O latente e o manifesto nas reflexões sobre Comunicação Mayra Rodrigues Gomes (ECA/USP) "A la maxime bien connue, selon laquelle le langage a éte donné à l'homme por dissimuler sa pensée, il faudra donc ajouter: mais c'est en la dissimulant qu'il la révèle." (Genette, Gerard. 1986 p. 267) Oscilamos, enrodilhados pelos discursos sobre a expansão das tecnologias mediáticas, que nos são oferecidos como pós-modernos, entre a euforia da aposta num ganho e a nostalgia do sentimento de perda. Sobretudo, hesitamos em relação aos critérios a serem assumidos no exame dessas questões. Adotamos, neste trabalho, dois eixos de observação, justificáveis por suas constituições, uma vez que estas dizem respeito justamente aos processos de atenção e pontuação dos fenômenos. O primeiro tem suas origens na medicina e dele nos apropriamos pela via do legado freudiano. Partimos do sintoma como o aspecto manifesto de uma articulação única, face a uma relação de inadequação, que, como tal, reveste e encobre essa relação com tramas imaginárias. Com a atenção voltada para o que se revela como sintoma, entre latente e manifesto reside a principal demonstração do nosso discurso, ao tomar o manifesto como sinal, superfície de uma alteridade da qual ele é sombra, enquanto muitos tomam o manifesto como presença íntegra do latente. Permutam tessituras imaginárias pela realidade e, a partir destas, inferem a irrealidade de outras tessituras. "Somos os únicos a levar algo mais em conta. Introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o conteúdo manifesto dos sonhos e as conclusões de nossa investigação: a saber, seu conteúdo latente, ou (como dizemos) os 'pensamentos do sonho', obtidos por meio de nosso método." (Freud, Sigmund. 1987 Vol. I, p.270) Grande parte das reflexões sobre comunicação limita-se à descrição do manifesto e o toma em sua literalidade, que no caso é sempre a face do distúrbio, do sintoma como disfunção. Para nós, o manifesto, o sintoma nos conta uma outra história, sempre referida ao que o sustenta. O segundo critério, a repetição, é justamente o que nos faz perceber, por confirmação, a presença de um sintoma. Entretanto, tendo perpassado toda a história do pensamento humano, a repetição segue uma ordem própria que a sugere maior do que ingenuamente pensamos. Se ela é necessária do ponto de vista de observadores em que nos inserimos, como marcação de sintomas, do ponto de vista da polêmica entre um devir histórico e uma a-historicidade ela é sinal de incompletude. A repetição de uma revolução, ou de qualquer outro fato, é sempre testemunho do fracasso antecedente, da ruptura entre causa e efeito, entre linearidade consequente. A lição que a filosofia nos dá é a da repetição como diferença e nesse caso como estrutura, no eterno desenrolar-se sempre aquém de uma plenitude almejada. A matemática também nos conduz à mesma idéia através da sequencialidade que a repetição coloca: na série '11111', pela simples posição/contextualização, cada '1' é 'não 1' em relação aos outros; portanto, não engendra o mesmo mas o outro, nessa cadeia infinita por ela gerada. Por outro lado, nessa aparência de identidade desses 'uns' reside o papel de resistência da repetição, pelo qual ele simula nossa homeostase almejada. É aí que ela se torna agente de escamoteamento dos dados, impedindo que venha à tona a verdadeira natureza de incompletude de nossos atos que ela, a repetição enquanto estrutura, atesta. Vejamos o que se obtém da aplicação desses dois critérios às reflexões sobre comunicação. AS TEORIAS CLÁSSICAS Nas teorias clássicas da comunicação, de imediato percebemos a repetição de um esquema, leia-se sintoma, pelo qual nos articulamos na forma de pensar as relações comunicacionais. Referimo-nos à tríade emissor/mensagem/receptor, que certamente mantém um fundamento 'físico' incontestável. Mas, justamente por esse testemunho de materialidade, nos faz esquecer do envolvimento que seus termos pressupõem, da própria colocação dos termos 'só' como envolvimento, como interação. De um lado escamoteia-se a produção constante de significações que se realizam nos atos de comunicação: a não univocidade da linguagem, sua potência anti-inercial. “Todo signo, sozinho, parece morto. O que lhe confere vida? - Ele está vivo no uso. Ele tem em si o hálito da vida? - Ou é o uso o seu hálito?” (Wittgenstein, Ludwig. 