UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
JAQUELINE FALEIROS DA CUNHA
OS ANTECEDENTES E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO
ORDENAMENTO JURÍDICO
Florianópolis
2010
2
JAQUELINE FALEIROS DA CUNHA
OS ANTECEDENTES E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO
ORDENAMENTO JURÍDICO
Monografia apresentada como requisito final
do Curso de Especialização em Direito Penal
e
Processual
Penal
–
turma
X,
da
Universidade do Vale do Itajaí.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Bissoli Filho
Florianópolis
2010
3
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................. 5
2 PRINCÍPIOS ................................................................................... 8
2.1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA .............................................. 10
2.2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE .......................................................................... 13
2.3 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE OU DA RESERVA LEGAL ............................. 15
2.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ...................................................... 18
2.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE ................................................................. 21
2.6 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE ...................................................................... 24
2.7 PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM ................................................................. 26
3 OS ANTECEDENTES E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL ................ 28
3.1 ANTECEDENTES CRIMINAIS ....................................................................... 28
3.1.1 Conceito e Caraterísticas .......................................................................... 28
3.1.2 Fatos a serem considerados como antecedentes .................................. 32
3.1.3 Efeitos jurídicos gerados pelos antecedentes no sistema penal
brasileiro .............................................................................................................. 35
3.2 REINCIDÊNCIA CRIMINAL ............................................................................ 35
3.2.1 Breve histórico e conceito ........................................................................ 35
3.2.2 Fatos a serem considerados como reincidência criminal ...................... 39
3.2.3 Classificação .............................................................................................. 42
3.2.3.1 Quanto à identidade ou não dos fatos: reincidência genérica,
específica e especialíssima................................................................................ 42
3.2.3.2 Quanto à obrigatoriedade ou não do reconhecimento: reincidência
obrigatória e facultativa ...................................................................................... 43
3.2.3.3 Quando ao pressuposto de configuração: reincidência verdadeira e
ficta ....................................................................................................................... 44
3.2.3.4
Quanto
à
abrangência
territorial:
reincidêncial
nacional
e
internacional ........................................................................................................ 45
3.2.3.5 Quanto à abrangência material: reincidência ampla e limitada .......... 45
3.2.3.6 Quanto à reiteração: reincidência simples e reiterada (multirreincidência) ........................................................................................................ 46
3.2.3.7 Quanto à temporalidade: reincidência perpétua e temporária ............ 46
4
3.2.3.8 Quanto à previsão legal: reincidência de direito e de fato .................. 46
3.2.4 Efeitos jurídicos gerados pela reincidência criminal no sistema penal
brasileiro .............................................................................................................. 47
4 OS ANTECEDENTES E A REINCIDÊNCIA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO .................................................................. 49
4.1 DIREITO PENAL DO FATO X DIREITO PENAL DO AUTOR ......................... 49
4.2 ANÁLISE DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS ANTECEDENTES E DA
REINCIDÊNCIA CRIMINAL .................................................................................. 52
5 CONCLUSÃO ................................................................................ 65
6 REFERÊNCIAS ............................................................................. 68
5
1 INTRODUÇÃO
O objetivo institucional da presente pesquisa é produzir uma
monografia apresentada como requisito final do curso de especialização em
Direito Penal e Processual Penal, pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
Como objetivo geral, dedica-se a analisar os antecedentes criminais e a
reincidência tal qual regulada na legislação brasileira, com especial enfoque na
constitucionalidade de tais institutos.
No Direito Penal Brasileiro, os antecedentes criminais e a
reincidência têm sido amplamente utilizadas para agravação da situação do réu.
Entretanto, diante da ineficiência estatal para o cumprimento de seus objetivos,
entre eles a ressocialização, torna-se necessário questionar a relação existente
entre a verificação de uma conduta recidiva e as consequências da atuação do
sistema penal sobre o indivíduo.
Quanto
aos
objetivos
específicos,
elaboraram-se
os
seguintes: a) Pesquisar, sintetizar e descrever os princípios constitucionais
aplicáveis ao direito penal; b) Investigar, resumir e comentar a respeito dos
antecedentes e da reincidência criminal; e c) Investigar, analisar e descrever
acerca da constitucionalidade dos antecedentes e da reincidência criminal.
A justificativa da escolha do tema consubstancia-se na
questão polêmica acerca dos antecedentes criminais e da reincidência que vem
sendo discutida entre doutrinadores e tribunais de todo o país, havendo
questionamentos que beiram desde a constitucionalidade até a forma de
aplicação de seus efeitos, de modo que a pesquisa pode vir a contribuir com o
debate ainda acirrado sobre a problemática.
Diante dessa situação, e mediante o amparo da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 coloca-se as seguintes perguntas de
pesquisa, as quais nortearam o desenvolvimento do trabalho: a) Qual o conceito
de antecedentes e qual a sua abrangência no ordenamento jurídico? b) Qual o
conceito de reincidência criminal e quais são os seus requisitos legais no
6
ordenamento jurídico? Esses institutos contrariam, de alguma forma, as normas
constitucionais?
Para responder a esses questionamentos, elaborou-se as
seguintes hipóteses: a) os antecedentes representam os fatos anteriores ao
crime, relacionados ao estilo de vida do acusado e, desta forma, não seria
necessária a existência de condenação definitiva por tais fatos anteriores. Assim,
a questão versa a respeito da possibilidade ou não de se considerar como maus
antecedentes registros criminais que não impliquem em sentença condenatória
transitada em julgado, em razão do princípio da presunção de inocência. b)
Verifica-se a reincidência quando o acusado comete novo crime, depois de
transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha
condenado por crime anterior. A questão versa sobre a possibilidade ou não de se
considerar a maior periculosidade do agente infrator e, portanto, para apená-lo de
forma mais intensa.
No desenvolvimento deste trabalho, adota-se o método
dedutivo, partindo-se da formulação dos problemas gerais, na busca de posições
científicas que os sustentem ou neguem, apontando-se, ao final, a predominância
ou não das hipóteses mencionadas.
A investigação foi realizada com o auxílio da pesquisa
bibliográfica, da revisão doutrinária em obras jurídicas, das legislações pertinentes
e da jurisprudência.
Para beneficiar o desenvolvimento do presente estudo, o
percurso teórico realizado foi distribuído em três capítulos, e estes em
subcapítulos, fazendo com que a abordagem da temática proposta siga uma
sequência lógica.
Para tanto, apresentar-se-á no capítulo 1 uma breve análise
acerca dos princípios que norteiam os antecedentes e a reincidência criminal,
quais sejam, os princípios da presunção de inocência, da igualdade, da legalidade
ou da reserva legal, da proporcionalidade, da culpabilidade, da humanidade e do
non bis in idem.
7
Assim como foi explanado na presente pesquisa, faz-se
necessário identificar, no capítulo 2, o conceito e as características dos
antecedentes criminais, os fatos a serem considerados como tais e seus efeitos
jurídicos no sistema penal brasileiro. No que tange à reincidência, explanar-se-á
sobre seu histórico e conceito, sua classificação e, igualmente, sobre os fatos a
serem considerados e seus efeitos jurídicos no sistema pena brasileiro.
No Capítulo 3, tratar-se-á sobre a distinção entre o direito
penal do fato e o direito penal do autor, e, como objetivo principal deste estudo,
sobre a (in)constitucionalidade dos antecedentes criminais e da reincidência.
Encerra-se o trabalho com as Considerações Finais, na qual
serão apresentados pontos essenciais destacados no decorrer da pesquisa,
seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre o
tema abordado.
8
2 PRINCÍPIOS
Segundo Carvalho, o termo princípio teria sido usado
primeiramente pela geometria, onde significava a verdade primeira, e somente
mais tarde é que passou a ser utilizado no Direito.1
Segundo Ruy Samuel Espíndola, o conceito de princípio:
[...] designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos
ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento chave, por
uma baliza normativa, donde todas as demais ideias,
pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se
subordinam.2
Já no campo jurídico, o professor Luiz Gustavo Grandinetti
Carvalho define princípios como sendo:
[...] as ideias fundamentais que constituem o arcabouço do
ordenamento jurídico, são os valores básicos da sociedade que se
constituem em princípios jurídicos. Inicialmente não estavam
positivados, vinham do direito natural, qualquer que seja a
vertente, ou por São Tomás de Aquino (seria um direito divino) ou
por Groccio (adviria da razão). Após algum período é que
começaram a ser positivados, inicialmente nos Códigos, e só
numa terceira etapa é que passaram a ocupar espaço nas
Constituições. Mas essa trajetória foi muito lenta, cheia de
avanços e recuos e muitas revoluções.3
Luís Paulo Sirvinskas complementa:
Podemos, assim, conceituar princípio como sendo „uma regra
geral e abstrata que se obtém indutivamente, extraindo o
essencial de normas particulares, ou como uma regra geral
preexistente‟. Em outras palavras, os princípios „são normas que
1
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Princípios constitucionais do processo penal. Ciência
Jurídica. v. 73, ano XI, p. 19-29, jan/fev. 1997. Belo Horizonte. p. 20.
2
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma
formulação dogmática constitucionalmente adequada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p.
47/48.
3
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit., p. 20.
9
exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo
com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não
proíbem, permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada;
impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo
em conta a reserva do possível, fáctica ou jurídica‟.4
Os princípios, segundo Sirvinskas, trazem consigo a noção
de início de alguma coisa, e servem para auxiliar a análise e o estudo de certos
fundamentos estanques do Direito. Em outras palavras, servem para delimitar os
atos do legislador, do magistrado e do operador do direito, além do que
representam uma verdade indiscutível para o momento histórico, podendo ser
modificados com o passar do tempo, uma vez que nada é absoluto. “A verdade
também não é absoluta. A verdade deve ser analisada sob o ponto de vista de
cada momento histórico”.5
Assim, para Giorgi, os princípios constituem um ponto de
partida, um norte ao aplicador do direito. Os princípios constitucionais, jurídicos ou
gerais guardam os valores essenciais das normas, uma vez que não regulam
situações específicas, ao contrário, lançam sua força por todo o mundo jurídico.
Observa-se que a falta de precisão do conteúdo é que permite que o princípio
paire sobre uma área muito mais vasta do que uma norma estabelecedora de
conteúdo.6
Todavia, explica Rothenburg, não é porque os princípios são
abrangentes e dotados de vagueza, no sentido de uma aplicação larga e aberta,
que são sempre genéricos e imprecisos, ao contrario, possuem um significado
determinado, sendo passíveis de aplicação às situações de fato.7
4
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Princípios penais constitucionais da oportunidade, da moralidade e da
proporcionalidade como limitação ao poder punitivo do Estado. Revista dos Tribunais. v. 802, ano 91, p.
452-463, agosto de 2002, São Paulo. p. 453.
5
SIRVINSKAS, Luís Paulo. op. cit. p. 452/453.
6
GIORGI, Tania Giandoni Wolkoff. Princípios constitucionais e o princípio da dignidade humana. Revista de
direito constitucional e internacional. n. 59, ano 15, p. 247-268, abr/jun 2007, São Paulo. p. 249/250.
7
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1999. p. 18.
10
2.1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Foi a partir do iluminismo que houve a transformação dos
direitos de defesa do réu, quando então foram considerados como inerentes à
pessoa humana. Segundo essa corrente filosófica, a liberdade individual era valor
fundamental e deveria sobrepor-se, até último caso, aos interesses do Estado.
Com a finalidade de evitar os abusos ocorridos, segundo
Costa, interessava aos iluministas limitar o ius puniendi8 do Estado por meio de
novos instrumentos jurídicos, calcados na ideia de que o indivíduo prevalecia à
comunidade. Desta forma, substituiu-se o favor societate pelo favor rei da mesma
forma que a presunção de culpa perdeu espaço para a presunção de inocência.9
Atualmente o princípio da presunção de inocência está
previsto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988,
estabelecendo que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória”.10
Apesar de a doutrina denominar o princípio insculpido nesse
inciso como Princípio da Presunção de Inocência, para Francisco Bissoli Filho, a
Constituição Federal prevê, na verdade, o Princípio do Estado de Inocência, ou
seja, a Constituição não diz que se presume inocente, mas sim que ninguém será
considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença penal
condenatória, ou seja, o indivíduo deve ser considerado inocente e não ser
presumido inocente. Há dois estados, o de inocência e o de culpado. Enquanto
não for considerado culpado será considerado inocente. Isso não impede, no
8
“Ius puniendi (Poder de punir). Poder que o Estado tem para infligir castigos e impor a própria vontade aos
cidadãos”. ROSA, Patrícia Fontanella; FONTANELA, Fabiana. Dicionário técnico jurídico e latim forense.
Florianópolis: Editora Habitus, 2002. p. 167.
9
COSTA, Breno Melaragno. Princípio constitucional da presunção de inocência. In: PEIXINHO, Manoel
Messias, org. et al. Os princípios da constituição de 1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001. p. 341358. p. 343.
10
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 13 fev. 2010.
11
entanto, que durante o processo possa existir uma presunção de culpabilidade
por parte do Juiz capaz de justificar as medidas coercitivas de segurança.11
Assim, o estado de inocência encontra aplicabilidade
inclusive no campo da custódia cautelar, isto é, aquela anterior ao trânsito em
julgado. Nesse campo, o princípio exerce relevante função ao exigir que toda
privação de liberdade antes de transitar em julgado a sentença condenatória deva
ostentar natureza cautelar, com a imposição de decisão judicial devidamente
fundamentada e motivada, pois o estado de inocência, e não a presunção,
impede a antecipação dos resultados finais do processo, ou seja, impede a prisão
quando não amparada em razões de extrema necessidade.
Tal princípio é fundamental para a civilidade, sendo fruto de
uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, mesmo que
isso acarrete a impunidade de algum culpado. Nesse sentido, destaca Ferrajoli
que “basta ao corpo social que os culpados sejam geralmente punidos”, escreveu
Lauzé Di Peret, “pois é seu maior interesse que todos os inocentes sem exceção
sejam protegidos‟”, e ainda acrescenta que “a culpa, e não a inocência, deve ser
demonstrada, e é a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde
o início – que forma o objeto do juízo”.12
Para Ferrajoli, uma vez que os direitos dos cidadãos são
ameaçados não só pelos crimes praticados, mas também pelas penas arbitrárias,
é que o princípio da presunção de inocência é também uma garantia de
segurança e de defesa social contra as arbitrariedades do poder punitivo.13
Dessa forma, Breno Melaragno Costa apresenta dois
aspectos no que concerne ao significado do princípio da presunção de inocência:
Por um lado, tal princípio constitucional norteia o legislador
ordinário em relação à elaboração de normas que, principalmente,
11
BISSOLI FILHO, Francisco. Linguagem e criminalização: a constitutividade da sentença penal
condenatória. 2009. v. II. 606p. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, área de
concentração Direito do Estado. Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 473.
