O latente e o manifesto nas reflexões sobre Comunicação
Mayra Rodrigues Gomes (ECA/USP)
"A la maxime bien connue, selon laquelle le langage a éte
donné à l'homme por dissimuler sa pensée, il faudra donc
ajouter: mais c'est en la dissimulant qu'il la révèle."
(Genette, Gerard. 1986 p. 267)
Oscilamos, enrodilhados pelos discursos sobre a expansão das tecnologias
mediáticas, que nos são oferecidos como pós-modernos, entre a euforia da aposta num
ganho e a nostalgia do sentimento de perda. Sobretudo, hesitamos em relação aos critérios a
serem assumidos no exame dessas questões.
Adotamos, neste trabalho, dois eixos de observação, justificáveis por suas
constituições, uma vez que estas dizem respeito justamente aos processos de atenção e
pontuação dos fenômenos.
O primeiro tem suas origens na medicina e dele nos apropriamos pela via do legado
freudiano. Partimos do sintoma como o aspecto manifesto de uma articulação única, face a
uma relação de inadequação, que, como tal, reveste e encobre essa relação com tramas
imaginárias. Com a atenção voltada para o que se revela como sintoma, entre latente e
manifesto reside a principal demonstração do nosso discurso, ao tomar o manifesto como
sinal, superfície de uma alteridade da qual ele é sombra, enquanto muitos tomam o manifesto
como presença íntegra do latente. Permutam tessituras imaginárias pela realidade e, a partir
destas, inferem a irrealidade de outras tessituras. "Somos os únicos a levar algo mais em
conta. Introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o conteúdo manifesto dos
sonhos e as conclusões de nossa investigação: a saber, seu conteúdo latente, ou (como
dizemos) os 'pensamentos do sonho', obtidos por meio de nosso método." (Freud, Sigmund.
1987 Vol. I, p.270)
Grande parte das reflexões sobre comunicação limita-se à descrição do manifesto e o
toma em sua literalidade, que no caso é sempre a face do distúrbio, do sintoma como
disfunção. Para nós, o manifesto, o sintoma nos conta uma outra história, sempre referida ao
que o sustenta.
O segundo critério, a repetição, é justamente o que nos faz perceber, por
confirmação, a presença de um sintoma. Entretanto, tendo perpassado toda a história do
pensamento humano, a repetição segue uma ordem própria que a sugere maior do que
ingenuamente pensamos. Se ela é necessária do ponto de vista de observadores em que nos
inserimos, como marcação de sintomas, do ponto de vista da polêmica entre um devir
histórico e uma a-historicidade ela é sinal de incompletude. A repetição de uma revolução,
ou de qualquer outro fato, é sempre testemunho do fracasso antecedente, da ruptura entre
causa e efeito, entre linearidade consequente. A lição que a filosofia nos dá é a da repetição
como diferença e nesse caso como estrutura, no eterno desenrolar-se sempre aquém de uma
plenitude almejada. A matemática também nos conduz à mesma idéia através da
sequencialidade
que
a
repetição
coloca:
na
série
'11111',
pela
simples
posição/contextualização, cada '1' é 'não 1' em relação aos outros; portanto, não engendra o
mesmo mas o outro, nessa cadeia infinita por ela gerada.
Por outro lado, nessa aparência de identidade desses 'uns' reside o papel de
resistência da repetição, pelo qual ele simula nossa homeostase almejada. É aí que ela se
torna agente de escamoteamento dos dados, impedindo que venha à tona a verdadeira
natureza de incompletude de nossos atos que ela, a repetição enquanto estrutura, atesta.
Vejamos o que se obtém da aplicação desses dois critérios às reflexões sobre
comunicação.
AS TEORIAS CLÁSSICAS
Nas teorias clássicas da comunicação, de imediato percebemos a repetição de um
esquema, leia-se sintoma, pelo qual nos articulamos na forma de pensar as relações
comunicacionais. Referimo-nos à tríade emissor/mensagem/receptor, que certamente
mantém um fundamento 'físico' incontestável. Mas, justamente por esse testemunho de
materialidade, nos faz esquecer do envolvimento que seus termos pressupõem, da própria
colocação dos termos 'só' como envolvimento, como interação.