1996 § 432, p. 173) A mesma noção nos é ensinada, entre outros, por Bakhtin: "O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis." (Bakhtin, Mikhail. 1995 p. 106) Por outro lado fecha-se o ciclo que mostra sujeitos construídos na enunciação, portanto sempre em relação, nos lugares de inserção que a linguagem lhes oferece. Benveniste, com seus estudos sobre as pessoas gramaticais, vai colocar-nos a exata dimensão do problema. Seu trabalho se realiza a partir da constatação de uma diferença básica entre os nomes das coisas e os pronomes. A palavra 'árvore', por exemplo, possui um conceito ao qual todas as aplicações individuais podem ser remetidas. O pronome 'eu', entretanto, não possui um conceito ao qual possam ser remetidos todos os 'eus' que dele se apropriam no discurso. Isso porque o 'eu' não denomina nenhuma entidade mas refere-se à fala individual onde se coloca, marcando o lugar do 'locutor'. Portanto, a realidade a que este termo se refere não é a de uma entidade externa que ele traria, como representação, para o discurso; a realidade a que o 'eu' se refere é uma realidade interna ao próprio discurso, no jogo entre um 'eu' e um 'tu', pelo qual o sujeito se coloca como aquele que toma a palavra. "A consciência de si só é possível se experimentada por contraste." (Benveniste, Émile. 1995 p.286) O que eqüivale a dizer que o eu só pode colocar-se como endereçando-se a alguém que será um 'tu' nessa fala, da mesma forma que o 'eu' tornar-se-á um 'tu', quando o lugar da fala for assumido por outro. A pessoa exterior a mim torna-se o meu eco 'ao qual digo tu e que me diz tu.' Temos portanto uma polaridade que não significa igualdade nem simetria. No entanto, o ego sempre se reveste duma certa transcendência, apesar do fato de que nenhum dos dois termos subsiste isoladamente. "É numa realidade dialética que englobe os dois termos e os defina pela relação mútua que se descobre o fundamento lingüístico da subjetividade." (Benveniste, Émile. 1995 p. 287) Oferecendo-nos todas as condições de articulação dessas relações e, portanto, de constituição do sujeito, a linguagem se reafirma, com essa argumentação, como o lugar de criação da subjetividade. "Ora, essa 'subjetividade', quer a apresentemos em fenomenologia ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É 'ego' que diz ego. Encontramos aí o fundamento da 'subjetividade' que se determina pelo status lingüístico da 'pessoa'." (Benveniste, Émile. 1995 p. 286) O esquema EMR, que deveria denunciar o que se estabelece somente em termos da relação instalada na linguagem, nos oferece a conveniência de permitir o pensamento de seus polos como posições de sujeitos autônomos, substantivados, reforçando a identificação com a razão a se realizar nestes últimos. Mesmo com os deslocamentos/repetições, que irão pouco a pouco diluindo a pretendida linearidade, (do privilégio, sucessivamente, ao emissor, à mensagem e ao receptor, numa função de códigos, contextos, ideologias reveladas em interpretações particulares) ainda assim, essa trilogia permanece intocada, não como condição física mas como testemunho da inverdade da estabilidade/univocidade transcendente de seus três componentes. Voltemos a Freud cujas análises nos servem de metáfora para a compreensão desse equívoco generalizado que transforma o que deveria ser perlaboração em esterilidade de uma re-escritura 'corretiva'. "O empenho do sonhador em impedir a solução do sonho fornece-nos uma base para inferir o cuidado com que seu manto foi tecido." (Freud, Sigmund. 1987. Vol. II, p.474) Assim como no sonho, tece-se uma malha cerrada em torno do que é exposto pelas tecnologias e pelo caminho 'evolutivo' das teorias da comunicação. O sonho abriga a realização de um desejo (Freud, Sigmund. 