Jogos Digitais e Alfabetização
Carla Viana Coscarelli*, Delaine Cafiero*, Denise Nogueira**
*Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
**Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: O uso de jogos no auxílio à alfabetização de crianças é um tema que vem recebendo bastante atenção nos últimos anos.
Este trabalho apresenta o Papa-Letras, um jogo de computador voltado para o público infantil, que tem por objetivo auxiliar o
processo da alfabetização. O jogo consiste num desafio de encontrar, dentro de um labirinto, sílabas ou letras que formam a
palavra que representa a imagem exibida no centro da tela. Neste artigo, apresentam-se as principais características do PapaLetras e aspectos de seu processo de desenvolvimento. Para analisar o potencial desse jogo de contribuir com a alfabetização, são
discutidos também alguns resultados preliminares de avaliação que alfabetizadores e crianças de 5 e 6 anos fizeram dele.
Palavras-chave: jogos, alfabetização, jogabilidade, leitura.
Abstract: The use of games to help the development of children literacy is a subject have been receiving attention lately. This
paper presents Papa-Letras, a computer game for children that has as its main aim to help literacy. The player has the challenge to
find, in a labyrinth, syllables or letters that form a word that represents the image he can see in the middle of the screen. We
present the main features of Papa-Letras as well as some aspects of its development process. In order to make an analysis of the
potential of this game to contribute to literacy we also discuss some preliminary results of evaluations of the game made by
teachers and children of 5 and 6 years old.
Keywords: games, literacy, playability, reading.
1. INTRODUÇÃO
A alfabetização é uma das etapas mais importantes no processo educacional de um indivíduo. Uma alfabetização
bem feita, nos anos iniciais de escolaridade, aumenta as chances de aprendizado nas séries seguintes, pois saber ler e
saber escrever são capacidades exigidas em todas as disciplinas. Além disso, uma alfabetização bem construída pode
contribuir para diminuir a distorção idade/série e também a evasão escolar, pois crianças que não se alfabetizam
tendem a repetir a mesma série várias vezes e a desistir da escola. Visando melhorar seus índices de alfabetização, o
ensino público do Brasil passou a receber crianças de 6 anos e a colocar como meta até 2022 que as crianças sejam
alfabetizadas até os 8 anos de idade. Com isso, o último ano da Educação Infantil transformou-se no primeiro do
Ensino Fundamental, o que tem ampliado a discussão sobre quando iniciar o processo de alfabetização. Se, por um
lado, a inserção das crianças de 6 anos dá a elas um tempo mais longo de convívio escolar e amplia suas
oportunidades de aprendizagem, aumentando suas chances de prosseguir nos estudos; por outro lado, uma
alfabetização mal orientada nos anos iniciais pode privar as crianças de uma atividade muito importante para o seu
desenvolvimento: a atividade de brincar.
A brincadeira, no cotidiano de uma criança, é fundamental. Por meio do faz de conta, de representações, de
jogos, a criança terá estimulada sua capacidade simbólica o que, com certeza, vai facilitar a aprendizagem da leitura
e da escrita. Além disso, brincar pode desenvolver a iniciativa, a autoconfiança (JONES, 2004) e favorecer a
concentração. É nesse sentido que acreditamos que jogos de computador devem estar presentes no aprendizado das
crianças, na escola, como uma ferramenta auxiliar no processo de alfabetização. Esses jogos podem se constituir
como poderosos aliados na construção do conhecimento (GEE, 2003). Personagens do universo infantil, cores, sons,
desafios compõem um jogo e, juntos a um conteúdo educativo, podem despertar a curiosidade das crianças para um
aprendizado que vai além das salas de aula. Jogos de computador voltados para a área educacional podem propiciar
às crianças uma aprendizagem lúdica, divertida, interessante, atrativa, eficiente e menos cansativa (PAPERT, 1994;
SHAFFER, 2006). No entanto, apesar de haver muitos jogos disponíveis na internet, poucos são aqueles feitos com
critérios que atendam tanto às demandas da jogabilidade quanto às da educação e aprendizagem. É comum encontrar
jogos que apenas reproduzem tarefas já utilizadas em sala de aula e que usam o computador como suporte como, por
exemplo, dominó de letras, forca, caça-palavras, jogo dos 7 erros.
