A INTERTEXTUALIDADE COMO ESCRITA PARÓDICA EM JOSÉ
SARAMAGO
Márcia Elizabeti Machado de Lima
CEFAPRO/FCARP/FAPAN
RESUMO
Este trabalho tem como objeto de estudo analisar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José
Saramago, como recriação da História Bíblica, na perspectiva teoricamente definida como
intertextualidade, de modo mais específico pelo recurso da paródia, da ironia e da
carnavalização, à luz das propostas teóricas de Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva e Linda
Hutcheon. Procuramos compreender, neste recorte, o processo de retomada do texto bíblico pelo
romancista, através do qual se altera substancialmente o significado da versão original,
recontando como se dão as relações da Sagrada Família, no romance de saramgo, pela
transgressão paródica.
Palavras-chave: O Evangelho Segundo Jesus Cristo – História Bíblica –
Intertextualidade – Paródia.
Ler é saber compreender e interpretar, tarefa cobrada na
vida escolar e, depois na vida adulta. Mas a existência de
pessoas com dificuldades para decifrar uma mensagem
ou relacionar um texto com outro coloca um desafio para
os professores: como desenvolver a capacidade de
interpretar dos alunos. (Marli Vieira)
Esta produção se propõe a apresentar um recorte de pesquisa da obra literária O
Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, escritor português contemporâneo,
que pode outorgar-se, a si próprio, uma licença especial, enquanto ficcionista: a que lhe
é concedida pela estratégia da paródia, de transgredir os limites da convenção, de operar
nas lacunas do texto parodiado e preenchê-las com “representações paródicas que
expõem as convenções do modelo e põem a nu os seus mecanismos, através da
coexistência de dois códigos na mesma mensagem” (HUTCHEON, 1985:67).
Justificamos o nosso interesse em apresentar um trabalho que procura
explicitar o processo de leitura fundamentado na intertextualidade. Acreditamos que a
habilidade de relacionar os textos implícitos e/ou implícitos em uma dada produção, é
fundamental à formação de um leitor que pretenda ultrapassar a compreensão
superficial. Destacamos, aqui, um dos descritores que trata dessa habilidade: “D20 –
Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que
tratam do mesmo tema, em função das condições em que eles foram produzidos e
daquelas em que serão recebidos”. (Matriz de Língua Portuguesa de 4ª série)
Enquanto professora de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Superior, e
Professora Formadora no CEFAPRO, Centro de Formação e Atualização dos
Profissionais da Educação Básica, tem feito parte das nossas reflexões, o baixo
desempenho dos educandos em atividades de leitura e interpretação demonstrada,
inclusive, pelos índices negativos alcançados por nossas crianças, adolescentes e jovens,
nas avaliações nacionais aplicadas pelo MEC.
Observamos, em nossos estudos, que a Bíblia tem servido como fermento à
produção literária. Confirmando-a ou negando-a, constantemente podemos lê-la na
atualidade, através das inúmeras formas de se revisitar a tradição, seja pelo discurso
irônico, carnavalizado, paródico, ou através de um nome para simplificar, que abarca
qualquer desses termos, a intertextualidade.
É, então, enquanto paródico, conforme se verá que trataremos O Evangelho
Segundo Jesus Cristo – ao qual de agora para frente vamos nos referir como O.E.S.J.C.;
que tem como fundo o texto bíblico, com o qual estabelecemos uma leitura
comparativa. Ao longo do estudo teórico que fizemos de Mikhail Bakhtin (1981), Linda
Hutcheon (1985 e 2000), Julia Kristeva (1974) e seus discípulos, nos defrontamos com
as controvérsias a respeito dos vários conceitos sobre as categorias com as quais
operamos na análise intertextual: a sátira, a paródia, a carnavalização, a ironia, etc.