12
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006. p. 506.
13
FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 506.
12
lidem com o tratamento processual de um réu. Ou seja, evita que
surjam leis que de alguma forma desprezem a inocência do
acusado até o trânsito em julgado de uma sentença condenatória
ou que, mais radicalmente, o faça presumir culpado. Esta norma
constitucional proíbe que o ordenamento jurídico adapte algo
cujas consequências fujam do espírito a que está imbuído o
princípio da presunção de inocência.
Por outro lado, este princípio atua intra-processualmente. Ele
orienta o processo penal no sentido de que a presunção de
inocência acompanha o acusado até o trânsito em julgado da
sentença. Ou seja, durante toda a sucessão de atos integrados
em diferentes fases, que constitui o processo penal é negada a
possibilidade de qualquer ato que faça presumir culpado o réu.14
Ainda, de acordo com o que leciona Fernando Capez, o
referido princípio desdobra-se em três aspectos, quais sejam:
a) no momento da instrução processual, como presunção legal
relativa de não culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova; b) no
momento da avaliação da prova, valorando-a em favor do
acusado quando houver dúvida; c) no curso do processo penal,
como paradigma de tratamento do imputado, especialmente no
que concerne à análise da necessidade da prisão processual.15
Complementando, Damásio de Jesus defende que decorre
do princípio da presunção de inocência que a pena não seja executada enquanto
não transitar em julgado a sentença condenatória, ou seja, somente quando não
houver mais a possibilidade de recurso é que as medidas próprias da fase de
execução podem ser impostas.16
14
COSTA, Breno Melaragno. op. cit., p. 346.
15
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 39.
16
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. v.1. p. 11.
13
2.2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nas Constituições Brasileiras, segundo Carvalho, o princípio
da igualdade (também chamado de princípio da isonomia) é um princípio
tradicional, posto que está previsto desde a Constituição de 1824.17 O artigo 5º,
caput, da Magna Carta estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza”.18 Disso, no dizer de Damásio, decorre que
ninguém pode ser discriminado em razão de cor, sexo, religião, raça,
procedência, etnia etc.19
Nesse sentido, Ricardo Augusto Schmitt explica que:
[...] seja qual for a condição do indivíduo (condenado) – rico ou
pobre, preto ou branco, brasileiro ou estrangeiro – tal situação não
pode (e não deve) influir no julgamento do caso, podendo,
contudo, ser levado em consideração pelo julgador apenas como
forma de atenuar as desigualdades sociais na aplicação da lei, ou
da pena, „com vistas à concretização da igualdade perante a lei,
mas, desigualando, na prática, os desiguais, rendendo culto à
isonomia‟.20
Ou seja, segundo Lenza, deve-se buscar não só a igualdade
formal, mas, principalmente, a igualdade material, na medida em que a lei deverá
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas
desigualdades.21
A própria Constituição, em diversas hipóteses, encarrega-se
de aprofundar a regra da igualdade material, como nos seguintes exemplos:
a) Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil:
17
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit., p. 22.
18
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 13 fev. 2010.
19
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. p. 11.
20
SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória: aspectos práticos e teóricos à elaboração. 3.
ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008. p. 72.
21
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 10. ed. São Paulo: Editora Método, mar./2006. p.
531.
14
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
b) Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas
relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição;
[...]
XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
[...]
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e
liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; [...] 22
22
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 13 fev. 2010.
15
Em outras, esclarece Lenza, o constituinte estabeleceu
desigualdades, como, por exemplo, quando garante às presidiárias condições
para que possam permanecer com seus filhos durante o período de
amamentação (artigo 5º, L, CF/88) ou quando diferencia o período de licença à
gestante e licença-paternidade (artigo 5º, incisos VVIII e XIX, CF/88).23
O que se veda, segundo Moraes, são as discriminações
absurdas, as diferenciações arbitrárias, uma vez que o tratamento desigual nos
casos de desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio
conceito de Justiça.24 Dessa forma, explica Carvalho, a lei só pode tratar com
desigualdade as pessoas havendo motivação razoável, isto é, desde que seja
mais importante prestigiar um outro valor constitucional.25
Nesse sentido, não basta que a lei seja aplicada igualmente
a todos que estão previstos na sua hipótese de incidência, mas a própria lei não
pode conter diferenciações que a Constituição não permita explícita ou
implicitamente. Ademais, tampouco é suficiente uma igualdade meramente
formal, ou seja, apenas na lei, pois deve ser levada em consideração a igualdade
material, isto é, a igualdade na realidade social.
2.3 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE OU DA RESERVA LEGAL
A gravidade dos meios que o Estado emprega na repressão
do delito, a drástica intervenção nos direito fundamentais das pessoas, bem como
o caráter de ultima ratio que esta intervenção deve ter, acarretaram, segundo
Bitencourt, a busca de um princípio que controle o poder punitivo estatal e que
limite sua aplicação a limites que excluam toda a arbitrariedade e excesso.26
23
LENZA, Pedro. op. cit., p. 531.
24
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 64.
25
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit., p. 22.
26
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v.
1, p. 10.
16
Ainda segundo Bitencourt, embora o princípio da legalidade
ou da reserva legal constitua hoje um princípio fundamental do direito penal, o seu
reconhecimento decorreu de um longo processo, com avanços e recuos, não
passando, muitas vezes, de mera fachada formal em determinados Estados. 27
O princípio do nullun crimen, nulla poena sine lege, como
consagrado por Feuerbach no início do século XIX, para Mirabete, tem sua
origem remota na Magna Carta de 1215, de João Sem Terra, que em seu artigo
39 previa que nenhum homem livre podia ser punido senão pela lei da terra. 28
Mirabete explica, também, que, por meio do pensamento
iluminista, no século XVIII, o referido princípio foi incluído no artigo 8º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789, nos seguintes
termos: “Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e
promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada”.
29
Damásio afirma que a Constituição de 1824, inspirada nas
regras do individualismo político da Revolução Francesa, estabelecia que:
“ninguém será sentenciado senão por autoridade competente, por virtude de lei
anterior, e na forma por ela prescrita” (art. 179, 11). Com algumas variações, essa
disposição foi reproduzida nas Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967.30
Para Lenza, seguindo a orientação moderna, a Constituição
Federal de 1988, em redação superior às anteriores, ao proteger os direitos e
garantias fundamentais, em seu artigo 5º, inciso XXXIX, determina que “não
haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal”.31 Opõe-se, dessa forma, a toda e qualquer forma de poder autoritário,
antidemocrático.32
27
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 11.
28
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 1, p.
55.
29
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. p. 55.
30
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. p. 62/63.
31
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 11.
32
LENZA, Pedro. op. cit., p. 531.
17
O princípio da legalidade, sem dúvida alguma, constitui,
segundo Greco, norma básica do Direito Penal moderno, tendo sido previsto
expressamente em todos os nossos Códigos Penais, desde o Código Criminal do
Império, de 1830, até a reforma da parte geral do Código de 1940, ocorrida em
1984.33
Conforme disciplina o artigo 1º do Código Penal, “não há
crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia imposição legal”. Disso
se extrai, complementa Greco, que “a lei é a única fonte do Direito Penal quando
se quer proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção. Tudo o que não for
expressamente proibido é lícito em Direito Penal”. 34
Cezar Roberto Bitencourt explana:
Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio
da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função
exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e
nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da
ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e
cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com
precisão e de forma cristalina a conduta proibida.35
No mesmo sentido, Julio Fabbrini Mirabete leciona:
Pelo princípio da legalidade alguém só pode ser punido se,
anteriormente ao fato por ele praticado, existir uma lei que o
considere como crime. Ainda que o fato seja imoral, antissocial ou
danoso, não haverá possibilidade de se punir o autor, sendo
irrelevante a circunstância de entrar em vigor, posteriormente,
uma lei que o preveja como crime. O também denominado
princípio da reserva legal tem, entre vários significados, o da
reserva absoluta da lei (emanada do Poder Legislativo, através de
procedimento estabelecido em nível constitucional) para a
definição dos crimes e cominação das sanções penais, o que
afasta não só as outras fontes do direito como as regras jurídicas
que não são lei em sentido estrito, embora tenham o mesmo
33
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. p. 95.
34
GRECO, Rogério. op. cit., p. 94.
35
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 11.
18
efeito, como ocorre, por exemplo, com a medida provisória,
instrumento totalmente inadequado para tal finalidade. Já decidiu
o STJ que não se confere a eventual Medida provisória o poder de
legislar sobre matéria penal, tema privado do Congresso
Nacional.36
Assim, tendo como objetivo a aplicação de uma pena, não
se pode atribuir uma determinada conduta a uma pessoa sem que haja
observância ao princípio da legalidade, uma vez que, segundo Bissoli Filho, esse
princípio pode ser concebido como “a primeira grande limitação à criminalização
conquistada no âmbito do Estado moderno liberal, constituindo-se na principal e
primeira garantia do indivíduo em face do poder punitivo estatal”.37
É um princípio de afirmação da cidadania, pois contrapõe-se
a todas as formas de poder autoritário, pois tem como base a soberania popular.
Dessa forma, de modo geral, pelo princípio da legalidade ou da reserva legal,
nenhum fato pode ser considerado crime se não existir uma lei que assim o
enquadre e, nenhuma pena pode ser aplicada, se não houver sanção préexistente e correspondente ao fato.
2.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Atualmente, o princípio da proporcionalidade tem sido tema
de diversas discussões, cujas raízes, embora remontem à Antiguidade, somente
conseguiram firmar-se durante o período iluminista, principalmente com a obra de
autoria do Marquês de Beccaria, intitulada Dos Delidos e Das Penas, cuja
primeira edição apareceu em 1764. Em seu § XLII, Beccaria afirma que, “para não
ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial,
pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias
referidas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”. 38
36
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. p. 55/56.
37
BISSOLI FILHO, Francisco. Linguagem e criminalização: a constitutividade da sentença penal
condenatória. p. 395.
38
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 11ª ed. São Paulo: Hemus Editora Limitada, 1998. p. 97.
19
A declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, em seu artigo 15, já determinava a observância do princípio da
proporcionalidade entre a gravidade do crime praticado e a sanção a ser aplicada,
in verbis: „a lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais
ao delito‟. Entretanto, segundo Bitencourt, o princípio da proporcionalidade é uma
consagração do constitucionalismo moderno, sendo recepcionado pela atual
Constituição Federal brasileira em vários dispositivos, tais como: exigência da
individualização da pena (art. 5º, XLVI), proibição de determinadas modalidades
de sanções penais (art. 5º, XLVII), admissão de maior rigor para infrações mais
graves (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV, dentre outros.39
No entendimento de Luís Paulo Sirvinskas:
O princípio da proporcionalidade, também conhecido por princípio
da proibição de excesso, consiste na aplicação da pena adequada
e necessária ao tipo penal. A pena deve ser, em outras palavras,
suficiente e eficaz ao delito cometido, ou seja, não pode
ultrapassar os limites do crime cometido. Assim, a sanção deve
ser proporcional a gravidade do delito cometido pelo delinquente.
Feito o diagnóstico, o médico deverá aplicar ao paciente o
remédio adequado e na dose exata para extirpar a doença. Se for
ministrado remédio inadequado e em dose acima do necessário,
poderá levar o paciente a morte ou, se abaixo, tornar-se-ia
ineficaz.40
A exigência de proporcionalidade deve ser determinada
mediante um juízo de ponderação (através) da carga coativa da pena e o fim
perseguido pela cominação penal. Assim, para Bitencourt, pelo princípio da
proporcionalidade na relação entre crime e pena deve existir um equilíbrio –
abstrato (legislador) e concreto (judicial) – entre a gravidade do injusto penal e a
pena aplicada.41
Paulo Queiroz complementa:
39
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 24.
40
SIRVINSKAS, Luís Paulo. op. cit., p. 461.
41
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 27.
20
Segundo esse princípio, deve o castigo guardar proporção com a
gravidade do crime praticado, ou, dito de outra forma, tal princípio
requer um juízo de ponderação entre a carga de privação ou
restrição de direito que a pena comporta e o fim perseguido com a
incriminação e com as penas em questão. Divide-se em: a)
proporcionalidade abstrata (ou legislativa), que ocorre quando se
tem de eleger as sanções (penas e medidas de segurança) mais
apropriadas (seleção qualitativa), bem assim ao estabelecer a
graduação (mínimo e máximo) dos castigos aos crimes (seleção
quantitativa); b) proporcionalidade concreta ou judicial (ou
individualização), que deve orientar o juiz quando do julgamento
da lide penal, promovendo o ajustamento e individualização da
pena ao caso concreto, podendo, inclusive, chegar, nalguns
casos, à absolvição mesma, se se entender, por exemplo, pela
aplicação do perdão judicial (quando cabível) ou do princípio da
insignificância; c) proporcionalidade executória, que corresponde à
individualização gradual da pena durante a execução penal
segundo o mérito do condenado, progredindo de regime, obtendo
livramento condicional, indulto ou eventualmente regredindo de
regime. O princípio tem, portanto, tríplice destinatário: o legislador,
o juiz da causa e os órgãos da execução penal.42
Outrossim, importante referir-se à proporcionalidade em
concreto, como aquela levada a efeito pelo juiz, onde sua aferição não é tão
tormentosa quanto aquela que deve ser realizada no plano abstrato. Assim, Greco
ressalta que o artigo 68 do Código Penal, ao implementar o critério trifásico de
aplicação da pena, forneceu ao julgador meios para que pudesse, no caso
concreto, individualizar a pena do agente, encontrando, com isso, aquela
proporcional ao fato por ele cometido.43
Luís Paulo Sirvinskas ainda explica que:
Apesar da dificuldade que existe em se apurar a exata proporção
entre o delito e a pena, o juiz, ao aplicar a pena, deverá analisar a
culpabilidade do agente do crime. A extensão dos danos e a
responsabilidade do agente deverão ser levadas em consideração
42
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 3ª ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 48.
43
GRECO, Rogério. op. cit., p. 78.
