequa à natureza do recurso excepcional. Palavras-chave: Acesso à justiça. Recurso especial. Admissibilidade. SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 7 1 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA............................................................... 1.1 BREVES NOÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL............................................................................................ 9 1.1.1 Noções históricas sobre o conceito de jurisdição.............................. 11 1.2 O CONCEITO DE AÇÃO E SUA AFIRMAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL........................................................................................ 1.3 OUTRAS DENOMINAÇÕES DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA..................................................................................................... 1.4 9 15 18 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO............................................................................. 18 1.5 O ALCANCE DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA............................ 22 1.6 A IDÉIA DE ACESSO À JUSTIÇA NO ÂMBITO DO PROCESSO............. 23 2 O RECURSO ESPECIAL....................................................................................... 2.1 NOÇÕES HISTÓRICAS INTRODUTÓRIAS............................................... 30 30 2.2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O RECURSO ESPECIAL............... 31 2.3 JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE.................................................................... 33 2.4 REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE........................................................ 35 2.4.1 Requisitos Intrínsecos................................................................... 36 2.4.1.1 Cabimento.................................................................... 36 2.4.1.2 Legitimidade................................................................. 36 2.4.1.3 Interesse...................................................................... 37 Requisitos Extrínsecos.................................................................. 37 2.4.2.1 Tempestividade............................................................. 38 2.4.2.2 Preparo........................................................................ 39 2.4.2.3 Regularidade Formal.................................................... 40 2.4.2.4 Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer.................................................................... 41 PROCEDIMENTO........................................................................................ 42 3 A ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL E O ACESSO À JUSTIÇA...... 3.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS...................................................................... 44 44 2.4.2 2.5 3.2 REQUISITOS ESPECÍFICOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL.................................................................................................... 44 3.2.1 Prequestionamento....................................................................... 44 3.2.2 Exaurimento das instâncias ordinárias.......................................... 47 3.2.3 Contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal.... 48 3.2.3.1 Impossibilidade de reexame de matéria fáticoprobatória....................................................................... 3.2.4 Julgamento que torna válido ato de governo local contestado em face de lei federal................................................................... 3.2.5 Interpretação divergente da que outro tribunal haja atribuído a determinada lei federal................................................................ 3.2.6 Necessidade de impugnação dos fundamentos do acórdão recorrido....................................................................................... 3.3 OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL COMO AFIRMAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO.................................. 3.4 OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL COMO AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA................ 3.5 49 50 51 52 53 59 3.4.1 Técnica processual...................................................................... 59 3.4.2 Acesso à ordem jurídica justa...................................................... 60 3.4.3 Acesso à tutela jurisdicional tempestiva, efetiva e de qualidade. 62 3.4.4 Escopos do processo e segurança jurídica................................. 63 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NO ÂMBITO DO STJ................. 65 CONCLUSÃO........................................................................................................ 68 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 70 7 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo analisar os requisitos de admissibilidade do recurso especial, apelo de natureza extraordinária direcionado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), à luz do princípio do acesso à justiça, insculpido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. A escolha do tema surgiu da experiência profissional vivenciada nos últimos três anos e justifica-se pelo fato de que atualmente são muitos os postulantes que, ao se depararem com o não conhecimento de seus apelos em razão da ausência de algum desses requisitos, insurgem-se contra referidas decisões, alegando contrariedade ao princípio constitucional em comento por excessivo rigor formal. A pesquisa foi elaborada com base na metodologia funcionalista, porquanto baseada no estudo do instituto do recurso especial sob o ponto de vista da função que desempenha no contexto jurídico-social. O objetivo adotado foi o de desenvolver uma pesquisa explicativa sobre o tema, a partir de consultas bibliográficas à legislação (especialmente a Constituição Federal e a lei instrumental civil), à doutrina (clássica e contemporânea) e à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A partir dessa visão funcional, buscou-se traçar um paralelo entre o recurso especial e o princípio do acesso à justiça, de forma a se obter uma resposta à problemática que deu início ao presente trabalho: os requisitos de admissibilidade do apelo, da forma como são tratados, incorrem em afronta à garantia fundamental em enfoque? Há a real necessidade de se estabelecer critérios rígidos para o seu conhecimento? Inicialmente, parte-se da hipótese de que não há de se falar em tal violação, pois a função extraordinária exercida pelo recurso especial requer que as exigências a ele impostas sejam obedecidas, vez que essenciais para a garantia do devido processo legal, para a segurança das partes e para a própria preservação do sistema. Para buscar as respostas aos problemas apresentados e verificar as hipóteses levantadas, a pesquisa foi desenvolvida em três etapas. O primeiro capítulo, intitulado “O princípio do acesso à justiça”, procura estabelecer uma breve história acerca do surgimento do referido princípio, sua 8 relação com os institutos da jurisdição, da ação e do processo, suas denominações e sua evolução no ordenamento pátrio, bem como explorar o atual alcance interpretativo da sua acepção. Por sua vez, o segundo capítulo, denominado “O recurso especial”, propõe-se a perscrutar os aspectos gerais do recurso especial, tecendo considerações acerca da origem histórica da aludida espécie recursal, suas características principais, seus requisitos genéricos de admissibilidade e o procedimento a que se encontra submetido no âmbito do STJ. Por fim, no terceiro capítulo, designado como “A admissibilidade do recurso especial e o acesso à justiça”, analisam-se os requisitos específicos de admissibilidade do apelo excepcional, seu significado na afirmação do sistema federativo adotado pelo país, sua ligação com os vários aspectos compreendidos no conceito de acesso à justiça e o posicionamento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no tocante à matéria, relacionando-os ao entendimento mais consentâneo com a natureza do recurso extremo. Para a elaboração do presente trabalho, utilizou-se o método dedutivo, porquanto se partiu de uma análise geral acerca do princípio do acesso à justiça e do recurso especial para, ao fim, discorrer sobre as especificidades que envolvem a relação entre ambos os temas. 9 1 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA 1.1 BREVES NOÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL O homem é movido a interesses, de acordo com a utilidade e/ou a necessidade do objeto ou situação em evidência. Tais interesses se verificam tanto na esfera individual, tendo em vista as relações estabelecidas com os bens da vida destinados ao seu desenvolvimento, utilização e sobrevivência, como na esfera coletiva, visto que o ser humano não vive de maneira isolada, devendo conciliar idéias e necessidades para uma convivência pacífica e duradoura dentro do seu grupo social. Conforme explicitado por Moacyr Amaral Santos, No interesse individual a razão está entre o bem e o homem, conforme suas necessidades; no interesse coletivo, a razão ainda está entre o bem e o homem, mas apreciadas as suas necessidades em relação a necessidades 1 idênticas do grupo social. Quando há colisão de interesses na seara individual do homem, sem que todos possam ser satisfeitos de igual modo, somente a ele cabe a solução de tamanho conflito interno, de acordo com o grau de interesse que possui sobre o objeto em questão – cuida-se, aqui, do denominado conflito intrasubjetivo. Contudo, pode acontecer de o interesse sobre um referido bem ser manifestado por duas ou mais pessoas (seara coletiva), de forma que sua satisfação possa ocorrer a apenas uma das partes. Surge, daí, o conceito de conflito intersubjetivo, muitas vezes associado à definição de “lide” conferida por Carnelutti (conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida).2 Para Cândido Rangel Dinamarco, entretanto, referida conceituação coloca em foco apenas a visão do conflito sob a ótica do autor, deixando de lado o real fator 1 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 1, p. 4. 2 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v. 1, p. 116. 10 aflitivo das relações divergentes, qual seja, a insatisfação da exigência pretendida. Logo, Conflito, assim entendido, é a situação existente entre duas ou mais pessoas ou grupos, caracterizada pela pretensão a um bem ou situação da vida e impossibilidade de obtê-lo – seja porque negada por quem poderia 3 dá-lo, seja porque a lei impõe que só possa ser obtido por via judicial. Nesse contexto, a história sempre mostrou diferentes formas de eliminação de conflitos decorrentes da vida em sociedade: autotutela, autocomposição, arbitragem facultativa, arbitragem obrigatória e jurisdição4. Na autotutela, prevalecente nas civilizações primitivas, os embates eram resolvidos pelos próprios sujeitos neles envolvidos, sem a figura de um intermediário, através da utilização da astúcia e da força bruta. Não havia a figura de um Estado soberano, apto a prevalecer sobre os impulsos particulares e impor regramentos às controvérsias; a decisão final era simplesmente imposta por uma das partes, geralmente o mais forte5. Nessa fase, a justiça era feita com as próprias mãos, se é que poderia se entender por sua existência. Nem sempre havia, de fato, uma justiça real, vez que prevalecia a vontade daquele que se mostrava mais enérgico na sua pretensão. De forma simultânea, subsistia o sistema da autocomposição, no qual as partes, isolada ou conjuntamente, solucionavam os seus próprios conflitos, abrindo mão do seu interesse de maneira parcial ou integral, seja por meio da desistência (quando o indivíduo renuncia a sua pretensão), da submissão (onde o sujeito, encontrando resistência da parte contrária, a ela renuncia) ou da transação (hipótese em que ambos realizam mútuas concessões em prol de um fim comum)6. Posteriormente, os contendores passaram a buscar soluções imparciais aos seus dilemas, a serem determinadas por árbitros de sua escolha e confiança. Comumente, tal função era atribuída aos sacerdotes ou aos anciãos do grupo social a que pertenciam: aos primeiros, por se acreditar que suas ligações com os deuses trariam decisões mais acertadas; aos segundos, por se tratarem de pessoas mais 3 DINAMARCO, 2001, p. 117. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 21. 5 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit. 6 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit. 4 11 sábias e experientes e, portanto, conhecedoras da moral e dos costumes da localidade. A essa fase denominou-se de arbitragem facultativa7. De maneira gradual, o Estado começa a se fortalecer perante os indivíduos. Sua participação se torna um pouco mais evidente no meio social a partir do momento em que atrai para si o encargo de nomear um terceiro alheio e desinteressado para assumir a figura de mediador da relação conflituosa, a cuja solução os sujeitos envolvidos deveriam necessariamente se submeter. Ao mesmo tempo, a fim de facilitar tal subordinação, a autoridade estatal começa a perceber a utilidade de se impor regramentos de caráter abstrato, objetivo e vinculativo. Estabelece-se, aqui, o sistema da arbitragem obrigatória8. Com o desenvolvimento da noção de Estado de Direito e, conseqüentemente, com a consagração da idéia de divisão das funções estatais, o Estado, juntamente com as funções administrativa e legislativa, passa a deter o monopólio da função jurisdicional. No entanto, o conceito de jurisdição passou por algumas modificações ao longo da história, conforme se demonstrará no tópico a seguir. Antes, porém, torna-se importante registrar que a evolução acima explicitada não ocorreu de maneira linear. Como bem delimitado na obra coordenada por Luiz Rodrigues Wambier, Não houve marcos divisórios nítidos, precisos, entre essas diferentes fases, correspondentes a distintos modos de solução de conflitos admitidos pelas diversas sociedades ocidentais. A história mostra que, em quase todos os momentos, esses diferentes sistemas conviveram uns com os outros, ora com a predominância de um, ora com a preponderância de outro. Ainda hoje essa concomitância se verifica com muita clareza, apesar da evidente 9 predominância da atividade jurisdicional estatal. 1.1.1 Noções históricas sobre o conceito de jurisdição Com o advento do Estado Liberal, surge uma concepção de direito voltada essencialmente à afirmação do princípio da legalidade, como uma maneira encontrada pela burguesia de se sobrepor ao regime absolutista monárquico até 7 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 21-22. Ibid., p. 22-23. 9 WAMBIER, Luiz Rodrigues (Coord.). Curso avançado de processo civil. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. v. 1, p. 42. 8 12 então reinante. O direito era identificado apenas na norma jurídica, “cuja validade não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa”.10 Nessa fase, a teoria da separação dos poderes, idealizada por Montesquieu, mostrava claramente a supremacia do poder legislativo. A criação do direito cabia exclusivamente a este, o que reduzia os poderes executivo e judiciário a uma nítida posição de subordinação: ao primeiro, restava apenas a tarefa de atuar nos limites legalmente autorizados; ao segundo, o dever de unicamente aplicar a norma, sem a possibilidade de interpretá-la11. O princípio da legalidade estava intimamente relacionado aos princípios da liberdade e da igualdade (formal). A lei, para não violar tais acepções fundamentais, deveria ser dotada do caráter de abstração (cuja função era a de resguardar o ordenamento jurídico vigente e conduzir a uma idéia de certeza e plenitude do direito, sem que fosse necessária a edição de novas leis e sem que se abrisse margem para que o magistrado, ao aplicar a norma, pudesse levar em conta as peculiaridades de cada caso concreto) e generalidade (que funcionava como uma espécie de garantia de imparcialidade do Estado perante os indivíduos, de forma a dispensar tratamento igualitário a todos, sem distinção)12. Saliente-se que essa igualdade consistia em uma garantia de que o Estado não diferenciaria qualquer posição social, mesmo que entre elas as necessidades fossem evidentemente diversas. De acordo com Luiz Guilherme Marinoni, A impossibilidade de o Estado interferir na sociedade, de modo a proteger as posições sociais menos favorecidas, constituía conseqüência natural da suposição de que para se conservar a liberdade de todos era necessário não discriminar ninguém, pois qualquer tratamento diferenciado era visto 13 como violador da igualdade – logicamente formal. Partindo-se dessa concepção (da qual decorre o positivismo jurídico) 14, surge a teoria lançada por Giuseppe Chiovenda, no sentido de que a atuação do juiz decorre diretamente da vontade concreta da lei: ao magistrado caberia, apenas, a aplicação da norma geral ao caso concreto, sem possuir qualquer poder de criação 10 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. v. 1, p. 25. 11 MARINONI, loc. cit. 12 Ibid., p. 27. 