Vara da Infância e Juventude de
Processo nº: 761/15
Autor: Erick Leonardo de Oliveira rep. por sua genitora
Réus: Fazenda Pública do Estado de São Paulo e Município de
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Meritíssima Juíza:
Trata-se de ação de Execução no bojo da Ação Civil Pública
n.0027139-65.2000.8.26.0053 que tramitou na 6ª. Vara da Fazenda Pública de São
Paulo e que versa sobre direitos da pessoa com autismo. Sustenta o autor que, por
apresentar Transtorno do Espectro do Autismo (CID F84.0) tem direito
assegurado pela referida Ação de ser estudar em escola especial às custas do
Estado uma vez que este não providenciou o tratamento adequado conforme
descrito na sentença. Assim requer seja o executado obrigado a custear o
tratamento na instituição educacional indicada pelos genitores, ou seja, Colégio
Paulicéia.
É o relatório da inicial.
1. BREVE HISTÓRICO
A partir de 1970, movimentos sociais em prol da emancipação
das pessoas com deficiência foram se formando e interrelacionando-se, levando
1
ao fortalecendo desses ideais em oposição à política assistencialista até então
dominante.
Entramos, então, aproximadamente nos anos 90, no paradigma da
inclusão social ou de suporte, no qual a diversidade humana é valorizada e a
sociedade, assim como o Poder Público têm obrigações para com a inclusão
social. A pessoa com deficiência passa a ter o direito de conviver socialmente
com as pessoas que não têm deficiência e estas com aquelas e a sociedade e o
Poder Público passam a ter responsabilidade para com essa inclusão social.
A integração social estava diretamente relacionada à PESSOA, ou
seja, a pessoa com deficiência é que era retirada do seu convívio familiar,
social ou institucional, para ser reabilitada e depois retornava ao local de
origem. A inclusão social diz respeito ao SISTEMA e não às pessoas;
portanto, não são estas que são incluídas, o sistema é que tem que ser
inclusivo para receber a todos e, nesse sentido, dar à pessoa com deficiência
todo suporte de que necessitar para possibilitar essa convivência social.
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 186/08,
que tem força de emenda constitucional, em razão do disposto no art. 5º, § 3º,
da Constituição Federal, reconhece o direito da pessoa com deficiência à
educação, determinando aos Estados Partes para efetivação desse direito sem
discriminação em com base nas igualdades de oportunidades, assegurar sistema
educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de
toda a vida, fixando os objetivos para esse fim (art. 24 – com destaque).
A Convenção da ONU ainda dispõe que as pessoas com deficiência
não devem ser excluídas do sistema educacional geral sob a alegação de
deficiência, devendo receber os apoios necessários para facilitar sua efetiva
2
educação, impondo aos Estados Partes que a elas assegurem a possibilidade
de adquirirem as competências práticas e sociais necessárias, de modo a
facilitar sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em
comunidade (art. 24, nº 02 e 03).
De acordo com a Constituição Federal de 1988, a educação é
direito de todos, porque todos são iguais perante a lei e a todos, sem
discriminação, é dado o direito de acesso e permanência na escola regular e
não na escola segregatória (especial), onde só estudam pessoas com
deficiência.
“Em
geral,
locais segregados são prejudiciais
porque alienam os alunos. Os alunos com deficiência recebem,
afinal, pouca educação útil para a vida real, e os alunos sem
deficiência experimentam fundamentalmente uma educação que
valoriza pouco a diversidade, a cooperação e o respeito por aqueles
que
são
diferentes.
inclusivo
Em
contraste,
proporciona
deficiência
a
às
oportunidade
o
ensino
pessoas
de
com
adquirir
habilidades para o trabalho e para a vida em
comunidade.
aprendem
Os
como
alunos
atuar
e
com
deficiência
interagir
com
seus
pares no mundo “real”. Igualmente importante,
seus pares e também os professores aprendem
como agir e interagir com eles.
Sem dúvida, a razão mais importante
para o ensino inclusivo é o valor social da
igualdade.