21
na fixação da pena. A pena tem a finalidade de prevenir outros
crimes, servindo de exemplo aos demais cidadãos.44
Desta forma, segundo Bitencourt, pode-se afirmar que um
sistema penal somente estará justificado quando a soma das violências – crimes,
vinganças e punições arbitrárias – que ele pode prevenir for superior à das
violências constituídas pelas penas que cominar. Em suma, é indispensável que
os direitos fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis (e
intocáveis), afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los,
deve garanti-los.45
Nesse sentido, compreende-se que a pena deve ter uma
relação proporcional com o bem jurídico tutelado/lesionado no caso concreto,
além da proporcionalidade que deve haver entre os fins que foram obtidos com a
pena. Logo, pode-se dizer que o princípio da proporcionalidade irá incidir em
momentos distintos. Primeiro no momento legislativo, quando a cominação da
pena em abstrato deverá levar em consideração a gravidade do delito, o dano
causado à sociedade, para chegar a uma pena proporcional. Já no momento
judicial, quando da aplicação da pena pelo Juiz, deverá levar em consideração os
meios e os fins da pena, e essa deverá ser proporcional a gravidade do ato
praticado.
2.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE
Entende-se
por
princípio
da
culpabilidade,
segundo
Damásio, que, a pena só pode ser imposta a quem, agindo com dolo ou culpa,
cometeu um fato típico e antijurídico. Considera-se como um fato individual: o
juízo de reprovabilidade (culpabilidade), elaborado pelo juiz, recai sobre o sujeito
imputável que, podendo agir de maneira diversa, tinha condições de alcançar o
conhecimento da ilicitude do fato (potencial consciência da antijuridicidade). O
juízo de culpabilidade, que serve de fundamento e medida da pena, repudia a
44
SIRVINSKAS, Luís Paulo. op. cit. p. 461.
45
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 28.
22
responsabilidade penal objetiva (aplicação de pena sem dolo, culpa e
culpabilidade).46
A respeito da culpabilidade, leciona Bittencourt:
Atribui-se, em direito penal, um triplo sentido ao conceito de
culpabilidade, que precisa ser liminarmente esclarecido. Em
primeiro lugar, a culpabilidade, como fundamento da pena, referese ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao
autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal.
Para isso, exige-se a presença de uma série de requisitos –
capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e
exigibilidade da conduta – que constituem os elementos positivos
específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência
de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a
aplicação de uma sanção penal. Em segundo lugar, a
culpabilidade, como elemento da determinação ou medição da
pena. Nessa acepção a culpabilidade funciona não como
fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a
pena seja imposta além da medida prevista pela própria ideia de
culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios, como importância
do bem jurídico, fins preventivos etc. E, finalmente, em terceiro
lugar, a culpabilidade, como conceito contrário à responsabilidade
objetiva. Nessa acepção, o princípio de culpabilidade impede a
atribuição da responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por
um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado
com dolo ou culpa.47
Rogério Greco entende que:
Culpabilidade diz respeito ao juízo de censura, ao juízo de
reprovabilidade que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada
pelo agente. Reprovável ou censurável é aquela conduta levada a
efeito pelo agente que, nas condições em que se encontrava,
podia agir de outro modo. Na precisa lição de Miguel Reale Júnior,
„reprova-se o agente por ter optado de tal modo que, sendo-lhe
possível atuar em conformidade com o direito, haja preferido agir
contrariamente ao exigido pela lei‟. E continua dizendo que
46
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. p. 11.
47
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 16.
23
„culpabilidade é um juízo sobre a formação da vontade do
agente.48
Importante frisar, segundo Mirabete, que, em face do
princípio da culpabilidade, além da exigência de dolo ou culpa na conduta do
agente, afastada a responsabilidade objetiva, é indispensável que a pena seja
imposta ao agente por sua própria ação e não por eventual defeito de caráter
admitido culpavelmente pela sua vida pregressa.49
Ferrajoli assevera que:
Da mesma forma que as outras garantias penais, ou quiçá mais,
este princípio é, também, uma conquista moderna ignorada pela
maioria dos ordenamentos primitivos. Na fase arcaica e
jusprivatista do direito penal, quando a pena era considerada
„vingança de sangue‟, encomendada como direito-dever à parte da
ofendida e ao seu grupo familiar, a responsabilidade penal
equiparava, solidariamente, o ofensor e seus parentes, como
consequência quase exclusiva do elemento objetivo da lesão, e
não da imputação direta ao seu autor, nem sequer das suas
intenções. Assim, no primeiro direito grego, a punição prescinde
da voluntariedade do delito e, em razão de uma necessidade fatal
que não distingue culpáveis de inocentes, pode alcançar não
somente o defensor, como, também, outros membros de seu
círculo de parentes.50
Assim, Bintencourt conclui que, pelo princípio em exame,
não há pena sem culpabilidade, decorrendo então, três situações: 1. não há
responsabilidade objetiva pelo simples resultado; 2. a responsabilidade penal é
pelo fato e não pelo autor; e 3. a culpabilidade é a medida da pena.51
Com isso, esta concepção do princípio da culpabilidade, que
busca a exata medida da penalização, representa uma garantia ao próprio
condenado de que a sanção a ele aplicada não será superior ao justo limite de
48
GRECO, Rogério. op. cit., p. 89.
49
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. p. 57.
50
FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 447.
51
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 17.
24
sua culpabilidade, considerando-se a extensão e a proporcionalidade da conduta
ofensiva ao bem jurídico penalmente tutelado.
2.6 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE
A atual Constituição Federal, segundo Schmitt, primou pela
humanização das penas, uma vez que nosso ordenamento jurídico penal baseiase num sistema de progressividade, pois a ressocialização do agente infrator é
uma das bases do nosso sistema punitivo, o qual não permite a exclusão total de
alguém do meio social. Por isso, encontram-se vedadas as penas de morte, salvo
em caso de guerra declarada (art. 84, XIX, da CF/88), de caráter perpétuo, de
trabalhos forçados, de banimento e cruéis (art. 5º, XLVII, da CF/88), bem como se
encontra assegurado aos presos o respeito a integridade física e moral (art. 5º,
XLIX, da CF/88).52
Bittencourt entende que:
O princípio de humanidade do Direito Penal é a maior entrave
para a adoção da pena capital e da prisão perpétua. Esse
princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar
sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que
lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados. A
proscrição de penas cruéis e infamantes, a proibição de tortura e
maus-tratos nos interrogatórios policiais e a obrigação imposta ao
Estado de dotar sua infra-estrutura carcerária de meios e recursos
que impeçam a degradação e a dessocialização dos condenados
são corolários do princípio da humanidade. Segundo Zaffaroni,
esse princípio determina a inconstitucionalidade de qualquer pena
ou consequência do delito que crie uma deficiência física (morte,
amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica
etc.), como também qualquer consequência jurídica inapagável do
delito.53
52
SCHMITT, Ricardo Augusto. op. cit., p. 71/72.
53
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 17.
25
Recomenda-se, segundo Bitencourt, que o princípio da
humanidade seja reinterpretado no que se pretende com reeducação e reinserção
social, uma vez que se forem determinados coativamente implicarão atentado
contra a pessoa como ser social.54
Bittencourt complementa:
Contudo, não se pode olvidar que o Direito Penal não é
necessariamente assistencial e visa primeiramente à Justiça
distributiva, responsabilizando o delinquente pela violação da
ordem jurídica. E isso, na lição de Jescheck, „não pode ser
conseguido sem dano e sem dor, especialmente nas penas
privativas de liberdade, a não ser que se pretenda subverter a
hierarquia dos valores morais e utilizar a prática delituosa como
oportunidade para premiar, o que conduziria ao reino da utopia.
Dentro destas fronteiras, imposta pela natureza de sua missão,
todas as relações humanas reguladas pelo Direito Penal, devem
ser presididas pelo princípio da humanidade.55
Destarte, oportuno registrar que, por força do princípio da
humanidade, na execução das sanções penais, na concepção de Mirabete, deve
existir uma responsabilidade social com relação ao sentenciado, em uma livre
disposição de ajuda e assistências sociais direcionadas à recuperação do
condenado.56
Temos aqui, que a perspectiva de função social da pena é
justamente cuidar daqueles que possuem enfermidades comportamentais que por
certas atitudes entram em conflito com o ordenamento jurídico. Pelo viés do
princípio da humanidade, não se pode conceber um Direito Penal carrasco,
busca-se, ao contrário, lutar por uma penalidade justa e capaz de dar ao apenado
a possibilidade de se emendar, curar.
54
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 17.
55
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 17.
56
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. p. 57.
26
2.7 PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM
O princípio do non bis in idem, embora não esteja previsto
na atual Constituição Federal, tem, no dizer de Jorio, sua presença garantida no
sistema jurídico-penal de um Estado Democrático de Direito. Certamente teve
maior relevância com o incremento do respeito à dignidade da pessoa humana e
com a consolidação de um Direito Penal que se ocupa especialmente com o fato
delituoso, ao invés de concentrar-se na perseguição, rotulação e segregação do
indivíduo ao qual se apôs o rótulo de criminoso. É a prevalência do Direito Penal
do fato sobre o Direito Penal do autor.57
Damásio pontua que:
Ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Possui
duplo significado: 1.º) penal material: ninguém pode sofrer duas
penas em face do mesmo crime; 2.º) processual: ninguém pode
ser processado e julgado duas vezes pelo mesmo fato.58
Para Jorio, o referido princípio estabelece, em primeiro lugar,
que ninguém poderá ser punido mais de uma vez por uma mesma infração penal.
Ademais, a partir de uma compreensão mais ampla, desenvolveu-se o gradativo
aumento da sua importância. Atualmente, uma das suas mais relevantes funções
é a de balizar a operação de dosimetria da pena realizada pelo magistrado.59
Paulo Queiroz esclarece que:
Também em razão do princípio da proporcionalidade (bem como
do princípio da estrita legalidade), é vedado o bis in idem, isto é,
dupla valoração do mesmo fato jurídico, de modo a agravar a
pena. Semelhante princípio proíbe, portanto, a duplicidade das
sanções para o mesmo sujeito, por um mesmo fato e por sanções
que tenham um mesmo fundamento, isto é, que tutelem o mesmo
57
JORIO, Israel Domingos. Princípio do “non bis in idem”: uma releitura à luz do direito penal
constitucionalizado. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1161, 5 set. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8884>. Acesso em: 13 fev. 2010.
58
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. p. 11.
59
JORIO, Israel Domingos. op.cit.
27
bem jurídico. O legislador, porém, não raro vulnera claramente o
mandamento de proporcionalidade.60
Ana Cristina Borba Alves pondera que o princípio do non bis
in idem:
[...] é fato incontroverso, na doutrina e na jurisprudência, que,
dentro do nosso ordenamento jurídico, encontramos – e é aceita
sua validade -, conectado direta e imediatamente com o princípio
da legalidade, o princípio do ne bis in idem, que obsta a aplicação
de mais de uma pena a um mesmo fato ou a aplicação de uma
agravante já considerada no tipo básico. O que o princípio
„proscreve é a duplicidade de sanções para uma mesma pessoa,
por um mesmo fato e por sanções que tenham um mesmo
fundamento, ou, dito de outra forma, que tutelem um mesmo bem
jurídico.61
Por
fim,
importante
entender
que
se
consolidou
o
entendimento de que uma mesma circunstância não deverá ser valorada em mais
de um momento ou em mais de uma das fases que compõem o sistema trifásico
estabelecido pelo artigo 68 do Código Penal. Assim, pode-se afirmar que uma
condenação penal transitada em julgado que se presta à caracterização da
reincidência, não pode funcionar, na fase da fixação da pena-base, como mau
antecedente, conforme disciplina a Súmula 241 do STJ62.63
60
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 49.
61
ALVES, Ana Cristina Borba. A reincidência do sistema penal brasileiro. Revista Jurídica. Ano 54. nº 348.
p. 77-105. Out. 2006. p. 97.
62
Súmula: 241 – “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e,
simultaneamente, como circunstância judicial”. Aceso em:
<http://www.stj.jus.br/docs_internet/VerbetesSTJ_asc.txt>. Acesso em: 13 fev. 2010.
63
JORIO, Israel Domingos. op.cit.
28
3 OS ANTECEDENTES E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL
Os antecedentes e a reincidência criminal, embora sejam
semelhantes em alguns aspectos, possuem características diferentes, podendo
afirmar que a reincidência é espécie e os antecedentes gênero, vez que tratam da
vida pretérita do indivíduo.64
3.1 ANTECEDENTES CRIMINAIS
3.1.1 Conceito e características
Segundo Queiroz, antecedentes são os fatos, bons ou maus,
anteriores à conduta do acusado, sendo, pois, merecedores de apreciação na
sentença, seja para reprová-la, seja para aprová-la.65 Servem, segundo Delmanto,
para verificar se o delito foi um episódio esporádico na vida do indivíduo ou se ele,
com frequência, infringe a lei.66 Ou seja, sua finalidade, juntamente com as
demais circunstâncias previstas no artigo 59, do Código Penal67, é, no dizer de
Bitencourt, demonstrar a maior ou menor afinidade do réu com a prática
delituosa.68
Para Ricardo Schmitt, é certo que os antecedentes
configuram-se na circunstância judicial de maior importância na fixação da penabase, pois sua valoração negativa leva a crer que a condenação anterior não
64
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal.
Florianópolis: Editora Obra Jurídica, 1998. p. 59.
65
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 369-370.
66
DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 7ª ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p.
187.
67
“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do
agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima,
estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. BRASIL.
Código Penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em:
16 fev. 2010.
68
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 627.
29
cumpriu seu papel reabilitador frente ao acusado, o que leva, na maioria das
vezes, à fixação da pena acima do mínimo legal previsto em abstrato.69
Na visão de Miguel Reale Júnior
Os antecedentes não dizem respeito à „folha penal‟, e seu
conceito é bem mais amplo, pois como assinala Nilo Batista o
exame do passado judicial do réu é apenas uma fração. Por
antecedentes deve-se entender a forma de vida em uma visão
abrangente, examinando-se o seu meio de sustento, a sua
dedicação a tarefas honestas, a assunção de responsabilidades
familiares. Em suma a lição de Hungria é exata: „Ao juiz compete
extrair-lhe a conta corrente, para ver se há saldo credor ou
devedor‟.70
Não há que se confundir as noções de maus antecedentes
com reincidência. Os maus antecedentes representam os fatos anteriores ao
crime, relacionados ao estilo de vida do acusado e, desta forma, não é necessário
a existência de condenação definitiva por tais fatos anteriores. A data da
condenação é, pois, irrelevante para a configuração dos maus antecedentes
criminais, ao contrário do que se verifica no caso da reincidência.