1987. Vol. II, p.469) e, ao mesmo tempo, faz de tudo para esconder o nódulo que motiva seu desejo. "Assim, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um desejo." (Freud, Sigmund. 1987. Vol. I, p.138) O mesmo empenho, que Freud vê na construção do sonho, podemos ver nos deslocamentos mantenedores da estrutura triádica, em que o meio termo é inerte e os polos representam entidades substantivadas. As evoluções em torno dessa estrutura, nas argumentações e pesquisas de efeitos, nos dão uma idéia do empenho em esconder/recobrir a questão fundamental que se coloca nessa articulação, a saber, que o que se coloca nos polos só é e se constitui numa relação de um a outro. Cabe-nos a pergunta sobre de que ponto brota o desejo de que essa tríade corresponda a uma verdade irremovível. De acordo com nossas hipóteses, devemos responder que esse desejo brota de uma falta e se transforma no desejo de preenchimento dessa falta, mas tudo que faz é apenas encobri-la; brota de um ponto que é pura ausência para, com o objeto do desejo, instalar uma presença. Há conseqüências, para as reflexões sobre comunicação, oriundas na permanência da estrutura triádica como sustentação de 'identidades': o fato de que ela assim permanece nos leva a crer na diluição de níveis estáveis como efeito do processo de complexificação das tecnologias de comunicação. Na verdade, o processo de depuração que nos é apresentado como uma busca de circunscrição do campo da comunicação, ao nos dar essa diluição e imponderabilidade de efeitos, torna-se um processo de depuração no sentido de perlaboração, no sentido de desatar nós que nos prendiam a paradigmas, nós que representavam não mais que articulações imaginárias em torno de uma ausência. Mas como era nessa articulação que um tipo de sujeito se sustentava, desfeito o nó, em vez de ficar a noção de um sujeito desde sempre a ser construído em relações, fica-nos um sujeito destituído, carpido por um certo viés crítico do pós-modernidade. UMA HIPÓTESE Freud supunha que, na perlaboração, quando um "tipo de representação patológica pode ser rastreado até os elementos da vida mental do paciente dos quais se originou, a representação ao mesmo tempo se desarticula, e o paciente fica livre dela." (Freud, Sigmund. 1987. Vol. I, p.123) Estamos supondo que os discursos sobre a condição pósmoderna funcionam como uma perlaboração ao nos mostrar fluidez, multiplicidade, enfim, sujeitos que se firmam em relações circunstanciais; desarticulam nós que nos impediam de ver situações originárias. Desnudam o sentido de construção de mundos pelo qual se escamoteiam impossibilidades, com um recurso dos mais óbvios: o que há de mais eficiente para negar impossibilidades do que fundar 'efetividades'? As próprias tecnologias, com o hipertexto e a virtualidade, fazem uma perlaboração por nós. É a isso que Turkle se refere ao dizer que a psicanálise, como importante agente de percepção do eu descentralizado, do ego como ilusão lingüística, oriundo num sentimento que emerge de cadeias lingüísticas, corre paralela à Inteligência Artificial Emergente, onde se passa de um modelo centralizado de mente para o descentralizado, uma vez que, “What we think of as the self emerges from their negotiations and interactions.” (Turkle, Sherry 1995 p.127) Um computador nos fala, na experimentação com a escolhas de avatares, de fluidez, descentramento, não-linearidade e inserção interativa num hipertexto, que permite ao usuário criar conexões entre textos, textos de outros e os dele próprios. Com inúmeras possíveis entradas e ramificações, nos fala da concepção de Derrida, e tantos outros, do escrever como construção do autor e da audiência, da escritura como nosso acesso às coisas, consequentemente, da vida como hipertexto. "Chego assim ao fim dessa minha apologia do romance como grande rede. Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis." (Calvino, Italo. 