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O pagamento de eventual tributo não extingüe a punibilidade do
crime previsto pelo parágrafo único, do art. 1° da lei n. 8.137/90.
Pedro Roberto Decomain*
O parágrafo único, do art. 1º, da Lei n. 8.137/90, que pune crimes contra a ordem tributária,
contra a ordem econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências, prevê
a seguinte conduta típica:
"Art. 1º (...)
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez)
dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da
matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração
prevista no inciso V."
Embora a redação desse dispositivo não seja das mais claras, resta induvidoso tratar-se de
conduta típica assemelhada ao crime de desobediência, previsto pelo art. 330, do Código
Penal.
Trata-se de crime cuja conduta se caracteriza por omissão.
Recebida pelo sujeito passivo de obrigação tributária, ou por qualquer pessoa que tenha um
papel a desempenhar no terreno relativo à incidência de um determinado tributo, a
determinação para apresentar documentos ou informações, partida de agente do fisco, no
exercício regular de suas funções, cometerá o destinatário dessa exigência o crime em tela,
caso deixe de atender, sem plausível justificativa, a essa exigência que lhe foi dirigida.
Daí a evidente proximidade desse crime com o de desobediência, como previsto pelo
Código Penal.
O tipo penal em questão diz de perto com o exercício das atividades de fiscalização
tributária, conferidas a agentes públicos, como mecanismo destinado a verificar se os
potenciais sujeitos passivos de obrigações tributárias as estão cumprindo adequadamente.
Nessa perspectiva, o crime em tela está vinculado diretamente a quanto consta do art. 195
do Código Tributário Nacional (CTN), assim redigido:
"Art. 195. Para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições
legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos,
documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais dos comerciantes, industriais ou
produtores, ou da obrigação destes de exibi-los.
Como já ponderamos alhures, acerca desse dispositivo:
"Em procedimentos de fiscalização tributária os agentes do Fisco podem verificar quaisquer
livros ou papéis do contribuinte que estejam relacionados com fatos geradores de
obrigações tributárias, ou mesmo com negócios abrangidos por imunidade ou isenção. Por
esse motivo é que o art. 195 do Código diz que para os efeitos da legislação tributária não
têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de
examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais
dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los. A
fiscalização fazendária tem acesso a todos os negócios do contribuinte, ou do responsável
tributário, que possam de algum modo estar ligados a fatos geradores de obrigação
tributária. Nenhuma disposição legal limitativa desse direito pode ser oposta ao Fisco" [1]
No intuito de permitir aos agentes públicos com competência funcional para realizar tarefa
de fiscalização do cumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias, por parte
de quantos recebam da lei o dever de as adimplir, o referido dispositivo do CTN consigna
inclusive o dever, a todos imposto, de exibir a referidos agentes as mercadorias, livros,
arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais que possam conter
informações relacionadas a possíveis fatos geradores de obrigações tributárias. [2]
O descumprimento justamente desse dever de exibir tais mercadorias, livros, documentos e
mais papéis, relacionados com a tributação, é que importa na possível prática, por parte
daquele que os deve exibir, do crime previsto pelo parágrafo único, do art. 1º, da Lei n.
8.137/90.
Aliás, o art. 197 do CTN também contém um rol de pessoas, às quais o fisco pode dirigir
intimação, para que prestem as informações que tiverem, acerca de possíveis fatos
geradores de tributos, ligados às atividades desempenhadas por tais pessoas.
Sobre essa temática, Antonio Corrêa também expressou idêntico pensamento, inclusive no
tocante ao bem jurídico protegido pela incriminação das condutas previstas pelo parágrafo.
Depois de relembrar que o descumprimento de exigências formuladas pelo fisco poderia
configurar, antes do advento da Lei n. 8.137/90, o crime de desobediência, assevera que,
"agora, visando evitar que sejam sonegados documentos ou ocorra resistência para sua
entrega, com possibilidade de virem a ser destruídos e criar dificuldades para a atividade
fiscalizadora, o legislador criou a norma penalizando o seu descumprimento ou violação".
