(RE)PENSAR OU (DES)PENSAR A PRÁTICA JURÍDICA? José Humberto de Góes Junior* Para pensar a prática jurídica, por conseguinte, um Núcleo de Prática Jurídica, há que se ter em mente duas questões centrais: qual a concepção de Direito em que se funda (prática em que direito?) e qual o perfil profissional que deve se delinear a partir desse eixo de formação. Essas preocupações permitem entender o sentido e o lugar que a prática pode ocupar na educação jurídica ou, mais restritamente, na proposta político-pedagógica do curso de Direito. Na tentativa de responder ou de indicar possíveis caminhos para respostas a estas indagações, primeiro, é preciso frisar que, com assento em concepção que foge à perspectiva dogmático-positivista, não é possível reduzir a prática jurídica a uma única fórmula. É preciso, antes de tudo, se falar em práticas jurídicas, que vão além de uma compreensão exclusiva e limitada ao campo judiciário, como a interpretação tradicional parece indicar. Percebida como elemento pedagógico no seio da formação jurídica, sua razão de existir deve repousar na necessidade de fazer interagir a teoria com uma realidade fundada em relações sociais cada vez mais complexas, ou seja, precisa expressar a interlocução de um entendimento acerca do fenômeno jurídico com a realidade que lhe dá suporte de existência. E, isso se dá por distintas formas de interação, por diferentes mecanismos de vivência, não exclusivamente vinculados ao universo judiciário, que permitam a compreensão de conteúdos, de técnicas, bem como auxiliem na reflexão sobre os limites do conhecimento que se tem no contexto de sua realização. Se, sob uma análise complexa, o Direito se caracteriza como acontecimento que se produz em determinada sociedade, a partir de seus traços culturais, sociais, * Educador Extensionista Pesquisador Popular; Professor Assistente da Universidade Federal de Goiás/Campus Cidade de Goiás; Estudante do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília; Mestre em Ciências Jurídicas, Área de Concentração em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba; Membro-Fundador da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Popular Universitária. 1 políticos e históricos; se é decorrência da práxis dialeticamente instituída no interior de uma comunidade humana e/ou em suas relações com outros povos, o pensar e o realizar o direito, integrados no “mundo da vida”, não admitem qualquer oposição, não permite a redução da experiência jurídica àquela que se faz no âmbito do Poder Judiciário. Pois, assumindo-se na realidade, o pensar jurídico não se aparta da prática jurígena e o pensar jurígeno da prática jurídica (SOUSA JÚNIOR, 1993), que é maior do que a prática judiciária mesma (GOÉS JUNIOR, 2008). Outrossim, na expressão Direito encerra-se a complexa aliança entre conteúdos, fundamentos epistemológicos, técnica e realização de compreensões no universo vivo das relações humanas. O que, a partir de premissas distintas daquelas elaboradas sob a égide da razão instrumental do século XIX, transforma a própria prática em uma importante experiência cognitiva, em uma importante forma de conhecer o Direito, impedindo que se afastem o modo de como se compreende o Direito do modo como se propaga e como se realiza o fenômeno jurídico. De outra parte, acreditando que se aprende e se realiza o Direito enquanto se debatem as necessidades humanas, os interesses individuais e coletivos, bem como os vários entendimentos acerca do fenômeno jurídico em prol da justiça, também se pode perceber a aliança indissociável entre ensino, pesquisa e extensão como três elementos fundamentais da educação jurídica, ressalte-se, na mesma direção epistemológica absorvida pelo art. 207 da Constituição Federal de 1988, pela Portaria 1886/1994 e pelo art. 5º, III 1, da Resolução CNE/CES n.º 09/2004. Este último elemento normativo, em direção semelhante a da Portaria referida, incorpora a prática jurídica à estrutura curricular dos cursos de direito, mas não a limita à apreensão do arcabouço procedimental forense, embora a compreenda como parte da formação técnica fundamental que se deve dispor no âmbito da educação jurídica, ao tempo em que não se restringe ao aprendizado da ação advocatícia e, mesmo, da advocacia tradicional. Sendo diversas as profissões passíveis de ocupação por bacharéis em direito e complexos os espaços sociais em que devem atuar, igualmente diverso e complexo deve ser o foco da formação prática. Através da integração do estágio supervisionado, do trabalho de curso e das atividades 1 A redação do inciso do III do Art. 5º da Resolução CNE/CES tem o seguinte conteúdo: Eixo de Formação Prática, objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais Eixos, especialmente nas atividades relacionadas com o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades Complementares. 