1995. p. 138) Para Turkle, com as demonstrações dadas na experimentação com computador, ficam claras as idéias de Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari sobre um eu constituído de interações, 'feito e transformado por linguagem', na troca de significantes, nas situações em que está mergulhado. “In this way, online personae have something in common with the self that emerges in a psychoanalytic encounter. It, too, is significantly virtual, constructed within the space of the analysis, where its slightest shifts can come under the most intense scrutiny.” (Turkle, Sherry. 1995. p.256) Nas condições pós-modernas, termo tantas vezes título de livros, para os que as expõem sempre aparece a condensação espaço temporal, como efeito tecnológico, agente das situações por nós experimentadas na atualidade. Entretanto, essas são também as condições que permitem, ao anteriormente reprimido, a irrupção no discurso. "A direção em que avançam as condensações no sonho é determinada, de um lado, pelas relações préconscientes racionais entre os pensamentos oníricos e, de outro, pela atração exercida pelas lembranças visuais do inconsciente. O efeito do trabalho de condensação é a obtenção das intensidades necessárias para forçar a irrupção nos sistemas perceptivos." (Freud, Sigmund. 1987. Vol. II, p.540) O pós moderno, como etapa, realiza esse efeito. O reprimido, como produto das resistências que o paradigma racionalista nos impôs, irrompe contando uma história. Entretanto o discurso crítico, muitas vezes, desloca e anula esse efeito, ao colocar as formas insurgentes como perdas a serem computadas, sem perceber que essa sua crítica se torna uma forma de atestar a existência das pressupostas substantivações, uma forma de reverter um processo que nos diz: acreditávamos ser assim, e assim era simplesmente por acreditarmos; na verdade, tratava-se de instâncias desde sempre barradas. Na crítica aos meios atuais há esse modo invertido, perverso, de dizer: era realmente assim, no que acreditávamos, e agora não podemos mais acreditar, por não ser mais assim. Se temos um discurso que teima em ver um sujeito perdido por uma falta gerada pelas tecnologias, perde-se de perspectiva a falta originária e toma-se a ordenação instituída, anteriormente, como equivalente a um sujeito em sua completude, incapaz, agora, em sua destituição, de se rearticular. Procura-se uma reordenação nos parâmetros anteriormente efetivos, na recuperação destes, obliterando sua arbitrariedade. O efeito de realidade está muito mais, justamente aonde não se falava em virtualidade, onde a experimentação de mundo, com toda triagem e construção a ela imanentes, em sua ingenuidade, pretende-se correlato perfeito do mundo. TEORIAS: VELHAS E NOVAS Vimos que as teorias da comunicação deslocam seu foco, mantendo as mesmas estruturas sem questioná-las. O mesmo faz alguns discursos críticos, com relação a essas estruturas e, se assim deixarmos, pode ser anulado o depuramento que o pós moderno, como 'estágio tecnológico' e linha de reflexão crítica, naturalmente constitui: aquele que com ele deveria ter a chance de ter sido. Assim, dentre as críticas às críticas, do ponto de vista em que nos posicionamos, a mais relevante (porque nos ensina sobre os fechamentos das malhas em que nos constituímos e a dificuldade em rompê-las, condição em que passam a fazer parte de nós, como nós mesmos, sem se mostrarem como estrangeiras) se encontra na formulação de Lévy. "O cúmulo da cegueira é atingido quando as antigas técnicas são declaradas culturais e impregnadas de valores, enquanto que as novas são denunciadas como bárbaras e contrárias à vida. Alguém que condena a informática não pensaria nunca em criticar a impressão e menos ainda a escrita. Isto porque a impressão e a escrita (que são técnicas!) o constituem em demasia para que ele pense em apontá-las como estrangeiras." (Lévy, Pierre. 