Na obra Estigmas da criminalização: dos antecedentes à
reincidência criminal, Francisco Bissoli Filho sustenta que, a partir do conceito de
antecedentes, é possível concluir que o instituto tem por características a
amplitude, a negatividade, a subjetividade, a relatividade, a antijuridicidade e a
perpetuidade.71
A amplitude é no sentido de que, qualquer fato anterior ao
delito, seja bom ou mau, que envolva qualquer espécie de relação do acusado,
pode ser considerado como antecedentes. Já a negatividade é retirada do
69
SCHMITT, Ricardo. op. cit., p. 84.
70
REALE JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; ANDREUCCI, Ricardo Antunes; et al. Penas e medidas de
segurança do novo código. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 161.
71
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 64.
30
confronto entre o conceito de antecedentes produzido pela Dogmática Penal e as
situações por esta consideradas como tal.72
Assim, não obstante o conceito inicial de antecedentes considere
como tal qualquer situação (positiva ou negativa) que revele a
conduta, o comportamento anterior do autor do fato criminoso, ou
os fatos ou episódios, nos quais este tenha se envolvido, as
situações acima elencadas, por se restringirem basicamente aos
antecedentes „judiciais‟ e „policiais‟, acabam considerando apenas
os „maus‟ antecedentes, uma vez que os registros existentes nas
repartições públicas, mormente das agências judiciais e policiais,
via de regra revelam o envolvimento do indivíduo em fatos
„negativos‟. Dentre as situações elencadas pelo conjunto de
autores não se situam aquelas que revelam fatos, episódios,
condutas ou comportamentos bons ou ótimos da vida do
indivíduo, tais como, por exemplo, os processos de adoção e
guarda de menores carentes e desassistidos, prestação de
serviços públicos relevantes (como jurado, como membro do
serviço eleitoral e em atividades comunitárias).73
No que se refere à subjetividade, esta decorre da amplitude
do que vem a ser considerado como antecedentes, uma vez que a vida anterior
do acusado é analisada por critérios pessoais do magistrado. A relatividade, por
sua vez, é atribuída ao fato de que são levados em conta apenas os registros
policiais ou judiciais para análise dos antecedentes, os quais não são suficientes
para revelar a boa ou má conduta do indivíduo, que pode ter uma vida pontilhada
de deslizes sem ter registros policiais, bem como pode possuir antecedentes e ter
praticado atos de benemerência ou de especial valor social.74
A antijuridicidade também é consequência do amplo
conceito de antecedentes, pois como vimos, permite que sejam considerados
como tais processos e inquéritos em trâmite, assim como inquéritos arquivados,
violando os princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da
ampla defesa. Por derradeiro, a perpetuidade procede do fato de que os
72
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 64.
73
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 64.
74
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
64/65.
31
antecedentes não possuem uma limitação temporal, ao contrário da reincidência
criminal.75 Assim, segundo Carvalho, urge instituir sua temporalidade, fixando um
prazo determinado para os efeitos impostos pela lei penal, o que pode ser feito,
neste momento, recorrendo-se à analogia, limitando o prazo da incidência dos
antecedentes no marco de cinco anos – delimitação temporal da reincidência.76
Não é diferente o entendimento do doutrinador Salo de
Carvalho ao afirmar que:
Não obstante as críticas dirigidas ao instituto da reincidência,
entendemos pertinente ampliá-las ao problema da antecedência
criminal. É notório que a natureza dos antecedentes guarda
estreita sintonia com a da reincidência, ou seja, ambos versam
sobre graduações valorativas (negativas) da vida pregressa do
acusado. A consideração dos antecedentes, porém, representa
gravame penalógico de caráter perpétuo, em total afronta ao
princípio constitucional da humanidade (art. 5º, XLVII, alínea b, da
CF). Desta forma, através do recurso à analogia, cremos
imprescindível estabelecer, num primeiro momento, sua
temporalidade, fixando prazo idêntico ao do art. 64, I, do CP (cinco
anos) para, em momento posterior, negar sua aplicação em
decorrência dos vícios de constitucionalidade já demonstrados
anteriormente na avaliação da reincidência.77
Dessa forma, Schmitt entende que, se a reincidência se
revela um aumento de pena em razão da reprovação da conduta assim como os
antecedentes, não parece lógico que os efeitos daquela desapareçam pelo
decurso do tempo enquanto esta perdure pelo resto da vida do condenado. 78
Já no que concerne à prova dos antecedentes, o penalista
Celso Delmanto sustenta que “a folha de antecedentes policiais e as certidões
dos distribuidores criminais não são suficientes para este exame, sendo
75
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 65.
76
CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3ª ed. ampl. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2004. p. 52.
77
CARVALHO, Salo de. Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco garantista.
Revista de Estudos Criminais. ano 1, p. 109/119, 2001, nº 1. p. 118.
78
SCHMITT, Ricardo. op. cit., p. 88.
32
necessárias certidões dos cartórios das Varas para as quais foram distribuídos os
inquéritos e outros feitos”.79
3.1.2 Fatos a serem considerados como antecedentes
Acerca dos antecedentes, é possível identificar dois
entendimentos na prática judicial brasileira.
A posição tradicional considera, segundo Carvalho Neto, que
para efeitos de maus antecedentes, quaisquer fatos relevantes anteriores ao
crime, como, por exemplo, os processos paralisados por superveniente extinção
da punibilidade, inquéritos arquivados, condenações não transitadas em julgado,
processos em curso e absolvições por falta de provas.80
Damásio de Jesus ainda acrescenta que, considerando a
necessidade de apuração dos antecedentes pelo Código de Processo Penal (art.
6º, inciso IX)81, devem ser levados em consideração todos os fatos da vida
pregressa do agente, sejam bons ou maus, como as condenações penais
anteriores, as absolvições penais anteriores, as passagens pela Justiça da
Infância e Juventude, a suspensão ou perda do poder familiar, a tutela ou
curatela, a falência, a condenação em separação judicial etc.82
No mesmo vértice, Inácio Carvalho Neto entende que:
[...] não se trata de considerar o réu culpado por aquele fato cujo
processo ainda não tem sentença penal condenatória transitada
em julgado. Mas, tão somente, de levar em consideração o
envolvimento dele em outro processo judicial ou inquérito policial,
sem valorar tal fato como imputação de culpa. Não se trata,
79
DELMANTO, Celso. op. cit., p. 187.
80
CARVALHO NETO, Inacio de. Aplicação da pena. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2008. p. 47/48.
81
“Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: [...] IX averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição
econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros
elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter”. BRASIL. Código de
Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso
em: 16 fev. 2010.
82
JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. p. 554.
33
portanto, de atribuir ao réu „consequência própria do status de
condenado‟.83
Por outro lado, a posição crítica, levando em consideração o
princípio constitucional da presunção de inocência, considera maus antecedentes
somente as condenações criminais definitivas anteriores que não configurem a
reincidência criminal, excluindo todas as outras hipóteses.84
Consequentemente, inquéritos policiais e processos penais
em andamento não configuram maus antecedentes, vez que aqueles não passam
de mero procedimento administrativo, não estando submetidos sequer ao crivo do
contraditório e da ampla defesa, gerando apenas uma possibilidade de
instauração da ação penal, que poderá ou não ocorrer, enquanto estes possuem
um longo caminho a percorrer até a prolação da sentença penal.
Igualmente, inquéritos policiais e processos criminais,
arquivados, bem como condenações não transitadas em julgado, não podem ser
considerados como maus antecedentes, pois como ressalta Paulo Queiroz,
[...] a se permitir tal coisa, condenar-se-ia o réu sutil e
reflexamente, realizando-se, assim, pela via indireta, o que a lei
proíbe pela via direta, quanto a fatos em relação aos quais poderá
ser eventualmente absolvido ou ver extinta a punibilidade. E, com
maior força de razões, não podem ser considerados, para esse
efeito, fatos desabonadores e mesmo criminosos que nem sequer
foram objeto de investigação policial. Também não podem ser
(re)considerados os fatos que já foram tomados em conta na
própria sentença, sob pena de ocorrer bis in idem. Se assim é,
que restaria então? Unicamente, as condenações com trânsito em
julgado que, apesar disso, não importam em reincidência na forma
da lei.85
83
CARVALHO NETO, Inacio de. op. cit., p. 53.
84
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: Lumen Juris, 2007. p. 563.
85
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 369-370.
34
Ainda cabe ressaltar uma passagem de Francisco Bissoli
Filho a respeito:
O processo penal brasileiro é estruturado sobre pressupostos que
levam o réu a ser julgado pelo fato praticado e não pelos seus
antecedentes. Estes constituem uma circunstancia inerente à sua
pessoa, indicadora de sua personalidade, de sua conduta social e
da sua periculosidade. São condições pessoais, não do fato. Não
devem obrigatoriamente constar da peça acusativa, consoante o
que dispõe o Direito Positivo Processual Penal brasileiro. Por isso,
não pode o agente defender-se de uma circunstancia relativa à
sua pessoa, se não fizer parte do fato pelo qual está sendo
julgado e que não constou da acusação que lhe é formulada. Não
podendo defender-se de uma circunstancia que é mencionada em
seu desfavor, não pode a mesma ser considerada em seu
prejuízo. Para que não se desrespeite o princípio da ampla defesa
e para que possa influenciar nas várias instâncias do processo
penal, deverão os „maus antecedentes‟ comporem a descrição
contida na peça acusativa. No entanto, o que se verifica é que,
apresar de não constar da acusação, os antecedentes são
considerados em várias ocasiões, produzindo, assim,
consequências antijurídicas.86
Por fim, merece destaque a posição assumida pelo Ministro
Marco Aurélio de Melo na decisão monocrática proferida no Agravo de
Instrumento 295673/RS, quando assevera que “o princípio da não culpabilidade
afasta a consideração de processos em curso – e, até mesmo, de sentenças
condenatórias, desde que não transitadas em julgado – como configuradores de
maus antecedentes”, bem como a do Ministro Gilmar Mendes, ao afirmar que “a
mera existência de inquéritos ou ações penais em andamento não podem
caracterizar maus antecedentes, sob pena de violar o princípio constitucional da
não culpabilidade” (Boletim STF 390/2005).
86
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 66.
35
3.1.3 Efeitos jurídicos gerados pelos antecedentes no sistema penal
brasileiro
Como leciona Francisco Bissoli Filho, os antedentes têm
uma grande influência na aplicação de vários institutos previstos em lei,
geralmente impedindo o exercício de determinados direitos, de forma que o
indivíduo detentor de “maus antecedentes” é tratado de forma diferente em
relação aos demais.87 Nessa esteira, a título de exemplificação, tal fato pode
ocasionar:
a) aumento da pena base na primeira fase da dosimetria da
pena (art. 59, CP);
b) impossibilidade de concessão da substituição da pena
(art. 44, III, CP) e do sursis (art. 77, II, CP);
c) influência negativa na fixação do regime inicial de
cumprimento da pena (art. 33, §3º, CP).
3.2 REINCIDÊNCIA CRIMINAL
3.2.1 Breve histórico e conceito
Segundo Fauth, o vocábulo reincidência deriva da expressão
latina re-incidere e recidere, sendo composta pelo prefixo re, que significa
repetição, e pela palavra incidência, que indica acontecimento ou caída sobre
algo. Assim, reincidência significa, em seu sentido literal, recair, tornar a incidir,
repetir o ato.88
No sentido jurídico, o termo significa a repetição de um
delito, o cometimento de um novo crime após a prática do anterior. Mais do que
isso, “reincidência significa o cometimento de nova infração penal, após o sujeito
87
88
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 68.
Fauth, Isabel C. F. A reincidência criminal e a culpabilidade pela vulnerabilidade. In: A crise do processo
penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre/RS: Notadez, 2006. p. 147159. p. 148.
36
ter sido responsabilizado criminalmente por um crime pretérito, tendo, em regra,
sofrido uma pena”.89
Miguel Reale Júnior define a reincidência da seguinte forma:
A reincidência é uma espécie de reiteração delituosa. A reiteração
constitui, também, índice a ser levado em conta pelo magistrado
na fixação da pena, uma vez que se ressalta a necessária
referência aos antecedentes e conduta social na dosagem da
justa medida. Distingue-se, todavia, a reincidência da reiteração
delituosa, exatamente porque na reincidência exige-se a
existência de uma condenação anterior transitada em julgado. É,
mas não apenas, um limite formal. A relação não é entre o
primeiro e o segundo delito, como bem observa Zaffaroni, mas
entre o segundo delito e a condenação anterior. O novo delito
revela a ineficácia da persecução penal e da condenação com
vistas à prevenção especial individual do condenado, e a maior
culpa pela obrigação de respeitar a lei pela lembrança da
experiência vivida. Soma-se, também, um interesse social de se
levar em conta a reincidência para se atender ao necessário e
suficiente à prevenção especial, com vistas à defesa da
sociedade.90
Ainda, Paulo Queiroz esclarece que:
Em face do princípio constitucional da presunção de inocência
(CF, art. 5º, LVII), reincidente somente pode ser considerado
quem tenha cometido novo crime após transitar em julgado
sentença penal condenatória que o tenha condenado por crime
anterior (CP, art. 63). A reincidência requer, por conseguinte, o
concurso de dois requisitos: a) trânsito em julgado de sentença
penal condenatória por crime anterior; b) cometimento de novo
crime. Assim, pode ocorrer de o agente praticar diversos crimes
sucessivamente e, não obstante, vir a ser considerado, em todos
os processos contra si instaurados, não reincidente. [...] Portanto,
para a configuração da reincidência, não basta, simplesmente, o
cometimento de novo crime; é imprescindível que esse novo crime
tenha sido cometido após transitar em julgado a sentença que, no
Brasil ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.
89
Fauth, Isabel C. F. op. cit., p. 148.
90
REALE JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; ANDREUCCI, Ricardo Antunes; et. al. op. cit., p. 176/177.
