INTERTEXTUALIDADE Para entender o que é o conceito de "intertextualidade", um exemplo divertido. O jogo do "não confunda": · Não confunda "bife à milanesa" com "bife ali na mesa", · Não confunda "conhaque de alcatrão" com "catraca de canhão", · Não confunda "força da opinião pública" com "opinião da força pública". Como se vê, é possível elaborar um texto novo a partir de um texto já existente. É assim que os textos "conversam" entre si. É comum encontrar ecos ou referências de um texto em outro. A essa relação se dá o nome de intertextualidade. Para entender melhor a palavra, pense em sua estrutura. O sufixo inter, de origem latina, se refere à noção de relação (entre). Logo, intertextualidade é a propriedade de textos se relacionarem. Intertextualidade acontece quando há uma referência explícita ou implícita de um texto em outro. Também pode ocorrer com outras formas além do texto, música, pintura, filme, novela etc. Toda vez que uma obra fizer alusão à outra ocorre a intertextualidade. Por isso é importante para o leitor o conhecimento de mundo, um saber prévio, para reconhecer e identificar quando há um diálogo entre os textos. A intertextualidade pode ocorrer afirmando as mesmas idéias da obra citada ou contestando-as. Há duas formas: a Paráfrase e a Paródia. Paráfrase Na paráfrase as palavras são mudadas, porém a idéia do texto é confirmada pelo novo texto, a alusão ocorre para atualizar, reafirmar os sentidos ou alguns sentidos do texto citado. É dizer com outras palavras o que já foi dito. Temos um exemplo citado por Affonso Romano Sant'Anna em seu livro "Paródia, paráfrase & Cia" (p. 23): INTERTEXTUALIDADE Texto Original Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá, As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá. (Gonçalves Dias, “Canção do exílio”). Paráfrase Meus olhos brasileiros se fecham saudosos Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’. Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeiras Onde canta o sabiá! (Carlos Drummond de Andrade, “Europa, França e Bahia”). Este texto de Gonçalves Dias, “Canção do Exílio”, é muito utilizado como exemplo de paráfrase e de paródia, aqui o poeta Carlos Drummond de Andrade retoma o texto primitivo conservando suas idéias, não há mudança do sentido principal do texto que é a saudade da terra natal. Paródia A paródia é uma forma de contestar ou ridicularizar outros textos, há uma ruptura com as ideologias impostas e por isso é objeto de interesse para os estudiosos da língua e das artes. Ocorre, aqui, um choque de interpretação, a voz do texto original é retomada para transformar seu sentido, leva o leitor a uma reflexão crítica de suas verdades incontestadas anteriormente, com esse processo há uma indagação sobre os dogmas estabelecidos e uma busca pela verdade real, concebida através do raciocínio e da crítica. Os programas humorísticos fazem uso contínuo dessa arte, freqüentemente os discursos de políticos são abordados de maneira cômica e contestadora, provocando risos e também reflexão a respeito da demagogia praticada pela classe dominante. Com o mesmo texto utilizado anteriormente, teremos, agora, uma paródia. PARÓDIA Texto Original Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá, As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá. (Gonçalves Dias, “Canção do exílio”). Paródia Minha terra tem palmares onde gorjeia o mar os passarinhos daqui não cantam como os de lá. (Oswald de Andrade, “Canto de regresso à pátria”). O nome Palmares, escrito com letra minúscula, substitui a palavra palmeiras, há um contexto histórico, social e racial neste texto, Palmares é o quilombo liderado por Zumbi, foi dizimado em 1695, há uma inversão do sentido do texto primitivo que foi substituído pela crítica à escravidão existente no Brasil. Outro exemplo de paródia é a propaganda que faz referência à obra prima de Leonardo Da Vinci, Mona Lisa: Chico Buarque