1993. p.15) Se tomamos a repetição como avalista na percepção de um sintoma, o que vemos, aí, a se repetir? Tanto no discurso dos que se põem em guarda quanto às novas formas de comunicação, quanto no daqueles que as rechaçam e no dos apologistas, algo se repete, estranhamente, dada a disparidade das argumentações. O que se repete vem vindo das teorias clássicas até as mais recentes e se mantém, na forma negativa, no discurso crítico, na trilogia que suporta a resistência, ela própria com a função de dignificar o sujeito. Alguns pontos, extraídos de dados sobre a pós modernidade, se prestam à confirmação dessas declarações. A multiplicidade e fragmentação, vista não só sob o viés do sujeito em seu colocar-se no mundo, mas também em toda experiência de mundo, é um exemplo. Da ausência de um discurso ordenador, que empreste unidade a sujeito e objeto, por meio de uma linha central condutora, infere-se a condição fragmentária atual. Reconhecemos essa condição, só que, se a examinamos mais proximamente, à luz do que semiótica e psicanálise nos fazem supor, vamos percebê-la como condição sempre dada, agora exposta por situações de extrema condensação, e pela ausência dos referidos discursos ordenadores que lhe emprestam 'validação'. Por outro lado, fica exposta, pelas mesmas razões, a relatividade desses discursos, sua própria condição precária ou articulação arbitrária. No círculo vicioso do discurso crítico/nostálgico, quando se associa fragilidade à condição fragmentária 'atual', esquece-se que “...a robustez do fio não consiste em que uma fibra qualquer perpasse toda sua extensão, mas em que muitas fibras se sobreponham umas às outras.” (Wittgenstein, Ludwig. 1996. § 67, p.52) No caso da fragmentação, repete-se esse circuito que a toma pelo seu desligamento da unidade redutora, sem que se observe o outro lado da questão: na disjunção, na fragmentação o múltiplo que se consolidada a dar a força de criação como a que possui um hipertexto. Tanto mais sólido o veremos, se lembrarmos que hipertexto, desde sempre, é essa malha de discursos que rege nossas atividades e nosso saber. Aquilo que perpassa e se imbrica num fio, nos moldes de um hipertexto, assim como pode ser visto como disjunção, também pode ser visto como sobreposição, a construir densidade e suporte, tão sólido quanto o anteriormente associado a uma linha unitária. De resto, devemos anotar que tal unificação é sempre colocada a posteriori, tendo tido como base uma malha hipertextual já vivenciada. O racionalismo como estratégia abrangente já está instalado como prática, em Francis Bacon, Galileu etc, antes que Descartes o formule através de uma razão unária que garante um sujeito e sua verdade nessa prática. É na mesma transposição que podemos falar em condensação em vez de fragmentação no pós-moderno: muitos num só, fragmentado com relação a unidades conceituais redutoras - na realidade, sempre em coadjuvação. Mesmo quando os apologistas contra-argumentam em torno da noção de perda da unidade identitária para o sujeito, suas demarchas reafirmam a mesma unidade ao suporem um 'eu' expandido, produto da tecnologia e suas ofertas, saltando para distantes eus, até alçar a um 'eu' global. (Kerckhove, Derrick. 1991. p.151) A perspectiva que permanece (e se repete) é de uma primazia do eu, quando deveria estar aí para atestar essa condição de identidade do sujeito que se forma, desdobra-se e reforma-se, ao longo de circunstâncias, de modos e usos. Burke, ao falar sobre essa 'aparição' de uma série de identidades, não só de nações, mas também regionais, étnicas, religiosas, e sobretudo, de língua, (exemplo: o caso servo/croata), nos atesta que "Essa multiplicidade, quando reconhecida, é às vezes percebida como um fenômeno 'pós-moderno'. Entretanto, para um historiador como eu, parece não haver nada peculiarmente pós-moderno, ou mesmo moderno, a esse respeito." (Burke, Peter. 