Considerando que, atualmente, a tecnologia pode oferecer auxílio à educação e acreditando no poder do jogo, o
projeto Alfabetização e Letramento em Ambientes Digitais Interativos Multimodais (ALADIM) tem procurado
maneiras de interligar a tecnologia e a alfabetização por meio de jogos digitais, visando resgatar dois direitos
fundamentais da criança: o de aprender e o de brincar. A equipe envolvida no desenvolvimento desse projeto é
interdisciplinar e conta com a participação de professores e alunos de diversas áreas do saber como Belas Artes,
Educação, Computação e Linguística da Universidade Federal de Minas Gerais. O projeto conta com fomento da
Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) .
No interior desse projeto, foi criado o Papa-Letras, um jogo para computador, que tem como público-alvo
crianças em fase de alfabetização. A proposta desse projeto é criar um jogo educacional que auxilie no
desenvolvimento de algumas capacidades da alfabetização, mas sem deixar de lado características como: o desafio, a
motivação, a recompensa, entre outros. O Papa-Letras é inspirado no clássico Pac-Man. O jogador deve capturar,
em um labirinto, as sílabas que formam a imagem mostrada no seu centro enquanto deve desviar de monstros que
andam aleatoriamente no cenário. Na construção do Papa-Letras, foram respeitadas algumas características do PacMan e implementadas outras características que permitissem à criança desenvolver capacidades em relação ao
sistema linguístico. Com esse jogo, esperamos contribuir para uma prática mais lúdica e prazerosa na alfabetização,
trazendo para o universo da sala de aula as possibilidades do meio digital. Do Pac-Man, foram mantidas a estrutura
de labirinto; a ameaça dos fantasmas; a jogabilidade, com interação por meio do teclado do computador, que permite
ao jogador movimentar-se nas direções para cima, para baixo, à esquerda e à direita; a pontuação crescente, de
acordo com os acertos, e decrescente, de acordo com os erros. A essas características foram acrescentadas outras
diretamente relacionadas à alfabetização.
Figura 1: Pac-man inspirou o Papa-Letras
Neste texto discutimos as principais características do Papa-Letras, sua interface e jogabilidade, apresentando e
analisando os mecanismos utilizados em seu desenvolvimento. Em função de avaliações do jogo realizadas por
alfabetizadores e alfabetizandos, discutimos também algumas suas contribuições para alfabetização.
2. O JOGO PAPA-LETRAS
Figura 2. Página inicial e páginas de cenários do Papa-Letras
O Papa-Letras é um jogo cujo personagem principal, que pode ser um menino ou menina escolhido no menu da
primeira tela, percorre um labirinto repleto de pastilhas, perseguido por quatro fantasmas. O objetivo do jogo
consiste em o personagem principal comer todas as pastilhas, sem ser alcançado pelos fantasmas. As dificuldades
vão aumentando em cada uma de suas quatro fases, mas o jogador tem três vidas em cada uma delas. Para que o
jogo cumpra o objetivo didático de auxiliar a alfabetização, foram implementadas nele as seguintes características:
contextualização por meio de cenários; uma imagem relacionada ao contexto; a tarefa de encontrar elementos
linguísticos (sílabas que correspondem à imagem mostrada); a presença de distratores (sílabas que não
correspondem à imagem mostrada). No enredo subjacente, o personagem acorda e faz sua higiene pessoal,
preparando-se para fazer um piquenique no zoológico. Aparecem, na tela, três cenários: banheiro, zoológico e
piquenique, cada um deles com fases diferentes. O visual dos cenários se constitui de um fundo para o labirinto e o
material de suas paredes. Em todas as fases relativas ao mesmo cenário serão exibidas imagens correlacionadas, por
exemplo, no banheiro serão imagens relacionadas à higiene e a personagem terá de armazenar letras, ou sílabas,
conforme a fase, de palavras desse campo semântico, sempre fugindo dos fantasmas. O aumento de dificuldade em
cada uma das fases está relacionado ao grau de dificuldade dos elementos linguísticos como, por exemplo, o
aumento do número de sílabas que devem ser capturadas ou da complexidade (OLIVEIRA e NASCIMENTO, 1990;
OLIVEIRA, 2009) de cada uma delas.
