PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
ANÁLISE DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE
DO RECURSO ESPECIAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO
ACESSO À JUSTIÇA
Autora: Juliana da Silva Tavares Pellegrin
Orientador: Prof. MSc. Fabrício Dias Rodrigues
JULIANA DA SILVA TAVARES PELLEGRIN
ANÁLISE DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL À
LUZ DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA
Monografia apresentada ao curso de
graduação em Direito da Universidade
Católica de Brasília, como requisito parcial
para obtenção do Título de Bacharel em
Direito.
Orientador: Prof. MSc. Fabrício Dias
Rodrigues.
Brasília
2009
Monografia de autoria de Juliana da Silva Tavares Pellegrin, intitulada
“ANÁLISE DOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL À
LUZ DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA”, apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília,
em ___/___/___, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:
__________________________________________________________
Prof. MSc. Fabrício Dias Rodrigues
Curso de Direito – UCB
___________________________________________________________
Prof. (titulação). (Nome do membro da banca)
Curso de Direito - UCB
___________________________________________________________
Prof. (titulação). (Nome do membro da banca)
Curso de Direito - UCB
Brasília
2009
AGRADECIMENTOS
A Deus, por sempre guiar meu caminho e me acompanhar em todas as
trajetórias.
Aos meus pais, Antonio e Ana, pelo amor e apoio incondicionais, por estarem
sempre ao meu lado e por me proporcionarem os melhores momentos de minha
vida.
Aos meus queridos irmãos, Antonio e Gabriel, pelos indispensáveis
momentos de companheirismo e diversão.
Aos amigos, pela presença e importância em todas as ocasiões, sem os quais
eu nunca estaria completa.
Ao professor Fabrício, pelo conhecimento compartilhado, auxílio, presteza e
orientações sempre pertinentes.
RESUMO
PELLEGRIN, Juliana da Silva Tavares. Análise dos requisitos de admissibilidade
do recurso especial à luz do princípio do acesso à justiça. 2009. 72 p. Trabalho
de conclusão de curso em graduação (Direito) - Universidade Católica de Brasília,
Brasília, 2009.
O presente trabalho busca traçar um paralelo entre os requisitos de admissibilidade
do recurso especial, apelo de natureza extraordinária direcionado ao Superior
Tribunal de Justiça, e o princípio do acesso à justiça, direito fundamental disposto no
artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Primeiramente, procede-se a uma
breve abordagem histórica da garantia, sua relação com os institutos da jurisdição,
da ação e do processo e a atual interpretação que lhe é conferida no âmbito
constitucional e processual. Após, examina-se o recurso especial nas suas principais
características para, enfim, analisar seus requisitos específicos de admissibilidade,
sua importância na afirmação do sistema federativo e sua ligação com os aspectos
compreendidos no conceito de acesso à justiça, relacionando-os ao entendimento
que melhor se adequa à natureza do recurso excepcional.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Recurso especial. Admissibilidade.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................
7
1 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA...............................................................
1.1
BREVES NOÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO
PROCESSUAL............................................................................................
9
1.1.1 Noções históricas sobre o conceito de jurisdição..............................
11
1.2
O CONCEITO DE AÇÃO E SUA AFIRMAÇÃO COMO DIREITO
FUNDAMENTAL........................................................................................
1.3
OUTRAS DENOMINAÇÕES DO PRINCÍPIO DO ACESSO À
JUSTIÇA.....................................................................................................
1.4
9
15
18
O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO.............................................................................
18
1.5
O ALCANCE DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA............................
22
1.6
A IDÉIA DE ACESSO À JUSTIÇA NO ÂMBITO DO PROCESSO.............
23
2 O RECURSO ESPECIAL.......................................................................................
2.1
NOÇÕES HISTÓRICAS INTRODUTÓRIAS...............................................
30
30
2.2
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O RECURSO ESPECIAL...............
31
2.3
JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE....................................................................
33
2.4
REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE........................................................
35
2.4.1
Requisitos Intrínsecos...................................................................
36
2.4.1.1
Cabimento....................................................................
36
2.4.1.2
Legitimidade.................................................................
36
2.4.1.3
Interesse......................................................................
37
Requisitos Extrínsecos..................................................................
37
2.4.2.1
Tempestividade.............................................................
38
2.4.2.2
Preparo........................................................................
39
2.4.2.3
Regularidade Formal....................................................
40
2.4.2.4
Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder
de recorrer....................................................................
41
PROCEDIMENTO........................................................................................
42
3 A ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL E O ACESSO À JUSTIÇA......
3.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS......................................................................
44
44
2.4.2
2.5
3.2
REQUISITOS ESPECÍFICOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
ESPECIAL....................................................................................................
44
3.2.1
Prequestionamento.......................................................................
44
3.2.2
Exaurimento das instâncias ordinárias..........................................
47
3.2.3
Contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal....
48
3.2.3.1
Impossibilidade de reexame de matéria fáticoprobatória.......................................................................
3.2.4
Julgamento que torna válido ato de governo local contestado
em face de lei federal...................................................................
3.2.5
Interpretação divergente da que outro tribunal haja atribuído a
determinada lei federal................................................................
3.2.6
Necessidade de impugnação dos fundamentos do acórdão
recorrido.......................................................................................
3.3
OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL
COMO AFIRMAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO..................................
3.4
OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL
COMO AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA................
3.5
49
50
51
52
53
59
3.4.1
Técnica processual......................................................................
59
3.4.2
Acesso à ordem jurídica justa......................................................
60
3.4.3
Acesso à tutela jurisdicional tempestiva, efetiva e de qualidade.
62
3.4.4
Escopos do processo e segurança jurídica.................................
63
ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NO ÂMBITO DO STJ.................
65
CONCLUSÃO........................................................................................................
68
REFERÊNCIAS.....................................................................................................
70
7
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar os requisitos de admissibilidade
do recurso especial, apelo de natureza extraordinária direcionado ao Superior
Tribunal de Justiça (STJ), à luz do princípio do acesso à justiça, insculpido no artigo
5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
A escolha do tema surgiu da experiência profissional vivenciada nos últimos
três anos e justifica-se pelo fato de que atualmente são muitos os postulantes que,
ao se depararem com o não conhecimento de seus apelos em razão da ausência de
algum desses requisitos, insurgem-se contra referidas decisões, alegando
contrariedade ao princípio constitucional em comento por excessivo rigor formal.
A pesquisa foi elaborada com base na metodologia funcionalista, porquanto
baseada no estudo do instituto do recurso especial sob o ponto de vista da função
que desempenha no contexto jurídico-social.
O objetivo adotado foi o de desenvolver uma pesquisa explicativa sobre o
tema, a partir de consultas bibliográficas à legislação (especialmente a Constituição
Federal e a lei instrumental civil), à doutrina (clássica e contemporânea) e à
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
A partir dessa visão funcional, buscou-se traçar um paralelo entre o recurso
especial e o princípio do acesso à justiça, de forma a se obter uma resposta à
problemática que deu início ao presente trabalho: os requisitos de admissibilidade do
apelo, da forma como são tratados, incorrem em afronta à garantia fundamental em
enfoque? Há a real necessidade de se estabelecer critérios rígidos para o seu
conhecimento?
Inicialmente, parte-se da hipótese de que não há de se falar em tal violação,
pois a função extraordinária exercida pelo recurso especial requer que as exigências
a ele impostas sejam obedecidas, vez que essenciais para a garantia do devido
processo legal, para a segurança das partes e para a própria preservação do
sistema.
Para buscar as respostas aos problemas apresentados e verificar as
hipóteses levantadas, a pesquisa foi desenvolvida em três etapas.
O primeiro capítulo, intitulado “O princípio do acesso à justiça”, procura
estabelecer uma breve história acerca do surgimento do referido princípio, sua
8
relação com os institutos da jurisdição, da ação e do processo, suas denominações
e sua evolução no ordenamento pátrio, bem como explorar o atual alcance
interpretativo da sua acepção.
Por sua vez, o segundo capítulo, denominado “O recurso especial”, propõe-se
a perscrutar os aspectos gerais do recurso especial, tecendo considerações acerca
da origem histórica da aludida espécie recursal, suas características principais, seus
requisitos genéricos de admissibilidade e o procedimento a que se encontra
submetido no âmbito do STJ.
Por fim, no terceiro capítulo, designado como “A admissibilidade do recurso
especial e o acesso à justiça”, analisam-se os requisitos específicos de
admissibilidade do apelo excepcional, seu significado na afirmação do sistema
federativo adotado pelo país, sua ligação com os vários aspectos compreendidos no
conceito de acesso à justiça e o posicionamento jurisprudencial do Superior Tribunal
de Justiça no tocante à matéria, relacionando-os ao entendimento mais consentâneo
com a natureza do recurso extremo.
Para a elaboração do presente trabalho, utilizou-se o método dedutivo,
porquanto se partiu de uma análise geral acerca do princípio do acesso à justiça e
do recurso especial para, ao fim, discorrer sobre as especificidades que envolvem a
relação entre ambos os temas.
9
1 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA
1.1 BREVES NOÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO
PROCESSUAL
O homem é movido a interesses, de acordo com a utilidade e/ou a
necessidade do objeto ou situação em evidência. Tais interesses se verificam tanto
na esfera individual, tendo em vista as relações estabelecidas com os bens da vida
destinados ao seu desenvolvimento, utilização e sobrevivência, como na esfera
coletiva, visto que o ser humano não vive de maneira isolada, devendo conciliar
idéias e necessidades para uma convivência pacífica e duradoura dentro do seu
grupo social.
Conforme explicitado por Moacyr Amaral Santos,
No interesse individual a razão está entre o bem e o homem, conforme suas
necessidades; no interesse coletivo, a razão ainda está entre o bem e o
homem, mas apreciadas as suas necessidades em relação a necessidades
1
idênticas do grupo social.
Quando há colisão de interesses na seara individual do homem, sem que
todos possam ser satisfeitos de igual modo, somente a ele cabe a solução de
tamanho conflito interno, de acordo com o grau de interesse que possui sobre o
objeto em questão – cuida-se, aqui, do denominado conflito intrasubjetivo.
Contudo, pode acontecer de o interesse sobre um referido bem ser
manifestado por duas ou mais pessoas (seara coletiva), de forma que sua satisfação
possa ocorrer a apenas uma das partes.
Surge, daí, o conceito de conflito intersubjetivo, muitas vezes associado à
definição de “lide” conferida por Carnelutti (conflito de interesses qualificado por uma
pretensão resistida).2
Para Cândido Rangel Dinamarco, entretanto, referida conceituação coloca em
foco apenas a visão do conflito sob a ótica do autor, deixando de lado o real fator
1
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 17. ed. São Paulo:
Saraiva, 1994. v. 1, p. 4.
2
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros,
2001. v. 1, p. 116.
10
aflitivo das relações divergentes, qual seja, a insatisfação da exigência pretendida.
Logo,
Conflito, assim entendido, é a situação existente entre duas ou mais
pessoas ou grupos, caracterizada pela pretensão a um bem ou situação da
vida e impossibilidade de obtê-lo – seja porque negada por quem poderia
3
dá-lo, seja porque a lei impõe que só possa ser obtido por via judicial.
Nesse contexto, a história sempre mostrou diferentes formas de eliminação
de conflitos decorrentes da vida em sociedade: autotutela, autocomposição,
arbitragem facultativa, arbitragem obrigatória e jurisdição4.
Na autotutela, prevalecente nas civilizações primitivas, os embates eram
resolvidos pelos próprios sujeitos neles envolvidos, sem a figura de um
intermediário, através da utilização da astúcia e da força bruta. Não havia a figura de
um Estado soberano, apto a prevalecer sobre os impulsos particulares e impor
regramentos às controvérsias; a decisão final era simplesmente imposta por uma
das partes, geralmente o mais forte5.
Nessa fase, a justiça era feita com as próprias mãos, se é que poderia se
entender por sua existência. Nem sempre havia, de fato, uma justiça real, vez que
prevalecia a vontade daquele que se mostrava mais enérgico na sua pretensão.
De forma simultânea, subsistia o sistema da autocomposição, no qual as
partes, isolada ou conjuntamente, solucionavam os seus próprios conflitos, abrindo
mão do seu interesse de maneira parcial ou integral, seja por meio da desistência
(quando o indivíduo renuncia a sua pretensão), da submissão (onde o sujeito,
encontrando resistência da parte contrária, a ela renuncia) ou da transação (hipótese
em que ambos realizam mútuas concessões em prol de um fim comum)6.
Posteriormente, os contendores passaram a buscar soluções imparciais aos
seus dilemas, a serem determinadas por árbitros de sua escolha e confiança.
Comumente, tal função era atribuída aos sacerdotes ou aos anciãos do grupo social
a que pertenciam: aos primeiros, por se acreditar que suas ligações com os deuses
trariam decisões mais acertadas; aos segundos, por se tratarem de pessoas mais
3
DINAMARCO, 2001, p. 117.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini.
Teoria geral do processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 21.
5
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit.
6
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit.
4
11
sábias e experientes e, portanto, conhecedoras da moral e dos costumes da
localidade. A essa fase denominou-se de arbitragem facultativa7.
De maneira gradual, o Estado começa a se fortalecer perante os indivíduos.
Sua participação se torna um pouco mais evidente no meio social a partir do
momento em que atrai para si o encargo de nomear um terceiro alheio e
desinteressado para assumir a figura de mediador da relação conflituosa, a cuja
solução os sujeitos envolvidos deveriam necessariamente se submeter. Ao mesmo
tempo, a fim de facilitar tal subordinação, a autoridade estatal começa a perceber a
utilidade de se impor regramentos de caráter abstrato, objetivo e vinculativo.
Estabelece-se, aqui, o sistema da arbitragem obrigatória8.
Com o desenvolvimento da noção de Estado de Direito e, conseqüentemente,
com a consagração da idéia de divisão das funções estatais, o Estado, juntamente
com as funções administrativa e legislativa, passa a deter o monopólio da função
jurisdicional. No entanto, o conceito de jurisdição passou por algumas modificações
ao longo da história, conforme se demonstrará no tópico a seguir.
Antes, porém, torna-se importante registrar que a evolução acima explicitada
não ocorreu de maneira linear. Como bem delimitado na obra coordenada por Luiz
Rodrigues Wambier,
Não houve marcos divisórios nítidos, precisos, entre essas diferentes fases,
correspondentes a distintos modos de solução de conflitos admitidos pelas
diversas sociedades ocidentais. A história mostra que, em quase todos os
momentos, esses diferentes sistemas conviveram uns com os outros, ora
com a predominância de um, ora com a preponderância de outro. Ainda
hoje essa concomitância se verifica com muita clareza, apesar da evidente
9
predominância da atividade jurisdicional estatal.
1.1.1 Noções históricas sobre o conceito de jurisdição
Com o advento do Estado Liberal, surge uma concepção de direito voltada
essencialmente à afirmação do princípio da legalidade, como uma maneira
encontrada pela burguesia de se sobrepor ao regime absolutista monárquico até
7
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 21-22.
Ibid., p. 22-23.
9
WAMBIER, Luiz Rodrigues (Coord.). Curso avançado de processo civil. 7. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. v. 1, p. 42.
8
12
então reinante. O direito era identificado apenas na norma jurídica, “cuja validade
não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido
produzida por uma autoridade dotada de competência normativa”.10
Nessa fase, a teoria da separação dos poderes, idealizada por Montesquieu,
mostrava claramente a supremacia do poder legislativo. A criação do direito cabia
exclusivamente a este, o que reduzia os poderes executivo e judiciário a uma nítida
posição de subordinação: ao primeiro, restava apenas a tarefa de atuar nos limites
legalmente autorizados; ao segundo, o dever de unicamente aplicar a norma, sem a
possibilidade de interpretá-la11.
O princípio da legalidade estava intimamente relacionado aos princípios da
liberdade e da igualdade (formal). A lei, para não violar tais acepções fundamentais,
deveria ser dotada do caráter de abstração (cuja função era a de resguardar o
ordenamento jurídico vigente e conduzir a uma idéia de certeza e plenitude do
direito, sem que fosse necessária a edição de novas leis e sem que se abrisse
margem para que o magistrado, ao aplicar a norma, pudesse levar em conta as
peculiaridades de cada caso concreto) e generalidade (que funcionava como uma
espécie de garantia de imparcialidade do Estado perante os indivíduos, de forma a
dispensar tratamento igualitário a todos, sem distinção)12. Saliente-se que essa
igualdade consistia em uma garantia de que o Estado não diferenciaria qualquer
posição social, mesmo que entre elas as necessidades fossem evidentemente
diversas. De acordo com Luiz Guilherme Marinoni,
A impossibilidade de o Estado interferir na sociedade, de modo a proteger
as posições sociais menos favorecidas, constituía conseqüência natural da
suposição de que para se conservar a liberdade de todos era necessário
não discriminar ninguém, pois qualquer tratamento diferenciado era visto
13
como violador da igualdade – logicamente formal.