13 Ibid., p. 27-28. 14 Ibid., p. 29-30. 13 (teoria declaratória ou dualista do ordenamento jurídico).15 A jurisdição, nesse caso, seria dotada do caráter de substitutividade, onde o Estado, ao apreciar o pedido levado ao seu conhecimento, substituiria “a vontade das partes, aplicando ao caso concreto a „vontade‟ da norma jurídica”.16 Chiovenda procurou, ainda, estabelecer a distinção entre ação e direito material, de modo que o poder de provocação da atividade jurisdicional conferido ao indivíduo garantiria tão-somente a atuação da lei, não a realização do próprio direito substancial (perspectiva publicista do processo). Tal escola, todavia, nunca chegou a se preocupar com os questionamentos referentes ao acesso ao Poder Judiciário ou mesmo com a efetividade dos procedimentos em relação às classes menos favorecidas.17 Urge ressaltar o caráter essencialmente individualista conferido aos direitos prevalecentes à época dos Estados liberais. O acesso à justiça era visto apenas sob o seu aspecto formal, qual seja, o da prerrogativa de ir a juízo defender uma pretensão. Por ser considerado um direito natural, entendia-se que esse acesso à proteção judiciária não necessitava de intervenção estatal; ao Estado cabia apenas a tarefa de impedir eventuais violações a ele direcionadas.18 E já que, consoante relatado alhures, o Estado não se preocupava com as desigualdades econômicas e sociais existentes, o acesso à justiça ficava restrito àqueles que tivessem melhores condições financeiras de arcar com as despesas relacionadas à propositura da ação. Conforme explicam Mauro Cappelletti e Bryant Garth, a justiça “só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte”.19 Posteriormente, vem à tona a teoria de Francesco Carnelutti, segundo a qual a função jurisdicional se resumiria à justa composição da lide, esta entendida como o conflito intersubjetivo de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Ao contrário de Chiovenda, cuidou-se de estabelecer uma visão estritamente privatista 15 MARINONI, 2007, p. 34. DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2007. v. 1, p. 72. 17 MARINONI, op. cit., p. 35. 18 CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 9. 19 CAPPELLETTI; BRYANT, loc. cit. 16 14 ao processo, a partir da finalidade pela qual as partes procurariam a atuação do magistrado: em não havendo lide a ser solucionada, não existiria jurisdição.20 Para Carnelutti, o juiz, a partir de uma norma geral e abstrata, cria uma norma individual ao caso concreto - a sentença -, a qual passa a integrar o ordenamento jurídico (teoria constitutiva ou unitária, derivada de Hans Kelsen).21 Nesse panorama, a validade da sentença aqui também se encontrava desvinculada da noção de justiça. Dessa forma leciona o jurista italiano Calamandrei, igualmente adepto da teoria unitária: Assim como a lei vale, enquanto está em vigor, não porque corresponda à justiça social, senão unicamente pela autoridade de que está revestida (dura lex sed lex), assim também a sentença, uma vez transitada em julgado, vale não porque seja justa, senão porque tem, para o caso 22 concreto, a mesma força da lei (lex especialis). Com a passagem do Estado liberal para o Estado constitucional contemporâneo, época em que a perspectiva individual das relações humanas passou a adquirir caráter coletivo e as preocupações com os direitos e as injustiças sociais começaram a ganhar força, o princípio da legalidade deixou de ser visualizado estritamente sob uma ótica formal para também adquirir um caráter substancial: a lei deixou de valer por si só, passando a se submeter às disposições de uma norma superior - a Constituição - e dos princípios e direitos fundamentais ordenadores de todo um sistema jurídico.23 Nessa nova fase, o direito de acesso à justiça também acompanhou referidas mudanças. O Estado, ao entender que sua intervenção era essencial para a implementação dos direitos sociais em ascensão, começou a torná-los realmente efetivos e igualmente acessíveis a todos. Retomando os ensinamentos de Cappelletti e Garth na obra “Acesso à Justiça”, esse direito passa, então, a ser visto “como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”.24 Assim também sintetiza Luiz Guilherme Marinoni: 20 MARINONI, 2007, p. 36. Ibid., p. 36-37. 22 CALAMANDREI, 1945 apud MARINONI, op.cit., p. 39. 23 Ibid., p. 40-46. 24 CAPPELLETTI; BRYANT, 1988, p. 12. 21 15 O direito de ação passou a enfrentar um novo questionamento não apenas porque se percebeu que o exercício da ação poderia ser comprometido por obstáculos sociais e econômicos, mas também porque se tomou consciência de que os direitos voltados a garantir uma nova forma de sociedade, identificados nas Constituições modernas, apenas poderiam ser 25 concretizados se garantido um real – e não um ilusório – acesso à justiça. Isso trouxe reflexos diretos ao conceito de jurisdição, que passou a adquirir o status de atividade essencial à ampla efetividade constitucional, de forma a atender aos ideais do Estado e se adaptar aos novos anseios da sociedade. Atualmente, portanto, a jurisdição pode ser definida como o poder-dever do Estado de tutelar concretamente o direito material e ditar, através de decisões fundamentadas, as soluções aos litígios a ele submetidos com base nos princípios da Constituição e nos direitos e garantias fundamentais nela existentes, de forma a buscar, com isso, a pacificação social. Nas palavras de Humberto Theodoro Júnior, a função jurisdicional tem “como objetivo imediato a aplicação da lei ao caso concreto, e como missão mediata „restabelecer a paz entre os particulares e, com isso, manter a da sociedade‟”.26 1.2 O CONCEITO DE AÇÃO E SUA AFIRMAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL Conceituada a jurisdição, cabe agora definir sucintamente o instituto através do qual o indivíduo inicia a busca pelo exercício dessa atividade jurisdicional 27, de forma a alcançar a concretização do direito de acesso à justiça: a ação. Conforme Marcus Vinicius Gonçalves, “o acesso à justiça é garantido pelo exercício do direito de ação, que permite ao interessado deduzir suas pretensões em juízo, para que sobre elas seja emitido um pronunciamento judicial”.28 Trata-se de iniciativa essencial à busca pela satisfação da tutela pretendida, vez que, como é sabido, a jurisdição é inerte, exigindo a provocação do interessado para o seu real funcionamento. 25 MARINONI, 2007, p. 188-189. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 1, p. 6. 27 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 249. 28 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil: teoria geral e processo de conhecimento (1ª parte). 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1, p. 33. 26 16 Entretanto, a natureza jurídica da ação não foi facilmente definida ao longo da história. Sua acepção enfrentou diferentes estudos, nitidamente demarcados nas principais teorias a seguir listadas. Pela teoria imanentista, clássica ou civilista, a ação era equiparada ao próprio direito material. Nas palavras de Luiz Fux, “se em juízo se concluísse pela inexistência do direito alegado e perseguido, automaticamente considerava-se negado o direito de ação como consectário da negativa do direito material”.29 Com a comprovação da autonomia do direito de agir, após o embate entre os tratadistas Windscheid e Mutter (Direito romano)30 e os estudos de Wach e Chiovenda acerca da possibilidade de existência de uma ação declaratória negativa31 32 , surge a teoria da ação como direito autônomo concreto. Tal corrente afirmou que a ação não pressupõe necessariamente o direito material tido por violado, mas “como a existência de tutela jurisdicional só pode ser satisfeita através da proteção concreta, o direito de ação só existiria quando a sentença fosse favorável”.33 Posteriormente, emerge a teoria da ação como direito autônomo abstrato, a qual afirma estar o direito de agir desvinculado da procedência do pedido. Sua caracterização constitui o direito de se obter uma sentença, seja ela favorável ou não.34 Nesse tópico, assim discorreram Ada Pellegrini, Cândido Dinamarco e Antonio Cintra: A demanda ajuizada pode ser até mesmo temerária, sendo suficiente, para caracterizar o direito de ação, que o autor mencione um interesse seu, protegido em abstrato pelo direito. É com referência a esse direito que o Estado está obrigado a exercer a função jurisdicional, proferindo uma 35 decisão, que tanto poderá ser favorável como desfavorável. O ordenamento brasileiro, apesar de deixar clara a adoção da autonomia e abstração da ação, assumiu uma postura bastante eclética, especialmente influenciada pelo italiano Enrico Tullio Liebman.36 29 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil: processo de conhecimento. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 1, p. 154. 30 Ibid., p. 154-155. 31 Ibid., p. 155-156. 32 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1, p. 80. 33 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 251. 34 GRECO FILHO, loc. cit. 35 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 252. 36 FUX, 2008, p. 157. 17 Sua contribuição se mostra evidente na atribuição da característica instrumental ao direito de ação, por evidenciar sua conexão a uma pretensão de direito material, sem que isso caracterize perda da sua autonomia. 37 Argumentou, ainda, no sentido de que seu caráter abstrato não seria absoluto, já que a referida pretensão deveria vir necessariamente precedida de certos requisitos, que, caso não preenchidos, impossibilitariam o julgamento do mérito da demanda. A esses pressupostos deu o nome de condições da ação. Consoante Luiz Fux, As condições da ação figuram, assim, na concepção de Liebman, como anteparo ao exercício abusivo do direito de agir. Uma vez não preenchidas, exoneram o juiz de apreciar o meritum causae, autorizando-o a proferir uma decisão meramente formal, reconhecendo ter faltado ao autor aquelas mínimas condições para receber uma resposta sobre a questão de fundo, daí a denominação desse fenômeno da falta das condições da ação de 38 “carência de ação”. Daí decorre importante demarcação do direito de ação, assim estabelecida por Luiz Rodrigues Wambier: [...] ao lado de um direito absolutamente abstrato e incondicionado de ter acesso aos juízes e tribunais (o “direito constitucional de ação”, “direito de acesso à jurisdição”), há o direito “processual” de ação (direito de receber sentença de mérito, ainda que desfavorável). Para que exista esse segundo direito, devem estar presentes determinados requisitos (as “condições da ação”) – sem os quais não se justifica o integral desenvolvimento da 39 atividade jurisdicional. Assim, resta conceituar o direito de ação como o direito público, subjetivo, autônomo e abstrato de se obter a prestação jurisdicional sobre uma determinada pretensão de direito material levada por seu titular a juízo. É público por ser exercido contra o Estado, o qual, no desempenho da jurisdição, presta uma atividade de natureza pública; subjetivo, pelo fato de sua titularidade ser conferida a qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica; autônomo, por constituir direito independente do direito material pretendido; e abstrato, por se tratar de direito exercitável por todos, independentemente de se chegar à conclusão de que possuíam ou não razão no quanto alegado. 37 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 253. FUX, 2008, p. 157. 39 WAMBIER, 2005, p. 139. 38 18 Entretanto, não bastaram o surgimento da função estatal de solucionar os litígios encaminhados ao Poder Judiciário e a afirmação do direito de ação. Percebeu-se, isso sim, a necessidade de se criar instrumentos que possibilitassem efetivamente a consecução desses objetivos. Aí que despontam as chamadas garantias jurisdicionais, estabelecidas na Constituição Federal com o intuito de orientar o legislador na sua tarefa de regular todo o arcabouço jurídico no âmbito do processo.40 Dentre elas, situa-se o princípio do acesso à justiça, alçado à categoria de direito fundamental pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Magna. 1.3 OUTRAS DENOMINAÇÕES DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA O princípio do acesso à justiça pode adquirir variadas nomenclaturas, sem que isso altere seu significado. Ângelo Pariz lista algumas dessas denominações, tais como: ampla garantia de acesso ao judiciário, direito de ação, garantia da via judicial, inafastabilidade do controle jurisdicional e universalidade da jurisdição.41 A estas, ainda podem ser acrescentadas a inarredabilidade ou a indeclinabilidade do Poder Judiciário, sem que isso importe, contudo, o esgotamento das designações utilizadas ao longo dos vários estudos acerca do tema. Optamos pelo uso da expressão “acesso à justiça”, por considerarmos como a que melhor abarca os valores consignados no atual alcance interpretativo da referida garantia.42 1.4 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO No ordenamento jurídico pátrio, o princípio do acesso à justiça passou a constar expressamente do texto constitucional a partir da Constituição de 1946, que 40 WAMBIER, 2005, p. 44-45. PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz. O princípio do devido processo legal: direito fundamental do cidadão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 184. 42 Esse enfoque será especialmente tratado nos itens 1.5 e 1.6 do presente trabalho. 41 19 em seu artigo 141, § 4º, situado no capítulo referente aos direitos e garantias individuais, assim estabelecia: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”. Contudo, Celso Ribeiro Bastos,43 ao citar lição de Pontes de Miranda, afirma que o princípio já se encontrava implicitamente reconhecido pelo nosso sistema desde a Carta de 1891, a partir de quando o país passou a aderir à teoria da tripartição de poderes, inspirada no modelo norte-americano. Não obstante tal previsão, a história recente do Brasil mostrou que a garantia do livre acesso ao Poder Judiciário teve seu período de turbulência quando do Golpe Militar de 1964. Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI 5), de 13 de dezembro de 1968, houve a tentativa de se excluir da apreciação judicial todos os atos administrativos decorrentes do regime então imposto, consoante se depreende da leitura do seu artigo 11: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. Insta salientar que, à época, encontrava-se em plena vigência a Constituição de 1967, que previa amplamente a garantia de acesso à justiça em seu artigo 150, § 4º, com redação idêntica àquela disposta na Carta anterior. Sobre a situação em comento, Nelson Nery Junior relata de maneira exemplar: Esse AI 5 violou o art. 150, § 4º, da CF de 1967, cuja redação foi repetida pela EC 1/69. Por essa emenda, entretanto, o AI foi „constitucionalizado‟, pois os arts. 181 e 182 da CF de 1969 (EC 1/69 à CF de 1967) diziam excluírem-se da apreciação do Poder Judiciário todos os atos praticados pelo comando da revolução de 31.3.1964, reafirmada a vigência do AI 5 44 (art. 182, CF 1969). O mesmo autor, contudo, alerta para o fato de tais normas terem sido inconstitucionais, não obstante haver previsão explícita de exclusão de exame dos atos do AI 5 na própria Constituição, vez que ilegítimas, pois outorgadas por autoridade incompetente (Presidente da República), e contrárias a direitos e garantias fundamentais, a exemplo, especialmente, do direito constitucional de ação. 43 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 185. 44 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 131. 20 Esse episódio da história brasileira, todavia, enquadra-se no quesito das exceções históricas, que “tinham sempre a sua vigência condicionada à manutenção do Estado autoritário. Desaparecido este, restaura-se, em sua plenitude, a acessibilidade ampla ao Poder Judiciário”.45 Com o advento da Constituição de 1988, o princípio passou a ter considerável inovação em seu alcance. A esse respeito, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes bem sintetiza a quaestio: Três aspectos podem e devem ser ressaltados, desde logo, no texto da Constituição de 1988: a supressão da possibilidade, prevista no art. 153, § 4º, da CF/1969, com a alteração produzida pela Emenda Constitucional 7/1977, de condicionamento ao exaurimento da via administrativa; a aplicabilidade atual do princípio em termos de direitos coletivos; e o 46 reconhecimento constitucional da garantia diante da ameaça ao direito. Assim dispõe o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A primeira análise a ser feita sobre o aludido dispositivo diz respeito à ausência da obrigatoriedade de prévio esgotamento das instâncias administrativas para que se busque a tutela jurisdicional. A CF/88 afastou a chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, estabelecida pela Emenda Constitucional nº 7 da Constituição de 1969, que assim previa no § 4º do seu artigo 153: A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido. Na abalizada lição de Nelson Nery Junior, tal regramento funcionava como uma verdadeira condição de procedibilidade da ação, que, caso não atendida, resultaria na extinção do processo sem resolução de mérito, ante a falta de interesse processual, nos termos do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil. 45 BASTOS; MARTINS, 2001, p. 186. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Breves considerações em torno da questão da inafastabilidade da prestação jurisdicional. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Org.). Estudos de direito processual civil: homenagem ao professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 93. 46 21 Referida inexigibilidade é conseqüência da adoção da jurisdição una pelo nosso ordenamento jurídico, ao contrário, por exemplo, do sistema francês, cuja função jurisdicional é repartida entre um Poder Judiciário e um contencioso administrativo. Excepcionalmente, a Constituição determina no seu artigo 217, § 1º, o prévio esgotamento das instâncias da justiça desportiva antes de se buscar o Judiciário para o deslinde das ações relativas à disciplina e às competições desportivas, sem condicionar tal acesso, contudo, ao término do processo administrativo, tendo em vista o prazo máximo de sessenta dias de que dispõe para proferir decisão final, contados da instauração do processo. Contudo, deve-se atentar ao fato de que a ausência da obrigatoriedade de consulta prévia às vias administrativas não significa, necessariamente, a desnecessidade de formulação de requerimentos perante a Administração Pública, “na medida em que a pretensão administrativa precisa ser apreciada e negada para que se configure a lide, ou seja, o conflito qualificado pela pretensão resistida. Do contrário, não haverá interesse de agir”.47 O segundo ponto a ser examinado refere-se à ampliação dos direitos tutelados pelo princípio ora em estudo. A Constituição da República não mais limita sua proteção aos direitos essencialmente individuais, como fazia nas Cartas de 1946, 1967 e 1969, mas também passa a abranger os direitos de natureza coletiva e difusa. A própria disposição do artigo no texto constitucional deixa clara essa intenção, porquanto situado dentro do título dos direitos e garantias fundamentais, no capítulo referente aos direitos e deveres individuais e coletivos. Quanto à salutar diferença entre os direitos coletivos e difusos, Celso Ribeiro Bastos assim explicita: Nos interesses coletivos há um vínculo jurídico básico, uma geral affectio societatis que une todos os indivíduos [...]. Ao contrário, no caso dos denominados interesses difusos, não se nota qualquer vínculo jurídico congregador dos titulares de tais interesses, que praticamente se baseiam 48 numa identidade de situações de fato. 47 48 MENDES, 2005, p. 93. BASTOS; MARTINS, 2001, p. 196. 22 Por último, e não menos importante, cabe apreciar a inclusão da proteção jurisdicional à ameaça a direito. A partir dessa inovação, buscou-se constitucionalizar “a tutela preventiva, a tutela de urgência, a tutela contra o perigo, legitimando ainda mais a concessão de provimentos antecipatórios e cautelares. A Constituição é clara ao prescrever a tutela reparatória e a tutela preventiva”. 49 1.5 O ALCANCE DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA Em acompanhamento à evolução da idéia de jurisdição, o conceito de acesso à justiça também passou a adquirir uma interpretação mais rica e condizente com a sua real natureza de direito fundamental. A propósito, explica Marinoni que o direito de ação constitui verdadeiro direito fundamental processual, situado acima de quaisquer outros direitos fundamentais materiais, pois indispensável para a efetividade destes.50 O inciso XXXV do artigo 5º da Constituição determina a figura do legislador como sendo o destinatário principal do seu comando. No entanto, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional é direcionado a todas as pessoas e instituições, indistintamente, “pois, „se a lei não pode, nenhum ato ou autoridade de menor hierarquia poderá‟ excluir algo da apreciação do Poder Judiciário”.51 Diferentemente da concepção estritamente formal da época do Estado liberal, onde o direito de ação era visto sob a ótica do simples direito de se ajuizar uma demanda, o atual alcance interpretativo a ser conferido à garantia da inafastabilidade pressupõe o acesso a uma tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e de qualidade,52 de forma a garantir uma ordem jurídica justa.53 De acordo com Nelson Nery Jr, referido princípio constitucional informa que “todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja a adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio”.54 49 DIDIER JUNIOR, 2007, p. 88. MARINONI, 2007, p. 208-209. 51 DIDIER JUNIOR, op. cit., p. 87. 52 DINAMARCO, 2001, p. 114-116. 53 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 33. 54 NERY JUNIOR, 2004, p. 132. 50 23 1.6 A IDÉIA DE ACESSO À JUSTIÇA NO ÂMBITO DO PROCESSO Uma vez exercido o direito de ação, cabe ao Estado o dever de prestar a atividade jurisdicional, o que se dá através do processo.55 Essa é a lógica de todo o sistema instrumental, como bem explicita o doutrinador Vicente Greco Filho: O direito processual, em sua lógica já referida, se assenta em três conceitos fundamentais que se relacionam e interagem: a ação, a jurisdição e o processo. Esses três elementos compõem todo o processo, de modo que se pode dizer que nada no direito processual está fora de um deles e de seguir seus princípios. O seu relacionamento é tão íntimo que não se pode 56 sequer definir cada um deles sem referir o outro. Sendo assim, não é demais declarar que o processo representa o instrumento hábil para a busca da tutela jurisdicional e, conseqüentemente, da pacificação social e realização da justiça. Como visto alhures, a garantia de acesso à justiça pressupõe a efetividade desse instrumento, de modo a assegurar o direito a uma ordem jurídica justa. Para tanto, se faz necessário que o processo atenda aos seus escopos essenciais, reconheça e supere os óbices que atravancam a consecução desses objetivos e, fundamentalmente, seja justo.57 Nos dizeres de notáveis doutrinadores, Falar da instrumentalidade nesse sentido positivo, pois, é alertar para a necessária efetividade do processo, ou seja, para a necessidade de ter-se um sistema processual capaz de servir de eficiente caminho à “ordem jurídica justa”. Para tanto, não só é preciso ter a consciência dos objetivos a atingir, como também conhecer e saber superar os óbices econômicos e 58 jurídicos que se antepõem ao livre acesso à justiça. Luiz Fux explicita que a efetividade do processo consiste “na sua aptidão de alcançar os fins para os quais foi instituído”.59 Inicialmente, as concepções de Chiovenda e Carnelutti imputavam ao sistema processual uma visão estritamente jurídica e exclusivamente a serviço do direito 55 FUX, 2008, p. 151. GRECO FILHO, 2009, p. 79. 57 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 33-35. 58 Ibid., 41. 59 FUX, op. cit., p. 240. 56 24 material. Com o tempo, porém, a partir da evolução da idéia de que o Direito não poderia estar alheio aos novos anseios da sociedade, o processo passou também a ser analisado sob uma perspectiva metajurídica, levando-se em conta questões de ordem social e política que, acima de tudo, serviam para legitimar sua existência e dotar sua função de um significado mais valorativo.60 Dada essa premissa, diz-se que, atualmente, três são os objetivos principais a serem buscados com o processo: o escopo social, o escopo político e o escopo jurídico. O escopo social consiste, essencialmente, na pacificação dos conflitos. O Estado, como ente organizador da sociedade, deve utilizar o sistema processual em prol da eliminação de insatisfações, a partir da utilização de critérios justos e do alcance de resultados que influenciem de maneira favorável a vida do grupo que ordena.61 Dentre os serviços garantidos pelo poder estatal e que são dotados de valor social, Dinamarco destaca o instituto da segurança jurídica. Para o autor, a ligação se encontra no fato de que “o advento da definitividade aplaca as incertezas e elimina o estado anti-social de insatisfação”.62 O escopo político envolve a relação entre três aspectos, a saber: poder, liberdade e participação.63 O primeiro deles aduz que o processo, visto sob a ótica dos resultados gerais alcançados pelo Poder Judiciário, deve servir como instrumento hábil a garantir a estabilidade das instituições estatais. Com isso, objetiva-se “a estabilidade do próprio ordenamento jurídico, que constitui projeção positivada do poder estatal”.64 Por sua vez, o processo como instrumento de culto à liberdade constitui a garantia de defesa do indivíduo contra possíveis abusos advindos do Estado. Já o objetivo relacionado à participação representa a influência que o sujeito deve exercer sobre as instituições, consubstanciada na prática da democracia. 65 60 DINAMARCO, 2001, p. 125-127. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 162. 62 Ibid., p. 167. 63 Ibid., p. 168. 64 Id., 2001, p. 130. 65 Ibid., p. 170-171. 61 25 Finalmente, o escopo processual jurídico significa, nos dizeres de Dinamarco, a atuação da vontade concreta do direito, dando-se a necessária efetividade às normas legais. Nesse ponto, o doutrinador assim se posiciona: É de suma importância e vital relevância na técnica processual a definição do modo como o processo e os seus resultados repercutem no sistema jurídico; além disso, as fórmulas mais conhecidas, através das quais se tentou a definição teleológica do processo, constituem acima de tudo pronunciamentos acerca da função que o processo desempenha perante o 66 direito e na vida dos direitos. Já os óbices a serem enfrentados estão diretamente assentados em quatro “pontos sensíveis”, em feliz expressão utilizada por Ada Pellegrini, Cândido Dinamarco e Antonio Carlos Cintra,67 que os listam da seguinte forma: 1) admissão ao processo - deve ser eliminado todo e qualquer impedimento de ordem econômica que obste o direito universal de ação, de forma a consagrar o princípio insculpido no artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, que dispõe ser dever do Estado proporcionar a assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovarem insuficiência de recursos;68 2) modo-de-ser do processo - o processo deve obedecer ao seu trâmite legal, em obediência aos princípios constitucionais centrais que o orientam 69 (os quais serão a seguir indicados); 3) justiça das decisões - o magistrado, nas suas tarefas primordiais de analisar as provas, enquadrar o fato na norma e interpretar o ordenamento pátrio, deve sempre buscar o resultado mais justo;70 4) utilidade das decisões – o processo deve ser efetivo, ou seja, “deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter”.71 Segundo Cândido Rangel Dinamarco, o direito processual realiza um “jogo” de promessas, garantias e limitações, todas concorrentemente essenciais para o 66 DINAMARCO, 2001, p. 177. CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 34. 68 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit. 69 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit. 70 Ibid., p. 34-35. 71 Ibid., p. 35. 67 26 conhecimento do sistema e para sua correta adequação com o contexto político e social no qual está destinado a funcionar.72 Referido autor expõe que o acesso à justiça constitui a promessa-síntese do ordenamento, constitucionalmente assegurada pelo artigo 5º, inciso XXXV, a qual deve ser necessariamente complementada por outras garantias que a assegurem de maneira efetiva: as chamadas promessas instrumentais.73 Nas suas palavras, Toda a tutela constitucional do processo converge ao aprimoramento do sistema processual como meio capaz de oferecer decisões justas e efetivas a quem tenha necessidade delas. Fala-se em devido processo legal (due process of law) para designar o conjunto de garantias destinadas a produzir 74 um processo équo, cujo resultado prático realize a justiça. Dentre as garantias instrumentais, três delas englobam diretamente a noção de processo justo (ou équo), quais sejam: princípio da isonomia, princípio do contraditório e princípio da imparcialidade do juiz. Pelo princípio da isonomia, descrito no caput do artigo 5º75 e complementado pelo inciso IV do artigo 3º,76 ambos da Constituição da República, todos são iguais perante a lei, cabendo tanto ao juiz quanto ao próprio legislador dispensar tratamento paritário às partes envolvidas na relação processual.77 No magistério de Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, Nem podia ser diferente, até porque o processo jamais atingiria plenamente sua finalidade compositiva do litígio (processo civil), ou resolutória de conflitos de interesses de alta relevância social (processo penal), se os sujeitos processuais parciais não fossem tratados com igualdade em todo o 78 seu desenrolar. Contudo, Cândido Dinamarco ressalta que a simples prática de atos isonômicos não basta para a preservação da garantia ora em análise; é preciso que o magistrado também neutralize eventuais desigualdades existentes ou propensas a 72 DINAMARCO, 2001, p. 109-112. Ibid., p. 109. 74 Ibid., p. 109-110. 75 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 76 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 77 DINAMARCO, op. cit., p. 207. 78 TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo: regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 37. 73 27 existirem. Trata-se, aqui, da promoção da igualdade sob o seu aspecto substancial, ou seja, o de se tratar os iguais igualmente e os desiguais na proporção de suas desigualdades.79 Quanto à adoção da idéia de igualdade material, em substituição à conceituação primeva de igualdade formal, confira-se o seguinte excerto doutrinário: A aparente quebra do princípio da isonomia, dentro e fora do processo, obedece exatamente ao princípio da igualdade real e proporcional, que impõe tratamento desigual aos desiguais, justamente para que, supridas as 80 diferenças, se atinja a igualdade substancial. Tucci e Dinamarco ainda especificam a aplicação do princípio da isonomia no âmbito do julgamento da causa. Nesse contexto, enquanto o primeiro afirma que a concepção de igualdade também abrange o campo de aplicação da lei, no sentido de que o magistrado deve decidir situações análogas de forma isonômica, a fim de que uma mesma situação jurídica não receba tratamento diferenciado em processos distintos,81 o segundo autor entende que “o processo équo, ou processo justo, de que fala a doutrina, é aquele feito segundo legítimos parâmetros legais e constitucionais e que ao fim produza resultados exteriores justos”.82 Por sua vez, o princípio do contraditório, revelado pelo artigo 5º, inciso LV, da Carta Magna,83 consiste na garantia de que ambos os litigantes terão as mesmas oportunidades de, ao longo do processo do qual fazem parte, atuar e se manifestar nos autos por meio da chamada tríplice participação - “participar pedindo, participar alegando e participar provando”84 -, contribuindo, dessa forma, para o livre convencimento do juiz. Consoante Dinamarco, Para cumprir a exigência constitucional do contraditório, todo modelo procedimental descrito em lei contém e todos os procedimentos que concretamente se instauram devem conter momentos para que cada uma 85 das partes peça, alegue e prove. 79 DINAMARCO, 2001, p. 207. CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 54. 81 TUCCI; TUCCI, 1989, p. 40. 82 DINAMARCO, op. cit., p. 209-210. 83 Art. 5º. LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; 84 DINAMARCO, op. cit., p. 215. 85 DINAMARCO, loc. cit. 80 28 Ada Pellegrini, Dinamarco e Cintra ainda ensinam que o princípio do contraditório é composto por dois requisitos: informação e reação.86 Dessa feita, para que a parte possa reagir a um determinado ato praticado pela parte contrária ou mesmo pelo juiz, é preciso que, antes de tudo, ela tenha sido informada da referida situação. Só assim poderá participar ativamente do processo, utilizando-se de todos os meios e recursos que a lei dispõe para tanto (ampla defesa). Mas não apenas às partes referido princípio é destinado. O magistrado, no exercício de sua função jurisdicional, tem o poder-dever de facilitar e permitir o acesso aos meios necessários para a participação paritária dos litigantes, o que se dá através de atos relativos à direção do processo, à condução das provas e à promoção do diálogo entre os envolvidos na relação processual.87 Já o princípio da imparcialidade determina que toda demanda levada a juízo deve ser necessariamente analisada por um juiz imparcial, como condição essencial para o estabelecimento de uma relação processual válida.88 Sua atuação deve se dar com absoluta impessoalidade, sempre em observância aos valores ditados pela lei.89 Nesse sentido, A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso, têm elas o direito de exigir um juiz imparcial: e o Estado, que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir 90 com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas. Com o intuito de evitar possíveis atitudes parciais por parte dos magistrados, a Constituição criou mecanismo consubstanciado na garantia do juiz natural, o qual se desdobra em três principais acepções: 1) só pode atuar como órgão jurisdicional aquele devidamente relacionado como tal pela Constituição; 2) não serão criados tribunais de exceção para a resolução dos litígios; e 3) a todos é assegurado o direito de ser processado e julgado pelo juiz competente.91 92 Oportuno trazer à colação respeitável exposição no sentido de que imparcialidade e neutralidade não se confundem. Esta se consubstancia na liberdade que o magistrado dispõe de interpretar a lei em conformidade com os 86 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 57. DINAMARCO, 2001, p. 220-224. 