Entre as discussões apresentadas por esses autores, achamos pertinente a
observação de Hutcheon (1985) sobre a raiz etimológica da paródia que, remontando ao
grego, quer dizer “contra-canto”. Mas, em grego também pode significar “ao longo de”,
daí poder-se sugerir acordo, identidade em lugar de contraste. Parafraseando, então, a
autora, visto ser a sua teoria a que melhor oferece subsídios à análise da narrativa de
Saramago, podemos dizer que a paródia, na atualidade, muito mais do que ridicularizar,
tem o papel de recodificar ironicamente, através da transcontextualização que “assinala
a intersecção da criação e da recriação, da invenção e da crítica.” Desafiando as normas,
renovando ou reformando, mesmo quando identifica-se com o outro. Sobre isso,
Hutcheon (1985) diz que a “ambivalência, estabelecida entre repetição conservadora e
diferença revolucionária, faz parte da própria essência paradoxal da paródia (...)”
(p.128).
A ambivalência, neste texto paródico, se deve em grande parte à estratégia do
uso da ironia pelo narrador, o que confirmamos no decorrer da nossa análise. Como
paródia e ironia se imbricam, através da característica semântica relacional, definida
por Hutcheon (2000), é a nosso ver, entre as outras características, a que nos leva a ter
uma compreensão maior do termo ironia, além do entendimento comum, dado pela
definição do dicionário ou das gramáticas.
A característica semântica relacional da ironia se dá no sentido de estratégia
que vai além de operar entre os dois eixos – dito/não dito - abrangendo a participação
dos envolvidos no processo: ironista / interpretadores / alvos. O significado ocorre como
resultado da performance desses três elementos, que, muito mais do que em qualquer
outro tipo de texto, deverão ser co-criadores ativos, não se podendo separar as
“dimensões semântica e sintática da ironia, dos aspectos sociais, históricos e culturais
de seus contextos de emprego e atribuição”. (HUTCHEON, 2000:36)
É preciso sublinhar que não estamos buscando apenas as similaridades e as
diferenças, mas, principalmente, entender como se processam os interdiscursos no
âmago da obra literária. É este, portanto, um exercício de leitura que intenta analisar
como Saramago recriou a “história das histórias”, numa perspectiva intertextual, já que
o conceito de intertextualidade construído por Kristeva – fundamentado em Bakhtin – é
de que a intertextualidade designa o processo de produtividade do texto literário que se
constrói como absorção e transformação de outros textos.
A idéia do dialogismo fica patente em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, com
o narrador infiltrando-se constantemente no discurso bíblico, como se o absorvesse,
embora o que faz seja transformá-lo. Conforme vimos, em Bakhtin (1981) essa
transformação se faz pelo discurso carnavalizado onde, “Após penetrar na palavra do
outro e nela se instalar, a idéia do autor não entra em choque com a idéia do outro, mas
a acompanha no sentido que esta assume, fazendo apenas este sentido tornar-se
convencional” (p. 168). Proclamando-se então a renovação e a relatividade,
sobrepondo-se a um conteúdo acabado, por vezes profanando o que é tido como divino
e/ou divinizando o que é tido como profano.
Como se estivesse a alertar seus leitores de que a vida de Cristo é aí matéria de
ficção, o narrador chama a atenção para o fato de poder haver total exercício de
liberdade de ambas as partes, ou seja, de quem constrói o texto e de quem o lê, o leitor
colaborador, participante da descoberta da nova configuração que se institui através do
dialogismo e da abertura polissêmica. A esse propósito, lembra-se a noção de
dialogismo de Bakhtin, segundo Kristeva (1974): “(...) é a escrita em que se lê o outro, o
discurso do outro, é atração e rejeição, resgate e repelência de outros textos” (p.50).