Partindo-se dessa concepção (da qual decorre o positivismo jurídico) 14, surge
a teoria lançada por Giuseppe Chiovenda, no sentido de que a atuação do juiz
decorre diretamente da vontade concreta da lei: ao magistrado caberia, apenas, a
aplicação da norma geral ao caso concreto, sem possuir qualquer poder de criação
10
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. v. 1, p. 25.
11
MARINONI, loc. cit.
12
Ibid., p. 27.
13
Ibid., p. 27-28.
14
Ibid., p. 29-30.
13
(teoria declaratória ou dualista do ordenamento jurídico).15 A jurisdição, nesse caso,
seria dotada do caráter de substitutividade, onde o Estado, ao apreciar o pedido
levado ao seu conhecimento, substituiria “a vontade das partes, aplicando ao caso
concreto a „vontade‟ da norma jurídica”.16
Chiovenda procurou, ainda, estabelecer a distinção entre ação e direito
material, de modo que o poder de provocação da atividade jurisdicional conferido ao
indivíduo garantiria tão-somente a atuação da lei, não a realização do próprio direito
substancial (perspectiva publicista do processo). Tal escola, todavia, nunca chegou a
se preocupar com os questionamentos referentes ao acesso ao Poder Judiciário ou
mesmo com a efetividade dos procedimentos em relação às classes menos
favorecidas.17
Urge ressaltar o caráter essencialmente individualista conferido aos direitos
prevalecentes à época dos Estados liberais. O acesso à justiça era visto apenas sob
o seu aspecto formal, qual seja, o da prerrogativa de ir a juízo defender uma
pretensão. Por ser considerado um direito natural, entendia-se que esse acesso à
proteção judiciária não necessitava de intervenção estatal; ao Estado cabia apenas
a tarefa de impedir eventuais violações a ele direcionadas.18
E já que, consoante relatado alhures, o Estado não se preocupava com as
desigualdades econômicas e sociais existentes, o acesso à justiça ficava restrito
àqueles que tivessem melhores condições financeiras de arcar com as despesas
relacionadas à propositura da ação. Conforme explicam Mauro Cappelletti e Bryant
Garth, a justiça “só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus
custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos
responsáveis por sua sorte”.19
Posteriormente, vem à tona a teoria de Francesco Carnelutti, segundo a qual
a função jurisdicional se resumiria à justa composição da lide, esta entendida como o
conflito intersubjetivo de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Ao
contrário de Chiovenda, cuidou-se de estabelecer uma visão estritamente privatista
15
MARINONI, 2007, p. 34.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2007. v. 1, p. 72.
17
MARINONI, op. cit., p. 35.
18
CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 9.
19
CAPPELLETTI; BRYANT, loc. cit.
16
14
ao processo, a partir da finalidade pela qual as partes procurariam a atuação do
magistrado: em não havendo lide a ser solucionada, não existiria jurisdição.20
Para Carnelutti, o juiz, a partir de uma norma geral e abstrata, cria uma norma
individual ao caso concreto - a sentença -, a qual passa a integrar o ordenamento
jurídico (teoria constitutiva ou unitária, derivada de Hans Kelsen).21
Nesse panorama, a validade da sentença aqui também se encontrava
desvinculada da noção de justiça. Dessa forma leciona o jurista italiano
Calamandrei, igualmente adepto da teoria unitária:
Assim como a lei vale, enquanto está em vigor, não porque corresponda à
justiça social, senão unicamente pela autoridade de que está revestida
(dura lex sed lex), assim também a sentença, uma vez transitada em
julgado, vale não porque seja justa, senão porque tem, para o caso
22
concreto, a mesma força da lei (lex especialis).
Com a passagem do Estado liberal para o Estado constitucional
contemporâneo, época em que a perspectiva individual das relações humanas
passou a adquirir caráter coletivo e as preocupações com os direitos e as injustiças
sociais começaram a ganhar força, o princípio da legalidade deixou de ser
visualizado estritamente sob uma ótica formal para também adquirir um caráter
substancial: a lei deixou de valer por si só, passando a se submeter às disposições
de uma norma superior - a Constituição - e dos princípios e direitos fundamentais
ordenadores de todo um sistema jurídico.23
Nessa nova fase, o direito de acesso à justiça também acompanhou referidas
mudanças. O Estado, ao entender que sua intervenção era essencial para a
implementação dos direitos sociais em ascensão, começou a torná-los realmente
efetivos e igualmente acessíveis a todos. Retomando os ensinamentos de
Cappelletti e Garth na obra “Acesso à Justiça”, esse direito passa, então, a ser visto
“como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar
os direitos de todos”.24
Assim também sintetiza Luiz Guilherme Marinoni:
20
MARINONI, 2007, p. 36.
Ibid., p. 36-37.
22
CALAMANDREI, 1945 apud MARINONI, op.cit., p. 39.
23
Ibid., p. 40-46.
24
CAPPELLETTI; BRYANT, 1988, p. 12.
21
15
O direito de ação passou a enfrentar um novo questionamento não apenas
porque se percebeu que o exercício da ação poderia ser comprometido por
obstáculos sociais e econômicos, mas também porque se tomou
consciência de que os direitos voltados a garantir uma nova forma de
sociedade, identificados nas Constituições modernas, apenas poderiam ser
25
concretizados se garantido um real – e não um ilusório – acesso à justiça.
Isso trouxe reflexos diretos ao conceito de jurisdição, que passou a adquirir o
status de atividade essencial à ampla efetividade constitucional, de forma a atender
aos ideais do Estado e se adaptar aos novos anseios da sociedade.
Atualmente, portanto, a jurisdição pode ser definida como o poder-dever do
Estado de tutelar concretamente o direito material e ditar, através de decisões
fundamentadas, as soluções aos litígios a ele submetidos com base nos princípios
da Constituição e nos direitos e garantias fundamentais nela existentes, de forma a
buscar, com isso, a pacificação social. Nas palavras de Humberto Theodoro Júnior,
a função jurisdicional tem “como objetivo imediato a aplicação da lei ao caso
concreto, e como missão mediata „restabelecer a paz entre os particulares e, com
isso, manter a da sociedade‟”.26
1.2 O CONCEITO DE AÇÃO E SUA AFIRMAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Conceituada a jurisdição, cabe agora definir sucintamente o instituto através
do qual o indivíduo inicia a busca pelo exercício dessa atividade jurisdicional 27, de
forma a alcançar a concretização do direito de acesso à justiça: a ação.
Conforme Marcus Vinicius Gonçalves, “o acesso à justiça é garantido pelo
exercício do direito de ação, que permite ao interessado deduzir suas pretensões em
juízo, para que sobre elas seja emitido um pronunciamento judicial”.28
Trata-se de iniciativa essencial à busca pela satisfação da tutela pretendida,
vez que, como é sabido, a jurisdição é inerte, exigindo a provocação do interessado
para o seu real funcionamento.
25
MARINONI, 2007, p. 188-189.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 20. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997. v. 1, p. 6.
27
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 249.
28
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil: teoria geral e
processo de conhecimento (1ª parte). 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1, p. 33.
26
16
Entretanto, a natureza jurídica da ação não foi facilmente definida ao longo da
história. Sua acepção enfrentou diferentes estudos, nitidamente demarcados nas
principais teorias a seguir listadas.
Pela teoria imanentista, clássica ou civilista, a ação era equiparada ao próprio
direito material. Nas palavras de Luiz Fux, “se em juízo se concluísse pela
inexistência do direito alegado e perseguido, automaticamente considerava-se
negado o direito de ação como consectário da negativa do direito material”.29
Com a comprovação da autonomia do direito de agir, após o embate entre os
tratadistas Windscheid e Mutter (Direito romano)30 e os estudos de Wach e
Chiovenda acerca da possibilidade de existência de uma ação declaratória
negativa31
32
, surge a teoria da ação como direito autônomo concreto. Tal corrente
afirmou que a ação não pressupõe necessariamente o direito material tido por
violado, mas “como a existência de tutela jurisdicional só pode ser satisfeita através
da proteção concreta, o direito de ação só existiria quando a sentença fosse
favorável”.33
Posteriormente, emerge a teoria da ação como direito autônomo abstrato, a
qual afirma estar o direito de agir desvinculado da procedência do pedido. Sua
caracterização constitui o direito de se obter uma sentença, seja ela favorável ou
não.34 Nesse tópico, assim discorreram Ada Pellegrini, Cândido Dinamarco e
Antonio Cintra:
A demanda ajuizada pode ser até mesmo temerária, sendo suficiente, para
caracterizar o direito de ação, que o autor mencione um interesse seu,
protegido em abstrato pelo direito. É com referência a esse direito que o
Estado está obrigado a exercer a função jurisdicional, proferindo uma
35
decisão, que tanto poderá ser favorável como desfavorável.
O ordenamento brasileiro, apesar de deixar clara a adoção da autonomia e
abstração da ação, assumiu uma postura bastante eclética, especialmente
influenciada pelo italiano Enrico Tullio Liebman.36
29
FUX, Luiz. Curso de direito processual civil: processo de conhecimento. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2008. v. 1, p. 154.
30
Ibid., p. 154-155.
31
Ibid., p. 155-156.
32
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1, p. 80.
33
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 251.
34
GRECO FILHO, loc. cit.
35
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 252.
36
FUX, 2008, p. 157.
17
Sua contribuição se mostra evidente na atribuição da característica
instrumental ao direito de ação, por evidenciar sua conexão a uma pretensão de
direito material, sem que isso caracterize perda da sua autonomia. 37 Argumentou,
ainda, no sentido de que seu caráter abstrato não seria absoluto, já que a referida
pretensão deveria vir necessariamente precedida de certos requisitos, que, caso não
preenchidos, impossibilitariam o julgamento do mérito da demanda. A esses
pressupostos deu o nome de condições da ação. Consoante Luiz Fux,
As condições da ação figuram, assim, na concepção de Liebman, como
anteparo ao exercício abusivo do direito de agir. Uma vez não preenchidas,
exoneram o juiz de apreciar o meritum causae, autorizando-o a proferir uma
decisão meramente formal, reconhecendo ter faltado ao autor aquelas
mínimas condições para receber uma resposta sobre a questão de fundo,
daí a denominação desse fenômeno da falta das condições da ação de
38
“carência de ação”.
Daí decorre importante demarcação do direito de ação, assim estabelecida
por Luiz Rodrigues Wambier:
[...] ao lado de um direito absolutamente abstrato e incondicionado de ter
acesso aos juízes e tribunais (o “direito constitucional de ação”, “direito de
acesso à jurisdição”), há o direito “processual” de ação (direito de receber
sentença de mérito, ainda que desfavorável). Para que exista esse segundo
direito, devem estar presentes determinados requisitos (as “condições da
ação”) – sem os quais não se justifica o integral desenvolvimento da
39
atividade jurisdicional.
Assim, resta conceituar o direito de ação como o direito público, subjetivo,
autônomo e abstrato de se obter a prestação jurisdicional sobre uma determinada
pretensão de direito material levada por seu titular a juízo.
É público por ser exercido contra o Estado, o qual, no desempenho da
jurisdição, presta uma atividade de natureza pública; subjetivo, pelo fato de sua
titularidade ser conferida a qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica; autônomo,
por constituir direito independente do direito material pretendido; e abstrato, por se
tratar de direito exercitável por todos, independentemente de se chegar à conclusão
de que possuíam ou não razão no quanto alegado.
37
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 253.
FUX, 2008, p. 157.
39
WAMBIER, 2005, p. 139.
38
18
Entretanto, não bastaram o surgimento da função estatal de solucionar os
litígios encaminhados ao Poder Judiciário e a afirmação do direito de ação.
Percebeu-se, isso sim, a necessidade de se criar instrumentos que possibilitassem
efetivamente a consecução desses objetivos.
Aí que despontam as chamadas garantias jurisdicionais, estabelecidas na
Constituição Federal com o intuito de orientar o legislador na sua tarefa de regular
todo o arcabouço jurídico no âmbito do processo.40 Dentre elas, situa-se o princípio
do acesso à justiça, alçado à categoria de direito fundamental pelo artigo 5º, inciso
XXXV, da Carta Magna.
1.3 OUTRAS DENOMINAÇÕES DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA
O princípio do acesso à justiça pode adquirir variadas nomenclaturas, sem
que isso altere seu significado. Ângelo Pariz lista algumas dessas denominações,
tais como: ampla garantia de acesso ao judiciário, direito de ação, garantia da via
judicial, inafastabilidade do controle jurisdicional e universalidade da jurisdição.41 A
estas, ainda podem ser acrescentadas a inarredabilidade ou a indeclinabilidade do
Poder Judiciário, sem que isso importe, contudo, o esgotamento das designações
utilizadas ao longo dos vários estudos acerca do tema.
Optamos pelo uso da expressão “acesso à justiça”, por considerarmos como
a que melhor abarca os valores consignados no atual alcance interpretativo da
referida garantia.42
1.4 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
No ordenamento jurídico pátrio, o princípio do acesso à justiça passou a
constar expressamente do texto constitucional a partir da Constituição de 1946, que
40
WAMBIER, 2005, p. 44-45.
PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz. O princípio do devido processo legal: direito
fundamental do cidadão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 184.
42
Esse enfoque será especialmente tratado nos itens 1.5 e 1.6 do presente trabalho.
41
19
em seu artigo 141, § 4º, situado no capítulo referente aos direitos e garantias
individuais, assim estabelecia: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder
Judiciário qualquer lesão de direito individual”.
Contudo, Celso Ribeiro Bastos,43 ao citar lição de Pontes de Miranda, afirma
que o princípio já se encontrava implicitamente reconhecido pelo nosso sistema
desde a Carta de 1891, a partir de quando o país passou a aderir à teoria da
tripartição de poderes, inspirada no modelo norte-americano.
Não obstante tal previsão, a história recente do Brasil mostrou que a garantia
do livre acesso ao Poder Judiciário teve seu período de turbulência quando do Golpe
Militar de 1964.
Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI 5), de 13 de dezembro de 1968,
houve a tentativa de se excluir da apreciação judicial todos os atos administrativos
decorrentes do regime então imposto, consoante se depreende da leitura do seu
artigo 11: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de
acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os
respectivos efeitos”.
Insta salientar que, à época, encontrava-se em plena vigência a Constituição
de 1967, que previa amplamente a garantia de acesso à justiça em seu artigo 150, §
4º, com redação idêntica àquela disposta na Carta anterior. Sobre a situação em
comento, Nelson Nery Junior relata de maneira exemplar:
Esse AI 5 violou o art. 150, § 4º, da CF de 1967, cuja redação foi repetida
pela EC 1/69. Por essa emenda, entretanto, o AI foi „constitucionalizado‟,
pois os arts. 181 e 182 da CF de 1969 (EC 1/69 à CF de 1967) diziam
excluírem-se da apreciação do Poder Judiciário todos os atos praticados
pelo comando da revolução de 31.3.1964, reafirmada a vigência do AI 5
44
(art. 182, CF 1969).
O mesmo autor, contudo, alerta para o fato de tais normas terem sido
inconstitucionais, não obstante haver previsão explícita de exclusão de exame dos
atos do AI 5 na própria Constituição, vez que ilegítimas, pois outorgadas por
autoridade incompetente (Presidente da República), e contrárias a direitos e
garantias fundamentais, a exemplo, especialmente, do direito constitucional de ação.
43
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 185.
44
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 8. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 131.
20
Esse episódio da história brasileira, todavia, enquadra-se no quesito das
exceções históricas, que “tinham sempre a sua vigência condicionada à manutenção
do Estado autoritário. Desaparecido este, restaura-se, em sua plenitude, a
acessibilidade ampla ao Poder Judiciário”.45
Com o advento da Constituição de 1988, o princípio passou a ter considerável
inovação em seu alcance. A esse respeito, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes
bem sintetiza a quaestio:
Três aspectos podem e devem ser ressaltados, desde logo, no texto da
Constituição de 1988: a supressão da possibilidade, prevista no art. 153, §
4º, da CF/1969, com a alteração produzida pela Emenda Constitucional
7/1977, de condicionamento ao exaurimento da via administrativa; a
aplicabilidade atual do princípio em termos de direitos coletivos; e o
46
reconhecimento constitucional da garantia diante da ameaça ao direito.