88 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 51-52. 89 DINAMARCO, op. cit., p. 200-201. 90 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 52. 91 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit. 92 DINAMARCO, op. cit., p. 203-207. 87 29 valores preponderantes na sociedade, diferentemente daquela, que não permite a sua atuação impulsionada por sentimentos e interesses estritamente pessoais.93 Dito isso, frise-se, porém, que não apenas de garantias sobrevive o sistema. Ainda de acordo com Dinamarco, o próprio ordenamento se encarrega de limitar os poderes inerentes à jurisdição, segundo padrões condizentes com a realidade política e social do meio em que opera. Dentre essas limitações, fatores de racionalidade e realismo,94 encontram-se as próprias garantias constitucionais acima listadas, vez que impõem ao Estado-juiz a sua observância em conformidade com os ditames procedimentais, e aquelas que impedem a emissão de um juízo de valor sobre o mérito das demandas levadas ao conhecimento do Poder Judiciário, conhecidos por “pressupostos de admissibilidade dos provimentos de mérito”. 95 Nesse ponto, assim expôs o doutrinador: [...] o concreto poder de exigir os provimentos jurisdicionais condiciona-se sempre à apresentação de uma demanda corretamente formulada segundo a lei, à capacidade de quem a formula, à legítima investidura do juiz a quem é dirigida e, de modo geral, à observância de todos os atos e fases do 96 procedimento que a lei estabelece e exige. 93 DINAMARCO, 2001, p. 200-201. Ibid., p. 112. 95 Ibid., p. 110-111. 96 Ibid., p. 111. 94 30 2 O RECURSO ESPECIAL 2.1 NOÇÕES HISTÓRICAS INTRODUTÓRIAS Durante muitos anos, coube ao Supremo Tribunal Federal a função de, em sede de recurso extraordinário, preservar a Constituição e a legislação federal infraconstitucional, bem como uniformizar a interpretação a elas conferida. No entanto, por conta dessa missão tão abrangente, o Pretório Excelso passou a experimentar um grande acúmulo de processos, o que acabou conduzindo à denominada “crise do Supremo”.97 Muitas foram as tentativas de se superar tamanho problema, dentre elas, a criação de óbices regimentais e jurisprudenciais que fortemente restringissem o acesso àquela Corte, o que não surtiu o efeito esperado.98 Nesse contexto, cabe salientar que desde 1963 vários estudos e debates apontavam uma grande lacuna no sistema judiciário brasileiro, com destaque para o trabalho monográfico sobre recurso extraordinário de autoria de José Afonso da Silva, no sentido de que não havia um Tribunal Superior, à semelhança do TST e do TSE, que recebesse as causas relativas ao Direito comum.99 Assim, partindo-se da idéia de criação de um novo tribunal, aliada à crescente necessidade de se resolver a crise que assolava o STF, o Constituinte de 1988 houve por bem instituir o Superior Tribunal de Justiça, oficialmente instalado na data de 7 de abril de 1989.100 Com isso, parcela significativa da competência que até então era atribuída ao Supremo passou a fazer parte da novel Corte, que, através do denominado recurso especial, atraiu para si o encargo de zelar pela integridade do direito federal infraconstitucional comum. Nas palavras do Ministro Athos Gusmão Carneiro, [...] o recurso extraordinário previsto no sistema constitucional anterior foi desdobrado em recurso extraordinário stricto sensu – RE e recurso especial 97 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 73-76. 98 Ibid., p. 76-78. 99 Ibid., p. 107-112. 100 SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 682. 31 – REsp, aquele destinado precipuamente à tutela das normas constitucionais e com julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, III); este, o recurso especial, voltado à tutela da lei (ou tratado) federal, 101 com julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, III). 2.2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O RECURSO ESPECIAL O recurso especial, apelo de natureza extraordinária direcionado ao Superior Tribunal de Justiça, tem suas hipóteses de cabimento taxativamente descritas na Constituição da República, em seu artigo 105, inciso III, alíneas “a”, “b” e “c”, cujo teor ora se transcreve: Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. Sua primordial função é a de tutelar o direito objetivo, garantindo a uniformidade de interpretação e a correta aplicação da legislação federal infraconstitucional em todo o território nacional. Cuida-se, portanto, de espécie recursal de fundamentação vinculada, porquanto a discussão no âmbito do apelo deve se restringir à questão federal controvertida que ensejou o seu manejo. Por essa razão, é inviável o mero reexame da matéria fático-probatória já solucionada nas instâncias ordinárias; a discussão, nessa sede, limita-se à correta aplicação do direito aos fatos apurados e delineados no acórdão do qual se recorre. Por se tratar de um recurso excepcional (a exemplo do recurso extraordinário, de competência do STF e limitado ao exame da questão constitucional), diferenciase dos denominados recursos ordinários ou comuns: além de seus pressupostos virem dispostos na Constituição Federal, e não na lei processual102, a simples 101 102 CARNEIRO, 1999 apud MANCUSO, 2008, p. 109. Ibid., p. 191. 32 sucumbência não basta para a sua viabilidade. Nesse sentido, confira-se objetiva exposição de Elpídio Donizetti: Tais recursos foram classificados como especiais (ou excepcionais) em oposição aos comuns. Isso porque, enquanto nos recursos comuns basta a sucumbência para preencher os requisitos relativos ao interesse e à legitimidade, nos recursos especiais (RE e Resp), além desses requisitos, 103 exige-se a ofensa ao direito positivo, constitucional ou infraconstitucional. Dentre os princípios gerais que orientam o sistema recursal cível brasileiro, alguns podem ser especificamente enquadrados nas características do apelo ora em estudo. São eles: taxatividade (considera-se recurso o meio de impugnação taxativamente descrito como tal pela lei federal – art. 496, VI, do CPC); dialeticidade (o pedido de reexame do julgado recorrido deve ser fundamentado – art. 541, CPC); voluntariedade (a inequívoca vontade de recorrer deve partir diretamente da parte interessada na modificação do decisório); proibição da reforma para prejudicar (reformatio in pejus); consumação (uma vez interposto o recurso, ocorre a preclusão consumativa, não sendo possível proceder a posteriores aditamentos); esgotamento das vias recursais (o apelo só pode ser interposto no tribunal ad quem depois de esgotadas as possibilidades de recurso perante o juízo a quo – art. 105, III, CF); e singularidade, unicidade ou unirrecorribilidade (cada decisão comporta uma única espécie recursal – o doutrinador Bernardo Pimentel entende que o recurso especial consiste em exceção a esse princípio, vez que o art. 543 prevê a possibilidade de interposição simultânea de recurso extraordinário contra um mesmo acórdão104; entretanto, Elpídio Donizetti se posiciona no sentido de que “nessa hipótese a infringência ao princípio é apenas aparente, uma vez que cada um dos recursos se refere a uma parte ou capítulo da decisão recorrida”105).106 107 Quanto aos efeitos em que recebido, a regra constante do art. 542, § 2º, do CPC é a de que o recurso especial produz efeito devolutivo. Contudo, admite-se medida cautelar para que lhe seja atribuído o efeito suspensivo, desde que presentes a plausibilidade do direito e o perigo de dano grave e de difícil reparação. 103 DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 488. 104 SOUZA, 2008, p. 115. 105 DONIZETTI, op. cit., p. 433. 106 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 47-169. 107 SOUZA, op. cit., p. 111-135. 33 No tocante ao efeito translativo, a jurisprudência majoritária do STJ o admite apenas em caráter excepcional, vez que a regra é a de que, por se tratar de recurso extremo, cuja fundamentação se dá de forma vinculada, até mesmo as questões de ordem pública devem ter sido previamente debatidas na instância de origem. É o que se depreende do seguinte trecho retirado da ementa de julgamento do Recurso Especial nº 656.399/PE, de relatoria do eminente Ministro Luiz Fux: PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EFEITO TRANSLATIVO. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. FALHA DO PODER JUDICIÁRIO. OCORRÊNCIA DE PREJUÍZO À UNIÃO FEDERAL. NULIDADE PROCESSUAL. 1. "O Recurso Especial é apelo extremo, cuja fundamentação é vinculada, sendo defeso o exame de qualquer matéria, inclusive de ordem pública, caso a mesma não tenha sido objeto de discussão na origem" (EDcl no AgRg no REsp 510930/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ de 07.11.2005). 2. Entrementes, a jurisprudência majoritária desta Corte Superior tem admitido, em caráter excepcional, a mitigação desta regra na instância extraordinária, se o recurso especial ensejar conhecimento por outros 108 fundamentos, ante o efeito translativo dos recursos [...]. Por fim, cabe explicitar que o apelo especial é também aceito tanto na forma adesiva, a teor do art. 500, II, do CPC109, como na forma retida, nos casos em que apresentado contra decisão interlocutória prolatada em sede de processo de conhecimento, cautelar ou embargos à execução.110 2.3 JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE O recurso especial sujeita-se a um juízo de admissibilidade duplo, bipartido ou desdobrado: primeiro, procede-se a uma análise da admissibilidade recursal, ou seja, dos seus requisitos formais; ultrapassada essa, passa-se ao exame do mérito. 108 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp - 656.399/PE. 1ª Turma. Relator: Ministro Luiz Fux, Data de Julgamento: 18 de ago. de 2009. 109 Art. 500. Cada parte interporá o recurso, independentemente, no prazo e observadas as exigências legais. Sendo, porém, vencidos autor e réu, ao recurso interposto por qualquer deles poderá aderir a outra parte. O recurso adesivo fica subordinado ao recurso principal e se rege pelas disposições seguintes: II - será admissível na apelação, nos embargos infringentes, no recurso extraordinário e no recurso especial; 110 o Art. 542. § 3 O recurso extraordinário, ou o recurso especial, quando interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar, ou embargos à execução ficará retido nos autos e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as contra-razões. 34 Inicialmente, o juízo de admissibilidade é realizado pelo Tribunal a quo, que, de maneira provisória, dirá se o apelo possui ou não condições de ser conhecido. Se a resposta for afirmativa, os autos subirão ao Superior Tribunal de Justiça; se, no entanto, a resposta for negativa, o recurso será inadmitido pelo próprio presidente ou vice-presidente da Corte de origem. Com a remessa dos autos, após a admissão do apelo, o Tribunal ad quem efetuará um novo juízo de admissibilidade, agora definitivo. Isso porque aquele realizado de maneira prévia não vincula o STJ, a verdadeira Corte competente para a análise do recurso especial. Nesse sentido, confira-se o ensinamento de Rodolfo de Camargo Mancuso: O Regimento Interno do STJ dispõe que, primeiramente, se verificará se o recurso é “cabível” (RISTJ, art. 257); dado que no Tribunal a quo também se exercita um juízo de admissibilidade (§ 1.º do art. 542 do CPC), fica evidente que esta primeira aferição é uma sorte de “triagem”, provisória e sujeita a subseqüente exame do órgão ad quem, ou seja, por parte do Tribunal superior, “titular” dessa competência, que tem, portanto, a última 111 palavra. Importante lição também pode ser extraída do processualista José Carlos Barbosa Moreira, quando afirma que o pronunciamento do Tribunal a quo “não é vinculativo para o tribunal ad quem, que ficará livre de conhecer ou não, oportunamente, do extraordinário ou do especial”.112 Assim, se o entendimento decorrente da aludida análise primeva for no sentido de que o recurso não preenche os seus requisitos formais, o relator negará seguimento ao mesmo; se, contudo, todos esses pressupostos forem devidamente cumpridos, proceder-se-á à análise do mérito. A identificação e diferenciação de ambos os juízos na linguagem forense é objetivamente explicitada por Nelson Nery Junior no seguinte excerto retirado de sua obra: “as expressões „conhecer‟ ou „não conhecer‟ do recurso, de um lado, e „dar provimento‟ ou „negar provimento‟, de outro, significam o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito do recurso, respectivamente”.113 111 MANCUSO, 2008, p. 179. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5, p. 612. 113 NERY JUNIOR, 2000, p. 222. 112 35 2.4 REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE Os requisitos de admissibilidade do recurso especial constituem o objeto do juízo de admissibilidade acima explicitado, ou seja, “as exigências legais que devem estar satisfeitas para que o órgão julgador possa ingressar no juízo de mérito do recurso”.114 Dito isso, verifica-se a existência de dois tipos de pressupostos: os genéricos, inerentes a todos os recursos, e os específicos, que englobam as particularidades da espécie recursal. Dentre os requisitos genéricos, existem duas teorias classificadoras: a clássica, que os divide em objetivos e subjetivos, e a contemporânea, que os distribui entre intrínsecos e extrínsecos. A doutrina moderna, em conformidade com a divisão adotada por José Carlos Barbosa Moreira115 e Nelson Nery Junior116 (a qual será utilizada no presente trabalho), considera como intrínsecos (relacionados à existência do poder de recorrer) o cabimento, a legitimidade e o interesse; e como extrínsecos (relativos ao exercício do direito de recorrer) a tempestividade, a regularidade formal, o preparo e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer. Quanto a esse último requisito, frise-se que alguns autores o enquadram dentre os pressupostos intrínsecos, a exemplo de Bernardo Pimentel Souza117 e Fredie Didier Jr.118 Já a teoria clássica, adotada, por exemplo, pelo doutrinador Elpídio Donizetti,119 situa a legitimidade e o interesse dentro dos requisitos subjetivos; por sua vez, os objetivos seriam: o cabimento, a tempestividade, o preparo, a regularidade formal e a contrariedade da sentença à jurisprudência consolidada no STJ ou no STF, ou inexistência de súmula no âmbito de tais tribunais. No tocante aos pressupostos específicos de admissibilidade, registre-se que serão detidamente expostos e analisados no capítulo subseqüente. 114 SOUZA, 2008, p. 36. MOREIRA, 2006, p. 260. 116 NERY JUNIOR, 2000, p. 240-367. 117 SOUZA, op. cit., p. 36-103. 118 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2007. p. 43-60. 119 DONIZETTI, 2008, p. 436-447. 115 36 2.4.1 Requisitos Intrínsecos 2.4.1.1 Cabimento O cabimento do recurso é aferido a partir da análise de dois componentes: previsão legal ou constitucional de espécie recursal apta a combater a decisão causadora do inconformismo (recorribilidade) e adequação. O art. 496 do CPC traz um rol exaustivo dos recursos cabíveis no sistema processual pátrio, cujo inciso VI expressamente prevê a existência do recurso especial. Verifica-se, ademais, que o referido apelo constitui a espécie recursal adequada para a impugnação de acórdãos decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando se observar: contrariedade a tratado ou lei federal, ou negativa de vigência; julgamento que torne válido ato de governo local contestado em face de lei federal; e/ou interpretação divergente da que outro tribunal haja atribuído a determinada lei federal, nos termos do artigo 105, inciso III, alíneas “a”, “b” e “c”, da Constituição da República, hipóteses que, como dito, serão especificamente tratadas no capítulo seguinte. 2.4.1.2 Legitimidade O artigo 499 do CPC indica quem possui legitimidade para recorrer. Assim, podem interpor o recurso especial: a parte vencida, o Ministério Público e o terceiro prejudicado. No conceito de parte vencida, entende-se que a legislação “quer referir-se não só a autor e réu, haja ou não litisconsórcio, mas também ao terceiro interveniente, que, com a intervenção, se tornou parte”.120 120 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 47. 