[3]
Mais adiante, salientando novamente o bem jurídico protegido pela norma em questão (art.
1°, par. único, da Lei n. 8.137/90), Antonio Corrêa obervou que, por meio do tipo penal
mencionado, o legislador "criminalizou o fato de desobedecer à notificação da
administração tributária, marcando prazo dentre os limites previstos em lei, com
possibilidade de serem convertidos em período menor, frações de unidade, desde que por
conveniência da referida administração seja necessário o exame dos documentos. [4]
Paulo José da Costa Júnior não discrepa, chegando mesmo a afirmar de modo expresso que
o crime previsto pelo parágrafo único do art. 1°, da Lei n. 8.137/90, configura "crime
omissivo próprio de desobediência". [5]
Ademais, salienta também Paulo José da Costa Júnior, que o dispositivo visa a proteger a
atividade dos agentes do fisco, no exercício de seus trabalhos de fiscalização, observando
que, "em verdade, em meio a esses trabalhos, muitas vezes os agentes do Fisco necessitam
de outros documentos, afora as notas fiscais. O contribuinte não poderá recusar-se a
apresentá-los, no prazo máximo de dez dias, que poderá ser reduzido a horas, desde que a
exigência esteja alicerçada em lei ou regulamento que prevejam documentos¿. [6]
Na perspectiva específica da exigência de exibição de livros e documentos que podem vir a
interessar à verificação do correto cumprimento de obrigação tributária, o bem jurídico
tutelado por meio da incrimnação da conduta prevista pelo parágrafo único do art. 1° da Lei
n. 8.137/90, é o mesmo tutelado pelo crime de desobediência, previsto pelo art. 330 do
Código Penal.
Na dicção de Magalhães Noronha, "o bem jurídico tutelado é o prestígio e a dignidade da
administração pública. É o acatamento ao princípio de autoridade que também aqui se tem
em vista, que não obstante não ser malferido como na espécie anterior [referência ao crime
de resistência, previsto pelo art. 329 do Código Penal], não deixa de ser ofendido. Trata-se
de interesse público que a lei quer resguardar e proteger, desde a simples resisência passiva
até à agressiva". [7]
No ponto, também essa a lição de Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior, a
propósito do crime de desobediência: "o bem tutelado é principalmente o bom andamento
da administração pública, que poderia encontrar graves obstáculos se as ordens legais de
seus funcionários não fossem acatadas". [8]
Tem-se, portanto, que se cuida de crime de desobediência, instituído com o propósito de
preservar a eficácia da atividade fiscalizadora da Fazenda Pública, incriminando justamente
a conduta omissiva, consistente em não atender à determinação, expedida nos limites da lei
e oriunda de agente competente, para a exibição de livros ou documentos fiscais, cuja
análise se faz necessária, para aferição do correto cumprimento de seus deveres para com o
fisco, por parte de potenciais sujeitos passivos de obrigações tributárias.
Estando-se, assim, no terreno do crime de desobediência, não se afigura presente situação
que pudesse ensejar aplicação da regra contida no art. 34 da Lei n. 9.249/95, segundo a qual
o pagamento do tributo e acessórios, antes do recebimento da denúncia pelo crime contra a
ordem tributária, extingue a punibilidade de seu autor.
É certo que o dispositivo em questão (Lei n. 9.249/95, art. 34), faz genérica referência aos
crimes previstos pela Lei n. 8.137/90.
Todavia, a cláusula de extinção da punibilidade, representada pelo pagamento do tributo
antes do recebimento da denúncia, há que ser interpretada em consoância com a única
finalidade que se lhe pode atribuir.