Assim dispõe o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “A lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A primeira análise a ser feita sobre o aludido dispositivo diz respeito à
ausência da obrigatoriedade de prévio esgotamento das instâncias administrativas
para que se busque a tutela jurisdicional.
A
CF/88
afastou
a
chamada
jurisdição
condicionada
ou
instância
administrativa de curso forçado, estabelecida pela Emenda Constitucional nº 7 da
Constituição de 1969, que assim previa no § 4º do seu artigo 153:
A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão
de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se
exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida
garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias
para a decisão sobre o pedido.
Na abalizada lição de Nelson Nery Junior, tal regramento funcionava como
uma verdadeira condição de procedibilidade da ação, que, caso não atendida,
resultaria na extinção do processo sem resolução de mérito, ante a falta de interesse
processual, nos termos do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil.
45
BASTOS; MARTINS, 2001, p. 186.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Breves considerações em torno da questão da
inafastabilidade da prestação jurisdicional. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Org.). Estudos de direito
processual civil: homenagem ao professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 93.
46
21
Referida inexigibilidade é conseqüência da adoção da jurisdição una pelo
nosso ordenamento jurídico, ao contrário, por exemplo, do sistema francês, cuja
função jurisdicional é repartida entre um Poder Judiciário e um contencioso
administrativo.
Excepcionalmente, a Constituição determina no seu artigo 217, § 1º, o prévio
esgotamento das instâncias da justiça desportiva antes de se buscar o Judiciário
para o deslinde das ações relativas à disciplina e às competições desportivas, sem
condicionar tal acesso, contudo, ao término do processo administrativo, tendo em
vista o prazo máximo de sessenta dias de que dispõe para proferir decisão final,
contados da instauração do processo.
Contudo, deve-se atentar ao fato de que a ausência da obrigatoriedade de
consulta prévia às vias administrativas não significa, necessariamente, a
desnecessidade de formulação de requerimentos perante a Administração Pública,
“na medida em que a pretensão administrativa precisa ser apreciada e negada para
que se configure a lide, ou seja, o conflito qualificado pela pretensão resistida. Do
contrário, não haverá interesse de agir”.47
O segundo ponto a ser examinado refere-se à ampliação dos direitos
tutelados pelo princípio ora em estudo.
A Constituição da República não mais limita sua proteção aos direitos
essencialmente individuais, como fazia nas Cartas de 1946, 1967 e 1969, mas
também passa a abranger os direitos de natureza coletiva e difusa. A própria
disposição do artigo no texto constitucional deixa clara essa intenção, porquanto
situado dentro do título dos direitos e garantias fundamentais, no capítulo referente
aos direitos e deveres individuais e coletivos.
Quanto à salutar diferença entre os direitos coletivos e difusos, Celso Ribeiro
Bastos assim explicita:
Nos interesses coletivos há um vínculo jurídico básico, uma geral affectio
societatis que une todos os indivíduos [...]. Ao contrário, no caso dos
denominados interesses difusos, não se nota qualquer vínculo jurídico
congregador dos titulares de tais interesses, que praticamente se baseiam
48
numa identidade de situações de fato.
47
48
MENDES, 2005, p. 93.
BASTOS; MARTINS, 2001, p. 196.
22
Por último, e não menos importante, cabe apreciar a inclusão da proteção
jurisdicional
à
ameaça
a
direito.
A
partir
dessa
inovação,
buscou-se
constitucionalizar “a tutela preventiva, a tutela de urgência, a tutela contra o perigo,
legitimando ainda mais a concessão de provimentos antecipatórios e cautelares. A
Constituição é clara ao prescrever a tutela reparatória e a tutela preventiva”. 49
1.5 O ALCANCE DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA
Em acompanhamento à evolução da idéia de jurisdição, o conceito de acesso
à justiça também passou a adquirir uma interpretação mais rica e condizente com a
sua real natureza de direito fundamental. A propósito, explica Marinoni que o direito
de ação constitui verdadeiro direito fundamental processual, situado acima de
quaisquer outros direitos fundamentais materiais, pois indispensável para a
efetividade destes.50
O inciso XXXV do artigo 5º da Constituição determina a figura do legislador
como sendo o destinatário principal do seu comando. No entanto, o princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional é direcionado a todas as pessoas e
instituições, indistintamente, “pois, „se a lei não pode, nenhum ato ou autoridade de
menor hierarquia poderá‟ excluir algo da apreciação do Poder Judiciário”.51
Diferentemente da concepção estritamente formal da época do Estado liberal,
onde o direito de ação era visto sob a ótica do simples direito de se ajuizar uma
demanda, o atual alcance interpretativo a ser conferido à garantia da inafastabilidade
pressupõe o acesso a uma tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e de qualidade,52
de forma a garantir uma ordem jurídica justa.53
De acordo com Nelson Nery Jr, referido princípio constitucional informa que
“todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não
é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja a adequada,
sem o que estaria vazio de sentido o princípio”.54
49
DIDIER JUNIOR, 2007, p. 88.
MARINONI, 2007, p. 208-209.
51
DIDIER JUNIOR, op. cit., p. 87.
52
DINAMARCO, 2001, p. 114-116.
53
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 33.
54
NERY JUNIOR, 2004, p. 132.
50
23
1.6 A IDÉIA DE ACESSO À JUSTIÇA NO ÂMBITO DO PROCESSO
Uma vez exercido o direito de ação, cabe ao Estado o dever de prestar a
atividade jurisdicional, o que se dá através do processo.55 Essa é a lógica de todo o
sistema instrumental, como bem explicita o doutrinador Vicente Greco Filho:
O direito processual, em sua lógica já referida, se assenta em três conceitos
fundamentais que se relacionam e interagem: a ação, a jurisdição e o
processo. Esses três elementos compõem todo o processo, de modo que
se pode dizer que nada no direito processual está fora de um deles e de
seguir seus princípios. O seu relacionamento é tão íntimo que não se pode
56
sequer definir cada um deles sem referir o outro.
Sendo assim, não é demais declarar que o processo representa o instrumento
hábil para a busca da tutela jurisdicional e, conseqüentemente, da pacificação social
e realização da justiça. Como visto alhures, a garantia de acesso à justiça pressupõe
a efetividade desse instrumento, de modo a assegurar o direito a uma ordem jurídica
justa.
Para tanto, se faz necessário que o processo atenda aos seus escopos
essenciais, reconheça e supere os óbices que atravancam a consecução desses
objetivos e, fundamentalmente, seja justo.57 Nos dizeres de notáveis doutrinadores,
Falar da instrumentalidade nesse sentido positivo, pois, é alertar para a
necessária efetividade do processo, ou seja, para a necessidade de ter-se
um sistema processual capaz de servir de eficiente caminho à “ordem
jurídica justa”. Para tanto, não só é preciso ter a consciência dos objetivos a
atingir, como também conhecer e saber superar os óbices econômicos e
58
jurídicos que se antepõem ao livre acesso à justiça.
Luiz Fux explicita que a efetividade do processo consiste “na sua aptidão de
alcançar os fins para os quais foi instituído”.59
Inicialmente, as concepções de Chiovenda e Carnelutti imputavam ao sistema
processual uma visão estritamente jurídica e exclusivamente a serviço do direito
55
FUX, 2008, p. 151.
GRECO FILHO, 2009, p. 79.
57
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 33-35.
58
Ibid., 41.
59
FUX, op. cit., p. 240.
56
24
material. Com o tempo, porém, a partir da evolução da idéia de que o Direito não
poderia estar alheio aos novos anseios da sociedade, o processo passou também a
ser analisado sob uma perspectiva metajurídica, levando-se em conta questões de
ordem social e política que, acima de tudo, serviam para legitimar sua existência e
dotar sua função de um significado mais valorativo.60
Dada essa premissa, diz-se que, atualmente, três são os objetivos principais a
serem buscados com o processo: o escopo social, o escopo político e o escopo
jurídico.
O escopo social consiste, essencialmente, na pacificação dos conflitos. O
Estado, como ente organizador da sociedade, deve utilizar o sistema processual em
prol da eliminação de insatisfações, a partir da utilização de critérios justos e do
alcance de resultados que influenciem de maneira favorável a vida do grupo que
ordena.61
Dentre os serviços garantidos pelo poder estatal e que são dotados de valor
social, Dinamarco destaca o instituto da segurança jurídica. Para o autor, a ligação
se encontra no fato de que “o advento da definitividade aplaca as incertezas e
elimina o estado anti-social de insatisfação”.62
O escopo político envolve a relação entre três aspectos, a saber: poder,
liberdade e participação.63
O primeiro deles aduz que o processo, visto sob a ótica dos resultados gerais
alcançados pelo Poder Judiciário, deve servir como instrumento hábil a garantir a
estabilidade das instituições estatais. Com isso, objetiva-se “a estabilidade do
próprio ordenamento jurídico, que constitui projeção positivada do poder estatal”.64
Por sua vez, o processo como instrumento de culto à liberdade constitui a
garantia de defesa do indivíduo contra possíveis abusos advindos do Estado. Já o
objetivo relacionado à participação representa a influência que o sujeito deve
exercer sobre as instituições, consubstanciada na prática da democracia. 65
60
DINAMARCO, 2001, p. 125-127.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros,
2001. p. 162.
62
Ibid., p. 167.
63
Ibid., p. 168.
64
Id., 2001, p. 130.
65
Ibid., p. 170-171.
61
25
Finalmente, o escopo processual jurídico significa, nos dizeres de Dinamarco,
a atuação da vontade concreta do direito, dando-se a necessária efetividade às
normas legais. Nesse ponto, o doutrinador assim se posiciona:
É de suma importância e vital relevância na técnica processual a definição
do modo como o processo e os seus resultados repercutem no sistema
jurídico; além disso, as fórmulas mais conhecidas, através das quais se
tentou a definição teleológica do processo, constituem acima de tudo
pronunciamentos acerca da função que o processo desempenha perante o
66
direito e na vida dos direitos.
Já os óbices a serem enfrentados estão diretamente assentados em quatro
“pontos sensíveis”, em feliz expressão utilizada por Ada Pellegrini, Cândido
Dinamarco e Antonio Carlos Cintra,67 que os listam da seguinte forma:
1) admissão ao processo - deve ser eliminado todo e qualquer impedimento
de ordem econômica que obste o direito universal de ação, de forma a consagrar o
princípio insculpido no artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, que dispõe
ser dever do Estado proporcionar a assistência jurídica integral e gratuita àqueles
que comprovarem insuficiência de recursos;68
2) modo-de-ser do processo - o processo deve obedecer ao seu trâmite legal,
em obediência aos princípios constitucionais centrais que o orientam 69 (os quais
serão a seguir indicados);
3) justiça das decisões - o magistrado, nas suas tarefas primordiais de
analisar as provas, enquadrar o fato na norma e interpretar o ordenamento pátrio,
deve sempre buscar o resultado mais justo;70
4) utilidade das decisões – o processo deve ser efetivo, ou seja, “deve dar a
quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de
obter”.71
Segundo Cândido Rangel Dinamarco, o direito processual realiza um “jogo”
de promessas, garantias e limitações, todas concorrentemente essenciais para o
66
DINAMARCO, 2001, p. 177.
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 34.
68
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit.
69
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit.
70
Ibid., p. 34-35.
71
Ibid., p. 35.
67
26
conhecimento do sistema e para sua correta adequação com o contexto político e
social no qual está destinado a funcionar.72
Referido autor expõe que o acesso à justiça constitui a promessa-síntese do
ordenamento, constitucionalmente assegurada pelo artigo 5º, inciso XXXV, a qual
deve ser necessariamente complementada por outras garantias que a assegurem de
maneira efetiva: as chamadas promessas instrumentais.73 Nas suas palavras,
Toda a tutela constitucional do processo converge ao aprimoramento do
sistema processual como meio capaz de oferecer decisões justas e efetivas
a quem tenha necessidade delas. Fala-se em devido processo legal (due
process of law) para designar o conjunto de garantias destinadas a produzir
74
um processo équo, cujo resultado prático realize a justiça.
Dentre as garantias instrumentais, três delas englobam diretamente a noção
de processo justo (ou équo), quais sejam: princípio da isonomia, princípio do
contraditório e princípio da imparcialidade do juiz.
Pelo princípio da isonomia, descrito no caput do artigo 5º75 e complementado
pelo inciso IV do artigo 3º,76 ambos da Constituição da República, todos são iguais
perante a lei, cabendo tanto ao juiz quanto ao próprio legislador dispensar
tratamento paritário às partes envolvidas na relação processual.77 No magistério de
Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci,
Nem podia ser diferente, até porque o processo jamais atingiria plenamente
sua finalidade compositiva do litígio (processo civil), ou resolutória de
conflitos de interesses de alta relevância social (processo penal), se os
sujeitos processuais parciais não fossem tratados com igualdade em todo o
78
seu desenrolar.
Contudo, Cândido Dinamarco ressalta que a simples prática de atos
isonômicos não basta para a preservação da garantia ora em análise; é preciso que
o magistrado também neutralize eventuais desigualdades existentes ou propensas a
72
DINAMARCO, 2001, p. 109-112.
Ibid., p. 109.
74
Ibid., p. 109-110.
75
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
76
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
77
DINAMARCO, op. cit., p. 207.
78
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo:
regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 37.
73
27
existirem. Trata-se, aqui, da promoção da igualdade sob o seu aspecto substancial,
ou seja, o de se tratar os iguais igualmente e os desiguais na proporção de suas
desigualdades.79
Quanto à adoção da idéia de igualdade material, em substituição à
conceituação primeva de igualdade formal, confira-se o seguinte excerto doutrinário:
A aparente quebra do princípio da isonomia, dentro e fora do processo,
obedece exatamente ao princípio da igualdade real e proporcional, que
impõe tratamento desigual aos desiguais, justamente para que, supridas as
80
diferenças, se atinja a igualdade substancial.
Tucci e Dinamarco ainda especificam a aplicação do princípio da isonomia no
âmbito do julgamento da causa. Nesse contexto, enquanto o primeiro afirma que a
concepção de igualdade também abrange o campo de aplicação da lei, no sentido
de que o magistrado deve decidir situações análogas de forma isonômica, a fim de
que uma mesma situação jurídica não receba tratamento diferenciado em processos
distintos,81 o segundo autor entende que “o processo équo, ou processo justo, de
que fala a doutrina, é aquele feito segundo legítimos parâmetros legais e
constitucionais e que ao fim produza resultados exteriores justos”.82
Por sua vez, o princípio do contraditório, revelado pelo artigo 5º, inciso LV, da
Carta Magna,83 consiste na garantia de que ambos os litigantes terão as mesmas
oportunidades de, ao longo do processo do qual fazem parte, atuar e se manifestar
nos autos por meio da chamada tríplice participação - “participar pedindo, participar
alegando e participar provando”84 -, contribuindo, dessa forma, para o livre
convencimento do juiz. Consoante Dinamarco,
Para cumprir a exigência constitucional do contraditório, todo modelo
procedimental descrito em lei contém e todos os procedimentos que
concretamente se instauram devem conter momentos para que cada uma
85
das partes peça, alegue e prove.
79
DINAMARCO, 2001, p. 207.
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 54.
81
TUCCI; TUCCI, 1989, p. 40.
82
DINAMARCO, op. cit., p. 209-210.
83
Art. 5º. LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
84
DINAMARCO, op. cit., p. 215.
85
DINAMARCO, loc. cit.
80
28
Ada Pellegrini, Dinamarco e Cintra ainda ensinam que o princípio do
contraditório é composto por dois requisitos: informação e reação.86 Dessa feita,
para que a parte possa reagir a um determinado ato praticado pela parte contrária
ou mesmo pelo juiz, é preciso que, antes de tudo, ela tenha sido informada da
referida situação. Só assim poderá participar ativamente do processo, utilizando-se
de todos os meios e recursos que a lei dispõe para tanto (ampla defesa).
Mas não apenas às partes referido princípio é destinado. O magistrado, no
exercício de sua função jurisdicional, tem o poder-dever de facilitar e permitir o
acesso aos meios necessários para a participação paritária dos litigantes, o que se
dá através de atos relativos à direção do processo, à condução das provas e à
promoção do diálogo entre os envolvidos na relação processual.87
Já o princípio da imparcialidade determina que toda demanda levada a juízo
deve ser necessariamente analisada por um juiz imparcial, como condição essencial
para o estabelecimento de uma relação processual válida.88 Sua atuação deve se
dar com absoluta impessoalidade, sempre em observância aos valores ditados pela
lei.89 Nesse sentido,
A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso,
têm elas o direito de exigir um juiz imparcial: e o Estado, que reservou para
si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir
90
com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas.