Uma das características fundamentais de José Saramago, que vale a pena ser
ressaltada, é a maneira como valoriza as personagens femininas, em suas obras. Só para
exemplificar, lembremos da força de Blimunda, a personagem meio bruxa de Memorial
do Convento, que ajudou a construir a passarola com as vontades que colhia das
pessoas, ao enxergar-lhes a alma...; a mulher do médico em Ensaio Sobre a Cegueira, a
única que não fica cega, e conduz os cegos com força, inteligência e determinação... Em
O.E.S.J.C., não é diferente. Insere denúncias de preconceitos sofridos pela mulher em
todos os tempos, através de afirmações irônicas. A um leitor ingênuo poderá parecer
que o narrador possui postura machista, quando, na verdade, afirma para contestar. Eis
alguns exemplos:
Onde cantarem galos não hão-de as galinhas piar, quando muito
cacarejem se puseram ovo, assim o tem imposto a boa ordenação do
mundo... (p.55,56).
Ainda está para nascer o homem que, sem ser por precisões do corpo,
se chegue ao lado das mulheres e com elas fique (...) Em tudo, assim
me disseram que está escrito na lei, a mulher deverá ao marido
respeito e obediência (...) (p.71).
Melhor fora que a lei perecesse nas chamas do que entregarem-na às
mulheres (...) (p.132).
Feitas as devidas observações a respeito da postura do narrador, passamos ao
enfoque nas relações homem/mulher, e principalmente no que diz respeito à sagrada
família, que no livro de Saramago não é formada apenas por José, Maria e Jesus, mas
por vários outros filhos. Entendemos ser mais um ingrediente na tentativa de destruição
do discurso mítico-religioso, no qual é de suma importância que seja negado o fato de
Jesus ter tido irmãos, mesmo havendo referência a eles nos Evangelhos:
(...) a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe
de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do
destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida
mediocremente, mas maiormente depois da morte.(O.E.S.J.C. p. 15)
Uma das fontes de pesquisa de Saramago teriam sido os Evangelhos Apócrifos,
originado do grego apokryphos -, que significa “oculto”, “secreto”, sendo, atualmente,
todas as narrativas apócrifas vistas pela Igreja como maléficas à fé dos cristãos, por não
fazerem parte do rol dos livros inspirados por Deus. Endossando estas palavras, temos
Calbucci (1999), dizendo:
É praticamente certo que houve muitos outros Evangelhos escritos,
que teriam servido de base para os quatro livros que hoje fazem parte
da Bíblia, mas eles se perderam ao longo dos anos ou, tendo
sobrevivido, ainda que parcialmente, foram pouco valorizados, sendo
chamados de apócrifos. (p. 69).
Piñero (2002) comenta que José, ao se casar com Maria era um viúvo de idade
avançada, trazia consigo os filhos do primeiro casamento, os quais Maria adotou e
passou a cuidar como se fossem seus, assim como José recebeu a Jesus como se fosse
seu filho – “Maria cuidava deles como uma mãe, pois ainda eram muitos pequenos. Esta
é a razão pela qual a chamava de “Mãe de Tiago” (e de seus outros irmãos), ainda que
não o fosse realmente.”(p.29).
Retomando o que dissemos sobre o narrador, que afirma para contestar,
destacamos esse comentário em que fica clara a intenção de criticar as ideologias
contidas no texto bíblico, “(...) há certas coisas que só começaremos a perceber quando
nos dispusermos a remontar às fontes.” (O.E.S.J.C. p.57, grifos nossos).
Eis o processo de desnaturalização do discurso institucionalizado, com mostras
de seu próprio funcionamento, remontando ao que chama de as fontes, entrelaçando os
textos, o bíblico e o ficcional, como no trecho que antecede o comentário citado acima.
(...) principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em
tudo são secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última,
que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela (...).
(O.E.S.J.C. p.57)
No texto bíblico, num dado momento da vida de Jesus, quando já havia
constituído o seu apostolado e estava a ensinar-lhes por meio de parábolas, ele é avisado
de que se encontravam, no meio da multidão, sua mãe e seus irmãos, ao que responde:
“(...) minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a
executam”. (Lc, 8:19). A igreja, possivelmente, para reforçar a crença no dogma da
virgindade de Maria, antes e depois do nascimento de Jesus, diz que a palavra irmãos,
na bíblia, refere-se aos parentes em geral, portanto essa passagem não comprovaria que
Jesus tivesse irmãos no sentido literal da palavra.