Pretende ela funcionar como instrumento para fomentar o ingresso nos cofres públicos, dos
recursos provenientes de tributo suprimido ou reduzido, por força das condutas previstas no
art. 1°, caput, da Lei n. 8.137/90, ou de alguma das condutas inscritas em seu art. 2°, e que
possa haver importado em falta de pagamento de tributo.
Se assim é, então se mostra de todo impróprio pretender atribuir ao eventual pagamento de
tributo suprimido ou reduzido, caracterizando tal conduta uma parcela de um crime contra
a ordem tributária, o efeito de extinguir punibilidade, em face do crime previsto pelo art. 1°,
parágrafo único, da Lei n. 8.137/90.
Não se cuidando de crime que importe em supressão ou redução de tributo, mas sim de
ilícito penal que viola o direito que tem a Fazenda Pública, de ter acesso a todos os livros
mercantis e fiscais e a todos os documentos do contribuinte ou responsável tributário, para
poder realizar a respectiva análise e com isso aferir do correto cumprimento dos dever de
um ou outro para com o Fisco, então se tem conduta que pode estar até mesmo
desvinculada da ocorrência de qualquer descumprimento de obrigação tributária.
Na medida em que o reconhecimento da extinção da punibilidade pelo pagamento do
tributo, em face do crime previsto pelo parágrafo único do art. 1°, da Lei n. 8.137/90, se
afasta por completo da finalidade a que se prende aludida causa extintiva da punibilidade,
de reconhecer-se a inaplicabilidade de tal causa ao crime em tela.
Importando não em ofensa ao crédito tributário propriamente dito, que pode até mesmo
nem existir, mas sim ao bom andamento da Administração Tributária, na perspectiva de seu
direito ao acesso a livros e documentos do contribuinte ou responsável tributário, de sorte a
verificar se um ou outro cumpre adequadamente seus deveres inerentes à tributação, tem-se
que não se mostra viável o reconhecimento da extinção da punibilidade de tal crime, pelo
pagamento de eventual tributo sonegado.
Impede aduzir ainda, por derradeiro, que o reconhecimento da extinção da punibilidade de
tal crime pelo pagamento de eventual tributo suprimido ou reduzido, com todos os seus
acessórios, antes do recebimento da denúncia, poderia conduzir a situações de injustiça
flagrante.
O crime em questão de consuma com o desatendimento da exigência da autoridade, pelo
obstáculo que com tal desatendimento se cria, ao regular exercício da fiscalização. Se, por
outros meios (partindo da premissa de que os documentos ou livros a serem exibidos nunca
o sejam) os agentes do Fisco verificam a ocorrência de fato gerador, cujo tributo não haja
sido objeto de lançamento como devido e, portanto, não haja sido pago, realizam o
lançamento de ofício, nos termos do art. 149 do CTN, isto é, exigem do sujeito passivo o
pagamento da exação tributária.
Nesse caso, o crime representado pelo desatendimento da exigência do fisco teria sua
punibilidade extinta, juntamente com a do crime de sonegação fiscal, se houvesse o
pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia.
Todavia, poderia acontecer que, com os informes disponíveis e a despeito da recusa do
potencial sujeito passivo em atender à exigência do Fisco, mesmo assim se verificasse que
não houve fatos geradores de tributos, cujo conhecimento ao fisco houvesse sido ocultado,
no propósito de com isso obter-se supressão ou redução de tributo e nem se verifica a
ocorrência de qualquer outra violação à legislação tributária.
Em caso como esse, teria ocorrido o crime previsto pelo parágrafo único, do art. 1°, da Lei
n. 8.137/90, mas não qualquer crime previsto em seu caput.
Desta sorte, trbuto algum inexistindo a ser pago, hipótese não surgiria para a extinção da
punibilidade pelo pagamento do tributo.
Noutras palavras, o contribuinte que houvesse sonegado e também houvesse desatendido a
exigência de exibição de livros e documentos, emanada do fisco, teria cometido dois
crimes. Com o pagamento do tributo, com seus acessórios, antes do recebimento da
denúncia, teria reconhecida a extinção da punibilidade pelos dois.