Com o intuito de evitar possíveis atitudes parciais por parte dos magistrados,
a Constituição criou mecanismo consubstanciado na garantia do juiz natural, o qual
se desdobra em três principais acepções: 1) só pode atuar como órgão jurisdicional
aquele devidamente relacionado como tal pela Constituição; 2) não serão criados
tribunais de exceção para a resolução dos litígios; e 3) a todos é assegurado o
direito de ser processado e julgado pelo juiz competente.91 92
Oportuno trazer à colação respeitável exposição no sentido de que
imparcialidade e neutralidade não se confundem. Esta se consubstancia na
liberdade que o magistrado dispõe de interpretar a lei em conformidade com os
86
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2001, p. 57.
DINAMARCO, 2001, p. 220-224.
88
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 51-52.
89
DINAMARCO, op. cit., p. 200-201.
90
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 52.
91
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, loc. cit.
92
DINAMARCO, op. cit., p. 203-207.
87
29
valores preponderantes na sociedade, diferentemente daquela, que não permite a
sua atuação impulsionada por sentimentos e interesses estritamente pessoais.93
Dito isso, frise-se, porém, que não apenas de garantias sobrevive o sistema.
Ainda de acordo com Dinamarco, o próprio ordenamento se encarrega de limitar os
poderes inerentes à jurisdição, segundo padrões condizentes com a realidade
política e social do meio em que opera. Dentre essas limitações, fatores de
racionalidade e realismo,94 encontram-se as próprias garantias constitucionais acima
listadas, vez que impõem ao Estado-juiz a sua observância em conformidade com os
ditames procedimentais, e aquelas que impedem a emissão de um juízo de valor
sobre o mérito das demandas levadas ao conhecimento do Poder Judiciário,
conhecidos por “pressupostos de admissibilidade dos provimentos de mérito”. 95
Nesse ponto, assim expôs o doutrinador:
[...] o concreto poder de exigir os provimentos jurisdicionais condiciona-se
sempre à apresentação de uma demanda corretamente formulada segundo
a lei, à capacidade de quem a formula, à legítima investidura do juiz a quem
é dirigida e, de modo geral, à observância de todos os atos e fases do
96
procedimento que a lei estabelece e exige.
93
DINAMARCO, 2001, p. 200-201.
Ibid., p. 112.
95
Ibid., p. 110-111.
96
Ibid., p. 111.
94
30
2 O RECURSO ESPECIAL
2.1 NOÇÕES HISTÓRICAS INTRODUTÓRIAS
Durante muitos anos, coube ao Supremo Tribunal Federal a função de, em
sede de recurso extraordinário, preservar a Constituição e a legislação federal
infraconstitucional, bem como uniformizar a interpretação a elas conferida. No
entanto, por conta dessa missão tão abrangente, o Pretório Excelso passou a
experimentar um grande acúmulo de processos, o que acabou conduzindo à
denominada “crise do Supremo”.97
Muitas foram as tentativas de se superar tamanho problema, dentre elas, a
criação de óbices regimentais e jurisprudenciais que fortemente restringissem o
acesso àquela Corte, o que não surtiu o efeito esperado.98
Nesse contexto, cabe salientar que desde 1963 vários estudos e debates
apontavam uma grande lacuna no sistema judiciário brasileiro, com destaque para o
trabalho monográfico sobre recurso extraordinário de autoria de José Afonso da
Silva, no sentido de que não havia um Tribunal Superior, à semelhança do TST e do
TSE, que recebesse as causas relativas ao Direito comum.99
Assim, partindo-se da idéia de criação de um novo tribunal, aliada à crescente
necessidade de se resolver a crise que assolava o STF, o Constituinte de 1988
houve por bem instituir o Superior Tribunal de Justiça, oficialmente instalado na data
de 7 de abril de 1989.100
Com isso, parcela significativa da competência que até então era atribuída ao
Supremo passou a fazer parte da novel Corte, que, através do denominado recurso
especial, atraiu para si o encargo de zelar pela integridade do direito federal
infraconstitucional comum. Nas palavras do Ministro Athos Gusmão Carneiro,
[...] o recurso extraordinário previsto no sistema constitucional anterior foi
desdobrado em recurso extraordinário stricto sensu – RE e recurso especial
97
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 10. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008. p. 73-76.
98
Ibid., p. 76-78.
99
Ibid., p. 107-112.
100
SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2008. p. 682.
31
– REsp, aquele destinado precipuamente à tutela das normas
constitucionais e com julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (CF, art.
102, III); este, o recurso especial, voltado à tutela da lei (ou tratado) federal,
101
com julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, III).
2.2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O RECURSO ESPECIAL
O recurso especial, apelo de natureza extraordinária direcionado ao Superior
Tribunal de Justiça, tem suas hipóteses de cabimento taxativamente descritas na
Constituição da República, em seu artigo 105, inciso III, alíneas “a”, “b” e “c”, cujo
teor ora se transcreve:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última
instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro
tribunal.
Sua primordial função é a de tutelar o direito objetivo, garantindo a
uniformidade de interpretação e a correta aplicação da legislação federal
infraconstitucional em todo o território nacional.
Cuida-se, portanto, de espécie recursal de fundamentação vinculada,
porquanto a discussão no âmbito do apelo deve se restringir à questão federal
controvertida que ensejou o seu manejo. Por essa razão, é inviável o mero reexame
da matéria fático-probatória já solucionada nas instâncias ordinárias; a discussão,
nessa sede, limita-se à correta aplicação do direito aos fatos apurados e delineados
no acórdão do qual se recorre.
Por se tratar de um recurso excepcional (a exemplo do recurso extraordinário,
de competência do STF e limitado ao exame da questão constitucional), diferenciase dos denominados recursos ordinários ou comuns: além de seus pressupostos
virem dispostos na Constituição Federal, e não na lei processual102, a simples
101
102
CARNEIRO, 1999 apud MANCUSO, 2008, p. 109.
Ibid., p. 191.
32
sucumbência não basta para a sua viabilidade. Nesse sentido, confira-se objetiva
exposição de Elpídio Donizetti:
Tais recursos foram classificados como especiais (ou excepcionais) em
oposição aos comuns. Isso porque, enquanto nos recursos comuns basta a
sucumbência para preencher os requisitos relativos ao interesse e à
legitimidade, nos recursos especiais (RE e Resp), além desses requisitos,
103
exige-se a ofensa ao direito positivo, constitucional ou infraconstitucional.
Dentre os princípios gerais que orientam o sistema recursal cível brasileiro,
alguns podem ser especificamente enquadrados nas características do apelo ora em
estudo. São eles: taxatividade (considera-se recurso o meio de impugnação
taxativamente descrito como tal pela lei federal – art. 496, VI, do CPC); dialeticidade
(o pedido de reexame do julgado recorrido deve ser fundamentado – art. 541, CPC);
voluntariedade (a inequívoca vontade de recorrer deve partir diretamente da parte
interessada na modificação do decisório); proibição da reforma para prejudicar
(reformatio in pejus); consumação (uma vez interposto o recurso, ocorre a preclusão
consumativa, não sendo possível proceder a posteriores aditamentos); esgotamento
das vias recursais (o apelo só pode ser interposto no tribunal ad quem depois de
esgotadas as possibilidades de recurso perante o juízo a quo – art. 105, III, CF); e
singularidade, unicidade ou unirrecorribilidade (cada decisão comporta uma única
espécie recursal – o doutrinador Bernardo Pimentel entende que o recurso especial
consiste em exceção a esse princípio, vez que o art. 543 prevê a possibilidade de
interposição simultânea de recurso extraordinário contra um mesmo acórdão104;
entretanto, Elpídio Donizetti se posiciona no sentido de que “nessa hipótese a
infringência ao princípio é apenas aparente, uma vez que cada um dos recursos se
refere a uma parte ou capítulo da decisão recorrida”105).106 107
Quanto aos efeitos em que recebido, a regra constante do art. 542, § 2º, do
CPC é a de que o recurso especial produz efeito devolutivo. Contudo, admite-se
medida cautelar para que lhe seja atribuído o efeito suspensivo, desde que
presentes a plausibilidade do direito e o perigo de dano grave e de difícil reparação.
103
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2008. p. 488.
104
SOUZA, 2008, p. 115.
105
DONIZETTI, op. cit., p. 433.
106
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 47-169.
107
SOUZA, op. cit., p. 111-135.
33
No tocante ao efeito translativo, a jurisprudência majoritária do STJ o admite
apenas em caráter excepcional, vez que a regra é a de que, por se tratar de recurso
extremo, cuja fundamentação se dá de forma vinculada, até mesmo as questões de
ordem pública devem ter sido previamente debatidas na instância de origem. É o
que se depreende do seguinte trecho retirado da ementa de julgamento do Recurso
Especial nº 656.399/PE, de relatoria do eminente Ministro Luiz Fux:
PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EFEITO
TRANSLATIVO. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL. MATÉRIA DE ORDEM
PÚBLICA.
FALHA DO PODER JUDICIÁRIO. OCORRÊNCIA DE
PREJUÍZO À UNIÃO FEDERAL. NULIDADE PROCESSUAL.
1. "O Recurso Especial é apelo extremo, cuja fundamentação é vinculada,
sendo defeso o exame de qualquer matéria, inclusive de ordem pública,
caso a mesma não tenha sido objeto de discussão na origem" (EDcl no
AgRg no REsp 510930/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ
de 07.11.2005).
2. Entrementes, a jurisprudência majoritária desta Corte Superior tem
admitido, em caráter excepcional, a mitigação desta regra na instância
extraordinária, se o recurso especial ensejar conhecimento por outros
108
fundamentos, ante o efeito translativo dos recursos [...].
Por fim, cabe explicitar que o apelo especial é também aceito tanto na forma
adesiva, a teor do art. 500, II, do CPC109, como na forma retida, nos casos em que
apresentado contra decisão interlocutória prolatada em sede de processo de
conhecimento, cautelar ou embargos à execução.110
2.3 JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE
O recurso especial sujeita-se a um juízo de admissibilidade duplo, bipartido ou
desdobrado: primeiro, procede-se a uma análise da admissibilidade recursal, ou
seja, dos seus requisitos formais; ultrapassada essa, passa-se ao exame do mérito.
108
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp - 656.399/PE. 1ª Turma. Relator: Ministro Luiz Fux,
Data de Julgamento: 18 de ago. de 2009.
109
Art. 500. Cada parte interporá o recurso, independentemente, no prazo e observadas as
exigências legais. Sendo, porém, vencidos autor e réu, ao recurso interposto por qualquer deles
poderá aderir a outra parte. O recurso adesivo fica subordinado ao recurso principal e se rege pelas
disposições seguintes: II - será admissível na apelação, nos embargos infringentes, no recurso
extraordinário e no recurso especial;
110
o
Art. 542. § 3 O recurso extraordinário, ou o recurso especial, quando interpostos contra decisão
interlocutória em processo de conhecimento, cautelar, ou embargos à execução ficará retido nos
autos e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra
a decisão final, ou para as contra-razões.
34
Inicialmente, o juízo de admissibilidade é realizado pelo Tribunal a quo, que,
de maneira provisória, dirá se o apelo possui ou não condições de ser conhecido. Se
a resposta for afirmativa, os autos subirão ao Superior Tribunal de Justiça; se, no
entanto, a resposta for negativa, o recurso será inadmitido pelo próprio presidente ou
vice-presidente da Corte de origem.
Com a remessa dos autos, após a admissão do apelo, o Tribunal ad quem
efetuará um novo juízo de admissibilidade, agora definitivo. Isso porque aquele
realizado de maneira prévia não vincula o STJ, a verdadeira Corte competente para
a análise do recurso especial. Nesse sentido, confira-se o ensinamento de Rodolfo
de Camargo Mancuso:
O Regimento Interno do STJ dispõe que, primeiramente, se verificará se o
recurso é “cabível” (RISTJ, art. 257); dado que no Tribunal a quo também
se exercita um juízo de admissibilidade (§ 1.º do art. 542 do CPC), fica
evidente que esta primeira aferição é uma sorte de “triagem”, provisória e
sujeita a subseqüente exame do órgão ad quem, ou seja, por parte do
Tribunal superior, “titular” dessa competência, que tem, portanto, a última
111
palavra.
Importante lição também pode ser extraída do processualista José Carlos
Barbosa Moreira, quando afirma que o pronunciamento do Tribunal a quo “não é
vinculativo para o tribunal ad quem, que ficará livre de conhecer ou não,
oportunamente, do extraordinário ou do especial”.112
Assim, se o entendimento decorrente da aludida análise primeva for no
sentido de que o recurso não preenche os seus requisitos formais, o relator negará
seguimento ao mesmo; se, contudo, todos esses pressupostos forem devidamente
cumpridos, proceder-se-á à análise do mérito.
A identificação e diferenciação de ambos os juízos na linguagem forense é
objetivamente explicitada por Nelson Nery Junior no seguinte excerto retirado de sua
obra: “as expressões „conhecer‟ ou „não conhecer‟ do recurso, de um lado, e „dar
provimento‟ ou „negar provimento‟, de outro, significam o juízo de admissibilidade e o
juízo de mérito do recurso, respectivamente”.113
111
MANCUSO, 2008, p. 179.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 13. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. v. 5, p. 612.
113
NERY JUNIOR, 2000, p. 222.
112
35
2.4 REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE
Os requisitos de admissibilidade do recurso especial constituem o objeto do
juízo de admissibilidade acima explicitado, ou seja, “as exigências legais que devem
estar satisfeitas para que o órgão julgador possa ingressar no juízo de mérito do
recurso”.114
Dito isso, verifica-se a existência de dois tipos de pressupostos: os genéricos,
inerentes a todos os recursos, e os específicos, que englobam as particularidades da
espécie recursal.
Dentre os requisitos genéricos, existem duas teorias classificadoras: a
clássica, que os divide em objetivos e subjetivos, e a contemporânea, que os
distribui entre intrínsecos e extrínsecos.
A doutrina moderna, em conformidade com a divisão adotada por José Carlos
Barbosa Moreira115 e Nelson Nery Junior116 (a qual será utilizada no presente
trabalho), considera como intrínsecos (relacionados à existência do poder de
recorrer) o cabimento, a legitimidade e o interesse; e como extrínsecos (relativos ao
exercício do direito de recorrer) a tempestividade, a regularidade formal, o preparo e
a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer. Quanto a esse
último requisito, frise-se que alguns autores o enquadram dentre os pressupostos
intrínsecos, a exemplo de Bernardo Pimentel Souza117 e Fredie Didier Jr.118
Já a teoria clássica, adotada, por exemplo, pelo doutrinador Elpídio
Donizetti,119 situa a legitimidade e o interesse dentro dos requisitos subjetivos; por
sua vez, os objetivos seriam: o cabimento, a tempestividade, o preparo, a
regularidade formal e a contrariedade da sentença à jurisprudência consolidada no
STJ ou no STF, ou inexistência de súmula no âmbito de tais tribunais.
No tocante aos pressupostos específicos de admissibilidade, registre-se que
serão detidamente expostos e analisados no capítulo subseqüente.
114
SOUZA, 2008, p. 36.
MOREIRA, 2006, p. 260.
116
NERY JUNIOR, 2000, p. 240-367.
117
SOUZA, op. cit., p. 36-103.
118
DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil:
meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 3. ed. Salvador: JusPodivm,
2007. p. 43-60.
119
DONIZETTI, 2008, p. 436-447.
115
36
2.4.1 Requisitos Intrínsecos
2.4.1.1 Cabimento
O cabimento do recurso é aferido a partir da análise de dois componentes:
previsão legal ou constitucional de espécie recursal apta a combater a decisão
causadora do inconformismo (recorribilidade) e adequação.
O art. 496 do CPC traz um rol exaustivo dos recursos cabíveis no sistema
processual pátrio, cujo inciso VI expressamente prevê a existência do recurso
especial.
Verifica-se, ademais, que o referido apelo constitui a espécie recursal
adequada para a impugnação de acórdãos decididos, em única ou última instância,
pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito
Federal e Territórios, quando se observar: contrariedade a tratado ou lei federal, ou
negativa de vigência; julgamento que torne válido ato de governo local contestado
em face de lei federal; e/ou interpretação divergente da que outro tribunal haja
atribuído a determinada lei federal, nos termos do artigo 105, inciso III, alíneas “a”,
“b” e “c”, da Constituição da República, hipóteses que, como dito, serão
especificamente tratadas no capítulo seguinte.
2.4.1.2 Legitimidade
O artigo 499 do CPC indica quem possui legitimidade para recorrer. Assim,
podem interpor o recurso especial: a parte vencida, o Ministério Público e o terceiro
prejudicado.