37 Quanto ao parquet, sua legitimidade alcança tanto os processos em que atua como parte quanto aqueles em que exerce a função de custos legis. Nessa última hipótese, “não há necessidade de o Ministério Público haver efetivamente funcionado nos autos como fiscal da lei para que se legitime a recorrer [...], mas basta ter havido a possibilidade de fazê-lo”.121 Importante conferir, ainda, o Enunciado da Súmula nº 99 do STJ, que afirma: “O Ministério Público tem legitimidade para recorrer no processo em que oficiou como fiscal da lei, ainda que não haja recurso da parte”. Por fim, resta analisar a figura do terceiro prejudicado, que só terá legitimidade para o ato se comprovar seu interesse jurídico na impugnação do julgado.122 2.4.1.3 Interesse O interesse recursal é caracterizado pelo binômio utilidade/necessidade. Bernardo Pimentel Souza bem sintetiza tais definições, a saber: O recurso é útil se, em tese, puder trazer alguma vantagem sob o ponto de vista prático ao legitimado. É necessário se for a única via processual hábil à obtenção, no mesmo processo, do benefício prático almejado pelo 123 legitimado. Nesse tópico, registre-se que o interesse recursal nem sempre estará ligado à sucumbência; a parte vencedora pode recorrer de decisão que lhe tenha sido favorável, desde que o resultado buscado lhe possa ser ainda mais proveitoso do ponto de vista prático.124 2.4.2 Requisitos Extrínsecos 121 NERY JUNIOR, 2000, p. 261. Ibid., p. 263. 123 SOUZA, 2008, p. 47. 124 Ibid., p. 47-48. 122 38 2.4.2.1 Tempestividade Nos termos do artigo 508 do Código de Processo Civil,125 o prazo para a interposição do recurso especial é de 15 (quinze) dias. Entretanto, à Fazenda Pública (União, Distrito Federal, Estados-membros e Municípios), ao Ministério Público (como parte ou fiscal da lei), às autarquias e às fundações públicas, tal prazo é computado em dobro, a teor dos artigos 188 do CPC126 e 10 da Lei nº 9.469/97.127 Para a apresentação das contra-razões, o prazo também é quinzenal. Contudo; ressalte-se que o privilégio do prazo duplicado aos entes supramencionados é concedido apenas para o ato de recorrer, não para o oferecimento de resposta. Já com relação aos defensores públicos e aos litisconsortes com diferentes procuradores (desde que todos eles tenham interesse recursal), tanto o prazo para recorrer quanto o prazo para responder são contados em dobro. Consoante abordado por Bernardo Pimentel Souza, o requisito da tempestividade “repousa na exigência de que o recurso seja interposto dentro do prazo peremptório estabelecido em lei, sob pena de operar-se a preclusão temporal”.128 O prazo para a interposição do apelo especial inicia-se a partir da intimação da decisão, que se dá com a publicação do dispositivo do acórdão recorrido no órgão oficial (art. 506, III, CPC),129 salvo se a parte possuir a prerrogativa da intimação pessoal, caso em que o dies a quo será considerado em conformidade com o que determina a legislação instrumental em tais situações. Em qualquer das hipóteses, uma vez interposto o recurso, sua tempestividade será aferida pela data da sua protocolização na secretaria do tribunal. A propósito, vale conferir o Enunciado nº 216 da Súmula do STJ, que dispõe: “A tempestividade 125 Art. 508. Na apelação, nos embargos infringentes, no recurso ordinário, no recurso especial, no recurso extraordinário e nos embargos de divergência, o prazo para interpor e para responder é de 15 (quinze) dias. 126 Art. 188. Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público. 127 Art. 10. Aplica-se às autarquias e fundações públicas o disposto nos arts. 188 e 475, caput, e no seu inciso II, do Código de Processo Civil. 128 SOUZA, 2008, p. 70. 129 Art. 506. O prazo para a interposição do recurso, aplicável em todos os casos o disposto no art. 184 e seus parágrafos, contar-se-á da data: (...) III - da publicação do dispositivo do acórdão no órgão oficial. 39 de recurso interposto no Superior Tribunal de Justiça é aferida pelo registro no protocolo da Secretaria e não pela data da entrega na agência do correio”. Caso o recurso especial seja interposto via fac-símile, em consonância com a Lei nº 9.800/99, o petitório original deve ser protocolizado em até 5 (dias) da data do término do prazo recursal. Registre-se, por fim, a questão da tempestividade do especial na circunstância de o acórdão conter julgamento por maioria e por unanimidade. Havendo interposição de embargos infringentes em face da parte não-unânime, o prazo para sua apresentação contra a parte unânime fica sobrestado até a intimação da decisão dos embargos; caso contrário, referido prazo terá início apenas após o trânsito em julgado da decisão por maioria de votos. Inteligência do artigo 498 do CPC. 2.4.2.2 Preparo A exigência do preparo encontra previsão no artigo 511 do CPC, 130 o qual determina que a comprovação do seu recolhimento deve ser realizada de maneira imediata, ou seja, no ato de interposição do recurso especial. Cuida-se de expressa previsão legal, caso em que, [...] exercido o direito de recorrer sem a referida comprovação, terá ocorrido preclusão consumativa relativamente ao preparo, isto é, o recorrente não mais poderá juntar a guia comprobatória do pagamento, ainda que o prazo 131 recursal não se tenha esgotado. Por preparo, entende-se o conjunto das despesas relativas ao recurso, o que inclui o pagamento “da taxa judiciária e das despesas postais (portes de remessa e de retorno dos autos)”.132 No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a legislação pertinente ao assunto é a Lei nº 11.636/2007, regulamentada pela Resolução 01/2008-STJ. 130 Art. 511. No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção. 131 NERY JUNIOR, 2000, p. 365. 132 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 56. 40 Caso tal imposição não seja atendida, a sanção a ser imposta de ofício é a deserção, o que significa dizer que o recurso será trancado, por não preencher um dos pressupostos para sua admissibilidade. Sobre essa questão, há inclusive entendimento sumulado pelo STJ, consubstanciado no verbete nº 187: “É deserto o recurso interposto para o Superior Tribunal de Justiça, quando o recorrente não recolhe, na origem, a importância das despesas de remessa e retorno dos autos”. Se o pagamento do preparo for efetuado a menor, o recorrente deverá ser intimado, pelo órgão a quo ou pelo juízo ad quem,133 para, dentro de 5 (cinco) dias, efetuar a complementação. Nessa hipótese de insuficiência, somente após a concessão do prazo é que, em não havendo o recolhimento, a pena de deserção poderá ser aplicada. O § 1º do art. 511 ainda informa serem dispensados do pagamento do preparo os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Fazenda Pública e respectivas autarquias, bem como por aqueles que gozam de isenção legal, como os beneficiários da assistência jurídica gratuita (arts. 3º, II, e 9º, ambos da Lei nº1.060/50). 2.4.2.3 Regularidade Formal A regularidade formal pressupõe que a interposição do apelo obedeça à forma prescrita em lei, o que, no recurso especial, encontra orientação no artigo 541 do CPC. Por se tratar de apelo com estruturação vinculada, os pressupostos constitucionais e regimentais também devem ser observados, sob pena de não conhecimento.134 Segundo a lei processual, o recurso ora em enfoque deve ser interposto perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem e simultaneamente ao recurso extraordinário, caso igualmente se entenda pelo cabimento deste. Ressalte-se, entretanto, que sua apresentação deve ser feita mediante petição escrita e autônoma daquela a ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal. 133 134 SOUZA, 2008, p. 98-99. NERY JUNIOR, 2000, p. 332. 41 No ato de interposição, o apelo deverá conter, desde logo, a exposição dos fatos e do direito, a demonstração do cabimento do recurso interposto (o qual pode ser fulcrado em qualquer uma das alíneas do permissivo constitucional, conjunta ou separadamente) e as razões do pedido de reforma da decisão impugnada, rechaçando especificamente os fundamentos desta. Na hipótese de o recurso se basear na existência de dissídio jurisprudencial, o parágrafo único do artigo 541 expõe a forma como a divergência deve ser demonstrada: Art. 541. Parágrafo único. Quando o recurso fundar-se em dissídio jurisprudencial, o recorrente fará a prova da divergência mediante certidão, cópia autenticada ou pela citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que tiver sido publicada a decisão divergente, ou ainda pela reprodução de julgado disponível na Internet, com indicação da respectiva fonte, mencionando, em qualquer caso, as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. Para Nelson Nery Junior, a obrigatoriedade da fundamentação é decorrente do princípio da dialeticidade, segundo o qual o recurso deve se mostrar discursivo, ou seja, “o recorrente deverá declinar o porquê do pedido de reexame da decisão. Só assim a parte contrária poderá contra-arrazoá-lo, formando-se o imprescindível contraditório em sede recursal”.135 Também no tocante à regularidade, a petição recursal deve estar assinada por procurador devidamente constituído nos autos, vez que, a teor da Súmula 115/STJ, o recurso interposto na instância especial por advogado sem procuração é considerado inexistente. Ademais, a jurisprudência do Tribunal Superior é pacífica no sentido de que o artigo 13 do CPC, que oportuniza às partes a regularização da representação processual, não se aplica na sede excepcional. 2.4.2.4 Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer Trata-se do único requisito de admissibilidade recursal negativo: é a sua inocorrência que conduzirá, neste ponto, a um juízo preliminar positivo. 136 135 136 NERY JUNIOR, 2000, p. 149. SOUZA, 2008, p. 52. 42 Os fatos impeditivos do poder de recorrer são a desistência do recurso ou da ação, o reconhecimento da procedência do pedido e a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação. Por sua vez, são fatos extintivos: a renúncia ao direito de recorrer e a aquiescência da decisão. 2.5 PROCEDIMENTO Uma vez recebido o recurso especial pela secretaria do tribunal competente, o recorrido será intimado para a apresentação das contra-razões no prazo legal. Após, os autos serão conclusos e remetidos diretamente ao presidente ou vicepresidente do tribunal recorrido, a fim de que seja exercido o juízo preliminar de admissibilidade do apelo.137 Se o recurso for admitido, os autos serão encaminhados primeiramente ao Superior Tribunal de Justiça, ainda que também tenha sido admitido recurso extraordinário simultaneamente interposto. Somente após o julgamento do especial é que os autos serão enviados ao Supremo Tribunal Federal, desde que o extraordinário não esteja prejudicado (nos casos em que o recurso de competência do STJ tenha sido conhecido e provido138).139 Exceção a essa hipótese é determinada pelos parágrafos 2º e 3º do artigo 543 do CPC, nos casos em que o STJ entender que o recurso extraordinário, por ser prejudicial ao julgamento do recurso especial, deva ser julgado previamente. Assim, por meio de decisão irrecorrível, o relator a quem o processo foi distribuído sobrestará o feito e determinará sua remessa ao STF. Todavia, nada impede que o relator do extraordinário não compartilhe desse mesmo entendimento, situação que, 137 Art. 542. Recebida a petição pela secretaria do tribunal, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe vista, para apresentar contra-razões. o § 1 Findo esse prazo, serão os autos conclusos para admissão ou não do recurso, no prazo de 15 (quinze) dias, em decisão fundamentada. 138 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 242. 139 Art. 543. Admitidos ambos os recursos, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça. o § 1 Concluído o julgamento do recurso especial, serão os autos remetidos ao Supremo Tribunal Federal, para apreciação do recurso extraordinário, se este não estiver prejudicado. 43 também através de decisório irrecorrível, fará com que os autos retornem ao STJ para o devido julgamento do apelo especial.140 Por outro lado, caso o recurso seja inadmitido, à parte é conferida a possibilidade de interpor o agravo de instrumento previsto no artigo 544 do CPC.141 140 o Art. 543. § 2 Na hipótese de o relator do recurso especial considerar que o recurso extraordinário é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível sobrestará o seu julgamento e remeterá os autos ao o Supremo Tribunal Federal, para o julgamento do recurso extraordinário. § 3 No caso do parágrafo anterior, se o relator do recurso extraordinário, em decisão irrecorrível, não o considerar prejudicial, devolverá os autos ao Superior Tribunal de Justiça, para o julgamento do recurso especial. 141 Art. 544. Não admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo de instrumento, no prazo de 10 (dez) dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso. 44 3 A ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL E O ACESSO À JUSTIÇA 3.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS Conforme explanado no capítulo anterior, as espécies recursais devem preencher certos requisitos de admissibilidade para que possam ter seu mérito devidamente examinado. Nesse aspecto, pode-se até mesmo estabelecer uma comparação entre tais condições recursais e as condições da ação. Dessa opinião não destoa Nelson Nery Junior, para quem “os requisitos de admissibilidade dos recursos se situam no plano das preliminares, assim como as condições da ação no procedimento já realizado no primeiro grau de jurisdição”.142 Analisados os requisitos recursais genéricos, inerentes a todos os apelos, cabe agora partir para a verificação dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso especial, os quais, na lição de Ângelo Pariz, correspondem às particularidades diretamente decorrentes daqueles. A propósito, confira-se: Evidentemente, dependendo da espécie de recurso utilizado pelo recorrente, serão esses requisitos genéricos definidos, explicitados, especificados e adaptados ao recurso escolhido, completando-se seu perfil. Teremos, assim, esses requisitos genéricos especificados para um recurso 143 determinado (pressupostos recursais específicos). 3.2 REQUISITOS ESPECÍFICOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL 3.2.1 Prequestionamento Assim dispõe o artigo 105, inciso III, da Constituição da República: 142 NERY JUNIOR, 2000, p. 224. PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. Pressupostos de admissibilidade recursal e princípios recursais. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1814, 19 jun. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11402>. Acesso em: 27 set. 2009. 143 45 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: Da atenta leitura do dispositivo constitucional em comento, referente ao cabimento do recurso especial, depreende-se que uma das exigências para a sua interposição é a de que a questão sobre a qual se pretende discutir perante o Superior Tribunal de Justiça tenha sido efetivamente decidida na instância inferior, ou seja, que o Tribunal a quo tenha emitido juízo de valor sobre a matéria a ser impugnada. Trata-se do chamado prequestionamento, requisito essencial para a admissibilidade dos recursos extraordinários lato sensu, conforme entendimento assente nos Tribunais Superiores. Nesse sentido, foi editado o enunciado nº 282 da Súmula do Pretório Excelso, aplicável, por simetria, também no âmbito do recurso especial: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Para que o prequestionamento reste caracterizado, não é necessário que tenha ocorrido a expressa menção, no julgado recorrido, do dispositivo que se pretende alegar como violado no recurso; basta que a matéria jurídica a ser suscitada tenha sido previamente debatida pelo Tribunal a quo. Em havendo omissão do Tribunal de origem acerca do tema que se pretende aviar em futuro recurso especial, cabe à parte provocar o órgão jurisdicional através da oposição de embargos declaratórios com o fito de prequestionamento. Contudo, apesar de provocado, pode o Tribunal permanecer silente no tocante à quaestio levantada, entendendo que o acórdão não incorreu em nenhum dos vícios aptos à apresentação do recurso integrativo. Nessa hipótese, o Superior Tribunal de Justiça entende não bastar a simples oposição do apelo aclaratório para que o prequestionamento esteja caracterizado. 144 144 A título de esclarecimento, cumpre registrar que aqui reside importante divergência entre as orientações perfilhadas pelo STF e pelo STJ. Para o Supremo Tribunal Federal, a simples oposição dos embargos de declaração a fim de sanar omissão existente no decisum recorrido é suficiente para caracterizar o prequestionamento da matéria neles veiculada, viabilizando, dessa forma, a interposição do recurso extraordinário. É o que se depreende do verbete nº 356 da Súmula do próprio STF, que dispõe, in verbis: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”. Segundo a Suprema Corte, uma vez instado o Tribunal local, e tendo este se recusado a reparar a falta de pronunciamento, nada mais se poderia exigir da parte, que se utilizou dos devidos meios 46 É preciso que a questão federal seja efetivamente debatida pela Corte a quo, a teor do enunciado nº 211 de sua Súmula, vazada nos seguintes termos: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo”. Persistindo a omissão após a rejeição dos embargos, deve o recorrente, em sede de recurso especial, aduzir ofensa ao artigo 535 do Código de Processo Civil, demonstrando, de forma inequívoca, em que consistiu o alegado vício. Assim, o STJ, ao constatar a existência de omissão, dará provimento ao apelo especial, anulando o acórdão proferido em sede de embargos declaratórios e determinando o retorno dos autos à Corte de origem, que deverá emitir novo juízo sobre o recurso integrativo. Somente após esse trâmite, quando então será prolatado um outro acórdão pelo Órgão Colegiado local, é que caberá novamente a interposição de recurso especial, agora fundado na questão federal devidamente prequestionada. A propósito, o seguinte julgado: PROCESSUAL CIVIL – DISPOSITIVOS LEGAIS – FALTA DE PREQUESTIONAMENTO – SÚMULA 211 DO STJ – REDISCUSSÃO DOS CÁLCULOS APRESENTADOS PELA CONTADORIA JUDICIAL – IMPOSSIBILIDADE – ENUNCIADO 7 DA SÚMULA/STJ. 1. Impõe-se o não-conhecimento do recurso especial por ausência de prequestionamento, entendido como o necessário e indispensável exame da questão pela decisão atacada, apto a viabilizar a pretensão recursal, incidindo, no caso, o enunciado da Súmula 211 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. 