1995. p.90) Porque não é de hoje que o sujeito é dividido (embora só pensável a partir de Freud e, nos dizeres de Lacan, só pensável, assim, a partir do sujeito Cartesiano) e se define, se indefine e se multiplica na linguagem e suas circunstâncias. Tomaremos para exame, sob o viés da estratégia que nos norteia, um dos vários pontos assinalados como características das comunicações mediáticas: essas formas pelas quais se diz que o sujeito e o corpo se ausentam, na alienação, na telepresença. TELEPRESENÇAS Muito se diz sobre o sujeito alienado na imagem dos ídolos de TV (aliás, de qualquer outro meio e desde longa data, se levarmos em conta as palavras de Francis Bacon). Mas partimos da noção de um sujeito que se faz na linguagem, que nela imerso se constitui social e, portanto, fala o discurso de uma ordenação que lhe é prévia, referida a um estatuto de completude, a ser explicitada nos termos de grande Outro. Simplificamos essa concepção pela redução a 'malhas ordenadoras' e, aí, situamos um sujeito a se construir nas injunções que as relações de um a outro (qualquer outro) o colocam na malha do grande Outro, lugar onde ele se delineia nesse movimento reflexivo, que transmuta a declaração 'você é minha mulher' na estruturação 'eu sou seu homem'. “O sentido se produz quando o discurso do sujeito é traduzido no discurso do Outro, lugar onde se constitui - Linguagem do desejo, mola portanto do trajeto do sentido - a falta. A significação, ao contrário, produzida na trilha do sujeito imaginário opera no sentido de suturar reiteradamente a falta, através da produção de objetos. Desta forma, constroem-se os mitos de suplementação do real, as representações imaginárias que podem ser compreendidas como as formações ideológicas.” (Freitas, Jeanne Marie de. 1992. p.84) Os ídolos de TV encontram-se na categoria de objetos visando a sutura da falta, sutura, cuja pretensão falhada se confirma na repetição, processo/forma de instauração do sujeito e lugar de projeção de fantasias. Mas as críticas à adoção destes ídolos se dão, no patamar dos conteúdos, enquanto estes ídolos são mensageiros de superficialidades, futilidades. Zizek, em suas análises das repetidas encenações da obra de Gaston Leroux, 'O Fantasma da Ópera', em associação a outros monstros que povoam o imaginário literário e fílmico, vai nos falar da irrelevância de que se veja em Frankenstein a metáfora para as aberrações que a manipulação da natureza pelo homem pode gerar, em Kaspar Houser os resultados da falta do convívio familiar ou em 'Jaws' tanto a sexualidade reprimida como a ameaça do Terceiro Mundo à América. A questão fundamental não diz respeito ao que esses monstros possam significar, mas a como se constitui o espaço em que essas entidades surgem. "Rather, what one should do is to conceive the monster as a kind of fantasy screen where the multiplicity of meanings can appear and fight for hegemony. In other words, the error of content analysis is to proceed too quickly and to take for granted the fantasy surface itself, the empty form/frame thatt offers space for the appearance of monstrous content." (Zizek, Slavoj. 1991. p.63) Naturalmente, do ponto em que nos posicionamos, a resposta estará em que a emergência de um símbolo, seja ele Frankenstein ou Jaws não acrescenta nenhum significado: como significante ele vem para organizar significações já presentes no imaginário. O uso da metáfora de Frankenstein por Sfez, antes de ser vista pelo seu conteúdo, deve ser compreendida como instrumento que serve a reorganizar, num mesmo significante, uma série de significações concernente a ansiedades, já presentes no discurso sobre as condições pós-modernas. Somos remetidos aqui ao não simbolizável, ao que resiste e se coloca fora de significação, desse modo conservando poder de fascinação, fascinação que é gozo, e se atrela à própria presença da forma monstruosa. "The analysis that focuses on the 'ideological meaning' of monsters overlooks the fact that, before signifying something, before serving as a vessel of meaning, monsters embody enjoyment qua limit of interpretation, that is to say, nonmeaning as such." (Zizek, Slavoj. 