No conceito de parte vencida, entende-se que a legislação “quer referir-se
não só a autor e réu, haja ou não litisconsórcio, mas também ao terceiro
interveniente, que, com a intervenção, se tornou parte”.120
120
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 47.
37
Quanto ao parquet, sua legitimidade alcança tanto os processos em que atua
como parte quanto aqueles em que exerce a função de custos legis. Nessa última
hipótese, “não há necessidade de o Ministério Público haver efetivamente
funcionado nos autos como fiscal da lei para que se legitime a recorrer [...], mas
basta ter havido a possibilidade de fazê-lo”.121 Importante conferir, ainda, o
Enunciado da Súmula nº 99 do STJ, que afirma: “O Ministério Público tem
legitimidade para recorrer no processo em que oficiou como fiscal da lei, ainda que
não haja recurso da parte”.
Por fim, resta analisar a figura do terceiro prejudicado, que só terá
legitimidade para o ato se comprovar seu interesse jurídico na impugnação do
julgado.122
2.4.1.3 Interesse
O interesse recursal é caracterizado pelo binômio utilidade/necessidade.
Bernardo Pimentel Souza bem sintetiza tais definições, a saber:
O recurso é útil se, em tese, puder trazer alguma vantagem sob o ponto de
vista prático ao legitimado. É necessário se for a única via processual hábil
à obtenção, no mesmo processo, do benefício prático almejado pelo
123
legitimado.
Nesse tópico, registre-se que o interesse recursal nem sempre estará ligado à
sucumbência; a parte vencedora pode recorrer de decisão que lhe tenha sido
favorável, desde que o resultado buscado lhe possa ser ainda mais proveitoso do
ponto de vista prático.124
2.4.2 Requisitos Extrínsecos
121
NERY JUNIOR, 2000, p. 261.
Ibid., p. 263.
123
SOUZA, 2008, p. 47.
124
Ibid., p. 47-48.
122
38
2.4.2.1 Tempestividade
Nos termos do artigo 508 do Código de Processo Civil,125 o prazo para a
interposição do recurso especial é de 15 (quinze) dias. Entretanto, à Fazenda
Pública (União, Distrito Federal, Estados-membros e Municípios), ao Ministério
Público (como parte ou fiscal da lei), às autarquias e às fundações públicas, tal prazo
é computado em dobro, a teor dos artigos 188 do CPC126 e 10 da Lei nº 9.469/97.127
Para a apresentação das contra-razões, o prazo também é quinzenal.
Contudo;
ressalte-se
que
o
privilégio
do
prazo
duplicado
aos
entes
supramencionados é concedido apenas para o ato de recorrer, não para o
oferecimento de resposta.
Já com relação aos defensores públicos e aos litisconsortes com diferentes
procuradores (desde que todos eles tenham interesse recursal), tanto o prazo para
recorrer quanto o prazo para responder são contados em dobro.
Consoante abordado por Bernardo Pimentel Souza, o requisito da
tempestividade “repousa na exigência de que o recurso seja interposto dentro do
prazo peremptório estabelecido em lei, sob pena de operar-se a preclusão
temporal”.128
O prazo para a interposição do apelo especial inicia-se a partir da intimação
da decisão, que se dá com a publicação do dispositivo do acórdão recorrido no
órgão oficial (art. 506, III, CPC),129 salvo se a parte possuir a prerrogativa da
intimação pessoal, caso em que o dies a quo será considerado em conformidade
com o que determina a legislação instrumental em tais situações.
Em qualquer das hipóteses, uma vez interposto o recurso, sua tempestividade
será aferida pela data da sua protocolização na secretaria do tribunal. A propósito,
vale conferir o Enunciado nº 216 da Súmula do STJ, que dispõe: “A tempestividade
125
Art. 508. Na apelação, nos embargos infringentes, no recurso ordinário, no recurso especial, no
recurso extraordinário e nos embargos de divergência, o prazo para interpor e para responder é de 15
(quinze) dias.
126
Art. 188. Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a
parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público.
127
Art. 10. Aplica-se às autarquias e fundações públicas o disposto nos arts. 188 e 475, caput, e no
seu inciso II, do Código de Processo Civil.
128
SOUZA, 2008, p. 70.
129
Art. 506. O prazo para a interposição do recurso, aplicável em todos os casos o disposto no art.
184 e seus parágrafos, contar-se-á da data: (...) III - da publicação do dispositivo do acórdão no órgão
oficial.
39
de recurso interposto no Superior Tribunal de Justiça é aferida pelo registro no
protocolo da Secretaria e não pela data da entrega na agência do correio”.
Caso o recurso especial seja interposto via fac-símile, em consonância com a
Lei nº 9.800/99, o petitório original deve ser protocolizado em até 5 (dias) da data do
término do prazo recursal.
Registre-se, por fim, a questão da tempestividade do especial na
circunstância de o acórdão conter julgamento por maioria e por unanimidade.
Havendo interposição de embargos infringentes em face da parte não-unânime, o
prazo para sua apresentação contra a parte unânime fica sobrestado até a intimação
da decisão dos embargos; caso contrário, referido prazo terá início apenas após o
trânsito em julgado da decisão por maioria de votos. Inteligência do artigo 498 do
CPC.
2.4.2.2 Preparo
A exigência do preparo encontra previsão no artigo 511 do CPC, 130 o qual
determina que a comprovação do seu recolhimento deve ser realizada de maneira
imediata, ou seja, no ato de interposição do recurso especial. Cuida-se de expressa
previsão legal, caso em que,
[...] exercido o direito de recorrer sem a referida comprovação, terá ocorrido
preclusão consumativa relativamente ao preparo, isto é, o recorrente não
mais poderá juntar a guia comprobatória do pagamento, ainda que o prazo
131
recursal não se tenha esgotado.
Por preparo, entende-se o conjunto das despesas relativas ao recurso, o que
inclui o pagamento “da taxa judiciária e das despesas postais (portes de remessa e
de retorno dos autos)”.132 No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a legislação
pertinente ao assunto é a Lei nº 11.636/2007, regulamentada pela Resolução
01/2008-STJ.
130
Art. 511. No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela
legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de
deserção.
131
NERY JUNIOR, 2000, p. 365.
132
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 56.
40
Caso tal imposição não seja atendida, a sanção a ser imposta de ofício é a
deserção, o que significa dizer que o recurso será trancado, por não preencher um
dos pressupostos para sua admissibilidade.
Sobre essa questão, há inclusive entendimento sumulado pelo STJ,
consubstanciado no verbete nº 187: “É deserto o recurso interposto para o Superior
Tribunal de Justiça, quando o recorrente não recolhe, na origem, a importância das
despesas de remessa e retorno dos autos”.
Se o pagamento do preparo for efetuado a menor, o recorrente deverá ser
intimado, pelo órgão a quo ou pelo juízo ad quem,133 para, dentro de 5 (cinco) dias,
efetuar a complementação. Nessa hipótese de insuficiência, somente após a
concessão do prazo é que, em não havendo o recolhimento, a pena de deserção
poderá ser aplicada.
O § 1º do art. 511 ainda informa serem dispensados do pagamento do
preparo os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Fazenda Pública e
respectivas autarquias, bem como por aqueles que gozam de isenção legal, como os
beneficiários da assistência jurídica gratuita (arts. 3º, II, e 9º, ambos da Lei
nº1.060/50).
2.4.2.3 Regularidade Formal
A regularidade formal pressupõe que a interposição do apelo obedeça à
forma prescrita em lei, o que, no recurso especial, encontra orientação no artigo 541
do CPC. Por se tratar de apelo com estruturação vinculada, os pressupostos
constitucionais e regimentais também devem ser observados, sob pena de não
conhecimento.134
Segundo a lei processual, o recurso ora em enfoque deve ser interposto
perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem e simultaneamente
ao recurso extraordinário, caso igualmente se entenda pelo cabimento deste.
Ressalte-se, entretanto, que sua apresentação deve ser feita mediante petição
escrita e autônoma daquela a ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal.
133
134
SOUZA, 2008, p. 98-99.
NERY JUNIOR, 2000, p. 332.
41
No ato de interposição, o apelo deverá conter, desde logo, a exposição dos
fatos e do direito, a demonstração do cabimento do recurso interposto (o qual pode
ser fulcrado em qualquer uma das alíneas do permissivo constitucional, conjunta ou
separadamente) e as razões do pedido de reforma da decisão impugnada,
rechaçando especificamente os fundamentos desta. Na hipótese de o recurso se
basear na existência de dissídio jurisprudencial, o parágrafo único do artigo 541
expõe a forma como a divergência deve ser demonstrada:
Art. 541. Parágrafo único. Quando o recurso fundar-se em dissídio
jurisprudencial, o recorrente fará a prova da divergência mediante certidão,
cópia autenticada ou pela citação do repositório de jurisprudência, oficial ou
credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que tiver sido publicada a
decisão divergente, ou ainda pela reprodução de julgado disponível na
Internet, com indicação da respectiva fonte, mencionando, em qualquer
caso, as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos
confrontados.
Para Nelson Nery Junior, a obrigatoriedade da fundamentação é decorrente
do princípio da dialeticidade, segundo o qual o recurso deve se mostrar discursivo,
ou seja, “o recorrente deverá declinar o porquê do pedido de reexame da decisão.
Só assim a parte contrária poderá contra-arrazoá-lo, formando-se o imprescindível
contraditório em sede recursal”.135
Também no tocante à regularidade, a petição recursal deve estar assinada
por procurador devidamente constituído nos autos, vez que, a teor da Súmula
115/STJ, o recurso interposto na instância especial por advogado sem procuração é
considerado inexistente. Ademais, a jurisprudência do Tribunal Superior é pacífica
no sentido de que o artigo 13 do CPC, que oportuniza às partes a regularização da
representação processual, não se aplica na sede excepcional.
2.4.2.4 Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer
Trata-se do único requisito de admissibilidade recursal negativo: é a sua
inocorrência que conduzirá, neste ponto, a um juízo preliminar positivo. 136
135
136
NERY JUNIOR, 2000, p. 149.
SOUZA, 2008, p. 52.
42
Os fatos impeditivos do poder de recorrer são a desistência do recurso ou da
ação, o reconhecimento da procedência do pedido e a renúncia ao direito sobre o
qual se funda a ação. Por sua vez, são fatos extintivos: a renúncia ao direito de
recorrer e a aquiescência da decisão.
2.5 PROCEDIMENTO
Uma vez recebido o recurso especial pela secretaria do tribunal competente,
o recorrido será intimado para a apresentação das contra-razões no prazo legal.
Após, os autos serão conclusos e remetidos diretamente ao presidente ou vicepresidente do tribunal recorrido, a fim de que seja exercido o juízo preliminar de
admissibilidade do apelo.137
Se o recurso for admitido, os autos serão encaminhados primeiramente ao
Superior Tribunal de Justiça, ainda que também tenha sido admitido recurso
extraordinário simultaneamente interposto. Somente após o julgamento do especial
é que os autos serão enviados ao Supremo Tribunal Federal, desde que o
extraordinário não esteja prejudicado (nos casos em que o recurso de competência
do STJ tenha sido conhecido e provido138).139
Exceção a essa hipótese é determinada pelos parágrafos 2º e 3º do artigo
543 do CPC, nos casos em que o STJ entender que o recurso extraordinário, por ser
prejudicial ao julgamento do recurso especial, deva ser julgado previamente. Assim,
por meio de decisão irrecorrível, o relator a quem o processo foi distribuído
sobrestará o feito e determinará sua remessa ao STF. Todavia, nada impede que o
relator do extraordinário não compartilhe desse mesmo entendimento, situação que,
137
Art. 542. Recebida a petição pela secretaria do tribunal, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe
vista, para apresentar contra-razões.
o
§ 1 Findo esse prazo, serão os autos conclusos para admissão ou não do recurso, no prazo de 15
(quinze) dias, em decisão fundamentada.
138
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 242.
139
Art. 543. Admitidos ambos os recursos, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça.
o
§ 1 Concluído o julgamento do recurso especial, serão os autos remetidos ao Supremo Tribunal
Federal, para apreciação do recurso extraordinário, se este não estiver prejudicado.
43
também através de decisório irrecorrível, fará com que os autos retornem ao STJ
para o devido julgamento do apelo especial.140
Por outro lado, caso o recurso seja inadmitido, à parte é conferida a
possibilidade de interpor o agravo de instrumento previsto no artigo 544 do CPC.141
140
o
Art. 543. § 2 Na hipótese de o relator do recurso especial considerar que o recurso extraordinário
é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível sobrestará o seu julgamento e remeterá os autos ao
o
Supremo Tribunal Federal, para o julgamento do recurso extraordinário. § 3 No caso do parágrafo
anterior, se o relator do recurso extraordinário, em decisão irrecorrível, não o considerar prejudicial,
devolverá os autos ao Superior Tribunal de Justiça, para o julgamento do recurso especial.
141
Art. 544. Não admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo de
instrumento, no prazo de 10 (dez) dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal
de Justiça, conforme o caso.
44
3 A ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL E O ACESSO À JUSTIÇA
3.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Conforme explanado no capítulo anterior, as espécies recursais devem
preencher certos requisitos de admissibilidade para que possam ter seu mérito
devidamente examinado.
Nesse aspecto, pode-se até mesmo estabelecer uma comparação entre tais
condições recursais e as condições da ação. Dessa opinião não destoa Nelson Nery
Junior, para quem “os requisitos de admissibilidade dos recursos se situam no plano
das preliminares, assim como as condições da ação no procedimento já realizado no
primeiro grau de jurisdição”.142
Analisados os requisitos recursais genéricos, inerentes a todos os apelos,
cabe agora partir para a verificação dos requisitos específicos de admissibilidade do
recurso especial, os quais, na lição de Ângelo Pariz, correspondem às
particularidades diretamente decorrentes daqueles. A propósito, confira-se:
Evidentemente, dependendo da espécie de recurso utilizado pelo
recorrente, serão esses requisitos genéricos definidos, explicitados,
especificados e adaptados ao recurso escolhido, completando-se seu perfil.
Teremos, assim, esses requisitos genéricos especificados para um recurso
143
determinado (pressupostos recursais específicos).
3.2 REQUISITOS ESPECÍFICOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL
3.2.1 Prequestionamento
Assim dispõe o artigo 105, inciso III, da Constituição da República:
142
NERY JUNIOR, 2000, p. 224.
PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. Pressupostos de admissibilidade recursal e princípios recursais.
Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1814, 19 jun. 2008. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11402>. Acesso em: 27 set. 2009.
143
45
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última
instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
Da atenta leitura do dispositivo constitucional em comento, referente ao
cabimento do recurso especial, depreende-se que uma das exigências para a sua
interposição é a de que a questão sobre a qual se pretende discutir perante o
Superior Tribunal de Justiça tenha sido efetivamente decidida na instância inferior,
ou seja, que o Tribunal a quo tenha emitido juízo de valor sobre a matéria a ser
impugnada.
Trata-se do chamado prequestionamento, requisito essencial para a
admissibilidade dos recursos extraordinários lato sensu, conforme entendimento
assente nos Tribunais Superiores. Nesse sentido, foi editado o enunciado nº 282 da
Súmula do Pretório Excelso, aplicável, por simetria, também no âmbito do recurso
especial: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão
recorrida, a questão federal suscitada”.
Para que o prequestionamento reste caracterizado, não é necessário que
tenha ocorrido a expressa menção, no julgado recorrido, do dispositivo que se
pretende alegar como violado no recurso; basta que a matéria jurídica a ser
suscitada tenha sido previamente debatida pelo Tribunal a quo.
Em havendo omissão do Tribunal de origem acerca do tema que se pretende
aviar em futuro recurso especial, cabe à parte provocar o órgão jurisdicional através
da oposição de embargos declaratórios com o fito de prequestionamento.
Contudo, apesar de provocado, pode o Tribunal permanecer silente no
tocante à quaestio levantada, entendendo que o acórdão não incorreu em nenhum
dos vícios aptos à apresentação do recurso integrativo.
Nessa hipótese, o Superior Tribunal de Justiça entende não bastar a simples
oposição do apelo aclaratório para que o prequestionamento esteja caracterizado. 144
144
A título de esclarecimento, cumpre registrar que aqui reside importante divergência entre as
orientações perfilhadas pelo STF e pelo STJ.
Para o Supremo Tribunal Federal, a simples oposição dos embargos de declaração a fim de sanar
omissão existente no decisum recorrido é suficiente para caracterizar o prequestionamento da
matéria neles veiculada, viabilizando, dessa forma, a interposição do recurso extraordinário. É o que
se depreende do verbete nº 356 da Súmula do próprio STF, que dispõe, in verbis: “O ponto omisso da
decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso
extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.