De um lado escamoteia-se a produção constante de significações
que se realizam nos atos de comunicação: a não univocidade da linguagem, sua
potência anti-inercial. “Todo signo, sozinho, parece morto. O que lhe confere
vida? - Ele está vivo no uso. Ele tem em si o hálito da vida? - Ou é o uso o seu
hálito?” (Wittgenstein, Ludwig. 1996 § 432, p. 173) A mesma noção nos é
ensinada, entre outros, por Bakhtin: "O sentido da palavra é totalmente
determinado por seu contexto. De fato há tantas significações possíveis quantos
contextos possíveis." (Bakhtin, Mikhail. 1995 p. 106)
Por outro lado fecha-se o ciclo que mostra sujeitos construídos na
enunciação, portanto sempre em relação, nos lugares de inserção que a
linguagem lhes oferece. Benveniste, com seus estudos sobre as pessoas
gramaticais, vai colocar-nos a exata dimensão do problema. Seu trabalho se
realiza a partir da constatação de uma diferença básica entre os nomes das coisas
e os pronomes. A palavra 'árvore', por exemplo, possui um conceito ao qual
todas as aplicações individuais podem ser remetidas. O pronome 'eu', entretanto,
não possui um conceito ao qual possam ser remetidos todos os 'eus' que dele se
apropriam no discurso. Isso porque o 'eu' não denomina nenhuma entidade mas
refere-se à fala individual onde se coloca, marcando o lugar do 'locutor'.
Portanto, a realidade a que este termo se refere não é a de uma entidade externa
que ele traria, como representação, para o discurso; a realidade a que o 'eu' se
refere é uma realidade interna ao próprio discurso, no jogo entre um 'eu' e um 'tu',
pelo qual o sujeito se coloca como aquele que toma a palavra. "A consciência de
si só é possível se experimentada por contraste." (Benveniste, Émile. 1995 p.286)
O que eqüivale a dizer que o eu só pode colocar-se como endereçando-se a
alguém que será um 'tu' nessa fala, da mesma forma que o 'eu' tornar-se-á um 'tu',
quando o lugar da fala for assumido por outro. A pessoa exterior a mim torna-se
o meu eco 'ao qual digo tu e que me diz tu.'
Temos portanto uma polaridade que não significa igualdade nem simetria. No
entanto, o ego sempre se reveste duma certa transcendência, apesar do fato de que nenhum
dos dois termos subsiste isoladamente. "É numa realidade dialética que englobe os dois
termos e os defina pela relação mútua que se descobre o fundamento lingüístico da
subjetividade." (Benveniste, Émile. 1995 p. 287)
Oferecendo-nos todas as condições de articulação dessas relações e, portanto, de
constituição do sujeito, a linguagem se reafirma, com essa argumentação, como o lugar de
criação da subjetividade. "Ora, essa 'subjetividade', quer a apresentemos em fenomenologia
ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade
fundamental da linguagem. É 'ego' que diz ego. Encontramos aí o fundamento da
'subjetividade' que se determina pelo status lingüístico da 'pessoa'." (Benveniste, Émile. 1995
p. 286)
O esquema EMR, que deveria denunciar o que se estabelece somente em termos da
relação instalada na linguagem, nos oferece a conveniência de permitir o pensamento de seus
polos como posições de sujeitos autônomos, substantivados, reforçando a identificação com
a razão a se realizar nestes últimos. Mesmo com os deslocamentos/repetições, que irão
pouco a pouco diluindo a pretendida linearidade, (do privilégio, sucessivamente, ao emissor,
à mensagem e ao receptor, numa função de códigos, contextos, ideologias reveladas em
interpretações particulares) ainda assim, essa trilogia permanece intocada, não como
condição física mas como testemunho da inverdade da estabilidade/univocidade
transcendente de seus três componentes.