inverte os provérbios, questionando-os e olhando-os sob outro ângulo, atribuindo-lhes novos sentidos. Provérbios populares “Uma boa noite de sono combate os males” “Quem espera sempre alcança” “Faça o que eu digo, não faça o que eu faço“ “Pense, antes de agir” “Devagar se vai longe” “Quem semeia vento, colhe tempestade” Bom Conselho Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança Venha, meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço Aja duas vezes antes de pensar Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio vento na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade (Chico Buarque, 1972 Há vários exemplos de intertextualidade na literatura. Veja, a seguir, como Ricardo Azevedo brinca com o famoso poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. Quadrilha João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou-se com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. (Carlos Drummond de Andrade) Quadrilha da sujeira João joga um palitinho de sorvete na rua de Teresa que joga uma latinha de refrigerante na rua de Raimundo que joga um saquinho plástico na rua de Joaquim que joga uma garrafinha velha na rua de Lili. Lili joga um pedacinho de isopor na rua de João que joga uma embalagenzinha de não sei o quê na rua de Teresa que joga um lencinho de papel na rua de Raimundo que joga uma tampinha de refrigerante na rua de Joaquim que joga um papelzinho de bala na rua de J.Pinto Fernandes que ainda nem tinha entrado na história. Ricardo Azevedo (”Você Diz Que Sabe Muito, Borboleta Sabe Mais”, Fundação Cargill) Enquanto um texto trata do amor não correspondido, por meio da comparação com uma dança (quadrilha), o outro critica o mau hábito de jogar lixo na rua - e mostra como as pessoas prejudicam as outras. Shakespeare “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia Deuses do futebol: Urucubaco Olímpico leitor, divinal leitora, há mais coisas entre o céu dos deuses e a terra do futebol do que sonha a nossa vã crônica esportiva. Determinadas situações do jogo e certas fases pelas quais os times passam não são, como pensam alguns, obra do acaso. Ao contrário, são uma manifestação da vontade de seres superiores, seres que controlam a nossa vida desde o dia em que o Caos gerou a Noite.(trecho de crônica de José Roberto Torero, Folha de S.Paulo, em17/9/02-pag.D3) Agora, leia o poema a seguir e veja como ele se parece com um outro tipo de texto... Receita de herói Tome-se um homem feito de nada Como nós em tamanho natural Embeba-se-lhe a carne Lentamente De uma certeza aguda, irracional Intensa como o ódio ou como a fome. Depois perto do fim Agite-se um pendão E toque-se um clarim Serve-se morto. (Reinaldo Ferreira em "Portos de Passagem" - João Wanderley Geraldi, São Paulo: Martins Fontes, 1991) Ao falar do como se faz um herói, o poeta usa elementos de uma receita de cozinha. Analise, por exemplo: · os verbos que indicam ordem (imperativo): "Tome-se", "Embeba-se-lhe", "Agite-se", "toque-se", "Serve-se"; · o advérbio de modo: "lentamente", ou seja, o "modo de fazer", próprio das receitas culinárias; · em geral, a receita de cozinha termina com a expressão: "Serve-se... (gelado ou frio ou quente etc.). O último verso do poema retoma essa forma da receita, mas o faz de uma maneira realista ou crítica, isto é, um herói "Serve-se morto." O poema de Reinaldo Ferreira faz uma referência "implícita" às receitas culinárias - a referência não é clara, direta, a nenhuma receita em específico, mas o modo como o texto é construído lembra as tais receitas. Para terminar, outro exemplo interessante, também de Drummond. Ele fala da "medicalização" do mundo moderno, por meio da criação de palavras que lembram os nomes de diversos remédios... Receituário Sortido Calma. É preciso ter calma no Brasil calmina calmarian calmogen calmovita. Que negócio é esse de ansiedade? Não quero ver ninguém ansioso. O cordão