37
Também não basta, naturalmente, que tenha havido uma
sentença condenatória, se esta, ainda que pendente de recurso,
não passou em julgado.91
O Código Penal não define o que é o instituto, somente
indica as condições de sua verificabilidade nos artigos 6192, 6393 e 6494, que a
consagram como agravante, uma vez que a doutrina entende como reincidente a
situação do indivíduo que comete uma nova infração penal quando já condenado
por crime anterior, mediante sentença com trânsito em julgado.
Rogério Greco, por sua vez, acrescenta que “a reincidência
é a prova do fracasso do Estado na sua tarefa ressocializadora”.95
Alves leciona que o Código Criminal do Império de 1830, em
seu artigo 16, §3º
96
, e o Código Penal de 1890, em seu artigo 40,97 disciplinavam
apenas acerca da reincidência especifica - que é a prática de novo delito da
mesma natureza do anterior -, e ambos os diplomas consideravam-na como
circunstância agravante. Já o Código Penal de 1940, em seus artigos 46 98 e 4799,
91
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 374/375.
92
“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: I
- a reincidência;”. BRASIL. Código Penal. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DecretoLei/Del2848.htm>. Acesso em: 16 fev. 2010.
93
“Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a
sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”. BRASIL. Código Penal.
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 16 fev. 2010.
94
“Art. 64 - Para efeito de reincidência: I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do
cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco)
anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;
II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos”. BRASIL. Código Penal. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 16 fev. 2010.
95
GRECO, Rogério. op. cit., p. 571.
96
“Art. 16. São circumstancias agravantes: […] 3º Ter o delinquente reincidido em delicto da mesma
natureza”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em:
16 fev. 2010.
97
“Art. 40. A reincidencia verifica- se quando o criminoso, depois de passada me julgado sentença
condemnatoria, commette outro crime da mesma natureza e como tal entende- se, para os effeitos da lei
penal, o que consiste na violação do mesmo artigo”. Disponível em:
<http://www.ciespi.org.br/base_legis/legislacao/DEC20a.html>. Acesso em: 16 fev. 2010.
98
“Art. 46. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a
sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.
Reincidência genérica e reincidência especifica
§ 1° Diz-se a reincidência:
I - genérica, quando os crimes são de natureza diversa;
38
acolhia a reincidência específica e a genérica, e continuava adotando, ainda, o
sistema da perpetuidade da reincidência.100
A disciplina da reincidência somente sofreu uma mudança
significativa com a edição da Lei 6.416/1977 que, ao acrescentar o parágrafo
único101 ao artigo 46 do Código Penal, extinguiu a reincidência específica e limitou
no tempo os efeitos da condenação anterior em cinco anos, entre a data do
cumprimento ou da extinção da pena e a da infração posterior, adotando, dessa
forma, o sistema da temporariedade ou transitoriedade. É o que se denomina
período depurador, ou quinquênio expurgatório. Dessa forma, pelo menos
legalmente,
o
indivíduo
deixou
de
carregar
eternamente
as
marcas
estigmatizantes deixadas pela reincidência.102
A respeito, Rafael Damaceno de Assis leciona:
Contrariando o sistema da perpetuidade, o qual vigorou na antiga
parte geral do Código Penal de 1940, a adoção do lapso temporal
como fator-limite de alcance dos efeitos da reincidência passou a
ser integrado no ordenamento com a promulgação da Lei
6.416/77, posteriormente revogada pela Lei 7.209/84. Diante
desse novo diploma legal, deixou de prevalecer a condenação
anterior, para efeito da reincidência, se decorrido período superior
a cinco anos entre a data do cumprimento ou da extinção da pena
e a da infração posterior. Entretanto, deve-se aqui abordar a
II - específica, quando os crimes são da mesma natureza.
Crimes da mesma natureza
§ 2º Consideram-se crimes da mesma natureza os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que,
embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos
determinantes, caracteres fundamentais comuns”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 16 fev. 2010.
99
“Efeitos da reincidência especifica
Art. 47. A reincidência específica importa:
I - a aplicação da pena privativa de liberdade acima da metade da soma do mínimo com o máximo;
II - a aplicação da pena mais grave em qualidade, dentre as cominadas alternativamente, sem prejuízo do
disposto no n. I”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em:
16 fev. 2010.
100
ALVES, Ana Cristina Borba. op. cit., p. 77.
101
“Parágrafo único. Para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do
cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco
anos. (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 1977)”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 16 fev. 2010.
102
ALVES, Ana Cristina Borba. op. cit., p. 78.
39
posição de alguns tribunais que, não obstante a aplicação de
todas consequências advindas da caracterização do indivíduo
como reincidente, ainda justificam que após o lapso temporal
acima referido deverá prevalecer como registro para efeito de
maus antecedentes.103
Dessa forma, a reincidência não é perpétua, posto que, se
entre a data do cumprimento ou extinção da pena anterior e a prática da infração
posterior tiver transcorrido mais de cinco anos, extinguir-se-ão todos os efeitos da
reincidência, ou seja, o sentenciado volta à condição de primário.
Com a reforma que sofreu pela Lei nº 7.209/84, o atual
Código Penal optou pela reincidência genérica, no entanto, a reincidência
específica voltou a aparecer por meio da Lei nº 9.714/98, que alterou os artigos 44
e seguintes do Código Penal brasileiro.104
Como ocorre com os antecedentes, como ensina Julio
Fabbrini Mirabete, para a comprovação da reincidência é indispensável a
comprovação da condenação anterior por documento hábil, exigindo-se a
competente certidão cartorária em que conste a data do trânsito em julgado, não
bastando o assento policial para a comprovação da agravante. 105 Nucci ainda
salienta que não se deve reconhecer a reincidência por meio da folha de
antecedentes, que pode conter muitos erros, uma vez que não é expedida
diretamente pelo juízo da condenação.106
3.2.2 Fatos a serem considerados como reincidência criminal
O artigo 63 do Código Penal se refere, especificamente, ao
cometimento de “crime anterior”, entendendo-se, assim, que “contravenção penal
anterior” não gera reincidência. No entanto, por força do que dispõe o artigo 7º da
103
ASSIS, Rafael Damaceno de. O estudo da reincidência criminal frente aos aspectos técnico-jurídicos.
Revista Jurídica. ano 55, p.111-124, dezembro de 2007, nº 362. p. 117.
104
ALVES, Ana Cristina Borba. op. cit., p. 78.
105
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 435.
106
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2007. p. 390.
40
Lei de Contravenções Penais – Decreto Lei nº 3.688/41, haverá reincidência
quando o agente praticar uma contravenção depois de passar em julgado
sentença que o tenha condenado por outra contravenção (no Brasil) ou por
qualquer outro crime (no Brasil ou no estrangeiro).107
Contudo, nem todos os crimes geram reincidência. O Código
excepciona, para esse efeito, os crimes militares próprios e os crimes políticos
(artigo 64, II, CP). Os crimes militares próprios são as infrações definidas,
exclusivamente, no Código Penal Militar, e que somente podem ser cometidas por
militar. Já os crimes políticos são as infrações penais contra a segurança interna e
externa no Estado, sendo puramente políticos os crimes que atentam
exclusivamente, contra os interesses da nação.108
Já no que se refere à sentença condenatória por crime à
pena de multa, dividem-se os doutrinadores quanto à possibilidade de satisfazer a
condição da reincidência. Damásio de Jesus sustenta que quando o código fala
em “crime anterior”, não distingue entre condenação à pena privativa de
liberdade, restritiva de direitos ou multa, no sentido de que a multa anterior, por
crime, gera reincidência.109
Alguns doutrinadores, como Adalto Dias Tristão, sustentam
que a multa não gera reincidência, apoiando-se, basicamente, em dois motivos. O
primeiro, de que o artigo 77, §1º, do CP menciona que a pena de multa não
impede a concessão do sursis, de modo que não é suficiente para gerar a
reincidência, visto não ser cabível a suspensão condicional da pena ao
reincidente. O segundo motivo é no sentido de que a multa é considerada uma
pena de pouca monta, aplicável a crimes mais leves, não sendo suficiente,
portanto, para gerar efeitos tão drásticos como os previstos para o caso de
reincidência.110
107
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 374/375.
108
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 375.
109
JESUS, Damásio E. Código penal anotado. p. 234.
110
TRISTÃO, Adalto Dias. Sentença criminal: prática de aplicação da pena e medida de segurança. 6. ed.
rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 56.
41
Contudo, analisando esses argumentos, Guilherme de
Souza Nucci, afirma que essas razões não são capazes de afastar a reincidência,
a uma porque a exceção prevista no artigo 77, §1º, CP, é apenas para propiciar a
concessão de sursis a quem já foi condenado por crime anterior a uma pena de
multa, e não para afastar o reconhecimento da reincidência. A duas porque, ainda
que a pena aplicada seja branda, é necessário considerar que houve uma
condenação, fato suficiente para o magistrado levar em conta na próxima
condenação que surgir.111
Quanto à sentença condenatória estrangeira, Eugênio Raúl
Zaffaroni sustenta que muito embora não se exija nenhum requisito especial para
a homologação da mesma, nem todas podem gerar reincidência. Deve ser uma
sentença condenatória decorrente de uma conduta que também seja típica no
Brasil, posto que seria um absurdo que alguém fosse considerado reincidente em
razão de condenação anterior fundada num fato atípico no território nacional.112
Nucci ainda acrescenta que, conforme comentário feito no
art. 9º do Código Penal113, não é necessária a homologação do Supremo Tribunal
Federal para o reconhecimento da sentença condenatória definitiva estrangeira,
visto que se trata apenas de um fato jurídico.114
Por fim, no que tange ao réu que obteve o benefício do
sursis no crime anterior, Damásio de Jesus leciona que, vindo a cometer novo
crime, será considerado reincidente, com exceção das hipóteses previstas no
artigo 64, I e II, do CP, pois “o sursis é forma de execução da pena privativa de
liberdade, não excluindo os efeitos da sentença condenatória com trânsito em
julgado”.115
111
NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 391.
112
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte
geral. 7ª ed. rev. e atual. 2ª tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, volume 1. p. 120.
113
“Art. 9º - A sentença estrangeira, quando a aplicação da lei brasileira produz na espécie as mesmas
consequências, pode ser homologada no Brasil”. BRASIL. Código penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 16 fev. 2010.
114
NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 390.
115
JESUS, Damásio E. Código penal anotado. p. 234.
42
3.2.3 Classificação
Segundo Francisco Bissoli Filho, a reincidência criminal
pode ser classificada da seguinte forma:
3.2.3.1 Quanto à identidade ou não dos fatos: reincidência genérica,
específica e especialíssima
Conforme ressalta Bissoli, a diferenciação destes institutos
baseia-se na identidade jurídica dos crimes praticados. Assim, a reincidência é
genérica, geral ou absoluta quando:
[...] considera os fatos delituosos no interior de uma mesma
definição jurídica básica, não se importando com as espécies. Não
há a necessidade da identidade jurídica dos fatos criminosos, nem
que sejam da mesma natureza, bastando, para a sua
caracterização, que o autor tivesse recaído na prática de „um fato
delituoso‟, independente da sua identidade ou espécie.116
Por outro lado, a reincidência específica é aquela em que os
delitos praticados são da mesma natureza, ou, ainda, possuem entre si algum tipo
de identidade. Pode ser dividida em dois tipos: absoluta ou relativa. A absoluta,
segundo Bissoli, ocorre quando os delitos realizados estiverem previstos no
mesmo dispositivo legal, ou seja, quando pertencerem ao mesmo “particular
modelo do fato punível considerado em seu integral e específico conteúdo,
apresentando os mesmos elementos que se enquadram na mesma figura
típica”.117
A identidade relativa, por sua vez, conforme disciplina Assis,
acontece quando os fatos, embora não estejam previstos no mesmo dispositivo
legal, ao serem comparados “apresentam características comuns, de cunho
objetivo (quando se refere à execução material do delito) ou subjetivo (em razão
116
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 76.
117
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 77.
43
dos motivos determinantes que influenciaram o autor quando da prática do
ilícito)”.118
Para Assis, a questão que divergente na doutrina é quanto
ao tipo de reincidência que deve ser considerada a mais grave. Alguns juristas
defendem que o reincidente especifico possui uma maior periculosidade, visto que
a persistência do indivíduo em realizar o mesmo ato ilícito demonstra que a
aplicação da sanção penal não foi suficiente para reeducá-lo e inseri-lo
novamente na sociedade. Por outro lado, há quem defenda que a reincidência
genérica deve ser considerada mais grave, argumentando que a diversidade da
infração é indicativo de uma distorção de personalidade mais profunda do que a
repetição do mesmo fato, pois demonstra que o indivíduo está disposto a tentar
toda a sorte de crimes.119
Por derradeiro, a reincidência especialíssima, conforme
leciona Bissoli, ocorre quando, “além de estarem previstos no mesmo dispositivo
legal, os crimes também forem considerados idênticos pelos seus caracteres
fundamentais comuns (objetivos e subjetivos), ou seja, em razão dos fatos ou dos
motivos determinantes”.120
3.2.3.2 Quanto à obrigatoriedade ou não do reconhecimento: reincidência
obrigatória e facultativa
Segundo Bissoli, essa classificação nos leva à discussão
acerca da obrigatoriedade ou não do reconhecimento da reincidência quando da
dosimetria da pena na sentença condenatória. Nesse prisma, a reincidência é
obrigatória quando, na presença de dois crimes, o Magistrado é obrigado a aplicar
118
ASSIS, Rafael Damaceno de. op. cit., p. 113.
119
ASSIS, Rafael Damaceno de. op. cit., p. 113.
120
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 78.
44
a causa de aumento e facultativa quando o mesmo possui a faculdade, em certos
casos, de excluir a reincidência.121
3.2.3.3 Quanto ao pressuposto de configuração: reincidência verdadeira e
ficta
Essa distinção existente no instituto da reincidência tem
como pressuposto a exigência do cumprimento ou não da primeira sanção penal
aplicada. A discussão existe em razão da ineficácia do tratamento penal imposto
ao indivíduo que recebeu a pena.
Segundo Assis, a reincidência será real, verdadeira ou
própria quando o agente pratica nova infração após cumprir, parcial ou
totalmente, a pena imposta em razão do crime anterior. A prática de novo delito
demonstrará a ineficácia e a insuficiência do tratamento penal aplicado. De outra
forma, será tido como ficta, presumida ou imprópria quando houver uma sentença
condenatória transitada em julgado, inexistindo o cumprimento da sanção penal.