Ensinamos
os
alunos
através
do
exemplo de que, apesar das diferenças, todos
3
nós temos direitos iguais. Em contraste com
as
experiências
passadas
de
segregação,
a
inclusão reforça a prática da ideia de que as
diferenças são aceitas e respeitadas. Devido ao
fato de as nossas sociedades estarem em uma fase crítica de
evolução, do âmbito industrial para o informacional e do âmbito
nacional para o internacional, é importante evitarmos os erros do
passado. Precisamos de escolas que promovam aceitação social
ampla, paz e cooperação.
É simplesmente discriminatório que alunos com
deficiências devam conquistar o direito ou estar preparados para
Não
serem incluídos na educação regular.
esperar
provem
que
que
os
eles
pesquisadores
podem
ser
é
absurdo
educacionais
beneficiados
da
educação em turmas regulares, enquanto outros
alunos
têm
simplesmente
acesso
irrestrito
porque
não
têm
ao
esse
ensino
rótulo.
Nenhum aluno deveria precisar ser aprovado em um teste ou
esperar resultados de pesquisa favoráveis para viver e aprender
como membros regulares da vida escolar comunitária. O ensino
inclusivo faz sentido e é um direito básico – não é algo que
alguém tenha de conquistar. Quando as escolas incluem todos os
alunos, a igualdade é respeitada e promovida como um valor na
sociedade, com os resultados visíveis da paz social e da cooperação
(...). Quando as escolas são excludentes, o preconceito fica
inserido na consciência de muitos alunos quando eles se tornam
4
adultos, o que resulta em maior conflito social
e em uma competição desumana”1.
A educação inclusiva, que nasce no Brasil por meio da nova ordem
constitucional de 1988, tem mudado o perfil da educação brasileira, exigindo
do sistema regular adaptações capazes de darem atendimento educacional
especializado a todas as pessoas com deficiência, a fim de garantir-lhes, como
a qualquer criança e adolescente sem deficiência, o direito de acesso e
permanência na escola e escolar regular e não especial ou segregatória (art.
206, CF).
Hoje, na era da inclusão social, o ensino segregatório está perdendo
espaço e isso somente está acontecendo porque os sistemas de ensino, embora
com grandes dificuldades, estão se adaptando a cada dia para acolherem a todos,
reconhecendo a diversidade social e trabalhando para que ela seja respeitada e
admitida por todos.
A escola inclusiva, portanto, será, no dizer de Lauro Luiz Gomes
Ribeiro, “aquela que se constrói, a partir da permanente
interação
entre
partilhando
vários
atores
responsabilidades
colaboração
empenhada
os
e
em
o
convívio
mudar
para
e
estimulando
fraterno
atender
educacionais,
a
e
toda
a
solidário,
gama
de
necessidades educacionais identificadas, sem levar em
conta as condições sociais, físicas, mentais e de saúde
de seu alunado”2.
1
Susan e Willian Stainback, Inclusão – Um Guia para Educadores, Artmed
Editora, 1999, p. 25-27.
2
“Texto escrito para entidade “Mais Diferença” como colaboração
ao projeto sobre inclusão e educação - Caixa de Formadores Prefeitura Municipal de Osasco.
5
É nesse sentido que está fundamentado o direito à educação previsto
nos arts. 6º e 205 da Constituição Federal, de modo que estabelecer condições
para que a pessoa com deficiência tenha acesso a esse direito fundamental em
igualdade de condições com os alunos que não têm deficiência, afronta a Lei
Maior de nosso país e a Convenção da ONU que se apresenta como emenda a ela.
Enfatizamos que a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência, em seu artigo 24, estabelece o direito da pessoa com deficiência,
sem restrições, a uma educação inclusiva, não podendo ser excluída do sistema
educacional regular por conta da deficiência.
2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Cabe esclarecer sobre qual Ação versa a presente Execução de
sentença.
No ano de 2000 o Ministério Público propôs Ação Civil Pública
contra o Estado de São Paulo, tendo em vista a absoluta falta de atendimento
específico para as pessoas diagnosticadas com Transtornos do Espectro do
Autismo (TEA), a fim de que fosse condenado a prestar atendimento
especializado nas áreas de saúde, educação e assistência (Processo n.