Em O.E.S.J.C., o que o narrador faz é, justamente, preencher essa lacuna com
uma explicação plausível. Através de fatos críveis sobre a rejeição de Jesus à família,
camuflada pelo discurso religioso, é que, ao comportar-se assim, Jesus só estaria se
colocando como exemplo contra a acepção de pessoas, mostrando que tanto fazia serem
parentes ou não, o tratamento deveria ser igual a todos.
Pois bem, aqui nesse novo Evangelho, a frieza de Jesus em relação à família
tem uma causa, ou melhor, várias causas, entre elas, duas mais fortes: a descoberta de
Jesus, de que por omissão de José muitas mães perderam os seus filhos; e o descrédito
com que na família se recebe a notícia de seu primeiro encontro com Deus.
Aos poucos, o sonho-pesadelo vai ficando conhecido (mas não a sua essência)
por toda a família, que crescia admiravelmente, “(...) quase todas as noites gemia e
gritava de angústia e pavor, a ponto de fazer acordar as crianças, que por sua vez
desatavam a chorar.” (O.E.S.J.C. p. 142). Quanto ao crescimento da família, o narrador
“polifônico e multifuncional” _ que no dizer de Vieira (1998) “é aquele que vê, observa,
comenta, interpreta, relata e escreve” (p. 383.) _ contribui referindo o aumento da
família de José, ao remorso que ambos, ele e Deus, sentem pelas crianças que
morreram.
E à conseqüência de gerar e parir nove filhos, o narrador é bastante irônico em
dizer que Maria “murchava de cara e de corpo” (...) e, se os “filhos são a alegria dos
pais, Maria fazia tudo para parecer contente (...)” (O.E.S.J.C. p. 130, grifos nossos), já
que não lhe era permitido externar o seu sofrimento, nem questionar as suas causas,
ficava com a “indignação e a impaciência na alma”.
José morre, Jesus herda do pai a culpa e o sonho-pesadelo, agora invertido, ou
conforme Perrone-Moisés (1999), “Edipianamente, sonha que José vem para matá-lo, e
só depois de muito penar se livra (?) da culpa ao identificar-se com o pai, ambos
‘levados no mesmo rio’, em sonho, em direção àquela terceira margem que Guimarães
já sonhara.” (p. 241).
O Filho exige da mãe uma explicação, Maria não tem saída – conta-lhe toda a
verdade –, ele “(...) lança-se para o chão a chorar, (...) O meu pai matou os meninos de
Belém (...)”, Maria tenta apaziguar, ele radicaliza “(...) não me chames teu filho, tu
também tens culpa, a minha alma tem uma ferida (...)” O narrador justifica a reação de
Jesus, “São assim os juízos da adolescência, radicais (...)”. A revelação se deu fora de
casa num descampado debaixo duma oliveira, já observado de longe, pelo Diabo,
travestido agora na figura de pastor, conhecedor dessa história desde que se sucedeu,
Jesus “(...) de joelhos, gritou, e todo seu corpo lhe ardia como se estivesse a suar
sangue, Pai, meu pai, por que me abandonaste (...)”. (O.E.S.J.C. p. 187-189).
Jesus, agora, carrega a angústia e o desejo de saber quantas foram as crianças
assassinadas, “queria saber que quantidade de corpos mortos fora preciso pôr no outro
prato para que o fiel da balança declarasse equilibrada a sua vida salva.” Após dois dias
anuncia à mãe que deixará o lar, ao que ela escandalizada diz: “(...) Que é isto, que é
isto, abandonar um filho primogênito a sua mãe viúva, onde que já se viu
(...)”(O.E.S.J.C. p.192). Ele não aceita as contestações da mãe e dos irmãos, precisa ir a
Jerusalém desvendar o mistério, visitar as covas dos inocentes. Assim, calçou as
sandálias do pai, recolhidas ao pé da cruz, e assumiu o seu destino, “(...) foi à procura de
alguém que o ajudasse a entender a primeira verdade insuportável da sua vida (...)” (p.