Segundo a Suprema Corte, uma vez instado o Tribunal local, e tendo este se recusado a reparar a
falta de pronunciamento, nada mais se poderia exigir da parte, que se utilizou dos devidos meios
46
É preciso que a questão federal seja efetivamente debatida pela Corte a quo, a teor
do enunciado nº 211 de sua Súmula, vazada nos seguintes termos: “Inadmissível
recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos
declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo”.
Persistindo a omissão após a rejeição dos embargos, deve o recorrente, em
sede de recurso especial, aduzir ofensa ao artigo 535 do Código de Processo Civil,
demonstrando, de forma inequívoca, em que consistiu o alegado vício.
Assim, o STJ, ao constatar a existência de omissão, dará provimento ao apelo
especial, anulando o acórdão proferido em sede de embargos declaratórios e
determinando o retorno dos autos à Corte de origem, que deverá emitir novo juízo
sobre o recurso integrativo. Somente após esse trâmite, quando então será
prolatado um outro acórdão pelo Órgão Colegiado local, é que caberá novamente a
interposição de recurso especial, agora fundado na questão federal devidamente
prequestionada.
A propósito, o seguinte julgado:
PROCESSUAL CIVIL – DISPOSITIVOS LEGAIS – FALTA DE
PREQUESTIONAMENTO – SÚMULA 211 DO STJ – REDISCUSSÃO DOS
CÁLCULOS APRESENTADOS PELA CONTADORIA JUDICIAL –
IMPOSSIBILIDADE – ENUNCIADO 7 DA SÚMULA/STJ.
1. Impõe-se o não-conhecimento do recurso especial por ausência de
prequestionamento, entendido como o necessário e indispensável exame
da questão pela decisão atacada, apto a viabilizar a pretensão recursal,
incidindo, no caso, o enunciado da Súmula 211 do Superior Tribunal de
Justiça, in verbis: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a
despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo
tribunal a quo”.
2. A mera menção no acórdão recorrido de que deu por prequestionados os
dispositivos apontados pela recorrente, por si só, não tem o condão de
prequestionar a matéria suscitada. É necessário, pois, que a questão tenha
sido objeto de debate, com a imprescindível manifestação pelo Tribunal de
origem, o qual deverá emitir juízo de valor acerca dos dispositivos legais, ao
decidir pela sua aplicação ou seu afastamento em relação a cada caso
concreto.
3. Se a recorrente entendesse existir alguma eiva no acórdão impugnado,
ainda que a questão federal tenha surgido somente no julgamento no
Tribunal a quo, deveria ter oposto embargos declaratórios, a fim de que
fosse suprida a exigência do prequestionamento e viabilizado o
conhecimento do recurso em relação ao referido dispositivo legal. Caso
persistisse tal omissão, imprescindível a alegação de violação do artigo 535
do Código de Processo Civil, quando da interposição do recurso especial
com fundamento na alínea “a” do inciso III do artigo 105 da Constituição
Federal, sob pena de incidir no intransponível óbice da ausência de
prequestionamento. [...].
legais para ter o seu feito sanado. Nesse sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgR-AI 648760. 1ª Turma. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Data de Julgamento: 6 de nov. de 2007.
47
Agravo regimental improvido.
145
Nesse tópico, cabe ainda estabelecer um adendo. A teor da Súmula 320/STJ,
“a questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do
prequestionamento”. O simples debate da matéria não corresponde ao termo “causa
decidida” para fins de comprovação do requisito.
3.2.2 Exaurimento das instâncias ordinárias
Quando o artigo 105, inciso III, da Constituição expõe que ao Superior
Tribunal de Justiça cabe, em sede de recurso especial, o julgamento de causas
decididas em única ou última instância, significa que a Corte Superior deve
necessariamente
dar
a
última
palavra
em
matéria
de
direito
federal
infraconstitucional comum.
Dessa premissa, é possível concluir que o apelo excepcional ora em estudo
só pode ser interposto depois que previamente esgotados todos os recursos
cabíveis no âmbito ordinário, sob pena de restar caracterizada a supressão de
instância. Tal entendimento, inclusive, é objeto de Súmula perante o STF, conforme
enunciado nº 281: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça
de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”.
A necessidade de exaurimento de instância impossibilita que o apelo especial
seja apresentado diretamente em face de decisão monocrática exarada por relator
do Tribunal a quo, contra a qual ainda é cabível o denominado agravo interno, que
se destina a buscar a manifestação do Órgão Colegiado acerca da questão
aventada no recurso singularmente julgado.
A mesma idéia também se aplica nos casos em que cabíveis embargos
infringentes contra decisão não-unânime emanada do Tribunal de origem. Nesse
sentido, há o enunciado nº 207 do STJ, que assim determina: “É inadmissível
recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido
no tribunal de origem”.
145
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp - 1066020/RS. 2ª Turma. Relator: Ministro Humberto
Martins, Data de Julgamento: 17 de fev. de 2009.
48
Por fim, não é demais ressaltar que o recurso especial somente pode ser
apresentado contra decisão de única ou última instância derivada de Tribunal
Regional Federal ou Tribunal de Estados ou Distrito Federal e Territórios, conforme
expressa previsão constitucional, o que impossibilita sua apresentação em face de
julgados proferidos por turmas recursais de juizados especiais, não considerados
tribunais no estrito sentido do termo. A propósito, confira-se o enunciado nº 203/STJ:
“Não cabe recurso especial contra decisão proferida, nos limites de sua
competência, por órgão de segundo grau dos juizados especiais”.
Referido regramento não caracteriza óbice ao acesso às instâncias
excepcionais, porquanto a interposição de recurso extraordinário ao Supremo
Tribunal Federal não se sujeita a tal limitação.
3.2.3 Contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal
Cuida-se, aqui, de hipótese de cabimento decorrente da alínea “a” do
permissivo constitucional (“Art. 105. III - a) contrariar tratado ou lei federal, ou negarlhes vigência”).
A doutrina costuma estabelecer a diferenciação entre as expressões
“contrariar” e “negar vigência”, atribuindo àquela um sentido mais amplo e difuso,
que chega até mesmo a englobar esta última.146
Tal distinção fazia sentido apenas quando a Constituição de 1967, ao
especificar as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário (de cujo
desmembramento deriva o recurso especial), entendia que a acepção “contrariar”
estava diretamente vinculada à questão constitucional, enquanto a denominação
“negar vigência” encontrava-se atrelada à questão infraconstitucional.147 Para
Bernardo Pimentel, no entanto, essa divisão acabou por perder sua relevância
prática, vez que a alínea “a” é clara ao descrever que ambas as situações viabilizam
a apresentação do apelo.148
Para que o recurso especial tenha cabimento pela alínea “a”, é preciso que o
recorrente indique, de maneira inequívoca, o dispositivo de lei federal tido por
146
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 252.
Ibid., p. 252-253.
148
SOUZA, 2008, p. 700.
147
49
violado e as razões desse inconformismo, sob pena de restar caracterizada
deficiência na fundamentação, a ensejar a aplicação da Súmula nº 284 do STF: “É
inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação
não permitir a exata compreensão da controvérsia”.
O conceito de lei federal, para fins de cabimento do recurso excepcional,
abarca as seguintes espécies e atos normativos: lei complementar, lei ordinária, lei
delegada, medida provisória, decreto legislativo, resolução do Senado, decretos e
regulamentos do Poder Executivo da União, bem como tratados internacionais
incorporados ao ordenamento jurídico pátrio.149 Não se incluem, portanto, as
portarias ministeriais, avisos, circulares, instruções normativas, provimentos,
convênios interestaduais, enunciados de súmula e dispositivos de regimento interno
de tribunal.150
Nesse contexto, não é cabível a alegação de contrariedade a dispositivo de lei
local (estadual ou municipal), nos termos da Súmula 280/STF, a saber: “Por ofensa a
direito local não cabe recurso extraordinário”.
Da mesma forma, é inviável a análise de violação a artigos da Constituição da
República em sede de recurso especial. Em assim procedendo, o STJ estaria
usurpando competência atribuída exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, a
verdadeira Corte responsável pela integridade do direito constitucional no âmbito do
recurso extraordinário stricto sensu.
3.2.3.1 Impossibilidade de reexame de matéria fático-probatória
O apelo especial constitui espécie recursal de estrito direito, responsável pelo
controle da higidez do direito objetivo federal.151 Por esse motivo, é inviável a mera
pretensão de reexame da matéria fático-probatória já solucionada nas instâncias
ordinárias, a teor do que enuncia a Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples reexame
de prova não enseja recurso especial”.
Como é sabido, o Superior Tribunal de Justiça não funciona como terceiro
grau de jurisdição. A discussão, nessa sede, restringe-se à correta aplicação do
149
SOUZA, 2008, p. 696.
Ibid., p. 697.
151
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 218.
150
50
direito federal infraconstitucional aos fatos já apurados e delineados no acórdão
então impugnado.
Pelas mesmas razões, o pedido de interpretação de cláusulas de contrato não
se coaduna com a natureza do recurso excepcional, conforme igualmente enuncia a
Súmula 5/STJ: “A simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso
especial”.
Importante observação, no entanto, deve ser ressaltada. O que torna o
recurso especial inadmissível é o pedido de reapreciação das provas com o intuito
de sanar possível injustiça cometida na análise procedida pelo Tribunal a quo. O erro
na valoração legal da prova, ou seja, equívoco no emprego das regras relativas ao
campo probatório, representa questão de direito, passível de impugnação por meio
do apelo em epígrafe.152
3.2.4 Julgamento que torna válido ato de governo local contestado em face de
lei federal
O artigo 105, inciso III, alínea “b”, da Constituição permite o cabimento do
recurso especial nos casos em que o Tribunal de origem julga válido ato de governo
local contestado em face de lei federal, assim considerados os atos normativos e
administrativos provenientes dos Poderes dos demais entes federativos que não a
União.153
A hipótese, aqui, não comporta discussão acerca da validade de lei local
contestada em face de lei federal. Conforme bem esclarece Bernardo Pimentel,
[...] não há lugar para o recurso especial quando a controvérsia versa sobre
lei proveniente do Legislativo estadual, distrital ou municipal, porquanto a
questão afeta a competência do Supremo Tribunal Federal, consoante o
disposto na letra “d” do inciso III do artigo 102, alínea também acrescentada
154
pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004.
152
SOUZA, 2008, p. 698.
Ibid., p. 702-703.
154
Ibid., p. 703.
153
51
3.2.5 Interpretação divergente da que outro tribunal haja atribuído a
determinada lei federal
A alínea “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição descreve como terceira
hipótese de cabimento do recurso especial a situação em que o Tribunal de origem
confere a dispositivo de lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído
qualquer155 outro tribunal.
Para que o apelo possa ser admitido pela referida alínea, é preciso que o
recorrente comprove, de maneira inequívoca, a ocorrência de dissídio jurisprudencial
entre tribunais diversos, de acordo com as disposições legais e regimentais
atinentes à espécie. Ainda, é necessário que os julgados dissonantes se refiram “à
exegese de um mesmo texto de lei federal [...]. O recurso não será admitido se os
textos em confronto forem diversos”.156
Conforme o artigo 541, parágrafo único, do CPC c/c o artigo 255, § 1º do
Regimento Interno do STJ, o recorrente deve fazer prova da suscitada divergência
mediante certidão, cópia autenticada ou pela citação do repositório de jurisprudência
(oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica) em que tiver sido publicada a
decisão divergente. A prova também pode ser demonstrada através da reprodução
de julgado disponível na Internet (com indicação da respectiva fonte), desde que, em
qualquer situação, a parte realize o devido cotejo analítico, ou seja, mencione as
circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados.
Para a configuração do cotejo (ou confronto) analítico entre o acórdão
recorrido e o julgado colacionado como paradigma nas razões recursais, não basta a
simples transcrição de ementas. É preciso que o recorrente reproduza e compare os
trechos de ambos os julgados com o intuito de demonstrar que, para uma mesma
situação
fática,
conferiu-se
tese
jurídica
diversa.
A
propósito,
confira-se
esclarecedora passagem doutrinária:
Em outras palavras, não é suficiente, para comprovar o dissídio
jurisprudencial, a simples transcrição de ementas, sendo necessário que o
recorrente transcreva trechos do relatório do acórdão paradigma e, depois,
transcreva trechos do relatório do acórdão recorrido, comparando-os, a fim
de demonstrar que trataram de casos bem parecidos ou cuja base fática
seja bem similar. Após isso, deve o recorrente prosseguir no cotejo
155
156
SOUZA, 2008, p. 704.
MANCUSO, 2008, p. 334.
52
analítico, transcrevendo trechos do voto do acórdão paradigma e trechos do
voto do acórdão recorrido para, então, confrontá-los, demonstrando que
157
foram adotadas teses opostas.
Frise-se que a alínea “c” é direcionada para a pacificação de entendimento
jurisprudencial externo,158 ou seja, a divergência deve se dar entre acórdãos de
tribunais diferentes, conforme dispõe o enunciado nº 13 da Súmula do Superior
Tribunal de Justiça: “A divergência entre julgados do mesmo tribunal não enseja
recurso especial”. Decisões singulares não se prestam para tal demonstração.159
Ademais, a Súmula nº 83/STJ determina não ser cabível recurso especial pela
divergência quando o acórdão recorrido estiver em consonância com a
jurisprudência firmada no âmbito do STJ, entendimento que, conforme iterativa
jurisprudência deste mesmo Tribunal, também se aplica aos recursos interpostos
pela alínea “a” do permissivo constitucional. Assim dispõe o enunciado: “Não se
conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se
firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.
3.2.6 Necessidade de impugnação dos fundamentos do acórdão recorrido
Como já ressaltado anteriormente, o recurso especial é apelo de
fundamentação
vinculada,
restrito
à
controvérsia
federal
infraconstitucional
efetivamente debatida na instância de origem.
Daí decorre a necessidade de que as razões recursais impugnem todos os
fundamentos utilizados no acórdão recorrido para a inadmissão de determinado
pleito, de forma que haja realmente a possibilidade de se alcançar um provimento
útil com a interposição do apelo excepcional.
Vale dizer, se o Tribunal a quo nega um direito à parte por meio de mais de
um fundamento, cada qual autônomo e suficiente, por si só, para manter sua
conclusão, e o recorrente se volta apenas contra um deles em sede de recurso
especial, não terá sido preenchido o requisito genérico do interesse, já que o
157
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 256.
SOUZA, 2008, p. 704.
159
Ibid., p. 705.
158
53
fundamento não impugnado subsistiria e, conseqüentemente, manteria a negação
do pedido.
Tal pressuposto é confirmado por duas súmulas. O enunciado nº 126/STJ
afirma: “É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em
fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só,
para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”.
Fredie Didier Junior assim o interpreta:
A inadmissibilidade decorre da inutilidade: a vitória do recorrente, nesse
caso, ser-lhe-ia inútil, pois a decisão impugnada permaneceria incólume, já
que o fundamento constitucional (que não foi impugnado) é suficiente para
sustentá-la. Somente impugnando ambos os fundamentos suficientes para
manter a decisão, com um recurso especial e um extraordinário, é que a
160
parte poderia alcançar alguma utilidade no procedimento recursal.
Por sua vez, o verbete nº 283/STF aduz da seguinte forma: “É inadmissível o
recurso extraordinário quando a decisão recorrida assenta em mais de um
fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles”.
No ponto, Bernardo Pimentel também tece seus comentários:
Com efeito, quando a conclusão do julgamento está sustentada por dois ou
mais fundamentos, autônomos entre si, é inútil o recurso que não combate
todos eles. E a razão é simples: o eventual provimento do recurso quanto
ao fundamento impugnado não traria nenhuma vantagem prática ao
recorrente. A conclusão do julgado permaneceria intacta, por força do
161
fundamento remanescente, não impugnado.
3.3 OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL COMO
AFIRMAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO
O Direito possui importante papel dentro de uma sociedade, vez que
estabelece regramentos destinados a sua ordenação e harmonização, tudo em
busca da primordial função de solucionar conflitos que garantam a pacificação entre
seus membros. Tais normas exercem total influência no meio social, razão pela qual
é de fundamental importância que sejam inteiramente respeitadas e conhecidas por
160
161
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 49.
SOUZA, 2008, p. 49.
54
todos. Em caso de violação aos seus comandos, o Estado dispõe de meios
coercitivos para o restabelecimento da normalidade.
Justamente por essa importante função que desempenha, é de interesse do
Estado que o sistema jurídico permaneça sempre íntegro e em pleno funcionamento.
