Amor ao saber: condição do aprender José Luís longo Este trabalho analisa uma experiência em uma escola pública de Porto Alegre integrada a um proposta de reestruturação pedagógica envolvendo o uso de TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação). Trata-se de uma proposta de âmbito nacional, denominada Projeto UCA1, que consiste em disponibilizar a cada aluno e cada professor um laptop para ser utilizado em tempo integral na escola. No entanto, a tecnologia se torna coadjuvante do processo mais amplo de repensar o aprender/ensinar. Considerando isso, desdobro aqui, à luz de alguns conceitos psicanalíticos, questionamentos sobre o processo pelo qual um sujeito constrói um saber, enlaçando-se com o Outro. Ao tomar a escola como um espaço no qual um sujeito deveria construir seu conhecimento, torna-se importante delinear o que se passa quando ele se engaja em um processo de aprendizagem a partir de um enigma que lhe impele a constituir um saber. Freud (1908) fala sobre a primeira grande pesquisa de um sujeito. Assim como a criança que pergunta sobre sua origem, o que saliento aqui é que toda atividade de pesquisa calca-se sobre algo do qual não se sabe, sobre um ponto em que o conhecimento fracassa, sendo isso o que dá a chance de aprendizagem. Nesse sentido, retomo o que Lacan enunciava em seu Seminário sobre a incompletude da aprendizagem: “a aprendizagem humana se dá aos saltos, em função do desejo, o desejo de voltar às tarefas inacabadas”. Lacan estabelece a seguinte comparação: “É na medida em que uma tarefa está inacabada que o sujeito volta a ela. É na medida em que um fracasso foi acerbo que o sujeito se lembra melhor dele” (Lacan, 1985, pág. 155). Essa incompletude, esse fracasso, já havia sido destacado por Freud (1937), que inclui educar entre as três atividades impossíveis, em que a única certeza é que ela não se completará. Considerando, então, que há no aprender esse impossível, O que a escola faz com esse resto no processo de aprender? é uma questão a partir da qual se pode delinear o laço social em que estão os sujeitos que dela participam. Esse resto, que Freud chamou de enigma, Lacan (1992) situa no Real, como algo que insiste em se fazer presente. Com isso que insiste, cada um dos quatro discursos (do mestre, do universitário, da histérica e do analista) lida a sua maneira. Na continuidade deste trabalho, sigo analisando dois deles: do universitário e do analista. 1 http://www.uca.gov.br/institucional/ Lacan (1992) refere que no discurso universitário – assim como no do mestre e no da histérica – tenta-se dominar o real; nesse caso, toma-se o enigma como se fosse possível completá-lo com um conhecimento. Nesse discurso, o lugar de agente, o que se dirige ao outro e o incita à produção, é o saber, um saber sempre referenciado ao Outro, tomado como passível de ser completado, e que, por isso, é tarefa impossível e marcada pela impotência. Dessa relação, se produz a divisão do sujeito, que não se contenta em reproduzir um saber que já está dado no Outro. Trata-se de um discurso com pretensões de saber que se sabe, acreditando que ao acumular conhecimento se pode eliminar os enigmas, fazendo presente o enunciado, mas tentando desvencilhar-se da enunciação. É nesse discurso que situo a sala de aula tradicional, organizada em torno do conteúdo curricular a ser aprendido/ensinado. O curso da suposta aprendizagem, nesse caso, tem início e fim dados a priori, tirando de cena o fortuito de cada sujeito ali envolvido. Obviamente, as coisas não funcionam como planejadas. Qualquer um que tenha freqüentado uma sala de aula sabe que a todo momento algo escapa, o sujeito se mostra: conversas, dúvidas, brincadeiras. Tudo isso, na sala de aula tradicional, é tomado como ruído à aprendizagem. Em função disso, o que se vê acontecer é que muitos dos importantes trabalhos de pesquisas de um sujeito com relação a seus enigmas não se passam em sala de aula, mas em ambientes informais, nos quais se pode pesquisar aquilo que de fato faz questão. Ao aluno e ao professor, em sala de aula, compete uma mesma posição em relação ao saber: a reprodução do saber