Em suma, basta apenas a existência de sentença condenatória com trânsito em
julgado, com o segundo crime praticado após a sua prolação, sendo
desnecessária a execução da pena.122
Portanto, será real quando o agente comete novo delito
depois de já ter efetivamente cumprido pena por crime anterior e ficta quando o
autor comete novo crime depois de ter sido condenado, mas ainda sem cumprir
pena.
121
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
79/80.
122
ASSIS, Rafael Damaceno de. op. cit., p. 114.
45
3.2.3.4
Quanto
à
abrangência
territorial:
reincidência
nacional
e
internacional
Para Bissoli, partindo-se da premissa de que para o
reconhecimento da reincidência criminal é necessário uma sentença condenatória
anterior transitada em julgado, os efeitos dessa sentença podem operar-se sobre
o território de outro país ou apenas no território do país onde a mesma foi
prolatada.
Nesse sentido, o autor explica que:
No primeiro caso, estaremos diante da reincidência internacional,
e, no segundo, da reincidência nacional. Ressalvados os casos de
extraterritorialidade da lei penal, os crimes são julgados no país
onde ocorrerem. Por isso, se forem admitidos os efeitos da
sentença condenatória estrangeira, a reincidência será
internacional. Caso contrário, se somente forem admitidos os da
sentença condenatória nacional, a reincidência será nacional.123
3.2.3.5 Quanto à abrangência material: reincidência ampla e limitada
Assis considera ampla ou irrestrita a reincidência que
abrange todos os fatos criminosos genericamente praticados, alcançando
qualquer crime previsto no Código Penal ou em lei especial, ou seja, crime
doloso, culposo, político, militar, etc. já a reincidência limitada ou restrita ocorre
quando são excluídos determinados atos infracionais, restringindo sua esfera de
abrangência.124
123
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 86.
124
ASSIS, Rafael Damaceno de. op. cit., p. 115.
46
3.2.3.6 Quanto à reiteração: reincidência simples e reiterada (multirreincidência)
Quanto à reiteração, ou seja, quanto ao número de fatos
praticados, leciona Bissoli que a reincidência pode ser simples ou reiterada. É
simples quando o agente praticar dois fatos, um antecedente e outro precedente,
ocorrendo então a primeira reincidência. A reiterada, por sua vez, ocorre quando
a reincidência se repete por duas ou mais vezes, ou seja, o agente já é
considerado reincidente e pratica novo ilícito penal que o torna novamente
reincidente.125
3.2.3.7 Quanto à temporalidade: reincidência perpétua e temporária
Conforme aponta Bissoli, a reincidência será temporária ou
por tempo determinado quando se estabelece um período de tempo a partir da
precedente condenação, além do qual esta condenação não possa constituir
elemento da reincidência. Ao contrário, será permanente quando não havendo
qualquer termo, o estado de reincidência seja perpétuo, isto é, não há limitação
entre o primeiro fato delituoso e o segundo.126
No direito penal pátrio, adota-se a temporariedade, tendo em
vista o lapso temporal exigível no artigo 64, I, do Código Penal.
3.2.3.8 Quanto à previsão legal: reincidência de direito e de fato
Quando, para sua caracterização, for necessária a presença
de todos os elementos previstos em lei, será reincidência de direito. Por outro
lado, quando não houver nenhuma exigência formal, não depender de outros
125
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 90.
126
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 90.
47
requisitos, constituindo na mera recaída no direito, estamos diante da reincidência
de fato.127
3.2.4 Efeitos jurídicos gerados pela reincidência criminal no sistema penal
brasileiro
Uma vez que a presente monografia não tem como objetivo
o aprofundamento dos efeitos gerados pela reincidência, e sim a análise de sua
constitucionalidade, cumpre-me notar, apenas a título de exemplificação, alguns
dos diversos efeitos penais, de modo a restringir ou inviabilizar o exercício de
alguns direitos, tais como:
a) agrava a pena privativa de liberdade (art. 61, I CP);
b) determina regime de cumprimento de pena mais severo
(art. 33, CP);
c) impede substituição de pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, se específica em crime doloso (art. 44, II, CP);
d) impede substituição da pena privativa de liberdade pela
multa (art. 60, §2º, CP);
e) prepondera no concurso de circunstâncias agravantes e
atenuantes (art. 67, CP);
f) obstrui o sursis, quando da prática de crime doloso (art.
77, I, CP);
g) aumenta o lapso temporal de cumprimento da pena para
obtenção do livramento condicional (art. 83, II, CP);
h) aumenta o prazo (art. 110, CP) e interrompe a prescrição
(art. 117, VI, CP);
127
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 92.
48
i) revoga o sursis (art. 81, CP), o livramento condicional (art.
87, CP) e a reabilitação (art. 95, CP);
j) impede alguns casos de diminuição da pena (art. 155, §2º;
170 e 171, §1º, do CP);
k) impede a prestação de fiança (art. 323, III, CPP);
l) impossibilita a suspensão condicional do processo (art. 89,
Lei nº 9.099/95), entre outros.
49
4 OS ANTECEDENTES E A REINCIDENCIA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
4.1 DIREITO PENAL DO FATO X DIREITO PENAL DO AUTOR
Enquanto para alguns autores o delito constitui uma infração
ou lesão jurídica, para outros ele constitui o sintoma de uma inferioridade moral,
biológica ou psicológica. Assim, Zaffaroni leciona que, para uns, seu desvalor
esgota-se no próprio ato – direito penal do fato -, para outros, a essência do delito
reside numa característica do autor, que explica a pena - direito penal do autor.
Este supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao
das demais pessoas consideradas normais.128
Segundo Zaffaroni, tal inferioridade pode ter natureza moral
(ou pessoal) ou natureza mecânica (ou impessoal). A natureza moral trata-se de
uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico, essa situação de
pecado penal é censurada, e a pena deve adequar-se ao grau de perversão
pecaminosa que sua condução de vida tenha alcançado. “O delito é apenas o
signo que mostra ao estado a necessidade de que seu sistema penal investigue e
censure toda a vida pecaminosa do autor”. 129
Por outro lado, a natureza mecânica trata de um estado
perigoso, argumentando que a falha no pequeno mecanismo acarreta um perigo
maior para o mecanismo, isto é, indica um estado de periculosidade. Segundo
Zaffaroni,
“as
agências
jurídicas
constituem
aparatos
mecanicamente
determinados para o reparo ou a neutralização das peças defeituosas”. 130
128
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro:
primeiro volume – Teoria geral do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 131.
129
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro:
primeiro volume – Teoria geral do direito penal. p. 132.
130
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro:
primeiro volume – Teoria geral do direito penal. p. 132.
50
No entanto, para ambas as propostas, o criminalizado é um
ser inferior e, dessa forma, se vê apenado (inferioridade moral: estado de pecado;
inferioridade mecânica: estado de perigo).
Assim, para Bitencourt, no direito penal do autor,
[...] julga-se pelo que o indivíduo é e não pelo que fez, como um
verdadeiro „direito penal do inimigo‟, que, de uma forma
discriminatória, distingue entre „cidadãos‟ e „inimigos‟, tratando-se,
com efeito, da desconsideração de determinada „classe de
cidadãos‟ como portadores de direitos não iguais aos demais a
partir de uma classificação que se impõe desde as instâncias de
controle formal, violando o sagrado princípio da igualdade. É uma
forma discriminatória e, diríamos, inclusive ideologizada que
elege, no caso, o empresário, o produtor, o empreendedor como
inimigo da sociedade, o grande causador da ruína do cidadão,
que deve pagar, agora no banco dos réus, a qualquer custo.
131
Nessa linha de pensamento, não importa o que se faz, e sim
quem faz. Não se pune pela prática do fato, mas sim pela qualidade,
personalidade ou caráter de quem faz. Esse tipo de interpretação, nas decisões
judiciais preocupadas em destacar o status ou a personalidade do acusado, vão
muito além da intenção de controlar a criminalidade, pois representam, sem
sombra de dúvida, violação aos direitos fundamentais do homem, pretendendo
substituir um modelo de direito penal do fato por um modelo de direito penal do
autor.
Igualmente, entende Ana Cristina Borba Alves que em
decorrência da separação entre direito e moral, não pode existir um direito penal
que verse sobre a personalidade do autor, mas tão somente acerca dos fatos que
praticar este autor.132
131
BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., p. 632/633.
132
ALVES, Ana Cristina Borba. op. cit., p. 91.
51
Mesmo assim, resistem firmes, em nosso ordenamento
penal, normas que se traduzem e se manifestam num direito penal do autor por
excelência, destacando Zaffaroni que:
[...] parte de uma concepção antropológica que considera o
homem incapaz de autodeterminação (sem autonomia moral, isto
é, sem capacidade para escolher entre o bem e o mal) [...] o ato é
o sintoma de uma personalidade perigosa, que deve ser corrigida
do mesmo modo que se conserta uma máquina que funciona mal.
[...] seja qual for a perspectiva a partir de que se queira
fundamentar o direito penal de autor (culpabilidade de autor ou
periculosidade), o certo é que um direito que reconheça, mas que
também respeite, a autonomia moral da pessoa jamais pode
penalizar o “ser” de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que
o direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se
pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que
isso violente a sua esfera de autodeterminação.133
Entre as várias manifestações no sistema criminal brasileiro
de um direito penal que persegue o autor, encontramos a reincidência.
Por outro lado, o direito penal do fato concebe o delito como
um conflito que produz uma lesão jurídica, provocado por um ato humano como
decisão autônoma de um ente responsável (pessoa) que pode ser repreendido e,
consequentemente, a quem pode ser retribuído o mal na medida de sua
culpabilidade (ou seja, da autonomia de vontade com que atuou).134
Acerca do direito penal do fato, o autor ainda destaca que:
Assim sendo, exige que os conflitos se limitem aos provocados
por ações humanas (nullum crimen sine conducta), exige uma
estrita delimitação dos conflitos na criminalização primária (nullum
crimen sine lege) e exige que a culpabilidade pelo ato constitua o
limite da pena (nullum crimen sine culpa).135
133
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte
geral. p. 118/119.
134
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro:
primeiro volume – Teoria geral do direito penal. p. 133.
135
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro:
primeiro volume – Teoria geral do direito penal. p. 134.
52
Desta forma, a análise das circunstâncias pessoais do
agente não se confunde com o direito penal do autor, característico das ditaduras,
em que as pessoas são punidas em razão de sua “personalidade criminosa” ou
pelo perigo que representam à sociedade. O indivíduo deve ser punido em razão
de ter, efetivamente, cometido um ilícito penal, característica do Direito Penal
moderno, fundado no valor da dignidade humana e que prioriza a tutela das
liberdades individuais, ou seja, o direito penal do fato.
4.2 ANÁLISE DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS ANTECEDENTES E DA
REINCIDÊNCIA CRIMINAL
Conforme leciona Fauth, a origem da consideração da
conduta recidiva como de maior gravidade deve-se ao pensamento dos
positivistas, pois, especialmente para Ferri, a reincidência representava um
indicativo de periculosidade. O delinquente, além de ser determinado por fatores
biológicos e psicológicos, era também produto do meio social. Por isso, para a
sua recuperação, tornava-se necessário retirá-lo do meio social em que vivia e
inseri-lo em outro ambiente, destinando-lhe um tratamento ressocializador. Caso
o indivíduo voltasse a delinquir após tal tratamento, interpretava-se a reincidência
como uma especial tendência ao crime e, portanto, um sinal da periculosidade do
agente e da necessidade de um tratamento mais invasivo, ou seja, uma pena de
maior duração. Assim, os positivistas explicavam a necessidade de agravação da
situação do apenado reincidente com base na teoria da periculosidade presumida
e na prevenção especial positiva.136
Bissoli Filho esclarece que a teoria da culpabilidade também
enseja um fundamento teórico para os antecedentes e a reincidência criminal,
posto que a recaída no segundo crime implica uma maior culpabilidade, ou seja,
são fatores que indicam uma acentuada atuação contrária ao direito. 137
136
137
Fauth, Isabel C. F. op. cit., p. 148.
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
158/159.
53
Nesse sentido, leciona que:
[…] na teoria normativa pura, a culpabilidade é determinada,
dentre outros elementos, pela real ou potencial consciência da
ilicitude. Os antecedentes e a reincidência criminal encontram
neste tópico outra fundamentação teórica, a medida que a
existência ou não de contatos anteriores do sujeito ativo como as
diversas instâncias do sistema penal, por certo estabeleceriam o
grau de consciência da ilicitude do seu ato. Assim, se o indivíduo
já esteve envolvido no processo de criminalização, maior será a
sua consciência do ilícito e mais evidente a sua culpabilidade. Se
o agente já sofreu condenação anterior, significa que já passou
pelos trâmites de um processo judicial, o que o torna mais
consciente dos imperativos legais e, via de consequência, da
conduta ilícita da qual deverá se abster. Por isso, a recaída no
novo delito reforçará a sua culpabilidade, tornando maior a
reprovação em relação aos posteriores crimes.138
Assim, para essa corrente, os antecedentes e a reincidência
criminal poderiam revelar uma tendência ao crime, levando o criminoso a ser
classificado de forma diferencial dos demais seres humanos, uma vez que o
indivíduo que registra maus antecedentes ou é reincidente criminal, acaba
merecendo um tratamento diferente da parte do sistema penal, sendo
considerado, portanto, pertencente a uma categoria específica. Segundo Bissoli
Filho, “esta diferenciação visa tornar mais nítida a linha que separa os „bons‟ dos
„maus‟, confrontando-se, assim, com o princípio da igualdade”.139
Miguel Reale Júnior entende que a abolição da reincidência
é defendida por se entender não ser legítimo que o crime anterior interfira na
quantidade penal cabível e imposta ao fato posterior objeto do julgamento, sendo
um bis in idem levar-se em conta uma condenação já transitada em julgado.
Argumenta-se que “a valoração da conduta deve efetuar-se apenas tendo por
base as circunstâncias concretas e atuais relativas ao fato”. Procuram um nexo
lógico entre o delito anterior e o posterior, como se devessem ser considerados
totalmente dissociados, esquecendo, no entanto, que o liame está no autor dos
dois delitos, merecedor de reprimenda mais grave por sua conduta de vida, em
138
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
158/159.
139
BISSOLI FILHO, Francisco Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
162.