Em cada um dos três cenários, a distribuição das palavras nas fases do jogo levou em conta três níveis de
dificuldade: palavras fáceis, médias e difíceis, considerando-se o tamanho das palavras e a estrutura silábica. Ao
entrar no cenário “Banheiro”, o personagem vai para o labirinto onde “coleta” sílabas que compõem as palavras que
fazem parte desse campo semântico. A cada palavra completa, um repertório de elementos vai sendo recolhido e o
jogador computando pontos. Ao completar um determinado número de palavras e terminar o nível, o personagem se
vê limpo e adequadamente vestido. No cenário “Piquenique”, ao vencer as fases, o jogador ganha um lanche com os
elementos que conquistou ou ganha acesso ao zoológico para ver os animais. Distratores devem ser evitados pelo
jogador, isto é, ele deve ser capaz de distinguir e evitar letras, sílabas ou palavras que não correspondem à imagem
mostrada. A escolha de um elemento errado é punida com a diminuição dos pontos acumulados e um sinal sonoro
avisa ao jogador que ele errou. A escolha certa é bonificada com pontos que se acumulam. A sinalização de erros e
acertos é feita tanto graficamente (personagem muda de cor), quanto sonoramente (buzinas, salva de palmas). Por
exemplo, quando uma sílaba incorreta é capturada, o som de uma buzina é reproduzido alertando o jogador do erro.
Quando uma sílaba correta é capturada, um som de estalo de chicote é executado juntamente com o deslocamento da
sílaba para o centro da tela, indicando ao jogador o acerto. Ao mudar de fase, o jogador ouve aplausos e ao
completar um nível de dificuldade, o som de crianças comemorando. Com essas sinalizações, o jogo se torna
também mais divertido. Para evitar que o jogo seja monótono e se transforme numa mera atividade escolar, na qual a
criança terá apenas o objetivo encontrar elementos linguísticos corretos, a criança deve ficar sempre atenta para não
ser pega pelos fantasmas e tem de controlar o gasto de sua energia. Como esta diminui proporcionalmente às pílulas
coletadas, o jogador tem de criar estratégias para utilizá-la bem. O personagem perde uma vida e pontos cada vez
que um fantasma o alcança e, quando todas as vidas são perdidas, há a opção de o jogador “tentar novamente” ou
“voltar ao menu”.
Há um menu de instruções de como jogar, que fornece a possibilidade de escolha de diversas características do
jogo. Entre elas está o início; a exibição da tela de instruções; a inserção do nome do jogador personalizando a
interação ao longo do jogo; a escolha do sexo do personagem (menino ou menina); a escolha do nível de
dificuldade; e escolha entre três diferentes cenários (banheiro, zoológico e piquenique). No menu de escolha de
cenário, a criança pode exercitar a sua interação com o teclado, movimentando o seu personagem escolhido através
das setas direcionais até que alcance o cenário desejado. Como a interação nas outras telas de menu são todas feitas
pelo mouse, esse pequeno treino evita surpresas quando o jogo começa, o que poderia desmotivar o jogador caso a
demora na adaptação acarretasse perdas de pontos ou de vidas do seu personagem. Os elementos selecionáveis nas
telas do menu fornecem feedback tanto visual quanto sonoro na interação. Setas, botões e tipos de personagens
mudam de estado quando se passa o mouse por cima, e quando clicados, um som característico de click é disparado.
As instruções situam o jogador sobre o que é o jogo e como jogar, através de imagens e de um texto oral. A tela de
instruções pode ser acessada tanto no menu principal, quanto durante o jogo, caso haja necessidade. O jogador pode
apertar a tecla ESC que o jogo será congelado (apertando novamente a tecla continua jogando normalmente de onde
parou), uma tela será exibida para que se possa escolher entre “voltar ao menu”, ou ver as instruções. A existência
da opção de voltar ao menu é justificada, pois a criança pode querer trocar seu personagem, o cenário, ou até mesmo
o nível de dificuldade.
Logs que capturam e registram em arquivo texto os erros e os acertos do jogador foram adicionados ao jogo, a
fim de permitir que o educador possa ter um controle pós-jogo do que aconteceu com cada aluno que jogou o PapaLetras. É um arquivo texto criado com o nome digitado no momento que a criança começa a jogar. Em cada
arquivo, há a informação do cenário escolhido, do nível de dificuldade, dos acertos e dos erros. Assim, o professor
pode fazer um acompanhamento de cada criança em relação ao jogo, e essas informações não são perdidas quando
se fecha a tela inicial.