Voltemos a Freud cujas análises nos servem de metáfora para a
compreensão desse equívoco generalizado que transforma o que deveria ser
perlaboração em esterilidade de uma re-escritura 'corretiva'. "O empenho do
sonhador em impedir a solução do sonho fornece-nos uma base para inferir o
cuidado com que seu manto foi tecido." (Freud, Sigmund. 1987. Vol. II, p.474)
Assim como no sonho, tece-se uma malha cerrada em torno do que é exposto
pelas tecnologias e pelo caminho 'evolutivo' das teorias da comunicação. O sonho
abriga a realização de um desejo (Freud, Sigmund. 1987. Vol. II, p.469) e, ao
mesmo tempo, faz de tudo para esconder o nódulo que motiva seu desejo.
"Assim, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um desejo."
(Freud, Sigmund. 1987. Vol. I, p.138)
O mesmo empenho, que Freud vê na construção do sonho, podemos ver nos
deslocamentos mantenedores da estrutura triádica, em que o meio termo é inerte e os polos
representam entidades substantivadas. As evoluções em torno dessa estrutura, nas
argumentações e pesquisas de efeitos, nos dão uma idéia do empenho em esconder/recobrir
a questão fundamental que se coloca nessa articulação, a saber, que o que se coloca nos
polos só é e se constitui numa relação de um a outro. Cabe-nos a pergunta sobre de que
ponto brota o desejo de que essa tríade corresponda a uma verdade irremovível. De acordo
com nossas hipóteses, devemos responder que esse desejo brota de uma falta e se
transforma no desejo de preenchimento dessa falta, mas tudo que faz é apenas encobri-la;
brota de um ponto que é pura ausência para, com o objeto do desejo, instalar uma presença.
Há conseqüências, para as reflexões sobre comunicação, oriundas na permanência da
estrutura triádica como sustentação de 'identidades': o fato de que ela assim permanece nos
leva a crer na diluição de níveis estáveis como efeito do processo de complexificação das
tecnologias de comunicação. Na verdade, o processo de depuração que nos é apresentado
como uma busca de circunscrição do campo da comunicação, ao nos dar essa diluição e
imponderabilidade de efeitos, torna-se um processo de depuração no sentido de
perlaboração, no sentido de desatar nós que nos prendiam a paradigmas, nós que
representavam não mais que articulações imaginárias em torno de uma ausência. Mas como
era nessa articulação que um tipo de sujeito se sustentava, desfeito o nó, em vez de ficar a
noção de um sujeito desde sempre a ser construído em relações, fica-nos um sujeito
destituído, carpido por um certo viés crítico do pós-modernidade.
UMA HIPÓTESE
Freud supunha que, na perlaboração, quando um "tipo de representação patológica
pode ser rastreado até os elementos da vida mental do paciente dos quais se originou, a
representação ao mesmo tempo se desarticula, e o paciente fica livre dela." (Freud,
Sigmund. 1987. Vol. I, p.123) Estamos supondo que os discursos sobre a condição pósmoderna funcionam como uma perlaboração ao nos mostrar fluidez, multiplicidade, enfim,
sujeitos que se firmam em relações circunstanciais; desarticulam nós que nos impediam de
ver situações originárias. Desnudam o sentido de construção de mundos pelo qual se
escamoteiam impossibilidades, com um recurso dos mais óbvios: o que há de mais eficiente
para negar impossibilidades do que fundar 'efetividades'?
As próprias tecnologias, com o hipertexto e a virtualidade, fazem uma perlaboração
por nós. É a isso que Turkle se refere ao dizer que a psicanálise, como importante agente de
percepção do eu descentralizado, do ego como ilusão lingüística, oriundo num sentimento
que emerge de cadeias lingüísticas, corre paralela à Inteligência Artificial Emergente, onde
se passa de um modelo centralizado de mente para o descentralizado, uma vez que, “What
we think of as the self emerges from their negotiations and interactions.” (Turkle, Sherry
1995 p.127)
Um computador nos fala, na experimentação com a escolhas de avatares, de fluidez,
descentramento, não-linearidade e inserção interativa num hipertexto, que permite ao
usuário criar conexões entre textos, textos de outros e os dele próprios. Com inúmeras
possíveis entradas e ramificações, nos fala da concepção de Derrida, e tantos outros, do
escrever como construção do autor e da audiência, da escritura como nosso acesso às
coisas, consequentemente, da vida como hipertexto. "Chego assim ao fim dessa minha
apologia do romance como grande rede. Alguém poderia objetar que quanto mais a obra
tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de
quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário,
respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de
experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia,
uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser
continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis." (Calvino, Italo.