54
desrespeito flagrante à justiça.140
Reale complementa o raciocínio:
Objeto de juízo de culpabilidade não é apenas o fato, mas o autor
do fato. E o reincidente, sem se constituir, a nosso ver, em tipo
normativo de autor, sem ser a reincidência uma qualidade
permanente, indica, no entanto, a presença, na prática do fato
delituoso novo, de uma vontade do ilícito mais intensa. Esta maior
intensidade, revelada na prática do segundo fato, mas que não se
pode dizer seja uma inclinação, como quer Bettiol, decorre da
circunstância de haver menosprezado a condenação anterior, e
toda a força intimidativa da lei penal que faz do condenado um
destinatário especial de ameaças, ao vedar-lhe, no caso de novo
delito, uma série de benefícios. [...] Se a pena é castigo a
condenação induz à lembrança do mal a que se está sujeito pela
prática do crime. A condenação anterior, contudo, com a
reincidência, não apenas deixou de levar ao arrependimento,
como a submissão a um processo, o estigma social e a pena em
si mesma constituíram experiências esquecidas perante a vontade
renovada de delinquir. 141
Assim, a maior severidade no cumprimento da sanção não
se deve ao fato de o sujeito ter cometido um delito anterior, mas sim ao fato de já
ter sido condenado e cumprido uma pena privativa de liberdade, o que põe em
evidência o maior grau de culpabilidade da conduta posterior em razão do
desprezo pela pena, pois, não obstante tenha sofrido antes, recai no delito.
Sobre o assunto, Celso Delmanto discorre que:
O fato do reincidente ser punido mais gravemente do que o
primário é, no nosso ver, justificável, não havendo violação à
Constituição da República e à garantia do ne bis in idem, isto é, de
que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Com
efeito, se é certo que ao cumprir integralmente a pena imposta
pela prática de determinado delito, o condenado, em razão desse
fato, não pode ser punido novamente, a valoração da reincidência
para fins de aumento de pena em relação a um novo crime
cometido pelo sujeito, em prazo inferior a cinco anos (CP, art. 64)
e não tendo sido ele reabilitado (CP, arts. 93 e 94), diz, em nosso
entendimento, com a maior reprovabilidade de sua conduta em
relação ao novo crime (cf., nesse sentido, STJ, HC 776.996, RT
850/560), já que reiteradamente vem desprezando os valores
140
REALE JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; ANDREUCCI, Ricardo Antunes; PITOMBO, Sergio M. de
Moraes. p. 175.
141
REALE JÚNIO, Miguel; DOTTI, René Ariel; ANDREUCCI, Ricardo Antunes; PITOMBO, Sergio M. de
Moraes. p. 175.
55
essenciais da sociedade em que vive (a vida, a liberdade etc.). O
agravamento da pena em razão da reincidência, portanto, não se
confunde com dupla punição em relação ao crime anterior e,
tampouco, com „maior juízo de periculosidade‟ do sujeito. Há, sim,
uma maior reprovabilidade de sua conduta ao violar a lei penal de
forma reiterada. Pelo contrário, até por uma questão de justiça,
não seria proporcional que o criminoso primário receba, pelo
mesmo fato, idêntica penal em relação àquele que é contumaz
violador da lei penal. Não vemos, assim, a reincidência como
sendo um instituto não recepcionado pela Constituição da
República de 1988; afinal, quando se julga um crime, não se julga
um fato frio, estático, descrito na denúncia; julga-se um ser
humano que praticou um fato criminoso.142
Nessa
linha
de
pensamento,
Schmitt
sustenta
o
posicionamento de que, se o Magistrado estiver diante de, pelo menos, duas
condenações definitivas anteriores, uma delas pode ser usada na análise das
circunstâncias judiciais, como forma de se valorar a existência de maus
antecedentes, enquanto a outra será usada para se reconhecer a incidência da
circunstância agravante da reincidência, sem que haja qualquer dupla valoração
sobre a mesma circunstancia (bis in idem), uma vez que as respectivas decisões
se originaram de situações fáticas diversas e não idênticas.143
O que não pode ocorrer, desta forma, é pegar uma única
condenação definitiva anterior e valorar ao mesmo tempo como geradora de
maus antecedentes e reincidência. Isso sim, segundo a corrente positivista,
consistiria o bis in idem. No entanto, concorrendo contra o agente ao menos duas
condenações definitivas anteriores, em processos distintos, por fatos ilícitos
distintos, nada obsta que se tenha a valoração de uma na primeira fase de
aplicação da pena e da outra na segunda fase, uma vez que decorrem de
situações diversas, afastando a possibilidade de dupla valoração sobre uma
mesma causa, sobre um mesmo fato, sobre uma mesma circunstância.
Esse é o entendimento que prevalece no Supremo Tribunal
Federal. Vejamos os seguintes julgados:
1. AÇÃO PENAL. Sentença. Condenação. Capítulo decisório.
Pena privativa de liberdade. Reclusão. Fixação da pena-base.
142
DELMANTO, Celso. Código penal comentado. p. 207/208.
143
SCHMITT, Ricardo. op. cit., p. 135.
56
Cálculo. Consideração de condenações distintas como maus
antecedentes e reincidência. Nulidade. Inexistência. Não é
nula a sentença que considera, para a elevação da pena-base
pelos maus antecedentes e para a configuração da agravante
de reincidência, condenações distintas. 2. AÇÃO PENAL.
Sentença. Condenação. Capítulo decisório. Pena privativa de
liberdade. Reclusão. Agravantes. Cálculo. Aumento injustificado.
Nulidade. HC parcialmente concedido para reduzir a pena. O
aumento de pena em fração superior ao mínimo legal exige
motivação idônea.144 (grifei)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO
TENTADO. RECURSO ESPECIAL QUE DETERMINOU O
AGRAVAMENTO DA PENA, AO INTERPRETAR O ART. 61, I,
DO CP. POSSIBILIDADE. REINCIDÊNCIA. CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS E CAUSA AGRAVANTE GENÉRICA OBRIGATÓRIA.
BIS IN IDEM NÃO CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA. I Mera alusão ao texto constitucional, na decisão jurisdicional, não
implica competência exclusiva do STF. REsp que, no Superior
Tribunal de Justiça, interpretou a aplicação de norma infraconstitucional. II - O aumento da pena, em função da
reincidência, expressamente prevista no art. 61, I, do Código
Penal, não constitui bis in idem quando não utilizada como
circunstância judicial para a fixação da pena-base. III - Ordem
denegada.145 (grifei)
Ainda:
HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. 1.
ALEGAÇÃO DE NÃO APLICAÇÃO AO FURTO QUALIFICADO
PELO CONCURSO DE AGENTES DA PENA DE 2 A 8 ANOS DE
RECLUSÃO PREVISTA NO ART. 155, § 4º, INC. IV, DO CÓDIGO
PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE ANALOGIA
PELO JULGADOR. 2. MOMENTO DA CONSUMAÇÃO DO
FURTO. 3. NÃO OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM. 1. O Supremo
Tribunal Federal decidiu não ser possível ao julgador, por
analogia, estabelecer sanção que não esteja prevista em lei,
mesmo que em benefício do réu, devendo ser aplicado o tipo
específico do art. 155, § 4º, inc. IV, do Código Penal. Precedentes.
2. A consumação do furto ocorre no momento em que o agente
tem a posse da res furtiva, cessada a clandestinidade,
144
BRASIl. Supremo Tribunal Federal. HC 94839 / RJ - RIO DE JANEIRO. Órgão Julgador: Segunda Turma.
PACTE.(S): FABIO ARAÚJO ANDRADE OU ENÉAS LEAL DA SILVA OU ALAN MARINHO DA SILVA.
IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relator(a): Min. CEZAR PELUSO.
Julgamento: 08/09/2009.
145
BRASIl. Supremo Tribunal Federal. HC 93812 / RS - RIO GRANDE DO SUL. Órgão Julgador: Primeira
Turma. PACTE.(S): SANDRO GIOVANI AZAMBUJA FLORES. IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA
UNIÃO. Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 26/08/2008.
57
independente da recuperação posterior do bem objeto do delito. 3.
Não há falar em bis in idem quando a reincidência foi utilizada
apenas como agravante do art. 61, inc. I, do Código Penal na
segunda fase de aplicação da pena, não tendo sido apreciada
como circunstância judicial de maus antecedentes para
fixação da pena-base. 4. Habeas corpus denegado.146 (grifei)
No mesmo sentido são as decisões: HC 94449 / RS, HC
94816 / RS, HC 95585 / SP, HC 94846 / RS, HC 94020 / RS.
Assim, concluímos que, para a corrente positivista, somente
haverá violação ao princípio do non bis in idem se, no processo de
individualização da pena, for esta majorada pela valoração dos mesmos fatos
como maus antecedentes e, posteriormente, como reincidência. Contudo, se as
circunstâncias consideradas como maus antecedentes são distintas das que são
utilizadas para agravar a pena pela reincidência, não há que se falar em dupla
valoração.
Como
resposta
às
inúmeras
discussões
sobre
a
reincidência, Cernicchiaro propõe que a circunstância do artigo 63 do Código
Penal não seja interpretada de forma meramente objetiva, dado que considerar a
pluralidade de infrações implicaria projetar a pena de um crime em outro. Crê que
a solução seria a leitura do citado dispositivo de acordo com o princípio
constitucional da individualização judicial da pena, de maneira que a reincidência
não seria um imperativo de aumento baseado em dados estritamente objetivos, e
não haveria mais a sua obrigatoriedade, cabendo à jurisprudência estabelecer
referenciais de negação e afirmação.
Nesse sentido dispõe:
Não chego ao ponto de proclamar a inconstitucionalidade do art.
63. Reclamo, entretanto, interpretação no contexto em que é
posto. A agravante majora a sanção in concreto. Para tanto, leva
em conta o fato e o agente do fato. E o fato delituoso projeta
personalidade, característica individual. Só há uma forma de
conciliar, no particular, à Constituição: conjugar os crimes. A
reincidência somente poderá agravar a pena se entre os delitos
146
BRASIl. Supremo Tribunal Federal. HC 95398 / RS - RIO GRANDE DO SUL. Órgão Julgador: Primeira
Turma. PACTE.(S): MÁRCIO RABELLO SEVERO OU MÁRCIO RABELLO SEEVERO. IMPTE.(S):
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 04/08/2009.
58
houver conexão que recomende recrudescer a sanctio iuris. Não
obstante, modernamente, raciocinar-se com o Direito Penal do
fato, o autor é o seu grande protagonista. Em princípio, em termos
de culpabilidade, que significado entre uma lesão corporal
culposa, acidente de trânsito e a injúria irrogada em discussão
mais acesa? Não será diferente se os ilícitos evidenciarem
inclinação para o crime, insubordinação contumaz do agente às
normas de convivência social? Se a segunda infração não projeta
maior culpabilidade, por que majorar a pena? O juiz precisa
auscultar a hipótese sub judice, considerá-la com a anterior e
extrair, então, os termos de culpabilidade, se evidencia, por
exemplo, tendência para a criminalidade. A reincidência, assim,
não é imperativo de aumento, baseada em dados meramente
objetivos. Afetaria até o princípio da individualização da pena. Não
faz sentido a cominação afetar grau mínimo e grau máximo, e a
agravante não ensejar oportunidade de análise específica. A
reincidência, assim, há de ser analisada pelo juiz; que decidirá ser
ou não, no caso em julgamento, causa de majoração da pena.147
Assim, Cernicchiaro entende que tais considerações podem
ser ajustáveis ao Código Brasileiro, pois o texto, sem dúvida, impõe ponderar a
condenação anterior. Todavia, invoca que se afaste a mera interpretação literal,
tendo o Juiz a missão de fazer a tradução sistemática, atualizando, se necessário,
a norma posta pelo legislador.148
O autor ainda salienta que:
A não ser assim, os tribunais poderão ser substituídos por um
programa de computador! O magistrado por uma tecla! Costumo
dizer: a lei não envelhece. O intérprete, este sim, muitas vezes,
não percebe que o Direito, como bem cultural, modifica-se dia-adia, e a lei segue o destino do Direito!149
Acatando esse posicionamento, Paulo Queiroz defende que,
se tolerada for a reincidência, o agravamento que dela decorrer jamais poderá
implicar aumento igual ou superior, mas inferior, sempre, à pena que fora imposta
na sentença condenatória anterior que a ensejou, sob pena de violação do
princípio da proporcionalidade, uma vez que o acessório (agravante da
reincidência) não pode exceder o principal (a pena agora imposta.150
147
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Reincidência. Revista Jurídica. Ano XLV, nº 231, janeiro de 1997. p. 40.
148
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. op. cit., p. 41.
149
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. op. cit., p. 41.
150
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 50.
59
Noutro vértice, interpretar os aspectos normativos da
reincidência criminal apenas de forma literal e com uma abordagem unicamente
positivista tornou-se relativamente fácil.
Nesse sentido, Fauth, mesmo entendendo que o instituto da
reincidência não viola a Constituição Federal, questiona a função da exasperação
da pena, pois, se, em razão da situação carcerária brasileira, a pena não exerce
função alguma, tampouco a sua agravação exerceria.151
Assim, leciona Bissoli que, apesar das teorias existentes, há
manifestações da técnica jurídica contrárias aos antecedentes e à reincidência
criminal, no sentido de que estes institutos ferem o direito à honra, o princípio do
non bis in idem e os princípios da igualdade, da legalidade, da presunção da
inocência, do devido processo legal e da ampla defesa, na medida em que se
traduz em uma maior gravidade da pena do segundo delito, o que denota a
inconstitucionalidade de tais institutos.152
Não é o outro o entendimento de Luigi Ferrajoli ao afirmar
que:
A condição do reincidente (ou pré-julgado), culpabilizada desde a
Antiguidade, foi duramente criticada por muitos escritores
iluministas que com razão rechaçaram, por respeito ao princípio
da retribuição, a hipótese de que fosse considerada como motivo
para o agravamento da pena. „A pena‟, escreve Pagano, „cancela
e extingue integralmente o delito, restaurando, ao condenado que
a sofreu, a condição de inocente...Portanto, não se pode
importunar o cidadão por aquele delito cuja pena já tenha sido
cumprida‟. E Morelly chega, inclusive, a pedir que seja castigado
quem ousar recordar publicamente as penas sofridas no passado
por alguém em face de delitos precedentes. Essas indicações
foram, contudo, totalmente subvertidas na segunda metade do
século XIX pela regressão positivista da cultura penal, que centrou
grande parte da nova política criminal na relevância e no
tratamento dos tipos de autor, mais do que nos de delito. Foi,
assim, […] que surgiu no código vigente uma articulada tipologia
de delinquentes reincidentes – simples, reincidentes habituais,
profissionais e por tendência -, tratados com penas
progressivamente severas, submetidos a medidas de segurança,
151
152
Fauth, Isabel C. F. op. cit., p. 151.