053.00.027139-2 da 6ª. Vara da Fazenda Pública).
Foi julgada totalmente procedente a Ação que transitou em julgado
após recurso de apelação do requerido cujo acórdão, datado de 26/04/2005,
confirmou a sentença de 1.grau.
Ocorre que, ante a inexistência no âmbito do serviço público, tanto
educacional como de saúde, de equipamentos adequados para o tratamento das
pessoas acometidas pelo distúrbio e, a fim de cumprir o mandamento
6
jurisdicional, achou por bem o Estado firmar convênios com entidades
particulares que prestassem um serviço que atendesse de forma única todas as
demandas dessas pessoas.
Assim, aberto o chamamento público cadastraram-se várias
entidades que prestam atendimento terapêutico misturado com o atendimento
educacional. São na verdade escolas especiais onde o aluno fica várias horas
durante o dia recebendo sessões de terapia ocupacional, fonoaudiologia e outras,
com alguma instrução pedagógica dependendo da entidade.
3. MÉRITO
Infelizmente, após o credenciamento dessas instituições houve uma
procura enorme por parte das famílias de crianças com TEA por essas chamadas
“escolas”. Isso porque na maioria dos casos ou a criança não estava inserida na
escola ou as escolas não tinham preparo para lidar com suas dificuldades.
O que se vê na prática é a segregação, pois, crianças ainda pequenas,
são institucionalizadas em entidades onde só têm contato com pessoas com
deficiência contrariando frontalmente as instruções sobre o manejo do
desenvolvimento da pessoa com Transtorno do espectro do autismo além de todos
os princípios da educação inclusiva. O entendimento médico doutrinário é de que
as crianças com TEA devem estar inseridas em ambiente escolar frequentado por
crianças “típicas” a fim de que esse seja seu exemplo de comportamento (Ana
Beatriz Barbosa Silva, Mundo Singular-entenda o autismo, Ed.Objetiva, 2012).
Não se deve olvidar que no momento em que foi proposta a ação
Civil Pública, muitas eram as queixas e nada havia de equipamentos públicos ou
de políticas públicas de atendimento específico para os autistas. Porém, hoje, essa
não deve ser a melhor escolha, ao menos, em termos acadêmicos.
7
Conforme esclarecido no primeiro tópico, a educação inclusiva é
uma realidade no cenário jurídico brasileiro há muito tempo.
A Constituição Federal de 1988 considera a educação como direito
fundamental e prioriza ainda o direito das pessoas com deficiência de receberem
educação preferencialmente na rede regular de ensino (artigos 205 e 208).
Norma essa repetida pelo artigo 54, III do ECA.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.9394/96
define educação especial como: “modalidade da educação escolar oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino para educandos portadores de
necessidades especiais” (artigo 58).
A Resolução n. 02 de 2001 do Conselho Nacional da Educação já
definia e compilava todas as diretrizes da educação inclusiva. Previu que as
escolas da rede regular da educação básica devem se preparar para dar
atendimento de qualidade a todos para identificar as necessidades educacionais
dos alunos. E ainda que o atendimento educacional especial deve ser realizado em
classes comuns do ensino regular devendo os professores serem capacitados e
especializados para o atendimento as necessidades educacionais dos alunos.
Em 2012 foi promulgada a Lei 12.764 (Lei Berenice Piana) a qual
instituiu a Política Nacional de Proteção aos Direitos da Pessoa com Transtorno
do Espectro do Autismo. Dentre outros ficou claro o direito a educação em classes
comuns do ensino regular com ou sem acompanhante especializado3.
3
“Art.3. São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
(...)
IV- o acesso:
a) `a educação e ao ensino profissionalizante;
(...)