Para tanto, faz-se necessária a existência de um instrumento que permita a
manutenção desse objetivo, bem como de um órgão jurisdicional superior que
conheça desse instituto, especialmente a fim de garantir a aplicação uniforme da
norma em todo o território em que opera.
A propósito, confira-se abalizado ensinamento de José Afonso da Silva:
A positividade do Direito tem como valor preponderante dar certeza às
regras de conduta jurídica. Visa, pois, estabelecer, para o futuro, modos de
conduzir-se nos negócios jurídicos, na conformidade daquilo, que, histórica
e socialmente, se tem como mais justo. A certeza jurídica, assim, se
transforma num valor jurídico que, à ordem estatal, interessa preservar e
defender.
Essa certeza, porém, redundaria precária, se não se estabelecessem meios
de fazê-la valer através da unidade da aplicação das normas jurídicas
162
positivas em cada ordem jurídica.
Nesse contexto, o ordenamento pátrio dotou o Superior Tribunal de Justiça,
por meio do apelo denominado recurso especial, dessa função estritamente técnica
e específica: a de tutelar o direito objetivo federal infraconstitucional e garantir a
uniformidade de sua interpretação em todo o território nacional.
Isso porque o Brasil adotou como forma de Estado a Federação, o que
significa dizer que coexistem órgãos e legislações de natureza federal e estadual no
âmbito de sua jurisdição. Entretanto, tendo em vista que o direito federal é único em
todo o país, seria inconcebível imaginar que sua aplicação pudesse se dar de forma
diversa em diferentes regiões do território brasileiro, razão pela qual a existência de
uma Corte Superior que fiscalize sua interpretação isonômica se faz estritamente
necessária.
Assim, é possível dizer que o recurso especial desempenha uma função
essencialmente política: utilizando as palavras de José Afonso da Silva, serve de
instrumento de atuação do Superior Tribunal de Justiça “na mantença da inteireza,
validade, autoridade e unidade do Direito federal”.163
162
SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1963. p. 3.
163
Ibid., p. 18.
55
Ante tamanha importância, é preciso levar em consideração que o recurso ora
em enfoque não se trata de um apelo meramente ordinário. Leva, isso sim, a
alcunha de remédio excepcional, pois imediatamente voltado para a tutela da própria
ordem jurídica; o direito subjetivo da parte fica assegurado apenas de forma
mediata.164
Ovídio Baptista também se manifesta sobre esse aspecto:
[...] os recursos de natureza extraordinária, aí compreendidos o recurso
especial e o extraordinário propriamente dito, ao contrário dos demais
recursos ordinários, não têm por fim o exclusivo interesse do recorrente em
obter a reforma da decisão impugnada em seu benefício pessoal, mas, ao
lado desse interesse privado, serve-se o ordenamento jurídico da iniciativa
do recorrente para preservar os princípios superiores de unidade e inteireza
do sistema jurídico em vigor, evitando que interpretações divergentes e
contraditórias sobre um mesmo preceito de lei federal acabem gerando a
insegurança e a incerteza quanto à existência dos direitos consagrados e
165
protegidos pela lei.
Daí a necessidade de se estabelecer requisitos formais rígidos e específicos
para sua admissibilidade. Por possuir a missão constitucional de preservar a própria
ordem pública,166 bem como o objetivo precípuo de “proporcionar a necessária
segurança jurídica à sociedade, na medida em que assegura o império e a unidade
das normas federais”,167 é imprescindível que o preenchimento das suas hipóteses
de cabimento esteja claramente demonstrado quando da interposição do apelo. Nas
palavras de Ada Pellegrini,
[...] os recursos constitucionais ora examinados estão sujeitos a rígidos
controles de admissibilidade, de sorte que, já no momento de sua
interposição, deve o recorrente atentar para as prescrições legais e
regimentais pertinentes, cujo atendimento é indeclinável, sob pena de
indeferimento ou não conhecimento da impugnação.
É que, tratando-se de remédios excepcionais previstos na Constituição para
tutela do próprio ordenamento, seu cabimento deve ficar evidenciado acima
de qualquer dúvida, o que somente pode ser atingido pela escorreita
168
observância dessas formalidades.
164
FUX, 2008, p. 876.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005. v. 1, p. 429.
166
PANTUZZO, Giovanni Mansur. Prática dos recursos especial e extraordinário. 2. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001. p. 23.
167
Ibid., p. 23.
168
GRINOVER, Ada P. et al. Recursos no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
p. 288-289.
165
56
A partir da análise dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso
especial, devidamente discriminados no tópico anterior, verifica-se claramente sua
razão e necessidade de ser. Antes de importarem excesso de rigor formal, servem
justamente para confirmar e assegurar o cumprimento da incumbência constitucional
assegurada ao apelo extremo.
A exigência do prequestionamento decorre justamente da necessidade de
que o Tribunal a quo tenha se manifestado, de modo efetivo, sobre a questão federal
controvertida suscitada em sede de recurso especial, a fim de que o STJ possa
verificar se o posicionamento adotado incorreu, de fato, em afronta ao ordenamento
vigente.
Mostra-se inconcebível instar a Corte Superior a exercer a sua função
uniformizadora do direito federal infraconstitucional se nem ao menos houve na
origem pronunciamento acerca da quaestio aventada. Não tendo ocorrido essa
declaração, não há como se falar em ofensa a determinada legislação, sequer em
entendimento divergente a ser pacificado.
A adoção da Súmula 211/STJ apenas corrobora essa interpretação. A mera
oposição dos embargos de declaração não basta para o preenchimento do requisito
em questão, vez que o prequestionamento é satisfeito por meio da efetiva solução
da matéria na decisão recorrida, não da simples argumentação levantada pelo
litigante no curso do processo.
Nesse ponto, Bruno Mattos e Silva explicita que
[...] está na Constituição Federal o fundamento para a exigência do
prequestionamento: apenas questões decididas podem ser objeto de
recurso especial e extraordinário. Dentro dessa visão, como podemos
também concluir, prequestionamento é a apreciação da questão por parte
169
do órgão julgador e não sua mera suscitação prévia pela parte.
Já o requisito do prévio exaurimento de instância deriva da regra de que os
recursos “não podem ser exercitados per saltum, deixando in albis alguma
possibilidade de impugnação”.170 Para que o STJ possa dar a última palavra em
matéria de direito federal (e há expressa previsão constitucional nesse sentido,
porquanto o recurso especial só é cabível contra decisões proferidas em único ou
último grau), é necessário que se esgotem todas as possibilidades de
169
MATTOS E SILVA, Bruno. Prequestionamento, recurso especial e recurso extraordinário. Rio
de Janeiro: Forense, 2002. p. 6.
170
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 228.
57
pronunciamento prévio colocados à disposição das partes no sistema processual,
sob pena de restar caracterizada a supressão de instância.
Por outro lado, a exigência de que o recorrente indique o dispositivo de lei
federal que entende por violado resulta da própria natureza do recurso excepcional,
o qual, além da sucumbência, requer a ocorrência de efetiva contrariedade ao direito
positivo. Essa indicação é essencial para que o Tribunal Superior possa estar
inteiramente a par da matéria objeto de controvérsia por parte dos demais órgãos
julgadores, sem o que não conseguirá exercer de forma plena sua função
constitucional.
Nelson Nery Junior aclara tal necessidade no âmbito do
recurso
extraordinário, entendimento igualmente aplicável ao apelo especial, vez que ambos
os recursos possuem a mesma natureza e tratamento:
Ao interpor o recurso extraordinário, o recorrente deverá indicar o
dispositivo ou alínea que o autorizem [...]. Dada a forma vinculada desse
recurso, não tem aplicação aqui o princípio jura novit curia, cabendo ao
recorrente indicar precisamente o artigo em que fundamenta seu recurso
171
extraordinário.
Ademais, sendo o STJ uma Corte nacional, suas atribuições recaem sobre
questões de nível federal, que possam influir na sociedade como um todo. A partir
do momento em que a sua função precípua é a de manter íntegro o direito federal
infraconstitucional, não há como permitir que problemáticas estritamente regionais,
sem qualquer repercussão em âmbito nacional, cheguem ao seu alcance. Daí a
impossibilidade de se proceder à análise do direito local específico de cada ente
federativo.
Também não se presta o recurso especial para a análise de dispositivo
constitucional justamente pelo fato de que a própria Constituição determina que a
competência, nesses casos, pertence ao Supremo Tribunal Federal, que
desempenha a função de guardião da Carta Magna por meio do recurso
extraordinário.
Por sua vez, a impossibilidade de reexame de provas deriva do fato de que a
instância extraordinária não funciona como terceira instância. A garantia de revisão
limita-se ao duplo grau de jurisdição; às Cortes Supremas cabe apenas a análise
171
NERY JUNIOR, 2000, p. 332.
58
das questões de direito incidentes sobre a matéria fática já delineada pelo Tribunal
de origem.
A formalidade exigida para a realização do cotejo analítico na hipótese de
interposição do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional é ainda
mais necessária. Se o recorrente não demonstrar que o acórdão colacionado como
paradigma não possui a mesma base fática do acórdão do qual se recorre, não há
como dizer que foram conferidas interpretações diferentes a uma mesma questão,
de modo que não haverá entendimento a ser pacificado pela Corte Superior.
Finalmente, tendo em vista que o recurso especial é apelo de fundamentação
vinculada, não há como dar prosseguimento ao feito se as suas razões não tentam
desconstituir as teses utilizadas pelo acórdão recorrido para a inadmissão do pleito.
Consoante já ressaltado, trata-se de ausência de interesse de agir: o recorrente não
alcançará um provimento útil com o julgamento a ser realizado pelo STJ, vez que o
fundamento não impugnado subsistirá para fins de negação do pedido.
Como demonstrado, os requisitos de admissibilidade do recurso especial
servem como garantia de preservação do próprio sistema. Somente com a estrita
observância dessas condições será possível assegurar ao Superior Tribunal de
Justiça a segurança necessária para verificar, acima de qualquer dúvida, se o direito
objetivo está realmente sendo ameaçado. Se a suscitada afronta não for claramente
demonstrada, não haverá como reconhecê-la.
No campo prático, tais exigências acabam por atuar como verdadeiros filtros
qualitativos essenciais à eliminação de recursos manifestamente infundados, vale
dizer, recursos que não demonstram a necessidade de intervenção da Corte
Superior.
Com isso, a atuação do STJ ficará eficazmente restrita aos casos de
relevância nacional, o que garantirá, no âmbito da instância extraordinária, o efetivo
acesso à justiça no real alcance do seu termo, qual seja, o de acesso a uma ordem
jurídica justa, efetiva, tempestiva e de qualidade, que atenda aos escopos
processuais e assegure a indispensável segurança jurídica.
São essas as principais facetas da garantia de acesso à justiça em sua
relação com o recurso especial, as quais serão pontualmente discriminadas nos
tópicos a seguir.
59
3.4 OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL COMO
AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA
3.4.1 Técnica processual
O direito constitucional de ação, caracterizado pela garantia fundamental de
acesso à justiça descrita no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, não é
absoluto. Ao seu lado, coexiste um direito processual de ação,172 “vale dizer, [...] um
direito subjetivo à sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da
pretensão, desde que preenchidas as condições da ação”.173
Esse raciocínio é importante para determinar que, assim como a ação,
também os recursos se sujeitam à observância de normas técnicas essenciais, as
quais, no seu âmbito, recebem o nome de condições recursais.
Tais condições, que representam os requisitos de admissibilidade a serem
analisados antes de se proceder ao exame do mérito, representam limitações
naturais ao direito de agir, já que funcionam como proteção aos litigantes e ao
próprio sistema jurídico contra o seu exercício abusivo.
Na opinião de Marcus Gonçalves, “essas limitações não ofendem a garantia
da ação, pois constituem em restrições de ordem técnico-processual, necessárias
para a própria preservação do sistema e o bom convívio das normas processuais”.174
Dinamarco também reforça esse posicionamento:
Todo esse feixe de aberturas propiciado pelo princípio da inafastabilidade
sujeita-se às restrições legitimamente postas pelas regras técnicas do
processo e mesmo pelo convívio com outras normas viventes no próprio
plano constitucional. Isso explica por que certas pretensões em face do
Estado encontram a barreira representada pelas fórmulas de independência
dos Poderes e equilíbrio entre eles; por que a propositura de uma demanda
em juízo é sempre sujeita a uma série de requisitos técnico-processuais,
inclusive de forma; por que as pretensões só poderão ser afinal julgadas se
presentes os chamados pressupostos de admissibilidade do julgamento do
mérito etc. Tais são óbices legitimamente postos à plena universalização da
tutela jurisdicional, de cuja presença no sistema se infere a legítima
relatividade da garantia da inafastabilidade dessa tutela. Essa relatividade
não significa debilidade da garantia e não pode conotar-se por um nefasto
172
WAMBIER, 2005, p. 139.
NERY JUNIOR, 2004, p. 136.
174
GONÇALVES, 2008, p. 33.
173
60
conformismo diante de situações não-jurisdicionalizáveis, sob pena de
175
inutilidade da garantia.
Assim, sendo barreiras legítimas para a garantia do livre acesso à justiça,
necessárias à integridade e ao bom andamento do sistema processual, não há de se
falar, sob esse aspecto, em ofensa à garantia da inafastabilidade do controle
jurisdicional por parte dos requisitos de admissibilidade do apelo excepcional.
Mas essa argumentação não é a única apta a justificar a adequação dos
pressupostos ao direito constitucionalmente firmado. É preciso relacioná-los às
outras facetas próprias do princípio, já indicadas alhures e particularizadas nos
próximos pontos.
3.4.2 Acesso à ordem jurídica justa
Conforme idéia outrora lançada, a plena efetividade da garantia de acesso à
justiça (promessa-síntese) deve vir necessariamente complementada por outros
direitos fundamentais (promessas instrumentais), de forma que o acesso a um
processo justo se dê em obediência a três princípios primordiais: o da isonomia, do
contraditório e do juiz imparcial.
Na lição de Cândido Dinamarco,
Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça. E receber justiça
significa ser admitido em juízo, poder participar, contar com a participação
adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional
consentâneo com os valores da sociedade. Tais são os contornos do
176
processo justo [...].
Nesse aspecto, o atendimento às exigências constitucionais do apelo
excepcional deve representar um comprometimento de todos os envolvidos na
relação processual. A partir do momento em que a lei estabelece requisitos mínimos
para o desenvolvimento válido do processo, a observância dessas normas
procedimentais se mostra essencial, tanto para a preservação do sistema quanto
para a segurança das partes em não ver violado seu direito de defesa em juízo.
175
176
DINAMARCO, 2001, p. 199.
Ibid., p. 115.
61
O devido processo legal, portanto,
[...] é uma garantia do cidadão. Garantia constitucionalmente prevista que
assegura tanto o exercício do direito de acesso ao Poder Judiciário como o
desenvolvimento processual de acordo com normas previamente
177
estabelecidas.
Na instância extraordinária, onde a solução do litígio intersubjetivo é
alcançada apenas de forma indireta, dando espaço ao interesse maior de se ter um
sistema íntegro que vigore em conformidade com os valores preponderantes da
sociedade em que opera, a isonomia é especialmente garantida no momento da
aplicação da lei.
O STJ, no exercício da sua função constitucional de tutela do direito federal,
prima por um ordenamento que garanta tratamento igualitário a todos, procurando
evitar interpretações díspares de uma mesma legislação nas diferentes regiões do
país por meio dos instrumentos que a lei lhe assegura. Desse entendimento não
destoa Tucci:
Tal concepção – de que a igualdade abrange não só o campo da criação da
lei, mas, também, o da sua aplicação – implica que o juiz, no exercício da
função jurisdicional, a despeito de não estar vinculado ao precedente
178
judiciário, deve decidir de idêntico modo questões análogas.
Como consectário desse princípio, surge o direito ao contraditório, visto
especialmente sob a ótica da bilateralidade e condução dialética do processo 179,
cuja aplicabilidade “opera com vistas à eliminação (ou pelo menos diminuição) das
desigualdades, jurídicas ou de fato, entre os sujeitos do processo”.180
No procedimento relativo ao recurso especial, a necessidade de que o
recorrente decline as razões de seu inconformismo existe justamente para que o
recorrido possa saber o que impugnar diretamente nas contra-razões, “formando-se
o imprescindível contraditório em sede recursal”.181
177
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001. p. 145.
178
TUCCI; TUCCI, 1989, p. 40.
179
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 93.
180
PORTANOVA, op. cit., p. 164.
181
NERY JUNIOR, 2000, p. 319.