Figura 3: Tela que permite identificar o jogador
O Papa-Letras possui um estímulo para que a criança focalize sua atenção nas sílabas que devem ser capturadas:
a barra de energia. Com ela, caso a criança fique apenas circulando pelo labirinto, sem o objetivo de capturar uma
sílaba correta, a energia irá acabar e a velocidade de seu personagem diminuirá drasticamente (se tornando um alvo
fácil para os monstros que o perseguem), até que seja capturada uma sílaba correta e, então, a barra de energia volta
ao normal, assim como a velocidade. Por esta razão, há a punição na captura das pastilhas dispostas ao longo do
labirinto. A personalização do jogo com o nome da criança é um estímulo para atrair a sua atenção e se sentir
reconhecida quanto aos seus acertos. Ao completar os níveis de dificuldade, uma tela de “Parabéns“ com o nome da
criança é mostrada, reconhecendo o seu trabalho positivo.
2.1 DESENVOLVIMENTO DO JOGO
Para simplificar o desenvolvimento do jogo, procurou-se utilizar uma engine (motor do jogo) para abstrair
diversos detalhes de implementação. Diversas engines foram pesquisadas e analisadas, em relação à facilidade de
uso, documentação, preço e portabilidade. Por se tratar de um jogo para computadores em 2D, e por se buscar uma
certa rapidez para a criação do mesmo, foi escolhida a engine Löve 2D, que é programável através da linguagem de
script Lua, para a implementação do jogo. A engine Löve 2D, juntamente com a linguagem Lua são de fácil
aprendizado, bastante intuitivos e permitem que o foco da implementação seja a lógica do jogo, e não detalhes de
configuração do hardware. Esses foram motivadores para a escolha da engine. Com ela, as tarefas de carregar
texturas, desenhá-las, tratar eventos de mouse e teclado, atualizar o gameloop (tarefas essenciais para um jogo) são
realizadas através de uma única função. Possibilitam a modularização de seus arquivos (um arquivo principal inclui
vários outros), o que é muito importante para garantir a reusabilidade e implementação por vários programadores,
caso seja necessário. Com essa modularização, foram feitos arquivos separados para a criação do labirinto, a
configuração dos elementos de cada fase e cenário, a lógica do movimento do personagem do jogador, o menu, telas
de vitória e derrota, tela de instruções e para o main que desenha na tela, atualiza o gameloop, seta as variáveis
globais etc. Os tutoriais e a boa documentação tornaram o aprendizado muito mais eficiente, possibilitando o
começo rápido da implementação do jogo.
Löve 2D permite o desenvolvimento rápido e fácil de jogos em duas dimensões [Love2D, 2009] através de
scripts Lua. Essa engine focaliza no desenvolvimento alto-nível, liberando do programador a configuração de
detalhes de baixo-nível relativos a hardware (placas gráficas, mouse, teclado, joystick, áudio), e é isto que provê a
rapidez e facilidade de uso e de implementação. Pode-se criar um pacote com os scripts, bibliotecas e imagens
necessárias através de uma extensão própria (*.love). Além disso, possui uma boa documentação, fórum e tutoriais
para um conjunto de exemplos que abrangem as funcionalidades mais básicas do desenvolvimento de jogos. É uma
engine multi-plataforma, podendo ser utilizada em Windows, Linux e Mac OS X. E, por ser open-source, permite o
uso para qualquer objetivo, inclusive aplicações comerciais, bem como permite modificações e distribuição gratuita.
Todas essas características motivaram a escolha desta engine para a implementação do jogo.
Lua é uma linguagem de programação poderosa, rápida e leve. Combina sintaxe simples para programação
procedural com poderosas construções para descrição de dados baseadas em tabelas associativa e semântica
extensível. Lua é tipada dinamicamente, é interpretada a partir de bytecodes para uma máquina virtual baseada em
registradores e tem gerenciamento automático de memória com coleta de lixo incremental. Essas características
fazem dela uma linguagem ideal para configuração, automação e prototipagem rápida.
Sendo assim, o Papa-Letras poderá ser distribuído para qualquer plataforma, não implicando em restrição para o
uso em diferentes escolas.
3. CONTRIBUIÇÕES DO PAPA-LETRAS PARA ALFABETIZAÇÃO
A chegada das crianças de 6 anos ao Ensino Fundamental impôs alguns questionamentos importantes para que
seja repensada a prática de alfabetização. Suscitam-se perguntas como: o que ensinar a essas crianças? Que
conhecimentos essas crianças precisam construir? Que capacidades precisam desenvolver? Que atividades realizar
na escola para que alcancem as capacidades desejadas? Considerando-se que a língua é um objeto histórico,
construído, manejado e constantemente modificado pelos sujeitos que a utilizam em suas interações sociais, ensinar
língua é ensinar a utilizar a língua para que o aluno possa interagir em diferentes situações. Assim, o ensino muda o
foco de uma perspectiva transmissiva, centrada em automatismos e reproduções mecânicas, para a perspectiva do
uso e da reflexão. O aluno é tomado como sujeito de sua aprendizagem. O trabalho, organizado em torno do uso
linguístico e da reflexão, vai visar não só o processo de alfabetização em si mesmo, mas também a possibilidade de
inserção ativa dos alunos na cultura escrita, ampliando o seu grau de letramento.