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
165.
60
excluídos dos benefícios previstos para outros condenados,
impelidos, de fato, à carreira criminal como incorrigíveis ou
irrecuperáveis.153
Para Assis, a agravação da reprimenda apresenta-se
incongruente na medida em que se constata a acentuação da dessocialização do
indivíduo no interior do cárcere, haja vista a falta de estrutura proveniente do
Estado, o que culmina no desrespeito aos princípios promulgados pela Lei de
Execuções Penais. Isto porque não se investe nos meios utilizados para tal fim, o
que significa dizer que ainda é precária a assistência ao detento e ao egresso.154
Não obstante esses problemas, Assis ainda salienta que
agravar a reprimenda presumindo um maior grau de periculosidade pela análise
das características pessoais do agente e não diante do fato por ele praticado
significa proferir um julgamento amparado na concepção inaceitável do direito
penal de autor.155
Paulo Queiroz esclarece:
Consagrada embora pela maioria dos Códigos, a reincidência, que
encerra uma presunção absoluta de maior perigosidade do réu, é,
sem dúvida, incompatível com o sistema de valores e princípios
da Constituição Federal brasileira, particularmente com os
princípios da proporcionalidade e da ofensividade. Cumpre notar,
inicialmente, que, com a relativização determinada pelo princípio
da presunção legal de inocência, o instituto perdeu, grandemente,
o seu sentido, [...] um sujeito que, por exemplo, tendo sido
condenado por um crime de furto simples, vem a cometer novo
crime, digamos, outro furto simples ou lesões corporais leves,
depois de passar em julgado aquela primeira condenação, será
considerado reincidente, não obstante a mínima significação e
perigosidade de suas ações. Forçoso reconhecer, portanto, que a
reincidência já não constitui um sintoma seguro de maior
perigosidade, não se justificando, também por essa razão, sua
existência mesma. Logo, não é exato dizer que a reincidência é
um sinal de periculosidade, como a febre é sinal de infecção,
como a putrefação é sinal de morte (Hungria). Para além disso, a
reincidência não passa, como assinala Muñoz Conde, de uma
„pena tarifada‟, na medida em que ela atua como causa de
agravamento da pena fundada em fato diverso, gerador de
culpabilidade e de responsabilidade próprias, de modo que o plus
153
FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 405/406.
154
ASSIS, Rafael Damaceno de. op. cit., p. 124.
155
ASSIS, Rafael Damaceno de. op.cit., p. 124.
61
de gravidade decorrente da reincidência equivale à pena sem
culpabilidade, estranho ao fato e que importa em dupla valoração
da mesma causa, constituindo bis in idem.156
Cernicchiaro salienta que a Constituição Federal estatui para
cada infração penal a respectiva sanção, obediente sempre à lei em sentido
formal. E mais, aplicada a pena ao caso concreto, o que se faz na sentença,
encerra-se o poder punitivo do Estado, em termos de dimensionamento do crime
in concreto, restando somente a possibilidade da execução. Afirmando que “cada
infração tem a pena correspondente. Não pode haver duplicidade. Vale dizer, o
mesmo delito ser punido várias vezes, ou a sanção de um estender-se a outro.
Seria, sem dúvida, bis in eadem odioso”.157
Assim, indubitável que os institutos da reincidência e dos
antecedentes são algumas das maiores máculas ao modelo penal de garantias
proposto pela Magna Carta de 1988, pois, quando confrontadas com o modelo
garantista, fica cristalina a incompatibilidade com os princípios do direito penal
democrático e humanitário, uma vez que a agravação da pena irá configurar um
“plus” para a condenação anterior já transitada em julgado.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
repercussão geral do Recurso Extraordinário nº 591.563/RS, ainda pendente de
julgamento:
RECURSO. Extraordinário. Reincidência. Decisão que afastou a
aplicação da circunstância agravante prevista no art. 61, I, do
Código Penal. Questão da recepção da norma pela Constituição
Federal. Relevância. Repercussão geral reconhecida. Apresenta
repercussão geral o recurso extraordinário que verse sobre a
questão de recepção, pela Constituição da República, do art. 61, I,
do Código Penal.158
Zaffaroni e Pierangeli salientam que a pena maior que se
impõe na condenação pelo segundo delito decorre do primeiro, pelo qual a
156
QUEIROZ, Paulo. op. cit., p. 375/376.
157
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. op. cit., p. 39.
158
BRASIl. Supremo Tribunal Federal. RE 591563 RG / RS - RIO GRANDE DO SUL. REPERCUSSÃO
GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RECTE.(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL. RECDO.(A/S): DAVISON ROSA DA SILVA. Relator(a): Min. CEZAR PELUSO.
Julgamento: 02/10/2008.
62
pessoa já havia sido julgada e condenada. Além do que o argumento de que a
maior pena do segundo delito não tem seu fundamento no primeiro, e sim na
condenação anterior, não passa de um jogo de palavras, uma vez que a
condenação anterior decorre de um delito, e é uma consequência jurídica sua.
Assim, ao obrigar a produzir seus efeitos num novo julgamento, de alguma
maneira se estará modificando as consequências jurídicas de um delito anterior.
Na realidade, “a reincidência decorre de um interesse estatal de classificar as
pessoas em „disciplinadas‟ e „indisciplinadas‟, e é óbvio não ser esta função do
direito penal garantidor”159
Pode-se constatar, segundo Fauth, que os antecedentes e a
reincidência criminal resultam da atuação estigmatizante do sistema penal, pois
constitui uma etiqueta que marca o apenado e contribui com a sua integração a
uma subcultura, assumindo o estereótipo criminal comum ao grupo, facilitando a
ação seletiva do sistema penal, ou seja, tornando o indivíduo, por ser etiquetado,
mais vulnerável à atuação dos órgãos que compõem o controle social penal.160
Nesse prisma, Bissoli Filho argumenta que:
Em função desses processos o indivíduo criminalizado passa a
incorporar valores negativos, ou seja, certos designativos
provisórios que lhe são atribuídos durante o processo de
criminalização secundária, tais como, indiciado, noticiado,
representado, requerido, autor do fato, denunciado, querelado,
acusado, réu, condenado, apenado, preso, liberado, etc., ou
definitivos, como por exemplo, ladrão, homicida, estelionatário,
traficante, estuprador, assaltante, etc., os quais são transportados
para a vida social. Estas designações se transformam em
estigmas que o identificam pessoal e socialmente, interferindo no
processo de interação com as demais pessoas, em especial, com
órgãos do sistema penal. Constarão dos registros oficiais,
incorporando-se ao seu patrimônio negativo, influindo fortemente
na atuação dos operadores do sistema penal, orientados que são,
em razão da ideologia da defesa social, a dispensar um
tratamento diferencial às pessoas estigmatizadas.161
Desta forma, continua Bissoli que:
159
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume
1: parte geral. p. 718/719.
160
161
Fauth, Isabel C. F. op. cit., p. 154.
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p.
215.
63
[…] desde o seu ingresso no sistema penal até a execução da
pena, o individuo detentor de antecedentes ou reincidente criminal
será tratado diferencialmente, não somente em função da
programação normativa contida no Direito Positivo brasileiro
(influência explicita), mas também em razão do second code, que
orienta os operadores jurídico-penais a considerar esse tipo de
indivíduo mais danoso à sociedade que os demais (influencia
implícita). A marca estigmática influirá em todo o trâmite
processual, pois conduzirá a investigação policial, orientará a
decretação da prisão cautelar, a concessão da liberdade
provisória, a formação da opinio delicti pelo órgão do Ministério
Público, a velocidade do andamento do processo, a atuação da
defesa, a formação do convencimento final pela autoridade
judiciária e o tratamento no interior do sistema penitenciário,
especialmente no que concerne aos benefícios. Os estigmas dos
antecedentes e da reincidência criminal manifestam-se também
após o cumprimento da pena, isto porque o indivíduo
estigmatizado será tratado, formal e informalmente, de maneira
diferenciada dos demais.162
Para Salo de Carvalho, o processo de rotulação é, em
realidade, processo de distribuição de etiquetas que obtém como efeito a geração
de estigmas. A etiqueta, por sua vez, é o principal instrumento de identificação de
uma pessoa, que a torna diferente, e a separa do grupo e retira a sua identidade,
obscurecendo e escondendo todas as demais características do indivíduo. Assim,
o sujeito rotulado por determinada etiqueta é expropriado do seu próprio „eu‟,
sendo-lhe imposto um „ser‟ diverso, sob o qual expectativas surgirão. A
expectativa social sobre um indivíduo etiquetado de homicida, por exemplo, é a
esperança de que este reincida na prática do fato. O processo termina, segundo o
autor, apenas quando o indivíduo assume para si o rótulo, passando a atuar
conforme sua nova identidade em carreiras criminosas, e o processo de
estigmatização, desta maneira, estará completo.163
Portanto, a agravação da pena do delito posterior é
dificilmente explicável em termos racionais, e a estigmatização que sofre a
pessoa prejudica sua reincorporação social. Logo, a cada crime, deverá
corresponder sua respectiva pena na proporção do fato, já que aplicar a pena
privativa de liberdade em quantidade superior à legalmente prevista para cada
162
163
BISSOLI FILHO, Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. p. 216.
CARVALHO, Salo de. Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco
garantista. p. 111.
64
delito, diante da incidência da circunstância agravante da reincidência, na medida
em que se atribui maior valor ao interesse punitivo do Estado, é desarrazoada e
irracional, pois prejudica o direito à liberdade do réu, rotula-o e estigmatiza-o
como delinquente, impedindo a concessão de diversos benefícios legalmente
previstos, além de ferir princípios fundamentais.
Assim, com base nas diversas contradições existentes
acerca do instituto da reincidência e da aplicação dos seus efeitos, a moderna
doutrina acertadamente tende a relativizá-la, atenuando seus efeitos para,
posteriormente, influenciar a concepção do legislador pátrio a fim de prover a
abolição do instituto.
65
5 CONCLUSÃO
Com o intuito de promover uma reflexão e uma continuação
dos estudos a respeito do tema apresentado, cabe agora tecer algumas
considerações finais a respeito da (in)constitucionalidade dos antecedentes e da
reincidência criminal.
Há quem defenda que os antecedentes e a reincidência
criminal revelam uma tendência ao crime, o que leva o criminoso a ser tratado de
uma forma diferenciada por parte do sistema penal. Para essa corrente, a maior
severidade no cumprimento da sanção não se deve ao fato de o sujeito ter
cometido um delito anterior, mas sim ao fato de já ter sido condenado e cumprido
uma pena privativa de liberdade, o que põe em evidência o maior grau de
culpabilidade da conduta posterior em razão do desprezo pela pena, pois, não
obstante tenha sofrido antes, recai no delito.
Por outro lado, sustenta-se que os institutos da reincidência
e dos antecedentes são algumas das maiores máculas do modelo penal de
garantias proposto pela Magna Carta de 1988, pois, quando confrontadas com o
modelo garantista, fica cristalina a incompatibilidade com os princípios do direito
penal democrático e humanitário, uma vez que a agravação da pena irá configurar
um “plus” para a condenação anterior já transitada em julgado.
Mesmo sem se considerarem os efeitos criminógenos do
sistema penal que rotula o indivíduo como delinquente, distribuindo-lhe etiquetas
e conferindo-lhe uma personalidade estereotipada, que faz com que ele reaja
dessa forma, o indivíduo, quando (re)incluído no sistema penal, além dos efeitos
extralegais, sofre sérios efeitos legais.
Um desses malefícios legais é instrumentalizado pelos
antecedentes e pela reincidência criminal, os quais buscam nas funções da pena
a justificação para sua manutenção, colocando o indivíduo como ser perigoso e
indisciplinado frente ao Estado e punindo o autor conforme sua vida pregressa, e
não conforme o fato cometido.
66
Ainda que se pudesse considerar o sistema penal legítimo,
constata-se, à luz dos princípios norteadores e aceitos em nosso sistema penal,
que tais institutos não podem conviver pacificamente dentro de um mesmo
sistema, posto que contraditórios em seus fundamentos.
Isso porque considerar inquéritos, processos arquivados ou
em andamento, decisões não transitadas em julgado ou mesmo qualquer fato da
vida anterior do indivíduo como antecedentes criminais na primeira fase da
dosimetria da pena fere diretamente o princípio da presunção do estado de
inocência, bem como o princípio da legalidade ou da reserva legal, uma vez que o
referido instituto não foi definido pelo legislador.
O mesmo ocorre no que se refere à reincidência, a uma,
porque viola o princípio do non bis in idem, posto que agrava a pena de um novo
fato
em
decorrência
desproporcionada
sua
de
um
aplicação.
fato
A
já
punido
duas,
anteriormente,
porque
fere
o
restando
princípio
da
proporcionalidade, pois quando da aplicação da pena pelo Juiz, este deverá levar
em consideração os meios e os fins da pena, e essa deve ser proporcional a
gravidade do ato praticado.
Certamente que a prática de um novo delito, depois de já ter
cumprido uma pena anterior, o indivíduo só vem a comprovar a ineficiência do
Estado em cumprir os fins prometidos e oficialmente declarados com a aplicação
da sanção, não havendo espaço para, simultaneamente a tudo isso, considerar o
indivíduo como um indisciplinado frente ao Estado. E quando o indivíduo que já
fora inserido no cárcere – e sofreu todos os seus efeitos criminógenos,
dessocializadores e despersonificadores – volta a delinquir, deveriam os institutos
dos
antecedentes
e
da
reincidência
serem
considerados,
sim,
como
circunstâncias atenuantes, frente à falta do Estado para com o indivíduo em
cumprir sua promessa terapêutica utilizada como um dos fundamentos para
ingressá-lo na prisão.
Por conseguinte, o alto índice de reincidência envolvendo os
egressos do falido sistema prisional brasileiro, os quais não recebem qualquer
67
apoio do Estado é fenômeno extremamente preocupante, e que só demonstra
que a pena não vem cumprindo seu propósito.
68
6 REFERÊNCIAS
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Jurídica. Ano 54. nº 348. p. 77-105. Out. 2006.
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Antecedentes e reincidência no ordenamento jurídico