2. A mera menção no acórdão recorrido de que deu por prequestionados os dispositivos apontados pela recorrente, por si só, não tem o condão de prequestionar a matéria suscitada. É necessário, pois, que a questão tenha sido objeto de debate, com a imprescindível manifestação pelo Tribunal de origem, o qual deverá emitir juízo de valor acerca dos dispositivos legais, ao decidir pela sua aplicação ou seu afastamento em relação a cada caso concreto. 3. Se a recorrente entendesse existir alguma eiva no acórdão impugnado, ainda que a questão federal tenha surgido somente no julgamento no Tribunal a quo, deveria ter oposto embargos declaratórios, a fim de que fosse suprida a exigência do prequestionamento e viabilizado o conhecimento do recurso em relação ao referido dispositivo legal. Caso persistisse tal omissão, imprescindível a alegação de violação do artigo 535 do Código de Processo Civil, quando da interposição do recurso especial com fundamento na alínea “a” do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, sob pena de incidir no intransponível óbice da ausência de prequestionamento. [...]. legais para ter o seu feito sanado. Nesse sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgR-AI 648760. 1ª Turma. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Data de Julgamento: 6 de nov. de 2007. 47 Agravo regimental improvido. 145 Nesse tópico, cabe ainda estabelecer um adendo. A teor da Súmula 320/STJ, “a questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”. O simples debate da matéria não corresponde ao termo “causa decidida” para fins de comprovação do requisito. 3.2.2 Exaurimento das instâncias ordinárias Quando o artigo 105, inciso III, da Constituição expõe que ao Superior Tribunal de Justiça cabe, em sede de recurso especial, o julgamento de causas decididas em única ou última instância, significa que a Corte Superior deve necessariamente dar a última palavra em matéria de direito federal infraconstitucional comum. Dessa premissa, é possível concluir que o apelo excepcional ora em estudo só pode ser interposto depois que previamente esgotados todos os recursos cabíveis no âmbito ordinário, sob pena de restar caracterizada a supressão de instância. Tal entendimento, inclusive, é objeto de Súmula perante o STF, conforme enunciado nº 281: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”. A necessidade de exaurimento de instância impossibilita que o apelo especial seja apresentado diretamente em face de decisão monocrática exarada por relator do Tribunal a quo, contra a qual ainda é cabível o denominado agravo interno, que se destina a buscar a manifestação do Órgão Colegiado acerca da questão aventada no recurso singularmente julgado. A mesma idéia também se aplica nos casos em que cabíveis embargos infringentes contra decisão não-unânime emanada do Tribunal de origem. Nesse sentido, há o enunciado nº 207 do STJ, que assim determina: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem”. 145 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp - 1066020/RS. 2ª Turma. Relator: Ministro Humberto Martins, Data de Julgamento: 17 de fev. de 2009. 48 Por fim, não é demais ressaltar que o recurso especial somente pode ser apresentado contra decisão de única ou última instância derivada de Tribunal Regional Federal ou Tribunal de Estados ou Distrito Federal e Territórios, conforme expressa previsão constitucional, o que impossibilita sua apresentação em face de julgados proferidos por turmas recursais de juizados especiais, não considerados tribunais no estrito sentido do termo. A propósito, confira-se o enunciado nº 203/STJ: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida, nos limites de sua competência, por órgão de segundo grau dos juizados especiais”. Referido regramento não caracteriza óbice ao acesso às instâncias excepcionais, porquanto a interposição de recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal não se sujeita a tal limitação. 3.2.3 Contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal Cuida-se, aqui, de hipótese de cabimento decorrente da alínea “a” do permissivo constitucional (“Art. 105. III - a) contrariar tratado ou lei federal, ou negarlhes vigência”). A doutrina costuma estabelecer a diferenciação entre as expressões “contrariar” e “negar vigência”, atribuindo àquela um sentido mais amplo e difuso, que chega até mesmo a englobar esta última.146 Tal distinção fazia sentido apenas quando a Constituição de 1967, ao especificar as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário (de cujo desmembramento deriva o recurso especial), entendia que a acepção “contrariar” estava diretamente vinculada à questão constitucional, enquanto a denominação “negar vigência” encontrava-se atrelada à questão infraconstitucional.147 Para Bernardo Pimentel, no entanto, essa divisão acabou por perder sua relevância prática, vez que a alínea “a” é clara ao descrever que ambas as situações viabilizam a apresentação do apelo.148 Para que o recurso especial tenha cabimento pela alínea “a”, é preciso que o recorrente indique, de maneira inequívoca, o dispositivo de lei federal tido por 146 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 252. Ibid., p. 252-253. 148 SOUZA, 2008, p. 700. 147 49 violado e as razões desse inconformismo, sob pena de restar caracterizada deficiência na fundamentação, a ensejar a aplicação da Súmula nº 284 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia”. O conceito de lei federal, para fins de cabimento do recurso excepcional, abarca as seguintes espécies e atos normativos: lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo, resolução do Senado, decretos e regulamentos do Poder Executivo da União, bem como tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico pátrio.149 Não se incluem, portanto, as portarias ministeriais, avisos, circulares, instruções normativas, provimentos, convênios interestaduais, enunciados de súmula e dispositivos de regimento interno de tribunal.150 Nesse contexto, não é cabível a alegação de contrariedade a dispositivo de lei local (estadual ou municipal), nos termos da Súmula 280/STF, a saber: “Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário”. Da mesma forma, é inviável a análise de violação a artigos da Constituição da República em sede de recurso especial. Em assim procedendo, o STJ estaria usurpando competência atribuída exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, a verdadeira Corte responsável pela integridade do direito constitucional no âmbito do recurso extraordinário stricto sensu. 3.2.3.1 Impossibilidade de reexame de matéria fático-probatória O apelo especial constitui espécie recursal de estrito direito, responsável pelo controle da higidez do direito objetivo federal.151 Por esse motivo, é inviável a mera pretensão de reexame da matéria fático-probatória já solucionada nas instâncias ordinárias, a teor do que enuncia a Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. Como é sabido, o Superior Tribunal de Justiça não funciona como terceiro grau de jurisdição. A discussão, nessa sede, restringe-se à correta aplicação do 149 SOUZA, 2008, p. 696. Ibid., p. 697. 151 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 218. 150 50 direito federal infraconstitucional aos fatos já apurados e delineados no acórdão então impugnado. Pelas mesmas razões, o pedido de interpretação de cláusulas de contrato não se coaduna com a natureza do recurso excepcional, conforme igualmente enuncia a Súmula 5/STJ: “A simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”. Importante observação, no entanto, deve ser ressaltada. O que torna o recurso especial inadmissível é o pedido de reapreciação das provas com o intuito de sanar possível injustiça cometida na análise procedida pelo Tribunal a quo. O erro na valoração legal da prova, ou seja, equívoco no emprego das regras relativas ao campo probatório, representa questão de direito, passível de impugnação por meio do apelo em epígrafe.152 3.2.4 Julgamento que torna válido ato de governo local contestado em face de lei federal O artigo 105, inciso III, alínea “b”, da Constituição permite o cabimento do recurso especial nos casos em que o Tribunal de origem julga válido ato de governo local contestado em face de lei federal, assim considerados os atos normativos e administrativos provenientes dos Poderes dos demais entes federativos que não a União.153 A hipótese, aqui, não comporta discussão acerca da validade de lei local contestada em face de lei federal. Conforme bem esclarece Bernardo Pimentel, [...] não há lugar para o recurso especial quando a controvérsia versa sobre lei proveniente do Legislativo estadual, distrital ou municipal, porquanto a questão afeta a competência do Supremo Tribunal Federal, consoante o disposto na letra “d” do inciso III do artigo 102, alínea também acrescentada 154 pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004. 152 SOUZA, 2008, p. 698. Ibid., p. 702-703. 154 Ibid., p. 703. 153 51 3.2.5 Interpretação divergente da que outro tribunal haja atribuído a determinada lei federal A alínea “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição descreve como terceira hipótese de cabimento do recurso especial a situação em que o Tribunal de origem confere a dispositivo de lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído qualquer155 outro tribunal. Para que o apelo possa ser admitido pela referida alínea, é preciso que o recorrente comprove, de maneira inequívoca, a ocorrência de dissídio jurisprudencial entre tribunais diversos, de acordo com as disposições legais e regimentais atinentes à espécie. Ainda, é necessário que os julgados dissonantes se refiram “à exegese de um mesmo texto de lei federal [...]. O recurso não será admitido se os textos em confronto forem diversos”.156 Conforme o artigo 541, parágrafo único, do CPC c/c o artigo 255, § 1º do Regimento Interno do STJ, o recorrente deve fazer prova da suscitada divergência mediante certidão, cópia autenticada ou pela citação do repositório de jurisprudência (oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica) em que tiver sido publicada a decisão divergente. A prova também pode ser demonstrada através da reprodução de julgado disponível na Internet (com indicação da respectiva fonte), desde que, em qualquer situação, a parte realize o devido cotejo analítico, ou seja, mencione as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. Para a configuração do cotejo (ou confronto) analítico entre o acórdão recorrido e o julgado colacionado como paradigma nas razões recursais, não basta a simples transcrição de ementas. É preciso que o recorrente reproduza e compare os trechos de ambos os julgados com o intuito de demonstrar que, para uma mesma situação fática, conferiu-se tese jurídica diversa. A propósito, confira-se esclarecedora passagem doutrinária: Em outras palavras, não é suficiente, para comprovar o dissídio jurisprudencial, a simples transcrição de ementas, sendo necessário que o recorrente transcreva trechos do relatório do acórdão paradigma e, depois, transcreva trechos do relatório do acórdão recorrido, comparando-os, a fim de demonstrar que trataram de casos bem parecidos ou cuja base fática seja bem similar. Após isso, deve o recorrente prosseguir no cotejo 155 156 SOUZA, 2008, p. 704. MANCUSO, 2008, p. 334. 52 analítico, transcrevendo trechos do voto do acórdão paradigma e trechos do voto do acórdão recorrido para, então, confrontá-los, demonstrando que 157 foram adotadas teses opostas. Frise-se que a alínea “c” é direcionada para a pacificação de entendimento jurisprudencial externo,158 ou seja, a divergência deve se dar entre acórdãos de tribunais diferentes, conforme dispõe o enunciado nº 13 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: “A divergência entre julgados do mesmo tribunal não enseja recurso especial”. Decisões singulares não se prestam para tal demonstração.159 Ademais, a Súmula nº 83/STJ determina não ser cabível recurso especial pela divergência quando o acórdão recorrido estiver em consonância com a jurisprudência firmada no âmbito do STJ, entendimento que, conforme iterativa jurisprudência deste mesmo Tribunal, também se aplica aos recursos interpostos pela alínea “a” do permissivo constitucional. Assim dispõe o enunciado: “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”. 3.2.6 Necessidade de impugnação dos fundamentos do acórdão recorrido Como já ressaltado anteriormente, o recurso especial é apelo de fundamentação vinculada, restrito à controvérsia federal infraconstitucional efetivamente debatida na instância de origem. Daí decorre a necessidade de que as razões recursais impugnem todos os fundamentos utilizados no acórdão recorrido para a inadmissão de determinado pleito, de forma que haja realmente a possibilidade de se alcançar um provimento útil com a interposição do apelo excepcional. Vale dizer, se o Tribunal a quo nega um direito à parte por meio de mais de um fundamento, cada qual autônomo e suficiente, por si só, para manter sua conclusão, e o recorrente se volta apenas contra um deles em sede de recurso especial, não terá sido preenchido o requisito genérico do interesse, já que o 157 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 256. SOUZA, 2008, p. 704. 159 Ibid., p. 705. 158 53 fundamento não impugnado subsistiria e, conseqüentemente, manteria a negação do pedido. Tal pressuposto é confirmado por duas súmulas. O enunciado nº 126/STJ afirma: “É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”. Fredie Didier Junior assim o interpreta: A inadmissibilidade decorre da inutilidade: a vitória do recorrente, nesse caso, ser-lhe-ia inútil, pois a decisão impugnada permaneceria incólume, já que o fundamento constitucional (que não foi impugnado) é suficiente para sustentá-la. Somente impugnando ambos os fundamentos suficientes para manter a decisão, com um recurso especial e um extraordinário, é que a 160 parte poderia alcançar alguma utilidade no procedimento recursal. Por sua vez, o verbete nº 283/STF aduz da seguinte forma: “É inadmissível o recurso extraordinário quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles”. No ponto, Bernardo Pimentel também tece seus comentários: Com efeito, quando a conclusão do julgamento está sustentada por dois ou mais fundamentos, autônomos entre si, é inútil o recurso que não combate todos eles. E a razão é simples: o eventual provimento do recurso quanto ao fundamento impugnado não traria nenhuma vantagem prática ao recorrente. A conclusão do julgado permaneceria intacta, por força do 161 fundamento remanescente, não impugnado. 3.3 OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL COMO AFIRMAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO O Direito possui importante papel dentro de uma sociedade, vez que estabelece regramentos destinados a sua ordenação e harmonização, tudo em busca da primordial função de solucionar conflitos que garantam a pacificação entre seus membros. Tais normas exercem total influência no meio social, razão pela qual é de fundamental importância que sejam inteiramente respeitadas e conhecidas por 160 161 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 49. SOUZA, 2008, p. 49. 54 todos. Em caso de violação aos seus comandos, o Estado dispõe de meios coercitivos para o restabelecimento da normalidade. Justamente por essa importante função que desempenha, é de interesse do Estado que o sistema jurídico permaneça sempre íntegro e em pleno funcionamento. Para tanto, faz-se necessária a existência de um instrumento que permita a manutenção desse objetivo, bem como de um órgão jurisdicional superior que conheça desse instituto, especialmente a fim de garantir a aplicação uniforme da norma em todo o território em que opera. A propósito, confira-se abalizado ensinamento de José Afonso da Silva: A positividade do Direito tem como valor preponderante dar certeza às regras de conduta jurídica. Visa, pois, estabelecer, para o futuro, modos de conduzir-se nos negócios jurídicos, na conformidade daquilo, que, histórica e socialmente, se tem como mais justo. A certeza jurídica, assim, se transforma num valor jurídico que, à ordem estatal, interessa preservar e defender. Essa certeza, porém, redundaria precária, se não se estabelecessem meios de fazê-la valer através da unidade da aplicação das normas jurídicas 162 positivas em cada ordem jurídica. Nesse contexto, o ordenamento pátrio dotou o Superior Tribunal de Justiça, por meio do apelo denominado recurso especial, dessa função estritamente técnica e específica: a de tutelar o direito objetivo federal infraconstitucional e garantir a uniformidade de sua interpretação em todo o território nacional. Isso porque o Brasil adotou como forma de Estado a Federação, o que significa dizer que coexistem órgãos e legislações de natureza federal e estadual no âmbito de sua jurisdição. Entretanto, tendo em vista que o direito federal é único em todo o país, seria inconcebível imaginar que sua aplicação pudesse se dar de forma diversa em diferentes regiões do território brasileiro, razão pela qual a existência de uma Corte Superior que fiscalize sua interpretação isonômica se faz estritamente necessária. Assim, é possível dizer que o recurso especial desempenha uma função essencialmente política: utilizando as palavras de José Afonso da Silva, serve de instrumento de atuação do Superior Tribunal de Justiça “na mantença da inteireza, validade, autoridade e unidade do Direito federal”.163 162 SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963. p. 3. 