62
Dessa relação processual também se extrai outra garantia de tratamento
isonômico conferido às partes, tendo em vista o estabelecimento de prazos iguais
(15 dias) para a interposição e a resposta do apelo.182
Como garantia de imparcialidade, a Constituição consagra o princípio do juiz
natural, que, segundo Rui Portanova,
[...] exige não só uma disciplina legal da via judicial, da competência
funcional, material e territorial do tribunal, mas também uma regra sobre
qual dos órgãos judicantes e qual juiz, em cada um desses órgãos
183
individualmente considerado, deve exercer a sua atividade.
Por essa garantia, fica claro perceber porque a Constituição Federal confiou a
tarefa de preservar o direito federal ao STJ. Pela função e natureza atribuídas ao
recurso especial, somente um Tribunal Superior, com jurisdição em todo o território
nacional, estaria apto a exercer a atribuição essencial de ordenação e pacificação de
toda uma sociedade sujeita a uma mesma legislação.
Aqui também se enquadra a interpretação que conduz à garantia da isonomia.
Segundo Dinamarco,
A imparcialidade, conquanto importantíssima, não é um valor em si própria
mas fator para o culto de uma fundamental virtude democrática refletida no
processo, que é a igualdade. Quer-se o juiz imparcial, para que dê
tratamento igual aos litigantes ao longo do processo e na decisão da
184
causa.
Em síntese, a partir do momento em que o devido processo legal for
conduzido em observância à igualdade, ao contraditório e ao princípio do juiz
imparcial, estará garantido, ao menos numa visão inicial, o acesso à ordem jurídica
justa, também consolidado no direito à obtenção de uma sentença justa.
3.4.3 Acesso à tutela jurisdicional tempestiva, efetiva e de qualidade
Os requisitos de admissibilidade do recurso especial atuam como instrumento
de resguardo direto a dois principais interesses: o da Justiça, ao permitirem que se
182
NERY JUNIOR, 2000, p. 288.
PORTANOVA, 2001, p. 64.
184
DINAMARCO, 2001, p. 201.
183
63
direcione o foco ao exame de casos relevantes a nível nacional, e o das partes, ao
proporcionarem a solução dos seus processos em tempo mais razoável e, portanto,
mais justo.
Para essa análise, mostra-se essencial incorporar ao presente estudo o
comando trazido pelo artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República, o qual
expõe que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Referida previsão, trazida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 na
denominada Reforma do Judiciário, consiste em importante mecanismo “na busca
da efetividade do processo em prol de sua missão social de eliminar conflitos e fazer
justiça”,185 impondo à atividade jurisdicional sua escorreita observância.
Nesse contexto, os óbices de admissibilidade do recurso especial, à
semelhança do requisito da repercussão geral no Supremo, acabam por atender a
essa garantia fundamental. Ao funcionarem como importante instrumento a favor da
efetividade da prestação jurisdicional em tempo justo, permitem ao Superior Tribunal
de Justiça o resgate da sua função precípua de proteção ao ordenamento federal, o
que, conseqüentemente, acarretará na maior qualidade dos seus julgamentos. 186
3.4.4 Escopos do processo e segurança jurídica
Para se alcançar o escopo social do processo, deve-se partir da idéia de que
o Estado existe para ordenar a sociedade, eliminar obstáculos geradores de
insatisfações e buscar resultados que permitam o bom convívio entre os sujeitos que
a compõem.
Além e acima da preocupação com os interesses estritamente individuais,
deve o Estado possuir mecanismos voltados para uma atuação diretamente em prol
do bem comum, que preservem a sociedade e seus valores como um todo e
facilitem a concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos,
de forma a obter a tão desejada pacificação.
185
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 635.
Nessa exposição, inclua-se importante instrumento trazido pela Lei nº 11.672/2008, que
acrescentou o artigo 543-C ao Código de Processo Civil e estabeleceu o procedimento para o
julgamento de recursos repetitivos no âmbito do STJ.
186
64
Nesse contexto, para que a função estatal de ordenamento social possa ser
efetivada, é preciso, antes de tudo, que se tenha um sistema jurídico íntegro, com
regras claras, delimitadas e uniformes; que dispense tratamento igualitário a todos e
não sofra interferências de ordem pessoal no âmbito de sua aplicação.
Quando uma mesma lei federal, que deveria ser aplicada de maneira
isonômica em toda a extensão territorial do país, não atinge esse objetivo, não há
como se falar em cumprimento da função organizadora e pacificadora. A
maleabilidade de um mesmo direito apenas serviria para alimentar incertezas e
fomentar insatisfações, o que não se coaduna com os ideais de um sistema justo.
A partir do momento em que a integridade do direito federal infraconstitucional
é ameaçada por qualquer atitude contrária a esses pontos basilares, o recurso
especial entra como o instrumento hábil a impugnar tamanha afronta ao sistema.
Para José Afonso da Silva, de nada valeria um “instrumento da validade ou da
autoridade da lei federal se se deixasse a interpretação das normas jurídicas ao
descontrole, entregue às inclinações pessoais ou regionais dos julgadores”.187
Ovídio Baptista, por sua vez, enfatiza o raciocínio aqui desenvolvido:
Para compreendermos o sentido e a função do recurso extraordinário no
direito brasileiro, devemos ter em mente o princípio de que a lei, qualquer
que seja o seu sentido, deve incidir e ser aplicada de modo uniforme para
todos aqueles que fiquem sujeitos à sua disciplina. Todo ordenamento
jurídico deve respeitar o princípio de que a lei há de ser igual para todos e
empenhar-se no sentido de reduzir, tanto quanto possível, as divergências e
antagonismos porventura verificados entre as decisões proferidas pelos
188
tribunais, no que diga respeito à aplicação de uma mesma lei.
O escopo social é ainda reforçado pela idéia da segurança jurídica, garantida
pela certeza de se saber que a um mesmo dispositivo de lei será dado um mesmo
posicionamento. Interpretações divergentes acabam por levantar dúvidas quanto à
real consagração dos direitos nele firmados, o que igualmente contribui para o
eterno estado de insatisfação próprio do ser humano.
A hipótese de cabimento do recurso especial pela alínea “c” do inciso III do
artigo 105 da CF constitui importante ferramenta na busca por essa certeza. Fredie
Didier, ao discorrer acerca do aludido dispositivo, afirma que
187
188
SILVA, J., 1963, p. 229.
SILVA, O., 2005, p. 428.
65
[...] o objetivo do texto é o de permitir que o Superior Tribunal de Justiça
uniformize a interpretação da lei federal e, com isso, forneça paradigmas
que tornem mais previsíveis as decisões judiciais, diminuindo a insegurança
jurídica. Toda interpretação que favoreça à uniformização da jurisprudência
deve ser prestigiada. O sistema jurídico brasileiro tem sido estruturado
partindo-se desta premissa. A eficácia vinculativa dos precedentes
jurisprudenciais consolidados na súmula do STF (art. 103-A, CF/88) ratifica
189
esse posicionamento.
Alfredo Buzaid complementa esse entendimento:
A certeza do direito está em evitar, simultaneamente, interpretações
diversas e até antinômicas dadas pelos tribunais sobre a mesma regra de
direito. E isto se consegue implantando um mecanismo apto a eliminar a
divergência simultânea, que não exclui uma variação sucessiva. [...] Esta
solução de política legislativa ganha consideravelmente em valor de
190
certeza, sem nada perder em conteúdo de justiça.
Aliado a esse objetivo, afirma-se a existência do escopo político, alcançável
mediante a utilização do processo como instrumento garantidor da estabilidade do
ordenamento e das próprias instituições estatais.
Como já ressaltado, o recurso especial exerce uma função essencialmente
política. Suas exigências constitucionais e legais buscam justamente garantir a
inteireza do direito federal infraconstitucional, como forma de afirmação do sistema
federativo adotado pelo país.
Aos objetivos social e político, soma-se o escopo jurídico, obtido através do
emprego do processo em prol da atuação da vontade concreta da norma, em
obediência aos ditames legais. É o que o recurso especial proporciona, porquanto
assegura a aplicação do direito objetivo em favor da integridade do ordenamento e
da segurança da própria sociedade, que tem a garantia de um sistema que efetive
um tratamento justo e igualitário a todos aqueles que dele necessitam para a
superação das suas insatisfações.
3.5 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NO ÂMBITO DO STJ
189
190
DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2007, p. 258.
BUZAID, 1985 apud MANCUSO, 2008, p. 333-334.
66
O Superior Tribunal de Justiça, nos poucos momentos em que se manifesta
sobre o assunto, baseia a ausência de afronta ao princípio do acesso à justiça na
necessidade de que sejam observados os procedimentos técnicos inerentes à
espécie recursal, vez que essenciais para a garantia da segurança das partes e para
o respeito ao devido processo legal. Nas palavras do Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira,
Por mais justa que seja a pretensão recursal, não podem ser
desconsiderados os pressupostos recursais. o aspecto formal é importante
em matéria processual, não por amor ao formalismo, mas para segurança
das partes. Assim não fosse, ter-se-ia que conhecer dos milhares de
processos irregulares que aportam a este tribunal, em nome do principio
191
constitucional do acesso a tutela jurisdicional.
A propósito, confiram-se outros precedentes no mesmo sentido:
PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO RECEBIDO COMO AGRAVO
REGIMENTAL. ADVOGADO SEM PROCURAÇÃO. INCIDÊNCIA DA
SÚMULA
115/STJ.
IMPOSSIBILIDADE
DE
REGULARIZAÇÃO
POSTERIOR.
1. O acesso à tutela jurisdicional deve sempre ser pautado por regras
procedimentais, que têm dentre suas finalidades a de resguardar a
segurança jurídica das partes envolvidas; no caso, a correta interposição do
recurso constitui ônus do qual não se desincumbiu o agravante.
2. A irregularidade da representação processual atrai a incidência da
Súmula nº 115 desta Corte.
3. Na instância especial, é inexistente o recurso interposto por advogado
sem procuração nos autos, inadmitindo-se a juntada posterior do
instrumento de mandato.
192
4. Agravo regimental improvido (grifo nosso).
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROVIDO PARA
MELHOR EXAME DO RECURSO ESPECIAL. DEFICIÊNCIA NA
FORMAÇÃO. APROVEITAMENTO DE PEÇA DE OUTROS AUTOS.
1. A matéria relativa à deficiência na formação do agravo de instrumento
pode ser atacada por agravo regimental, ainda que a falha não tenha sido
argüida na contraminuta do agravado.
2. O agravo de instrumento deve ser formado com a cópia do acórdão dos
embargos de declaração, independentemente do resultado do julgamento
ou de quem os tenha oposto, porque esse julgado integra o acórdão
recorrido.
3. O vício de formação do agravo de instrumento não pode ser sanado com
o aproveitamento de peças de outro processo.
4 O acesso à Justiça se dá na forma disciplinada pelas leis e pela
jurisprudência consolidada nos tribunais. Por isso, o cumprimento dos
191
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag – 150796/MG. 4ª Turma. Relator: Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira, Data de Julgamento: 8 de jun. de 1998.
192
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no CC – 104148/MT. 2ª Seção. Relator: Ministro Luis
Felipe Salomão, Data de Julgamento: 26 de ago. de 2009.
67
requisitos de admissibilidade do recurso se impõe; não por simples
formalismo, mas por observância das normas legais.
193
5. Agravo regimental a que se nega provimento (grifo nosso).
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
NÃO CONHECIMENTO. CERTIDÃO DE PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO
RECORRIDO. AUSÊNCIA. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STF.
FORMALISMO. NECESSIDADE. DEVIDO PROCESSO LEGAL E
SEGURANÇA DAS PARTES. GARANTIA. STJ. NOVO JUÍZO DE
ADMISSIBILIDADE.
I – A exigência da certidão de publicação do acórdão recorrido é
entendimento pacificado não apenas neste Superior Tribunal, como também
no Pretório Excelso. Exigência esta consagrada no artigo 544, § 1º, do
Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei 10.352 de
26.12.2001, em vigor desde 28.03.2002.
II – Ainda que as súmulas não sejam lei em sentido formal, traduzem elas o
entendimento reiterado dos tribunais no que diz respeito à interpretação de
determinada questão.
III – É imprescindível a garantia à ampla defesa e ao acesso ao judiciário,
impondo-se, contudo, a obediência a certas normas procedimentais,
sujeitas ao princípio do devido processo legal.
IV – Esta Corte não está vinculada ao prévio juízo de admissibilidade
exercido pelo tribunal de origem, podendo proceder ao exame de todo e
qualquer pressuposto recursal, intrínseco e extrínseco, inclusive quanto à
tempestividade do apelo extremo.
194
Agravo a que se nega provimento (grifo nosso).
193
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AgRg no Ag – 900380/RJ. 3ª Turma. Relator:
Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), Data de Julgamento: 28 de
abr. de 2009.
194
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag – 428452/MS. 3ª Turma. Relator: Ministro
Castro Filho, Data de Julgamento: 18 de jun. de 2002.
68
CONCLUSÃO
A partir do estudo do tema proposto, o presente trabalho procurou relatar que
os requisitos de admissibilidade do recurso especial não apenas não constituem
afronta à garantia fundamental do acesso à justiça, como servem justamente para
confirmá-la.
Conforme demonstrado, a evolução do conceito de jurisdição ao longo da
história fez com que referido direito também passasse a adquirir uma interpretação
mais consentânea com a nova ordem constitucional que então surgia: de simples
direito ao ajuizamento de uma ação, o princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional passou a significar o direito de acesso a uma ordem jurídica justa,
efetiva, tempestiva e de qualidade.
No entanto, assim como qualquer outro direito fundamental, a garantia do
artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República não é absoluta. Para a
preservação do sistema e dos próprios litigantes contra o seu exercício abusivo, o
direito de agir deve preencher certos pressupostos denominados “condições da
ação”, os quais, em sede de recurso, recebem a nomenclatura de “condições
recursais” ou “requisitos de admissibilidade”.
No âmbito do recurso especial, tais pressupostos se fazem ainda mais
necessários, ante a função política que o apelo desempenha no ordenamento pátrio.
Como se sabe, as leis exercem importante papel de ordenação e pacificação
social, a cujos limites todos devem necessariamente se submeter, razão pela qual é
de primordial interesse estatal a manutenção da integridade e autoridade desse
sistema. Ademais, tendo em vista a adoção da forma de Estado federativa pelo país,
não seria admissível imaginar que uma mesma lei federal, de aplicação única em
todo o território nacional, pudesse ser interpretada de maneira diversa em diferentes
localidades, sendo também de interesse do Estado a fiscalização acerca desse
tratamento.
Foram essas, portanto, as incumbências atribuídas ao Superior Tribunal de
Justiça por meio do apelo excepcional: manter a integridade do direito federal
infraconstitucional e assegurar a uniformidade de sua interpretação, como garantia
de preservação da própria ordem pública e de segurança à sociedade.
69
Daí a necessidade de se estabelecer requisitos estritamente técnicos para a
sua admissão, porquanto impõem a efetiva demonstração da suscitada afronta ao
ordenamento. Somente com a observância dessas exigências o STJ poderá ter a
segurança necessária para verificar, acima de qualquer dúvida, a ameaça ao direito
objetivo e, enfim, poder exercer sua missão constitucional.
Ademais, a obediência às técnicas procedimentais serve de resguardo aos
próprios litigantes, que terão assegurados seus direitos ao devido processo legal e
aos princípios que diretamente conduzem à noção de processo justo (isonomia,
contraditório e juiz imparcial), garantindo-se, com isso, o acesso à proclamada
ordem jurídica justa.
Por outro lado, os aludidos requisitos de admissibilidade acabam também por
atuar como verdadeiro sistema de filtragem contra recursos manifestamente
inadmissíveis.
Como se sabe, as instâncias extraordinárias proclamam pela tutela imediata
da própria ordem jurídica; o litígio intersubjetivo é resguardado apenas de maneira
indireta. Dessa forma, a atuação do STJ restringir-se-á de maneira eficaz aos casos
de significativa relevância nacional, o que resultará, a um só tempo, na efetividade
da prestação jurisdicional em tempo justo e na maior qualidade dos seus
julgamentos.
Por fim, o acesso à justiça fica igualmente garantido a partir do momento em
que os requisitos em enfoque contribuem para o alcance dos três primordiais
escopos do processo: o social, ao afirmarem o tratamento igualitário e a segurança
quanto aos direitos legalmente consagrados, o político, ao assegurarem a
estabilidade do ordenamento e das instituições estatais, e o jurídico, ao permitirem a
atuação da vontade da norma em prol da inteireza do sistema e da segurança da
sociedade.
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Juliana da Silva Tavares Pellegrin