1995. p. 138)
Para Turkle, com as demonstrações dadas na experimentação com computador,
ficam claras as idéias de Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari sobre um eu constituído de
interações, 'feito e transformado por linguagem', na troca de significantes, nas situações em
que está mergulhado. “In this way, online personae have something in common with the self
that emerges in a psychoanalytic encounter. It, too, is significantly virtual, constructed
within the space of the analysis, where its slightest shifts can come under the most intense
scrutiny.” (Turkle, Sherry. 1995. p.256)
Nas condições pós-modernas, termo tantas vezes título de livros, para os que as
expõem sempre aparece a condensação espaço temporal, como efeito tecnológico, agente
das situações por nós experimentadas na atualidade. Entretanto, essas são também as
condições que permitem, ao anteriormente reprimido, a irrupção no discurso. "A direção em
que avançam as condensações no sonho é determinada, de um lado, pelas relações préconscientes racionais entre os pensamentos oníricos e, de outro, pela atração exercida pelas
lembranças visuais do inconsciente. O efeito do trabalho de condensação é a obtenção das
intensidades necessárias para forçar a irrupção nos sistemas perceptivos." (Freud, Sigmund.
1987. Vol. II, p.540)
O pós moderno, como etapa, realiza esse efeito. O reprimido, como produto das
resistências que o paradigma racionalista nos impôs, irrompe contando uma história.
Entretanto o discurso crítico, muitas vezes, desloca e anula esse efeito, ao colocar as formas
insurgentes como perdas a serem computadas, sem perceber que essa sua crítica se torna
uma forma de atestar a existência das pressupostas substantivações, uma forma de reverter
um processo que nos diz: acreditávamos ser assim, e assim era simplesmente por
acreditarmos; na verdade, tratava-se de instâncias desde sempre barradas. Na crítica aos
meios atuais há esse modo invertido, perverso, de dizer: era realmente assim, no que
acreditávamos, e agora não podemos mais acreditar, por não ser mais assim.
Se temos um discurso que teima em ver um sujeito perdido por uma falta gerada
pelas tecnologias, perde-se de perspectiva a falta originária e toma-se a ordenação instituída,
anteriormente, como equivalente a um sujeito em sua completude, incapaz, agora, em sua
destituição, de se rearticular. Procura-se uma reordenação nos parâmetros anteriormente
efetivos, na recuperação destes, obliterando sua arbitrariedade. O efeito de realidade está
muito mais, justamente aonde não se falava em virtualidade, onde a experimentação de
mundo, com toda triagem e construção a ela imanentes, em sua ingenuidade, pretende-se
correlato perfeito do mundo.
TEORIAS: VELHAS E NOVAS
Vimos que as teorias da comunicação deslocam seu foco, mantendo as mesmas
estruturas sem questioná-las. O mesmo faz alguns discursos críticos, com relação a essas
estruturas e, se assim deixarmos, pode ser anulado o depuramento que o pós moderno,
como 'estágio tecnológico' e linha de reflexão crítica, naturalmente constitui: aquele que com
ele deveria ter a chance de ter sido. Assim, dentre as críticas às críticas, do ponto de vista
em que nos posicionamos, a mais relevante (porque nos ensina sobre os fechamentos das
malhas em que nos constituímos e a dificuldade em rompê-las, condição em que passam a
fazer parte de nós, como nós mesmos, sem se mostrarem como estrangeiras) se encontra na
formulação de Lévy. "O cúmulo da cegueira é atingido quando as antigas técnicas são
declaradas culturais e impregnadas de valores, enquanto que as novas são denunciadas como
bárbaras e contrárias à vida. Alguém que condena a informática não pensaria nunca em
criticar a impressão e menos ainda a escrita. Isto porque a impressão e a escrita (que são
técnicas!) o constituem em demasia para que ele pense em apontá-las como estrangeiras."