163 Ibid., p. 18. 55 Ante tamanha importância, é preciso levar em consideração que o recurso ora em enfoque não se trata de um apelo meramente ordinário. Leva, isso sim, a alcunha de remédio excepcional, pois imediatamente voltado para a tutela da própria ordem jurídica; o direito subjetivo da parte fica assegurado apenas de forma mediata.164 Ovídio Baptista também se manifesta sobre esse aspecto: [...] os recursos de natureza extraordinária, aí compreendidos o recurso especial e o extraordinário propriamente dito, ao contrário dos demais recursos ordinários, não têm por fim o exclusivo interesse do recorrente em obter a reforma da decisão impugnada em seu benefício pessoal, mas, ao lado desse interesse privado, serve-se o ordenamento jurídico da iniciativa do recorrente para preservar os princípios superiores de unidade e inteireza do sistema jurídico em vigor, evitando que interpretações divergentes e contraditórias sobre um mesmo preceito de lei federal acabem gerando a insegurança e a incerteza quanto à existência dos direitos consagrados e 165 protegidos pela lei. Daí a necessidade de se estabelecer requisitos formais rígidos e específicos para sua admissibilidade. Por possuir a missão constitucional de preservar a própria ordem pública,166 bem como o objetivo precípuo de “proporcionar a necessária segurança jurídica à sociedade, na medida em que assegura o império e a unidade das normas federais”,167 é imprescindível que o preenchimento das suas hipóteses de cabimento esteja claramente demonstrado quando da interposição do apelo. Nas palavras de Ada Pellegrini, [...] os recursos constitucionais ora examinados estão sujeitos a rígidos controles de admissibilidade, de sorte que, já no momento de sua interposição, deve o recorrente atentar para as prescrições legais e regimentais pertinentes, cujo atendimento é indeclinável, sob pena de indeferimento ou não conhecimento da impugnação. É que, tratando-se de remédios excepcionais previstos na Constituição para tutela do próprio ordenamento, seu cabimento deve ficar evidenciado acima de qualquer dúvida, o que somente pode ser atingido pela escorreita 168 observância dessas formalidades. 164 FUX, 2008, p. 876. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 1, p. 429. 166 PANTUZZO, Giovanni Mansur. Prática dos recursos especial e extraordinário. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 23. 167 Ibid., p. 23. 168 GRINOVER, Ada P. et al. Recursos no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 288-289. 165 56 A partir da análise dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso especial, devidamente discriminados no tópico anterior, verifica-se claramente sua razão e necessidade de ser. Antes de importarem excesso de rigor formal, servem justamente para confirmar e assegurar o cumprimento da incumbência constitucional assegurada ao apelo extremo. A exigência do prequestionamento decorre justamente da necessidade de que o Tribunal a quo tenha se manifestado, de modo efetivo, sobre a questão federal controvertida suscitada em sede de recurso especial, a fim de que o STJ possa verificar se o posicionamento adotado incorreu, de fato, em afronta ao ordenamento vigente. Mostra-se inconcebível instar a Corte Superior a exercer a sua função uniformizadora do direito federal infraconstitucional se nem ao menos houve na origem pronunciamento acerca da quaestio aventada. Não tendo ocorrido essa declaração, não há como se falar em ofensa a determinada legislação, sequer em entendimento divergente a ser pacificado. A adoção da Súmula 211/STJ apenas corrobora essa interpretação. A mera oposição dos embargos de declaração não basta para o preenchimento do requisito em questão, vez que o prequestionamento é satisfeito por meio da efetiva solução da matéria na decisão recorrida, não da simples argumentação levantada pelo litigante no curso do processo. Nesse ponto, Bruno Mattos e Silva explicita que [...] está na Constituição Federal o fundamento para a exigência do prequestionamento: apenas questões decididas podem ser objeto de recurso especial e extraordinário. Dentro dessa visão, como podemos também concluir, prequestionamento é a apreciação da questão por parte 169 do órgão julgador e não sua mera suscitação prévia pela parte. Já o requisito do prévio exaurimento de instância deriva da regra de que os recursos “não podem ser exercitados per saltum, deixando in albis alguma possibilidade de impugnação”.170 Para que o STJ possa dar a última palavra em matéria de direito federal (e há expressa previsão constitucional nesse sentido, porquanto o recurso especial só é cabível contra decisões proferidas em único ou último grau), é necessário que se esgotem todas as possibilidades de 169 MATTOS E SILVA, Bruno. Prequestionamento, recurso especial e recurso extraordinário. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 6. 170 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 228. 57 pronunciamento prévio colocados à disposição das partes no sistema processual, sob pena de restar caracterizada a supressão de instância. Por outro lado, a exigência de que o recorrente indique o dispositivo de lei federal que entende por violado resulta da própria natureza do recurso excepcional, o qual, além da sucumbência, requer a ocorrência de efetiva contrariedade ao direito positivo. Essa indicação é essencial para que o Tribunal Superior possa estar inteiramente a par da matéria objeto de controvérsia por parte dos demais órgãos julgadores, sem o que não conseguirá exercer de forma plena sua função constitucional. Nelson Nery Junior aclara tal necessidade no âmbito do recurso extraordinário, entendimento igualmente aplicável ao apelo especial, vez que ambos os recursos possuem a mesma natureza e tratamento: Ao interpor o recurso extraordinário, o recorrente deverá indicar o dispositivo ou alínea que o autorizem [...]. Dada a forma vinculada desse recurso, não tem aplicação aqui o princípio jura novit curia, cabendo ao recorrente indicar precisamente o artigo em que fundamenta seu recurso 171 extraordinário. Ademais, sendo o STJ uma Corte nacional, suas atribuições recaem sobre questões de nível federal, que possam influir na sociedade como um todo. A partir do momento em que a sua função precípua é a de manter íntegro o direito federal infraconstitucional, não há como permitir que problemáticas estritamente regionais, sem qualquer repercussão em âmbito nacional, cheguem ao seu alcance. Daí a impossibilidade de se proceder à análise do direito local específico de cada ente federativo. Também não se presta o recurso especial para a análise de dispositivo constitucional justamente pelo fato de que a própria Constituição determina que a competência, nesses casos, pertence ao Supremo Tribunal Federal, que desempenha a função de guardião da Carta Magna por meio do recurso extraordinário. Por sua vez, a impossibilidade de reexame de provas deriva do fato de que a instância extraordinária não funciona como terceira instância. A garantia de revisão limita-se ao duplo grau de jurisdição; às Cortes Supremas cabe apenas a análise 171 NERY JUNIOR, 2000, p. 332. 58 das questões de direito incidentes sobre a matéria fática já delineada pelo Tribunal de origem. A formalidade exigida para a realização do cotejo analítico na hipótese de interposição do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional é ainda mais necessária. Se o recorrente não demonstrar que o acórdão colacionado como paradigma não possui a mesma base fática do acórdão do qual se recorre, não há como dizer que foram conferidas interpretações diferentes a uma mesma questão, de modo que não haverá entendimento a ser pacificado pela Corte Superior. Finalmente, tendo em vista que o recurso especial é apelo de fundamentação vinculada, não há como dar prosseguimento ao feito se as suas razões não tentam desconstituir as teses utilizadas pelo acórdão recorrido para a inadmissão do pleito. Consoante já ressaltado, trata-se de ausência de interesse de agir: o recorrente não alcançará um provimento útil com o julgamento a ser realizado pelo STJ, vez que o fundamento não impugnado subsistirá para fins de negação do pedido. Como demonstrado, os requisitos de admissibilidade do recurso especial servem como garantia de preservação do próprio sistema. Somente com a estrita observância dessas condições será possível assegurar ao Superior Tribunal de Justiça a segurança necessária para verificar, acima de qualquer dúvida, se o direito objetivo está realmente sendo ameaçado. Se a suscitada afronta não for claramente demonstrada, não haverá como reconhecê-la. No campo prático, tais exigências acabam por atuar como verdadeiros filtros qualitativos essenciais à eliminação de recursos manifestamente infundados, vale dizer, recursos que não demonstram a necessidade de intervenção da Corte Superior. Com isso, a atuação do STJ ficará eficazmente restrita aos casos de relevância nacional, o que garantirá, no âmbito da instância extraordinária, o efetivo acesso à justiça no real alcance do seu termo, qual seja, o de acesso a uma ordem jurídica justa, efetiva, tempestiva e de qualidade, que atenda aos escopos processuais e assegure a indispensável segurança jurídica. São essas as principais facetas da garantia de acesso à justiça em sua relação com o recurso especial, as quais serão pontualmente discriminadas nos tópicos a seguir. 59 3.4 OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL COMO AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA 3.4.1 Técnica processual O direito constitucional de ação, caracterizado pela garantia fundamental de acesso à justiça descrita no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, não é absoluto. Ao seu lado, coexiste um direito processual de ação,172 “vale dizer, [...] um direito subjetivo à sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas as condições da ação”.173 Esse raciocínio é importante para determinar que, assim como a ação, também os recursos se sujeitam à observância de normas técnicas essenciais, as quais, no seu âmbito, recebem o nome de condições recursais. Tais condições, que representam os requisitos de admissibilidade a serem analisados antes de se proceder ao exame do mérito, representam limitações naturais ao direito de agir, já que funcionam como proteção aos litigantes e ao próprio sistema jurídico contra o seu exercício abusivo. Na opinião de Marcus Gonçalves, “essas limitações não ofendem a garantia da ação, pois constituem em restrições de ordem técnico-processual, necessárias para a própria preservação do sistema e o bom convívio das normas processuais”.174 Dinamarco também reforça esse posicionamento: Todo esse feixe de aberturas propiciado pelo princípio da inafastabilidade sujeita-se às restrições legitimamente postas pelas regras técnicas do processo e mesmo pelo convívio com outras normas viventes no próprio plano constitucional. Isso explica por que certas pretensões em face do Estado encontram a barreira representada pelas fórmulas de independência dos Poderes e equilíbrio entre eles; por que a propositura de uma demanda em juízo é sempre sujeita a uma série de requisitos técnico-processuais, inclusive de forma; por que as pretensões só poderão ser afinal julgadas se presentes os chamados pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito etc. Tais são óbices legitimamente postos à plena universalização da tutela jurisdicional, de cuja presença no sistema se infere a legítima relatividade da garantia da inafastabilidade dessa tutela. Essa relatividade não significa debilidade da garantia e não pode conotar-se por um nefasto 172 WAMBIER, 2005, p. 139. NERY JUNIOR, 2004, p. 136. 174 GONÇALVES, 2008, p. 33. 173 60 conformismo diante de situações não-jurisdicionalizáveis, sob pena de 175 inutilidade da garantia. Assim, sendo barreiras legítimas para a garantia do livre acesso à justiça, necessárias à integridade e ao bom andamento do sistema processual, não há de se falar, sob esse aspecto, em ofensa à garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional por parte dos requisitos de admissibilidade do apelo excepcional. Mas essa argumentação não é a única apta a justificar a adequação dos pressupostos ao direito constitucionalmente firmado. É preciso relacioná-los às outras facetas próprias do princípio, já indicadas alhures e particularizadas nos próximos pontos. 3.4.2 Acesso à ordem jurídica justa Conforme idéia outrora lançada, a plena efetividade da garantia de acesso à justiça (promessa-síntese) deve vir necessariamente complementada por outros direitos fundamentais (promessas instrumentais), de forma que o acesso a um processo justo se dê em obediência a três princípios primordiais: o da isonomia, do contraditório e do juiz imparcial. Na lição de Cândido Dinamarco, Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça. E receber justiça significa ser admitido em juízo, poder participar, contar com a participação adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional consentâneo com os valores da sociedade. Tais são os contornos do 176 processo justo [...]. Nesse aspecto, o atendimento às exigências constitucionais do apelo excepcional deve representar um comprometimento de todos os envolvidos na relação processual. A partir do momento em que a lei estabelece requisitos mínimos para o desenvolvimento válido do processo, a observância dessas normas procedimentais se mostra essencial, tanto para a preservação do sistema quanto para a segurança das partes em não ver violado seu direito de defesa em juízo. 175 176 DINAMARCO, 2001, p. 199. Ibid., p. 115. 61 O devido processo legal, portanto, [...] é uma garantia do cidadão. Garantia constitucionalmente prevista que assegura tanto o exercício do direito de acesso ao Poder Judiciário como o desenvolvimento processual de acordo com normas previamente 177 estabelecidas. Na instância extraordinária, onde a solução do litígio intersubjetivo é alcançada apenas de forma indireta, dando espaço ao interesse maior de se ter um sistema íntegro que vigore em conformidade com os valores preponderantes da sociedade em que opera, a isonomia é especialmente garantida no momento da aplicação da lei. O STJ, no exercício da sua função constitucional de tutela do direito federal, prima por um ordenamento que garanta tratamento igualitário a todos, procurando evitar interpretações díspares de uma mesma legislação nas diferentes regiões do país por meio dos instrumentos que a lei lhe assegura. Desse entendimento não destoa Tucci: Tal concepção – de que a igualdade abrange não só o campo da criação da lei, mas, também, o da sua aplicação – implica que o juiz, no exercício da função jurisdicional, a despeito de não estar vinculado ao precedente 178 judiciário, deve decidir de idêntico modo questões análogas. Como consectário desse princípio, surge o direito ao contraditório, visto especialmente sob a ótica da bilateralidade e condução dialética do processo 179, cuja aplicabilidade “opera com vistas à eliminação (ou pelo menos diminuição) das desigualdades, jurídicas ou de fato, entre os sujeitos do processo”.180 No procedimento relativo ao recurso especial, a necessidade de que o recorrente decline as razões de seu inconformismo existe justamente para que o recorrido possa saber o que impugnar diretamente nas contra-razões, “formando-se o imprescindível contraditório em sede recursal”.181 177 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 145. 178 TUCCI; TUCCI, 1989, p. 40. 179 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 93. 180 PORTANOVA, op. cit., p. 164. 181 NERY JUNIOR, 2000, p. 319. 