1991. p.64) Para nós, nas mídias, a produção de objetos é de uma clareza indelével, pela multiplicidade e abrangência que as caracterizam. Isso assusta, porque tomado como sintoma nos remete a uma produção avassaladora e a uma condição mais precária do que estamos prontos a admitir. Sempre nesse jogo, entre um discurso que lhe é maior, “O homem é falado pela linguagem de determinismos socioeconômicos muito antes que fale.” (Certeau, Michel de. 1995. p.204), e uma produção em que se sustenta, o sujeito espectador de TV, não é, desse ponto de vista, nenhum pouco diferente do que está com um livro na mão, atirando-se em avatares para obter um reflexo. Quanto ao estar imerso e referido ao discurso do Outro, haveria muito a se discutir sobre o que tem sido posto neste lugar, e sobre sua qualidade/validade. Quer se trate das anteriores ordenações, quer se trate da atual, supostamente efetuada pela ciência e pela tecnologia, desnecessário seria contabilizar o número de holocaustos de que a história da humanidade se compõe: e 'em Nome de Quantos Pais' estes se justificaram. Tal lista excederia, de muito, as páginas deste trabalho e, no entanto, essa lista é a prova concreta de algo que se efetiva em nome de uma ficção, que por sua vez se torna real somente nessa efetividade, em cuja repetição sustenta sua existência. Assim, o que vemos quanto às telepresenças, é um julgamento de valor que as condena, fundado no receio do poder das mediações, que leva muitos a ver o signo como correlato completo das coisas, e descuidar da diferença instalada. Dá-se aqui o mesmo que dizemos do signo: ele coloca uma ausência em presença, que de outra forma, e não por causa dele, seria ausência de qualquer jeito. Projeção da função sígnica e pré-projeção do teletransportador da Star Treck, a telepresença faz a ponte entre distâncias, colocando em condições de experimentação instâncias ausentes, porque não é só a tato, cheiro, sabor, audição e visão que a sensorialidade se confina: determinar o que há de imaginário nela é tarefa da qual só deuses dariam conta. Ademais, a suposição de que o corpo, pela sua própria presença, atesta a possibilidade de completude da comunicação, uma idealidade, nos conta a história de, pelo menos, uma crença subjacente a essa suposição: de que na relação sexual, situação de mais próximo contato físico de instâncias diferenciadas, há uma troca de 'gozos'. Onde Lacan vai nos mostrar essa constatação simples de que não há 'rapport' porque não há troca nenhuma: cada um goza de seu próprio corpo. "O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos... A relação dos quem? - dois sexos." (Lacan, Jacques. 1985. p.14) Para o amor o que conta são os investimentos imaginários relacionados ao parceiro, ao 'outro', logo, o sexo virtual tem mais coisas em comum com o sexo carnal do que, ingenuamente, nos recusamos a supor. Para a comunicação, o eu que se instala na enunciação relaciona-se a um outro segundo o imaginário de um grande Outro, necessitando apenas da resposta de um 'tu' para sua constituição em reflexo; é a relação de 'eu a tu' e de 'tu a eu' que conta, pouco importa que se esteja em 'carne e osso'. A suposição subjacente nas restrições à telepresença diz respeito a um conhecimento 'pela mera presença', funcionando como avalista para a realização da comunicação. Ao que Santaella vai nos oferecer uma chave de ouro: "Nem o conhecer, no sentido bíblico, conhece. Eis o enigma da vida." (Santaella, Lúcia. 1996. p.72) BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Editora Hucitec, 1995. BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. São Paulo, Pontes, 1995. BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo, Unesp, 1995. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. São Paulo, Papirus, 1995. FREITAS, Jeanne Marie Machado de. Comunicação e psicanálise. São Paulo, Editora Escuta, 1992. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Vol. I,II. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1987. GENETTE, Gérard. Figures II. Paris, Éditions du Seuil, 1986. KERCKHOVE, Derrick de. Brainframes: technology, mind and business. Mac Bay Consultants, Amsterdam, 1991. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. 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