(Lévy, Pierre. 1993. p.15)
Se tomamos a repetição como avalista na percepção de um sintoma, o que vemos, aí,
a se repetir? Tanto no discurso dos que se põem em guarda quanto às novas formas de
comunicação, quanto no daqueles que as rechaçam e no dos apologistas, algo se repete,
estranhamente, dada a disparidade das argumentações. O que se repete vem vindo das
teorias clássicas até as mais recentes e se mantém, na forma negativa, no discurso crítico, na
trilogia que suporta a resistência, ela própria com a função de dignificar o sujeito.
Alguns pontos, extraídos de dados sobre a pós modernidade, se prestam à
confirmação dessas declarações. A multiplicidade e fragmentação, vista não só sob o viés do
sujeito em seu colocar-se no mundo, mas também em toda experiência de mundo, é um
exemplo. Da ausência de um discurso ordenador, que empreste unidade a sujeito e objeto,
por meio de uma linha central condutora, infere-se a condição fragmentária atual.
Reconhecemos essa condição, só que, se a examinamos mais proximamente, à luz do que
semiótica e psicanálise nos fazem supor, vamos percebê-la como condição sempre dada,
agora exposta por situações de extrema condensação, e pela ausência dos referidos
discursos ordenadores que lhe emprestam 'validação'. Por outro lado, fica exposta, pelas
mesmas razões, a relatividade desses discursos, sua própria condição precária ou articulação
arbitrária. No círculo vicioso do discurso crítico/nostálgico, quando se associa fragilidade à
condição fragmentária 'atual', esquece-se que “...a robustez do fio não consiste em que uma
fibra qualquer perpasse toda sua extensão, mas em que muitas fibras se sobreponham umas
às outras.” (Wittgenstein, Ludwig. 1996. § 67, p.52) No caso da fragmentação, repete-se
esse circuito que a toma pelo seu desligamento da unidade redutora, sem que se observe o
outro lado da questão: na disjunção, na fragmentação o múltiplo que se consolidada a dar a
força de criação como a que possui um hipertexto. Tanto mais sólido o veremos, se
lembrarmos que hipertexto, desde sempre, é essa malha de discursos que rege nossas
atividades e nosso saber.
Aquilo que perpassa e se imbrica num fio, nos moldes de um hipertexto, assim como
pode ser visto como disjunção, também pode ser visto como sobreposição, a construir
densidade e suporte, tão sólido quanto o anteriormente associado a uma linha unitária. De
resto, devemos anotar que tal unificação é sempre colocada a posteriori, tendo tido como
base uma malha hipertextual já vivenciada. O racionalismo como estratégia abrangente já
está instalado como prática, em Francis Bacon, Galileu etc, antes que Descartes o formule
através de uma razão unária que garante um sujeito e sua verdade nessa prática. É na mesma
transposição que podemos falar em condensação em vez de fragmentação no pós-moderno:
muitos num só, fragmentado com relação a unidades conceituais redutoras - na realidade,
sempre em coadjuvação.
Mesmo quando os apologistas contra-argumentam em torno da noção de perda da
unidade identitária para o sujeito, suas demarchas reafirmam a mesma unidade ao suporem
um 'eu' expandido, produto da tecnologia e suas ofertas, saltando para distantes eus, até
alçar a um 'eu' global. (Kerckhove, Derrick. 1991. p.151) A perspectiva que permanece (e se
repete) é de uma primazia do eu, quando deveria estar aí para atestar essa condição de
identidade do sujeito que se forma, desdobra-se e reforma-se, ao longo de circunstâncias, de
modos e usos.