62 Dessa relação processual também se extrai outra garantia de tratamento isonômico conferido às partes, tendo em vista o estabelecimento de prazos iguais (15 dias) para a interposição e a resposta do apelo.182 Como garantia de imparcialidade, a Constituição consagra o princípio do juiz natural, que, segundo Rui Portanova, [...] exige não só uma disciplina legal da via judicial, da competência funcional, material e territorial do tribunal, mas também uma regra sobre qual dos órgãos judicantes e qual juiz, em cada um desses órgãos 183 individualmente considerado, deve exercer a sua atividade. Por essa garantia, fica claro perceber porque a Constituição Federal confiou a tarefa de preservar o direito federal ao STJ. Pela função e natureza atribuídas ao recurso especial, somente um Tribunal Superior, com jurisdição em todo o território nacional, estaria apto a exercer a atribuição essencial de ordenação e pacificação de toda uma sociedade sujeita a uma mesma legislação. Aqui também se enquadra a interpretação que conduz à garantia da isonomia. Segundo Dinamarco, A imparcialidade, conquanto importantíssima, não é um valor em si própria mas fator para o culto de uma fundamental virtude democrática refletida no processo, que é a igualdade. Quer-se o juiz imparcial, para que dê tratamento igual aos litigantes ao longo do processo e na decisão da 184 causa. Em síntese, a partir do momento em que o devido processo legal for conduzido em observância à igualdade, ao contraditório e ao princípio do juiz imparcial, estará garantido, ao menos numa visão inicial, o acesso à ordem jurídica justa, também consolidado no direito à obtenção de uma sentença justa. 3.4.3 Acesso à tutela jurisdicional tempestiva, efetiva e de qualidade Os requisitos de admissibilidade do recurso especial atuam como instrumento de resguardo direto a dois principais interesses: o da Justiça, ao permitirem que se 182 NERY JUNIOR, 2000, p. 288. PORTANOVA, 2001, p. 64. 184 DINAMARCO, 2001, p. 201. 183 63 direcione o foco ao exame de casos relevantes a nível nacional, e o das partes, ao proporcionarem a solução dos seus processos em tempo mais razoável e, portanto, mais justo. Para essa análise, mostra-se essencial incorporar ao presente estudo o comando trazido pelo artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República, o qual expõe que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Referida previsão, trazida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 na denominada Reforma do Judiciário, consiste em importante mecanismo “na busca da efetividade do processo em prol de sua missão social de eliminar conflitos e fazer justiça”,185 impondo à atividade jurisdicional sua escorreita observância. Nesse contexto, os óbices de admissibilidade do recurso especial, à semelhança do requisito da repercussão geral no Supremo, acabam por atender a essa garantia fundamental. Ao funcionarem como importante instrumento a favor da efetividade da prestação jurisdicional em tempo justo, permitem ao Superior Tribunal de Justiça o resgate da sua função precípua de proteção ao ordenamento federal, o que, conseqüentemente, acarretará na maior qualidade dos seus julgamentos. 186 3.4.4 Escopos do processo e segurança jurídica Para se alcançar o escopo social do processo, deve-se partir da idéia de que o Estado existe para ordenar a sociedade, eliminar obstáculos geradores de insatisfações e buscar resultados que permitam o bom convívio entre os sujeitos que a compõem. Além e acima da preocupação com os interesses estritamente individuais, deve o Estado possuir mecanismos voltados para uma atuação diretamente em prol do bem comum, que preservem a sociedade e seus valores como um todo e facilitem a concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, de forma a obter a tão desejada pacificação. 185 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 635. Nessa exposição, inclua-se importante instrumento trazido pela Lei nº 11.672/2008, que acrescentou o artigo 543-C ao Código de Processo Civil e estabeleceu o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do STJ. 186 64 Nesse contexto, para que a função estatal de ordenamento social possa ser efetivada, é preciso, antes de tudo, que se tenha um sistema jurídico íntegro, com regras claras, delimitadas e uniformes; que dispense tratamento igualitário a todos e não sofra interferências de ordem pessoal no âmbito de sua aplicação. Quando uma mesma lei federal, que deveria ser aplicada de maneira isonômica em toda a extensão territorial do país, não atinge esse objetivo, não há como se falar em cumprimento da função organizadora e pacificadora. A maleabilidade de um mesmo direito apenas serviria para alimentar incertezas e fomentar insatisfações, o que não se coaduna com os ideais de um sistema justo. A partir do momento em que a integridade do direito federal infraconstitucional é ameaçada por qualquer atitude contrária a esses pontos basilares, o recurso especial entra como o instrumento hábil a impugnar tamanha afronta ao sistema. Para José Afonso da Silva, de nada valeria um “instrumento da validade ou da autoridade da lei federal se se deixasse a interpretação das normas jurídicas ao descontrole, entregue às inclinações pessoais ou regionais dos julgadores”.187 Ovídio Baptista, por sua vez, enfatiza o raciocínio aqui desenvolvido: Para compreendermos o sentido e a função do recurso extraordinário no direito brasileiro, devemos ter em mente o princípio de que a lei, qualquer que seja o seu sentido, deve incidir e ser aplicada de modo uniforme para todos aqueles que fiquem sujeitos à sua disciplina. Todo ordenamento jurídico deve respeitar o princípio de que a lei há de ser igual para todos e empenhar-se no sentido de reduzir, tanto quanto possível, as divergências e antagonismos porventura verificados entre as decisões proferidas pelos 188 tribunais, no que diga respeito à aplicação de uma mesma lei. O escopo social é ainda reforçado pela idéia da segurança jurídica, garantida pela certeza de se saber que a um mesmo dispositivo de lei será dado um mesmo posicionamento. Interpretações divergentes acabam por levantar dúvidas quanto à real consagração dos direitos nele firmados, o que igualmente contribui para o eterno estado de insatisfação próprio do ser humano. A hipótese de cabimento do recurso especial pela alínea “c” do inciso III do artigo 105 da CF constitui importante ferramenta na busca por essa certeza. Fredie Didier, ao discorrer acerca do aludido dispositivo, afirma que 187 188 SILVA, J., 1963, p. 229. SILVA, O., 2005, p. 428. 65 [...] o objetivo do texto é o de permitir que o Superior Tribunal de Justiça uniformize a interpretação da lei federal e, com isso, forneça paradigmas que tornem mais previsíveis as decisões judiciais, diminuindo a insegurança jurídica. Toda interpretação que favoreça à uniformização da jurisprudência deve ser prestigiada. O sistema jurídico brasileiro tem sido estruturado partindo-se desta premissa. A eficácia vinculativa dos precedentes jurisprudenciais consolidados na súmula do STF (art. 103-A, CF/88) ratifica 189 esse posicionamento. Alfredo Buzaid complementa esse entendimento: A certeza do direito está em evitar, simultaneamente, interpretações diversas e até antinômicas dadas pelos tribunais sobre a mesma regra de direito. E isto se consegue implantando um mecanismo apto a eliminar a divergência simultânea, que não exclui uma variação sucessiva. [...] Esta solução de política legislativa ganha consideravelmente em valor de 190 certeza, sem nada perder em conteúdo de justiça. Aliado a esse objetivo, afirma-se a existência do escopo político, alcançável mediante a utilização do processo como instrumento garantidor da estabilidade do ordenamento e das próprias instituições estatais. Como já ressaltado, o recurso especial exerce uma função essencialmente política. Suas exigências constitucionais e legais buscam justamente garantir a inteireza do direito federal infraconstitucional, como forma de afirmação do sistema federativo adotado pelo país. Aos objetivos social e político, soma-se o escopo jurídico, obtido através do emprego do processo em prol da atuação da vontade concreta da norma, em obediência aos ditames legais. É o que o recurso especial proporciona, porquanto assegura a aplicação do direito objetivo em favor da integridade do ordenamento e da segurança da própria sociedade, que tem a garantia de um sistema que efetive um tratamento justo e igualitário a todos aqueles que dele necessitam para a superação das suas insatisfações. 3.5 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NO ÂMBITO DO STJ 189 190 DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 258. BUZAID, 1985 apud MANCUSO, 2008, p. 333-334. 66 O Superior Tribunal de Justiça, nos poucos momentos em que se manifesta sobre o assunto, baseia a ausência de afronta ao princípio do acesso à justiça na necessidade de que sejam observados os procedimentos técnicos inerentes à espécie recursal, vez que essenciais para a garantia da segurança das partes e para o respeito ao devido processo legal. Nas palavras do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Por mais justa que seja a pretensão recursal, não podem ser desconsiderados os pressupostos recursais. o aspecto formal é importante em matéria processual, não por amor ao formalismo, mas para segurança das partes. Assim não fosse, ter-se-ia que conhecer dos milhares de processos irregulares que aportam a este tribunal, em nome do principio 191 constitucional do acesso a tutela jurisdicional. A propósito, confiram-se outros precedentes no mesmo sentido: PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO RECEBIDO COMO AGRAVO REGIMENTAL. ADVOGADO SEM PROCURAÇÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 115/STJ. IMPOSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO POSTERIOR. 1. O acesso à tutela jurisdicional deve sempre ser pautado por regras procedimentais, que têm dentre suas finalidades a de resguardar a segurança jurídica das partes envolvidas; no caso, a correta interposição do recurso constitui ônus do qual não se desincumbiu o agravante. 2. A irregularidade da representação processual atrai a incidência da Súmula nº 115 desta Corte. 3. Na instância especial, é inexistente o recurso interposto por advogado sem procuração nos autos, inadmitindo-se a juntada posterior do instrumento de mandato. 192 4. Agravo regimental improvido (grifo nosso). AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROVIDO PARA MELHOR EXAME DO RECURSO ESPECIAL. DEFICIÊNCIA NA FORMAÇÃO. APROVEITAMENTO DE PEÇA DE OUTROS AUTOS. 1. A matéria relativa à deficiência na formação do agravo de instrumento pode ser atacada por agravo regimental, ainda que a falha não tenha sido argüida na contraminuta do agravado. 2. O agravo de instrumento deve ser formado com a cópia do acórdão dos embargos de declaração, independentemente do resultado do julgamento ou de quem os tenha oposto, porque esse julgado integra o acórdão recorrido. 3. O vício de formação do agravo de instrumento não pode ser sanado com o aproveitamento de peças de outro processo. 4 O acesso à Justiça se dá na forma disciplinada pelas leis e pela jurisprudência consolidada nos tribunais. Por isso, o cumprimento dos 191 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag – 150796/MG. 4ª Turma. Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Data de Julgamento: 8 de jun. de 1998. 192 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no CC – 104148/MT. 2ª Seção. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Data de Julgamento: 26 de ago. de 2009. 67 requisitos de admissibilidade do recurso se impõe; não por simples formalismo, mas por observância das normas legais. 193 5. Agravo regimental a que se nega provimento (grifo nosso). PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. NÃO CONHECIMENTO. CERTIDÃO DE PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. AUSÊNCIA. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STF. FORMALISMO. NECESSIDADE. DEVIDO PROCESSO LEGAL E SEGURANÇA DAS PARTES. GARANTIA. STJ. NOVO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. I – A exigência da certidão de publicação do acórdão recorrido é entendimento pacificado não apenas neste Superior Tribunal, como também no Pretório Excelso. Exigência esta consagrada no artigo 544, § 1º, do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei 10.352 de 26.12.2001, em vigor desde 28.03.2002. II – Ainda que as súmulas não sejam lei em sentido formal, traduzem elas o entendimento reiterado dos tribunais no que diz respeito à interpretação de determinada questão. III – É imprescindível a garantia à ampla defesa e ao acesso ao judiciário, impondo-se, contudo, a obediência a certas normas procedimentais, sujeitas ao princípio do devido processo legal. IV – Esta Corte não está vinculada ao prévio juízo de admissibilidade exercido pelo tribunal de origem, podendo proceder ao exame de todo e qualquer pressuposto recursal, intrínseco e extrínseco, inclusive quanto à tempestividade do apelo extremo. 194 Agravo a que se nega provimento (grifo nosso). 193 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AgRg no Ag – 900380/RJ. 3ª Turma. Relator: Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), Data de Julgamento: 28 de abr. de 2009. 194 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag – 428452/MS. 3ª Turma. Relator: Ministro Castro Filho, Data de Julgamento: 18 de jun. de 2002. 68 CONCLUSÃO A partir do estudo do tema proposto, o presente trabalho procurou relatar que os requisitos de admissibilidade do recurso especial não apenas não constituem afronta à garantia fundamental do acesso à justiça, como servem justamente para confirmá-la. Conforme demonstrado, a evolução do conceito de jurisdição ao longo da história fez com que referido direito também passasse a adquirir uma interpretação mais consentânea com a nova ordem constitucional que então surgia: de simples direito ao ajuizamento de uma ação, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional passou a significar o direito de acesso a uma ordem jurídica justa, efetiva, tempestiva e de qualidade. No entanto, assim como qualquer outro direito fundamental, a garantia do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República não é absoluta. Para a preservação do sistema e dos próprios litigantes contra o seu exercício abusivo, o direito de agir deve preencher certos pressupostos denominados “condições da ação”, os quais, em sede de recurso, recebem a nomenclatura de “condições recursais” ou “requisitos de admissibilidade”. No âmbito do recurso especial, tais pressupostos se fazem ainda mais necessários, ante a função política que o apelo desempenha no ordenamento pátrio. Como se sabe, as leis exercem importante papel de ordenação e pacificação social, a cujos limites todos devem necessariamente se submeter, razão pela qual é de primordial interesse estatal a manutenção da integridade e autoridade desse sistema. Ademais, tendo em vista a adoção da forma de Estado federativa pelo país, não seria admissível imaginar que uma mesma lei federal, de aplicação única em todo o território nacional, pudesse ser interpretada de maneira diversa em diferentes localidades, sendo também de interesse do Estado a fiscalização acerca desse tratamento. Foram essas, portanto, as incumbências atribuídas ao Superior Tribunal de Justiça por meio do apelo excepcional: manter a integridade do direito federal infraconstitucional e assegurar a uniformidade de sua interpretação, como garantia de preservação da própria ordem pública e de segurança à sociedade. 69 Daí a necessidade de se estabelecer requisitos estritamente técnicos para a sua admissão, porquanto impõem a efetiva demonstração da suscitada afronta ao ordenamento. Somente com a observância dessas exigências o STJ poderá ter a segurança necessária para verificar, acima de qualquer dúvida, a ameaça ao direito objetivo e, enfim, poder exercer sua missão constitucional. Ademais, a obediência às técnicas procedimentais serve de resguardo aos próprios litigantes, que terão assegurados seus direitos ao devido processo legal e aos princípios que diretamente conduzem à noção de processo justo (isonomia, contraditório e juiz imparcial), garantindo-se, com isso, o acesso à proclamada ordem jurídica justa. Por outro lado, os aludidos requisitos de admissibilidade acabam também por atuar como verdadeiro sistema de filtragem contra recursos manifestamente inadmissíveis. Como se sabe, as instâncias extraordinárias proclamam pela tutela imediata da própria ordem jurídica; o litígio intersubjetivo é resguardado apenas de maneira indireta. Dessa forma, a atuação do STJ restringir-se-á de maneira eficaz aos casos de significativa relevância nacional, o que resultará, a um só tempo, na efetividade da prestação jurisdicional em tempo justo e na maior qualidade dos seus julgamentos. Por fim, o acesso à justiça fica igualmente garantido a partir do momento em que os requisitos em enfoque contribuem para o alcance dos três primordiais escopos do processo: o social, ao afirmarem o tratamento igualitário e a segurança quanto aos direitos legalmente consagrados, o político, ao assegurarem a estabilidade do ordenamento e das instituições estatais, e o jurídico, ao permitirem a atuação da vontade da norma em prol da inteireza do sistema e da segurança da sociedade. 70 REFERÊNCIAS BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, 798 p. CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. 168 p. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 359 p. CUNHA, Leonardo José Carneiro da; DIDIER JUNIOR, Fredie. 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