Alfabetização e letramento, então, ao mesmo tempo em que são considerados processos diferentes, porque cada
um possui suas especificidades, são processos inseparáveis, complementares e indispensáveis (SOARES, 2003). O
desafio da escola agora é o de alfabetizar letrando. É fazer com que a criança se aproprie do sistema alfabético e
ortográfico da língua ao mesmo tempo lhe garantindo condições de usar essa língua em seu cotidiano. Ou seja, as
crianças precisam dominar o sistema da língua e saber utilizar esse sistema nas diversas situações de interação
social. No Papa-Letras, tivemos de fazer algumas opções, trabalhamos com capacidades bem iniciais de apropriação
do sistema linguístico, sem desconsiderar, no entanto, a importância de outras capacidades. É nesse sentido que os
diferentes tipos de cenários auxiliam não apenas na alfabetização, mas buscam inserir um contexto de letramento no
jogo. Além disso, é possível almejar, com o jogo, objetivos pedagógicos secundários relacionados à higiene,
ciências, nutrição e outros temas que deverão ser desenvolvidos futuramente.
Na aquisição das regras que orientam a leitura e a escrita no sistema alfabético, bem como do domínio da
ortografia da Língua Portuguesa, é necessário que o alfabetizando compreenda diferenças entre a escrita alfabética e
outras formas gráficas; domine convenções gráficas, compreendendo, por exemplo, que a escrita se organiza da
esquerda para a direita e a função dos espaços em branco e dos sinais de pontuação; reconheça unidades fonológicas
como rimas, sílabas, terminações de palavras, identifique as letras do alfabeto, compreenda sua categorização
gráfica e funcional e utilize diferentes tipos de letras tanto na leitura quanto na escrita; compreenda a natureza
alfabética do sistema de escrita; domine as relações fonema/grafema (regularidades e irregularidades ortográficas).
A apropriação do sistema da escrita é um processo gradual.
O Papa-Letras pode ajudar a criança a distinguir letras de outros sinais gráficos, reconhecer palavras, identificar
letras do alfabeto, distinguir maiúsculas e minúsculas, reconhecer no teclado as letras do próprio nome, decodificar e
compreender palavras formadas por sílaba nos padrões: consoante/vogal (CV), consoante/consoante/vogal (CCV),
consoante/vogal/consoante (CVC); palavras iniciadas por sílaba formada somente por vogal, ou palavras com
ditongos em qualquer posição. Na primeira fase de nível do jogo, aparece um grupo de palavras consideradas mais
fáceis, na segunda as mesmas palavras se repetem e são acrescentadas outras com alguma dificuldade silábica, a
terceira fase incorpora palavras da primeira e da segunda e amplia com outras palavras com mais complexidade
silábica e assim por diante. Ao entrar no “Banheiro”, por exemplo, o jogador encontrará na primeira fase palavras
como: BOTA, SABONETE, CAMISA, BOTA; na segunda fase, encontrará todas as palavras da primeira fase e
mais algumas como: ESCOVA, PERFUME, BERMUDA, ÓCULOS; na terceira, todas as palavras das duas fases
anteriores e mais: ESPELHO, CHUVEIRO, TORNEIRA, GEL. Como o jogo possui logs para registrar o tempo que
o jogador gastou em cada fase e as palavras mais erradas, será possível, no futuro, discutir o que esses dados dizem
sobre as hipóteses que os alunos geram e utilizam durante o jogo. Por exemplo, como processam os padrões
silábicos na aquisição do sistema de escrita.
3.1 O QUE ALFABETIZADORES E ALFABETIZANDOS DIZEM SOBRE O
PAPA-LETRAS
Uma avaliação permite melhorar características e/ou falhas dos jogos, perceber se os objetivos propostos foram
atingidos e verificar em que é necessário melhorar. A versão piloto do Papa-Letras foi avaliada em três etapas (com
especialistas, com professores, e com as crianças). A avaliação de um jogo voltado para o público infantil é muito
importante, pois a tendência é que crianças interpretem o mundo de uma maneira diferente dos adultos. Embora os
professores não sejam usuários diretos do sistema, avaliar o jogo com eles é fundamental, afinal, é deles a
responsabilidade de alfabetizar as crianças e são eles os mediadores principais na sala de aula.
