Toxicomanias: contra-senso ao laço social e ao amor?
Rita de Cássia dos Santos Canabarro1
Eros e Ananke são, segundo Freud (1930/1987), os pais da civilização. De um
lado, o amor foi responsável por reunir em famílias os sujeitos isolados e, de outro, a
necessidade externa fez com que os homens vissem uns aos outros como companheiros
de trabalho na luta contra as adversidades mundanas.
A substituição do poder do sujeito pelo poder da comunidade constitui o passo
decisivo da civilização. Para que os laços sociais possam se estabelecer é preciso que
cada sujeito renuncie a uma parcela de sua satisfação. Nesse sentido, a vida humana em
comum só se torna possível na medida em que uma maioria reunida torna-se mais forte
do que qualquer sujeito isolado e permanece unida contra todos os sujeitos isolados
(FREUD, 1930/1987).
O estabelecimento dos laços sociais, condição sine qua non da civilização, é
abordado por Lacan a partir da formulação dos quatro discursos. O psicanalista designa
o laço social com o termo discurso, porque não há outro meio de designá-lo, uma vez
que se percebeu que o laço social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a
linguagem se situa e se imprime sobre o ser falante (LACAN, 1972-73/2008). Cada um
desses discursos delineia relações fundamentais e resulta em um laço social particular,
pois reflete uma articulação entre o sujeito e o Outro, protótipo de qualquer laço social
(JORGE, 2002).
Todo discurso articula uma renúncia ao gozo (LACAN, 1968-69/2008). Uma
dimensão de perda de gozo é introduzida, pelo sistema simbólico, como efeito da
desnaturalização operada pelo significante. A partir do momento em que o sujeito não
pode mais ser idêntico a si mesmo, lembremos que um sujeito é aquilo que pode ser
representado por um significante para outro significante e que não há significante que
possa representar a si mesmo, ele não goza mais. Algo é perdido nessa operação; essa
perda é, precisamente, o mais-de-gozar.
No discurso do senhor antigo – o discurso do mestre – o senhor precisa,
inevitavelmente, dirigir-se ao campo do Outro para obter seu mais-de-gozar. É somente
a partir do trabalho do escravo que o senhor obtém seu gozo. É isso que faz laço social
(LACAN, 1969-70/1992).
Na formulação, feita por Lacan, em 1972, do discurso do capitalista – discurso
substituto ao discurso do senhor antigo – essa operação, contudo, apresenta-se
modificada. Ao estabelecer o discurso do capitalista, Lacan realiza uma inversão entre
S1 (significante-mestre) e $ (sujeito) na forma como esses termos aparecem no discurso
do mestre. Com a inversão entre os termos do campo do sujeito, a articulação entre o
senhor e o escravo, situado no campo do Outro, não mais ocorre. Historicamente,
podemos dizer que o discurso do capitalista nasceu no momento em que o mestre tratou
de se apropriar do saber produzido pelo escravo (SOUZA, 2007). Neste discurso, o
senhor é quem sabe como o escravo goza. O objeto colocado no lugar da
perda/produção pode ser acessado pelo sujeito sem que haja nenhuma mediação. A
impossibilidade verificada entre sujeito e objeto no discurso do mestre simplesmente
desaparece no discurso do capitalista. No discurso do capitalista nenhum termo fica
isolado, como acontece nos outros discursos, e cada um alimenta o outro em uma reação
em cadeia cuja tendência é a aceleração (DARMON, 2008).
Para Lacan (1971-72/1997), o que distingue o discurso do capitalista é a rejeição
da castração, de modo que toda ordem, todo discurso aparentado ao capitalismo deixa
de lado as coisas do amor. Essa característica do quinto discurso formulado por Lacan
nos leva a aproximar o discurso do capitalista das toxicomanias, uma vez que tanto num
quanto no outro o que se verifica é um fechamento do circuito.
A utilização de substâncias entorpecentes constitui um dos modos de evitar o
contato direto com a realidade do mundo exterior, o que torna esse ato uma medida
basicamente autodependente. O sujeito, apenas com o recurso a uma substância
intoxicante, afasta de si os infortúnios que provêm tanto do próprio organismo, como do
mundo externo, tornando-se, assim, imune àquilo que pode causar-lhe sofrimento
(FREUD, 1930/1987).
Nesse sentido, Melman (2000) defende que a toxicomania acaba por reduzir o
laço social a uma dualidade (sujeito-objeto), de forma que estamos lidando, hoje, com
um discurso que comanda o sintoma social e ataca o laço social. Por essa perspectiva,
alguém se torna toxicômano porque está preso nesse discurso que se encontra articulado
ao discurso dominante.
No texto A terceira, Lacan (1974/1986) afirma que a finalidade do discurso do
mestre, o discurso dominante, é a de que as coisas andem, ao passo que o sintoma é
justamente aquilo que vem perturbar esse andar. O sintoma é o que vem do real e é o
real que se interpõe para impedir que as coisas andem, no sentido de dar conta de si
mesmas, de maneira satisfatória para o mestre. O real é o que não deixa nunca de se
repetir para atrapalhar esse andar.
Se considerarmos a toxicomania um sintoma social podemos pensar que ela, de
alguma forma, denuncia uma falha no discurso do mestre. Sendo assim, podemos
conjecturar que as toxicomanias estão colocando algo em questão, algo que se refere,
precisamente, a essa falha no discurso dominante.
Conforme Lacan (1974/1986), só há um sintoma social: aquele que não faz laço
social. Afirmação que vai ao encontro do que é exposto por Melman (2000) quando este
diz que a tentativa engendrada pela toxicomania é a de desfazer nosso laço social, causa
do mal-estar, o que dá indícios de que, hoje, cada vez menos os sujeitos estão dispostos
a realizar a renúncia ao objeto em prol de uma vida em sociedade.
Como bem expõe Couso (2005), entre o beberrão e sua garrafa há um
matrimônio sem amor, onde não se põe em jogo a castração, mas sim um gozo sem
desejo e sem sujeito dividido. O beberrão só pede que o deixem tranqüilo com seu gozo.
Sendo assim, quem se casa com a garrafa a elege porque não é signo de uma falta. Pelo
contrário, a eleição está determinada porque permitirá desmentir dita falta.
Para haver discurso, para haver amor, para haver laço é preciso que haja uma
perda de gozo. Perda, de certa forma, renunciada pelo toxicômano que se coloca na
posição paradoxal de um gozo no corpo sem a mediação da linguagem.
Referências bibliográficas
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SOUZA, Aurélio. A psicanálise de hoje: o cansaço do sexo. In: Cógito, 2007, V. 8, pp.
39-43.
1
Psicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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