Burke, ao falar sobre essa 'aparição' de uma série de identidades, não só de nações,
mas também regionais, étnicas, religiosas, e sobretudo, de língua, (exemplo: o caso
servo/croata), nos atesta que "Essa multiplicidade, quando reconhecida, é às vezes percebida
como um fenômeno 'pós-moderno'. Entretanto, para um historiador como eu, parece não
haver nada peculiarmente pós-moderno, ou mesmo moderno, a esse respeito." (Burke,
Peter. 1995. p.90) Porque não é de hoje que o sujeito é dividido (embora só pensável a
partir de Freud e, nos dizeres de Lacan, só pensável, assim, a partir do sujeito Cartesiano) e
se define, se indefine e se multiplica na linguagem e suas circunstâncias.
Tomaremos para exame, sob o viés da estratégia que nos norteia, um dos vários
pontos assinalados como características das comunicações mediáticas: essas formas pelas
quais se diz que o sujeito e o corpo se ausentam, na alienação, na telepresença.
TELEPRESENÇAS
Muito se diz sobre o sujeito alienado na imagem dos ídolos de TV (aliás, de qualquer
outro meio e desde longa data, se levarmos em conta as palavras de Francis Bacon). Mas
partimos da noção de um sujeito que se faz na linguagem, que nela imerso se constitui social
e, portanto, fala o discurso de uma ordenação que lhe é prévia, referida a um estatuto de
completude, a ser explicitada nos termos de grande Outro. Simplificamos essa concepção
pela redução a 'malhas ordenadoras' e, aí, situamos um sujeito a se construir nas injunções
que as relações de um a outro (qualquer outro) o colocam na malha do grande Outro, lugar
onde ele se delineia nesse movimento reflexivo, que transmuta a declaração 'você é minha
mulher' na estruturação 'eu sou seu homem'.
“O sentido se produz quando o discurso do sujeito é traduzido no discurso do Outro,
lugar onde se constitui - Linguagem do desejo, mola portanto do trajeto do sentido - a falta.
A significação, ao contrário, produzida na trilha do sujeito imaginário opera no sentido de
suturar reiteradamente a falta, através da produção de objetos. Desta forma, constroem-se
os mitos de suplementação do real, as representações imaginárias que podem ser
compreendidas como as formações ideológicas.” (Freitas, Jeanne Marie de. 1992. p.84) Os
ídolos de TV encontram-se na categoria de objetos visando a sutura da falta, sutura, cuja
pretensão falhada se confirma na repetição, processo/forma de instauração do sujeito e lugar
de projeção de fantasias.
Mas as críticas à adoção destes ídolos se dão, no patamar dos conteúdos, enquanto
estes ídolos são mensageiros de superficialidades, futilidades. Zizek, em suas análises das
repetidas encenações da obra de Gaston Leroux, 'O Fantasma da Ópera', em associação a
outros monstros que povoam o imaginário literário e fílmico, vai nos falar da irrelevância de
que se veja em Frankenstein a metáfora para as aberrações que a manipulação da natureza
pelo homem pode gerar, em Kaspar Houser os resultados da falta do convívio familiar ou
em 'Jaws' tanto a sexualidade reprimida como a ameaça do Terceiro Mundo à América. A
questão fundamental não diz respeito ao que esses monstros possam significar, mas a como
se constitui o espaço em que essas entidades surgem. "Rather, what one should do is to
conceive the monster as a kind of fantasy screen where the multiplicity of meanings can
appear and fight for hegemony. In other words, the error of content analysis is to proceed
too quickly and to take for granted the fantasy surface itself, the empty form/frame thatt
offers space for the appearance of monstrous content." (Zizek, Slavoj. 1991. p.63)
Naturalmente, do ponto em que nos posicionamos, a resposta estará em que a
emergência de um símbolo, seja ele Frankenstein ou Jaws não acrescenta nenhum
significado: como significante ele vem para organizar significações já presentes no
imaginário. O uso da metáfora de Frankenstein por Sfez, antes de ser vista pelo seu
conteúdo, deve ser compreendida como instrumento que serve a reorganizar, num mesmo
significante, uma série de significações concernente a ansiedades, já presentes no discurso
sobre as condições pós-modernas. Somos remetidos aqui ao não simbolizável, ao que resiste
e se coloca fora de significação, desse modo conservando poder de fascinação, fascinação
que é gozo, e se atrela à própria presença da forma monstruosa. "The analysis that focuses
on the 'ideological meaning' of monsters overlooks the fact that, before signifying something,
before serving as a vessel of meaning, monsters embody enjoyment qua limit of
interpretation, that is to say, nonmeaning as such." (Zizek, Slavoj. 1991. p.64)
Para nós, nas mídias, a produção de objetos é de uma clareza indelével, pela
multiplicidade e abrangência que as caracterizam. Isso assusta, porque tomado como
sintoma nos remete a uma produção avassaladora e a uma condição mais precária do que
estamos prontos a admitir. Sempre nesse jogo, entre um discurso que lhe é maior, “O
homem é falado pela linguagem de determinismos socioeconômicos muito antes que fale.”