291), “quem sabe se para multiplicar as feridas e fazer, com todas elas juntas, uma única
e definitiva dor.” (p.200).
Passam-se quatro anos, até Jesus tornar a “pisar o chão de Nazaré”, saiu
menino, voltou homem feito. Cresceu, viveu, sentiu, amou, “(...) perguntou no Templo,
refez os caminhos da montanha com o rebanho do Diabo, encontrou Deus, dormiu com
Maria de Magdala (...)” (O.E.S.J.C. p. 291). De volta, Jesus revela à mãe e aos irmãos o
seu encontro com Deus, esperando receber crédito, pois da família não esperava ser
desacreditado, “(...) sendo da sua carne, deveriam ser também do seu espírito” (p.307).
Repete três vezes: “Eu vi Deus” e, a cada vez, a indignação e o descrédito dos seus vão
aumentando, a ponto de o acusarem de louco – “(...) Terá sido uma ilusão tua (...), O sol
do deserto fez-te mal à cabeça (...), Estás em poder do Diabo (...), Ele está contigo desde
que nasceste (...)” (p. 301,302).
Mediante as acusações, em que Maria conclui ter Jesus vivido sem Deus, nos
quatro anos que esteve longe, e em companhia do Diabo, a resposta de Jesus vem
aproximar, reunir, celebrar e combinar o sagrado com o profano: “ao fim de quatro anos
com o Diabo encontrei-me com Deus (...)” (p.302). É a idéia fundamental do carnaval
na literatura, “que tudo destrói e tudo renova (...) nada absolutiza, apenas proclama a
alegre relatividade de tudo (...)” (BAKHTIN, 1981:124).
Basta! Jesus não suporta as desconfianças e humilhações, vai embora
novamente, dessa vez sem esperança de volta, aonde irá encontrar quem lhe dê crédito?
“Esse homem que traz em si uma promessa de Deus, não tem outro sítio aonde ir senão
a casa duma prostituta” (p.303). Vai viver definitivamente com Maria de Magdala, a
quem já tivera o prazer de conhecer antes da volta para casa.
Antes de Jesus fazer a revelação a Maria, de ter visto Deus, sentados no chão,
frente a frente, ele partiu um pedaço de pão em duas partes, deu uma delas a Maria,
dizendo: “Que este seja o pão da verdade, comamo-lo para que creiamos e não
duvidemos, seja o que for que aqui dissermos e ouvirmos, Assim seja, disse Maria de
Magdala” (p.308). É a recriação paródica do ritual da Eucaristia – o qual sabemos que
simboliza a comunhão entre os fiéis, o partilhar da mesma fé. Aqui é celebrado na
intimidade dos amantes, em pleno contraste com o relacionamento de José e Maria, para
os quais a sexualidade parecia não ir além da carne, reduzia-se à “mais insistente
urgência” (p.26) por parte de José ou ao cumprimento dos “deveres de mulher casada”
da parte de Maria. A união entre Jesus e Maria de Magdala é plena, entre eles não
haverá restrições, nem segredos, até porque ela diz ser a própria boca e os próprios
ouvidos dele – “(...) o que disseres estarás a dizê-lo a ti mesmo, eu apenas sou a que está
em ti” (O.E.S.J.C. p.308). Ela, nem por um instante duvida dele, o acompanha,
aconselha, ampara, até a morte,
O jogo paródico novamente se instaura, e a Maria prostituta, agora, revela-se
portadora de maior fé nos desígnios de Deus que a escolhida para mãe do Salvador, que
duvidou da palavra do filho, assim como vai duvidar da sua paternidade divina. A outra
Maria aceita seguir a Jesus que lhe propõe viverem como marido e mulher, ao que ela
responde “(...) já é bastante que me deixes estar ao pé de ti.”(p.310). Sábia mulher que,
ao ser questionada por Jesus sobre o pressuposto sofrimento que ele teria que passar
como o escolhido de Deus, diz “(...) Não sei nada de Deus, a não ser que tão
assustadoras devem ser as suas preferências como os seus desprezos (...)”. (p.309). Ela
que já experimentara toda sorte de preconceitos pela sua condição de prostituta, diz ter
sido avisada em sonho de que “Deus é medonho”, como a confirmar o que Jesus já
havia pensado anteriormente: o Deus que pode tudo tem o homem como um “simples
joguete” em suas mãos.