que supõem no Outro. Nesse sentido, D’Agord (2007) refere que Está em questão a paixão do professor pelo conhecimento. Essa paixão expressa-se pela busca de conhecimento. E só busca alguma coisa quem não a tem. O saber, que inclui o saber que não se sabe, a douta ignorância, é a forma como aparece essa paixão pelo conhecimento. Mas como apaixonar-se pelo conhecimento – que implica conceber a douta ignorância – no enlace universitário, em que o esforço é no sentido de subtrair que não se sabe? Tendo isso em vista, retomo a seguir a experiência de reestruturação pedagógica envolvendo o uso de TICs em uma escola pública de Porto Alegre. Mas em que consistia essa reestruturação? Sucintamente, trata-se de devolver ao aluno a condição de autor de suas pesquisas, utilizando o que se chama aprendizagem por projetos. Fagundes et al (1999) explica que Quando falamos em ‘aprendizagem por projetos’ estamos necessariamente nos referindo à formulação de questões pelo autor do projeto, pelo sujeito que vai construir conhecimento. (...) partimos do princípio de que ele já pensava antes. E é a partir de seu conhecimento prévio que o aprendiz vai se movimentar, interagir com o desconhecido, ou com novas situações, para se apropriar do conhecimento específico – seja nas ciências, nas artes, na cultura tradicional ou na cultura em transformação. (p. 16) Trata-se, portanto, de conceber uma sala de aula em que as funções de aluno e de professor são bastante diversas daquelas que se encontram quando é o discurso universitário que predomina. O interessante aqui é o movimento que ocorre no sentido de fazer da aprendizagem uma experiência de pesquisa na qual o sujeito que aprende possa valer-se do que ele ainda não sabe. Ou seja, o que antes era resíduo, passa a ser aquilo sem o qual não faz sentido a sala de aula. Se a função do aluno se desloca, o mesmo acontece com a função do professor, que igualmente passa a trabalhar com aquilo sobre o que não sabe: o saber prévio de seus alunos. Há, portanto, a possibilidade de um resgate da paixão pelo aprender por parte do professor, que tem que se haver com seu próprio não saber. Mas o que considero mais interessante é que, além do acesso a informações disponíveis fora da sala de aula, as TICs, por contarem com recursos multimídia, favorecem que o conhecimento possa ser produzido pelos próprios sujeitos, e que depois essa produção possa ser compartilhada com os pares em um ambiente virtual de trocas. O que se passa a buscar em sala de aula, então, é a construção de uma pesquisa desde a formulação da questão até as eventuais respostas e, principalmente, novas dúvidas, estabelecendo-se, assim, uma posição de abertura com relação ao conhecimento. Mas, se há um deslocamento em sentido diverso do discurso do universitário, que laço, então, emergiu nessa nova concepção de sala de aula? Se no discurso universitário, lida-se com o enigma de forma a tentar vencê-lo, é no discurso do analista que esse Real é reconhecido na sua impossibilidade. Nele, o saber ocupa o lugar da verdade, ou seja, a verdade é que qualquer saber comporta algo que não se sabe. Nesse discurso, o conhecimento suposto ao Outro é questionado a partir da singularidade do saber de cada sujeito, restabelecendo a condição de enigma, que é condição para o aprender. Considerando que a experiência analisada acima promoveu um reposicionamento frente ao conhecimento, resgatando a subjetividade do processo de aprendizagem, entendo que houve um deslocamento no sentido do discurso do analista. Referências D’Agord, M. (2007). Escutando Crianças. (Palestra realizada em Taquari/RS, texto não publicado). Fagundes, L. Sato, L. e Maçada, D. (1999). Aprendizes do futuro: as inovações já começaram!. Coleção Informática para a mudança na educação. Secretaria de Educação à Distância, MEC, MCT, Governo Federal. Freud, S. (1908). Sobre as teorias sexuais das crianças. Versão digital. Freud, S. (1937). Análise terminável e interminável. Versão digital. Lacan, J. (1985). O Seminário: livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Lacan, J. (1992) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.