(Certeau, Michel de. 1995. p.204), e uma produção em que se sustenta, o sujeito espectador
de TV, não é, desse ponto de vista, nenhum pouco diferente do que está com um livro na
mão, atirando-se em avatares para obter um reflexo.
Quanto ao estar imerso e referido ao discurso do Outro, haveria muito a se discutir
sobre o que tem sido posto neste lugar, e sobre sua qualidade/validade. Quer se trate das
anteriores ordenações, quer se trate da atual, supostamente efetuada pela ciência e pela
tecnologia, desnecessário seria contabilizar o número de holocaustos de que a história da
humanidade se compõe: e 'em Nome de Quantos Pais' estes se justificaram. Tal lista
excederia, de muito, as páginas deste trabalho e, no entanto, essa lista é a prova concreta de
algo que se efetiva em nome de uma ficção, que por sua vez se torna real somente nessa
efetividade, em cuja repetição sustenta sua existência.
Assim, o que vemos quanto às telepresenças, é um julgamento de valor que as
condena, fundado no receio do poder das mediações, que leva muitos a ver o signo como
correlato completo das coisas, e descuidar da diferença instalada. Dá-se aqui o mesmo que
dizemos do signo: ele coloca uma ausência em presença, que de outra forma, e não por
causa dele, seria ausência de qualquer jeito. Projeção da função sígnica e pré-projeção do
teletransportador da Star Treck, a telepresença faz a ponte entre distâncias, colocando em
condições de experimentação instâncias ausentes, porque não é só a tato, cheiro, sabor,
audição e visão que a sensorialidade se confina: determinar o que há de imaginário nela é
tarefa da qual só deuses dariam conta.
Ademais, a suposição de que o corpo, pela sua própria presença, atesta a
possibilidade de completude da comunicação, uma idealidade, nos conta a história de, pelo
menos, uma crença subjacente a essa suposição: de que na relação sexual, situação de mais
próximo contato físico de instâncias diferenciadas, há uma troca de 'gozos'. Onde Lacan vai
nos mostrar essa constatação simples de que não há 'rapport' porque não há troca nenhuma:
cada um goza de seu próprio corpo. "O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque
ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer
a relação dos... A relação dos quem? - dois sexos." (Lacan, Jacques. 1985. p.14) Para o
amor o que conta são os investimentos imaginários relacionados ao parceiro, ao 'outro',
logo, o sexo virtual tem mais coisas em comum com o sexo carnal do que, ingenuamente,
nos recusamos a supor. Para a comunicação, o eu que se instala na enunciação relaciona-se
a um outro segundo o imaginário de um grande Outro, necessitando apenas da resposta de
um 'tu' para sua constituição em reflexo; é a relação de 'eu a tu' e de 'tu a eu' que conta,
pouco importa que se esteja em 'carne e osso'.
A suposição subjacente nas restrições à telepresença diz respeito a um conhecimento
'pela mera presença', funcionando como avalista para a realização da comunicação. Ao que
Santaella vai nos oferecer uma chave de ouro: "Nem o conhecer, no sentido bíblico,
conhece. Eis o enigma da vida." (Santaella, Lúcia. 1996. p.72)
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FREITAS, Jeanne Marie Machado de. Comunicação e psicanálise. São Paulo, Editora
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