A pedido da mãe, (Maria), partiram os irmãos de Jesus, José e Tiago,
incumbidos de localizá-lo e dizerem que a mãe implorava seu retorno a casa.
Encontraram-no, mas já não adiantou, era tarde; ao ouvir o recado da mãe, Jesus
responde que definitivamente não voltaria. Lembrado dos laços de sangue que os unia,
Jesus respondeu-lhes:
(...) Quem é a minha mãe, quem são meus irmãos, meus irmãos e
minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora
que eu a proferi (...), são aqueles que não precisem esperar a hora da
minha morte para se apiedarem da minha vida (...).
Ao resgatar a narrativa bíblica, no plano textual, o ficcionista não diferencia em
quase nada a fala de Jesus, daquelas proferidas segundo o texto original. A diferença
faz-se pela situação em que acontecem como exemplo do que Josef (1980) diz sobre a
paródia: “... a linguagem torna-se dupla (...): é uma escrita transgressora que engole e
transforma o texto primitivo: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas ao mesmo tempo,
o nega” (p.53). Eis a estrutura da narrativa, pela qual se realiza “... a louca idéia de
voltar à história mais sabida e mais contada do mundo, a história de Jesus (...)”
(TOLEDO, 1991:92). Nessa nova versão, ele rejeita sua família por motivos que já
conhecemos, não cabe formularmos justificativas pelo seu comportamento.
No exercício de análise que nos propusemos a realizar neste trabalho,
procuramos mostrar as estratégias de reconstrução das relações de Jesus na Sagrada
Família, numa visão dessacralizadora, segundo a imaginação do romancista –
aproximada de nós, seres mortais – visto ter resultado em valorizar o lado humano
daquele a quem os textos canônicos sagrados buscam conferir a aura do divino, do
mistério, do mítico, enfim.
A nossa análise evidencia que, como em toda obra literária esteticamente bem
construída, os elementos paradoxais são latentes. Portanto, o humano e o divino
coexistem em tensão, do início ao final da narrativa.
Referenciais Bibliográficos
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski, (trad) Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro: Forense/Universitária, 1981.
CALBUCCI, Eduardo. O Evangelho Segundo Jesus Cristo: Entre a Glória e a
Blasfêmia. In: Saramago: um roteiro para os romances. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 1999.
FÁVERO, Leonor Lopes. Paródia e Dialogismo. In: Dialogismo, Polifonia,
Intertextualidade: em torno de Bakhtin. Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin
(orgs). São Paulo: EDUSP, 1994.
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985.
______. Teoria e Política da Ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
JOSEF, 1980:59, apud Izidoro Blikstein. Intertextualidade e Polifonia: O Discurso do
Plano “Brasil Novo”. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de
Bakhtin. (orgs) Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin.
KRISTEVA, Júlia. Introdução à Semanálise. São Paulo. Perspectiva, 1974.
MOISÉS, Leyla Perrone. O Evangelho Segundo Saramago. In: José Saramago: uma
homenagem. (org.) Beatriz Berrini. São Paulo: EDUC, 1999.
PINERO, Antonio. O outro Jesus segundo os Evangelhos Apócrifos. Moema – SP:
Mercuryo/Paulus, 2002.
SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Record, 1991.
TOLEDO, Roberto Pompeu . Sacerdote do Pecado. Veja, 27 de março, 2002. nº12.
VIEIRA, Agripina Carriço. Da história ao indivíduo ou da exceção ao banal na escrita
de Saramago do Evangelho Segundo Jesus Cristo a todos os nomes. In: Colóquio/
Letras nº 151,152. Lisboa: Codex, 1998.
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