8
Após várias indagações sobre essa questão, foi lançada a Nota
Técnica n. 24 pelo Ministério da Educação a qual dispõe que: “A modalidade
de
educação
especial
disponibiliza
o
atendimentos
educacional especializado (AEE), os demais serviços e
recursos pedagógicos e de acessibilidade, contemplando
a
oferta
de
profissional
inclusão
escolar
espectro
do
do
autismo
de
apoio,
estudante
nas
com
classes
necessário
transtorno
comuns
do
à
do
ensino
regular, nas escolas públicas e privadas. Os serviços
da
educação
especial
constituem
pelos sistemas de ensino
modalidades,
devendo
Pedagógico)
das
obrigatória
em todos os níveis, etapas e
constar
escolas
oferta
e
no
nos
PPP
(Plano
custos
Político
gerais
da
manutenção e do desenvolvimento do ensino.”.
Por fim, foi promulgada o Decreto Estadual 60.328 de 02 de abril
de 2014 o qual altera o inciso II do artigo 2. do Decreto 60.075 de janeiro de 2014
e garante o acesso e permanência dos alunos com deficiência intelectual na rede
regular de ensino provendo os suportes necessários.
Desta feita, com relação ao atendimento educacional, não se pode
mais falar em escolas especiais, em instituições que põem o jovem deficiente às
margens da vida escolar e da integração social.
Além dos mencionados documentos legais, a educação inclusiva
está amparada pelo Plano Nacional da Educação (PNE) aprovado pela Lei
10.172/2001. A inclusão é a garantia de acesso a todos ao espaço comum da vida
Paragrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do
espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos termos do inciso IV do
art.2.o. terá direito a acompanhante especializado.”
9
em sociedade, devendo esta ser orientada pelas relações de acolhimento à
diversidade humana, aceitação das diferenças individuais e sobretudo respeito ao
individuo.
Agora nos resta analisar o atendimento terapêutico.
Em reação ao Autismo não existe medicamento que o cure, existem
medicamentos para tratar características específicas como agitação, falta de
atenção porém o único tratamento reconhecido para os maiores sintomas do
autismo é o tratamento terapêutico - psicologia comportamental, sensorial,
psicanálise e fonoaudiólogico. Estes, ainda não são oferecidos pelo Estado de
forma como é necessário aos Autistas, são deficientes e precários. Hoje os
pacientes com TEA, na capital, são atendidos pelas UBS e pelos CAPS e CAPSi
(exatamente ao contrário do que determina o mandamento judicial).
Esse sim deveria ser o ponto a ser atacado uma vez que a sentença
mencionada obriga o Estado a fornecer “tratamento especializado aos autistas
em unidades especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes para o
tratamento de doentes mentais comuns)..”
Ou seja, até hoje o Estado não providenciou as unidades
especializadas para o atendimento de saúde (psicológico e fonoaudiólogico) aos
autistas e acomodou-se com o fornecimento de um serviço misto de educação e
saúde que na realidade apenas segrega o deficiente e acalma as famílias que muito
sofrem com esse distúrbio comportamental por ausência total do Estado.
O próprio Decreto Estadual, já mencionado, 60.075 de janeiro de
2014 prevê como ação de curto prazo da Secretaria da Saúde a definição de
protocolos de serviços especializados de saúde e protocolos para o
diagnostico, terapêutica e assistência da pessoa com deficiência intelectual.
10
Desta feita, não tendo sido cumprido o comando judicial neste
ponto (saúde), deve-se a execução de sentença ser dirigida a compelir o Estado a
arcar com o tratamento terapêutico adequado às necessidades de cada exequente.
Frise-se, tratamento psicológico, médico, fonoaudiológico necessários ao
desenvolvimento e estimulação adequados aos que possuem Transtorno do
Espectro do Autismo.
Ante o exposto, requeremos seja o Exequente intimado a emendar a
inicial para indicar profissionais ou clínicas onde possa receber o tratamento de
saúde que entende apropriado, mas se desejar, com relação a educação, deverá a
parte procurar matrícula na rede pública ou privada de sua preferência e, em caso
de negativa, comunicar a Promotoria da Infância e Juventude.
São Paulo, 19 de maio de 2015.
SANDRA LUCIA GARCIA MASSUD
Promotora de Justiça
11
Download

Vara da Infância e Juventude do Foro Regional