Já o contribuinte que houvesse desatendido à exigência do fisco, mas em face do qual não
houvesse a demonstração de haver também sonegado tributo, teria cometido um só crime.
Como nada haveria a ser pago, pagamento algum poderia extinguir sua punibilidade por tal
crime.
Em suma, quem houvesse sonegado e também houvesse desatendido à exigência do fisco,
e, portanto, se encontrasse em situação de muito maior censurabilidade, teria extinta a sua
punibilidade pelo pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia. Mas quem
houvesse desatendido a exigência do Fisco, embora depois não se provasse que houvesse
sonegado tributo, tendo agido, portanto, em situação de censurabilidade bem mais branda,
não teria extinta a sua punibilidade, já que nada poderia pagar, pela simples circunstância
de que nada havia a ser pago.
De tudo emana a conclusão de que o pagamento de eventual tributo sonegado, com seus
acessórios, antes do recebimento da denúncia, extingue a punibilidade dos crimes previstos
pelo caput do art. 1°, ou pelo art. 2°, da Lei n. 8.137/90 (quando de trate de algum dos
crimes previstos em seu artigo 2°, que importe em falta de pagamento de tributo), mas não
extingue a punibilidade pelo crime previsto pelo parágrafo único do art. 1° da mesma lei.
[9]
-------------------------------------------------------------------------------[1] DECOMAIN, Pedro Roberto. Anotações ao Código Tributário Nacional. 1. ed. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 757-758.
[2] Mesmo antes do CTN, o Supremo Tribunal Federal já havia proclamado o direito de
acesso dos agentes do Fisco aos livros comerciais de eventuais contribuintes ou
responsáveis tributários, não se lhes aplicando a restrição contida no art. 17 do Código
Comercial. Nesse sentido, o Excelso Pretório editou a Súmula n. 439, do seguinte teor:
"estão sujeitos à fiscalização tributária, ou previdenciária, quaisquer livros comerciais,
limitado o exame aos pontos objetos da investigação".
[3] CORRÊA, Antonio. Dos Crimes contra a ordem tributária - Comentários à Lei n. 8.137,
de 27-12-1990. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 146.
[4] CORRÊA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 148.
[5] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações Tributárias e Delitos
Fiscais. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 121.
[6] COSTA JÚNIOR. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações Tributárias e Delitos
Fiscais. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 120.
[7] NORONHA, Edargd Magalhães. Direito Penal. Volume 4. 14. ed. São Paulo: Saraiva,
1982, p. 313.
[8] PAGLIARO, Antonio; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Dos crimes contra a
Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiro, 1999, p. 199.
[9] Tudo sem embargo da discutível eficácia da cláusula de extinção da punibilidade pelo
pagamento do tributo. Sabendo-se das deficiência no sistema de fiscalização tributária, a
mencionada cláusula pode antes funciona como estímulo à sonegação e, portanto, como
fator de decréscimo de receita, do que como fator para o seu incremento. Sabedor o faltoso
de que não é muito elevada a probabilidade de que venha a ser flagrado em sonegação,
arrisca. Tanto mais quando sabe que, caso seja descoberto, pode alforriar-se ao menos à
sanção penal, pagando o tributo. Mais grave fica esse quadro com o reconhecimento,
segundo entendimento do colendo Superior Tribunal de Justiça (mas não do Egrégio
Supremo Tribunal Federal e nem do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina), de que
o simples parcelamento também extingüe punibilidade.
*Promotor de Justiça / SC
DECOMAIN, Pedro Roberto. O pagamento de eventual tributo não extingüe a punibilidade
do crime previsto pelo parágrafo único, do art. 1° da lei n. 8.137/90. Disponível em:
http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=3432. Acesso em
01/11/06.
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