dos ansiosos enfrentemos: aspiran! ansiotex! ansiex ansiax ansiolax ansiopax, amigos! Uma proposta de classificação Apresentaremos a seguir uma proposta de classificação de intertextos com base no corpus selecionado a fim de trabalhá-lo em sala de aula de Português e de Literatura. Clichê: é o enunciado que se transformou em uma unidade lingüística estereotipada por ser muito proferido pelas pessoas. Num jornal sobre esportes foi criada uma charge com o enunciado: “Por trás de todo grande time há um grande treinador”. Tal enunciado remete a outro pertencente ao patrimônio social “Por trás de todo grande homem há uma grande mulher”. O enunciado do jornal, na época, pretendia elogiar a conduta do treinador pelo fato do time Vasco ter ganhado o campeonato. BULA DE REMÉDIO Viva saudável com os livrosDIOGENES Os Livros Diógenes acham-se internacionalmente Introduzidos na biblioterapia. Posologia As áreas de aplicação são muitas. Principalmente resfriados, corizas, dores de garganta e rouquidão, mas também nervosismo, irritações em geral e fraqueza de concentração. Em geral, os Livros Diógenes atuam no processo de cura de quase todas as doenças para as quais prescrevese descanso. Sucessos especiais foram registrados em casos de convalescença. Propriedades O efeito se faz notar pouco tempo após iniciada a leitura e tem grande durabilidade. Livros Diógenes aliviam rapidamente a dor, estimulam a circulação sangüínea e o estado geral melhora. Precauções/riscos Em geral, os Livros Diógenes são bem tolerados. Para miopia aconselham-se meios de auxílio à leitura. São conhecidos casos isolados nos quais o uso prolongado produziu dependência. Dosagem Caso não houver outra indicação, sugere-se um livro a cada dois ou três dias. Regularidade no uso é o pressuposto essencial para a cura. Leitura diagonal ou desistência prematura pode interferir no efeito. Composição Papel, cola e cores na impressão. Livros Diógenes são ecologicamente produzidos. Neles são usados somente papéis de madeira sem cloro e sem ácidos, o que garante alta durabilidade.Também no caso de boa saúde garante-se ótima distração. LIVROS DIOGENES São menos aborrecidos BULA DE REMÉDIO Nome: HeinzC.Flex Indicação: Todos os males da alma, corpo e mente. Composição: amor, paixão, simpatia, cortesia, amizade sanidade, verdade, inteligência e di-sinceridade². Posologia: Use durante o dia com moderação. À noite use sem restrição pois o reagente ativo Paixão funciona com a escuridão em proporções desproporcionais. Modo de Usar: Sorria quando ingerir, faça um cafuné para estimular toda a composição. Após o uso, mantenha o sorriso e alegria. Reações: Boas risadas, excelente viver, beijos de tirar o fôlego, carícias que arrepiam. Contra indicações: Somente pode ser usado por uma mulher. Se a mulher não usar conforme a bula, pode provocar alergia severa. Homens não podem usar sob nenhuma hipótese. Estudos de diversos artigos científicos indicam que a falência múltipla de todos os órgãos do homem é certa, sendo usado o produto por qualquer lado. Promoção: Na compra do HeinzC.Flex você ganha de brinde inteiramente grátis um buquê de rosas. Observem a intertextualidade nos exemplos abaixo. “Elvis Presley que estais no Céu Muito escutado seja Bill Haley. Venha a nós o Chuck Berry Seja feito barulho à vontade (...) E não deixeis cair o volume do som 102,1 de estação Mas livrai-nos do Axé Amém!” Este texto é uma propaganda de uma emissora de rádio. O autor construiu o seu texto a partir da Oração do “Pai Nosso”. Vejam outro exemplo intertextualidade. de A autora escreveu um poema a partir de uma reportagem VITÓRIA DA VIDA Um choro saúda a manhã tal qual a aurora que se rompe na madrugada. Ouve-se o som da vida que se faz mais forte que o abandono. Quem viu a vida vencer alegremente comemorou. . E aquela que no ventre, a esperança trazia, ali, no vazio, sem culpa sua verdade deixou. Autora: Jaciara Santos