2 complementares ao eixo prático, reúnem-se ao ensino a pesquisa e a extensão, admitindo-se a aliança atividades práticas/reflexão como parte da experiência cognitiva e reafirmando como pilares indissociáveis da educação o aprender a aprender, o aprender a conviver e o aprender a ser e, sobretudo, o aprender a fazer. Neste caso, como afirma José Eustáquio Romão (2004), não reside no aprendizado do feito, mas a possibilidade aberta de se construir outros modos de fazer, que abram espaço para a inovação e, junto com os demais pilares, para novas formas de compreender o fenômeno jurídico e sua relação com a realidade social. Em outro aspecto, foge à perspectiva descontextualizada, dogmática e unidisciplinar em que está inserido o modelo central de ensino do direito (PORTO, 2000), e dá vez à inserção do diálogo, das transdiciplinaridade e da práxis como elementos fundamentais da formação jurídica. Com efeito, já não comporta um modelo que se propaga, por vezes, nos cursos jurídicos, cuja base, no dizer de Celso Fernando Campilongo (1991), é o assistencialismo, a ação individual fragmentada, hierarquizada entre assistente e assistido, que exclui o protagonismo deste último, gera dependência das pessoas em relação ao serviço e não esboça responsabilidade quanto à transformação da realidade social. Diante de relações sociais complexas, é necessário perceber a educação jurídica como parte de uma experiência de Direito e de conhecimento também cada vez mais complexos. Um Núcleo de Prática Jurídica, nesse sentido, é um espaço de concentração de fazeres, de reflexão sobre o modo como se realiza o Direito e de disseminação de novas formas de práticas jurídicas. Não deve se transformar em espaço para uso da comunidade como cobaia de uma experiência necessária ao aprendizado de estudantes de direito ou se concentrar nas ações individuais, que se descontextualizam, perdem importância e se trivializam nas rotinas e técnicas jurídicas; ao contrário, como local de promoção do acesso à justiça em seu sentido de acesso à igualdade, à dignidade, de realização de direitos, sobretudo, dos grupos socialmente vulneráveis, o Núcleo de Prática Jurídica deve ser um lugar de politização das demandas, de formar e firmar compromissos das estudantes e dos estudantes com a realidade na qual estão inseridas e inseridos, com os direitos humanos e com a superação das desigualdades sociais; deve assimilar a possibilidade de contribuir, através da educação jurídica popular e/ou da educação em direitos humanos, para a prevenção e solução alternativa de conflitos em comunidades, bem como para que esta, no diálogo inter-cognitivo, 3 construa seus próprios mecanismos de defesa de direitos, avalie seus problemas cotidianos, estabeleça pontes destes com os instrumentos jurídicos disponíveis e, ante os limites das ferramentas postas, identifique quais outros aparatos precisam ser criados para a superação das situações que enfrentam. Por conseguinte, o Núcleo de Prática Jurídica não deve pretender substituir ou confundir-se com a Defensoria Pública. Esta, segundo a leitura de André Macedo de Oliveira acerca do art. 134 da Constituição Federal de 1988 e da Lei Complementar 80/1994, integra-se à função jurisdicional do Estado por meio da prestação de assistência no âmbito judicial e extrajudicial. Incorporando a negociação, a mediação, a transação, a arbitragem e a barganha, o Núcleo de Prática Jurídica pode ir além dessa condição informativa e assistencial, assimilando a defesa de direitos também no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, bem como nos espaços comunitários, através do diálogo intercultural com suas experiências jurídicas e jurígenas. Como locus de promoção, proteção e defesa de direitos humanos, o Núcleo de Prática Jurídica precisa estabelecer contato das estudantes e dos estudantes de Direito com os universos procedimentais desenvolvidos pela autoridade policial, nas delegacias; pelos integrantes do Ministério Público; dos serviços judiciais e extrajudiciais de auxílio à justiça, com conhecimentos de organização, arquivamento, trâmite processual em cartórios e direito notarial; pela magistratura; pelas procuradorias de Estados, Municípios e pela Advocacia Geral da União/Procuradoria Federal; por profissionais da advocacia quanto ao contencioso e em atividades como consultora ou consultor; mas também, precisa incentivar a compreensão efetiva do processo legislativo, do modo de se organizar e de se pôr em prática as políticas públicas; precisa formar pessoas para atuarem como formadoras, para a prática educacional; e, acima de tudo, deve contextualizar e interligar todas essas formas de expressão do universo jurídico com os direitos da criança e do adolescente, os direitos da mulher, direitos do idoso, com questões de raça/etnia, questões agrárias, de sexualidade,entre outras, seja no âmbito judicial, através de ações individuais ou coletivas, ou no campo extrajudicial, através de práticas reivindicatórias, de projetos de extensão e/ou de reflexões sobre o próprio fazer e sua ligação com mecanismos de realização de direitos, sempre de forma contextual e politicamente engajada com o propósito de superação dos mecanismos de opressão constantes na sociedade. REFERÊNCIAS: 4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e Realidade Social: Apontamentos para uma Tipologia dos Serviços Legais, Coleção Seminários AJUP/FASE, n.° 15 - Discutindo a Assessoria Popular, pp. 8-28, jun/1991, Rio de Janeiro. GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da pedagogia do oprimido ao direito do oprimido: uma noção de direitos humanos na obra de Paulo Freire. 189f. 2008. Dissertação. (Mestrado em Direitos Humanos), Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa. PÔRTO, Inês Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação: construção de um projeto didático no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. ROMÃO, José Eustáquio. Educação e Cidadania. In: PINSKY, Jaime. Práticas de Cidadania. São Paulo: Contexto, 2004. SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Um Direito Achado na Rua: O direito de morar. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. (Org.). Introdução Crítica ao Direito. 4. ed. Brasília: UNB, 1993. (Série o direito achado na rua), v. 1 5