Alguns dos objetivos para a avaliação do jogo foram: identificar o entendimento dos projetistas sobre as
necessidades das crianças; identificar problemas de comunicabilidade entre designer e usuário; identificar problemas
na jogabilidade, focalizando a diversão e a satisfação da criança.
O Papa-Letras foi apresentado para quatro professoras de crianças de 5 e de 6 anos, que puderam interagir com
ele o tempo que quisessem. As professoras disseram gostar da proposta e afirmaram que ele poderia contribuir muito
para a aprendizagem de suas crianças, uma vez que essas se divertiriam e, ao mesmo tempo, poderiam desenvolver
algumas capacidades com o sistema linguístico. Sugeriram que o jogo pudesse ter algum mecanismo em que o
professor escolhesse qual aspecto linguístico seria abordado, por exemplo, algum elemento específico da ortografia.
Essa é uma sugestão que será analisada nos trabalhos futuros. O que não se pode perder de vista, no entanto, é que o
Papa-Letras não tem o mesmo caráter de uma “atividade” escolar, ele é um jogo. Não é o professor que deve decidir
ou controlar o que a criança vai fazer, mas o próprio jogador.
A avaliação pelas crianças foi feita na sala de informática onde elas puderam interagir com o jogo livremente
sem intervenção do professor ou do monitor de informática. Os pontos importantes observados das interações foram
anotados durante a avaliação, à medida que ocorriam.
As turmas de crianças de 5 e 6 anos foram ambas divididas pela metade, totalizando, então, quatro turnos de
avaliação, de 12 crianças em cada. As crianças foram divididas em duplas ou trios em cada computador e
alternavam a vez de cada um jogar.
Para os alunos que já sabiam ler, as fases do jogo foram mais fáceis, eles identificavam as sílabas rapidamente e
se sentiam desafiados a continuar no jogo exatamente porque conseguiam acertar. Aqueles alunos que ainda não
sabiam ler, por sua vez, tentavam pegar qualquer sílaba, sem fazer muita distinção entre o certo e o errado, mas
muitas vezes acertavam por acaso e não tinham consciência do que haviam feito para acertar. Em ambas as turmas
foi possível perceber algumas dificuldades encontradas pelos alunos. Uma delas diz respeito à movimentação do
personagem pelo labirinto. Para que o personagem se deslocasse por entre as paredes do labirinto, era necessário que
ele estivesse relativamente alinhado com o centro do corredor, pois, caso contrário, trombaria nas paredes. Muitos
alunos encontraram dificuldade em conseguir, em alguns pontos do labirinto, alinhar corretamente o personagem
para efetuar o deslocamento.
Outro aspecto que provocou alguma dificuldade e merece modificação são as imagens. Algumas delas não foram
facilmente identificadas pelas crianças (perfume e gato são exemplos). As imagens foram retiradas de um banco de
imagens na web e precisam ser substituídas. Algumas vezes o jogo entrou na tela de erro da framework (Löve2D) e
as crianças ficavam confusas sobre o que fazer. Esses erros estão sendo investigados para serem removidos.
Apesar desses problemas, as crianças mostraram-se animadas com o jogo, tentando avançar em seus níveis para
os diferentes tipos de cenários. A cada acerto elas comemoravam e compartilhavam o feito com os colegas. Quando
o tempo se esgotava e era hora de ir embora, muitas não queriam parar de jogar.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao receber as crianças de seis anos nas salas de aula do Ensino Fundamental, é importante que a escola respeite
essa criança não exigindo dela o que se exige das crianças de 7 ou de 8. É importante também que se respeite o
direito delas de brincar. Nesse sentido, a aplicação do Papa-Letras nos permitiu observar que é possível trazer para
sala de aula as vantagens dos jogos digitais, como o desafio, a motivação, a construção de hipóteses e estratégias e a
aquisição de conhecimentos.
O jogo Papa-Letras será ampliado posteriormente para contextos maiores, envolvendo roteiros e uma melhor
imersão do jogador na situação. Novos jogos com o mesmo objetivo também serão projetados e implementados em
etapas futuras desta pesquisa. O jogo Frutas do Brasil, por exemplo, que também está sendo construído pelo grupo
ALADIM, traz outro tipo de contextualização. Esse jogo, produzido em versão para PC e versão para mesa
multitoque, explora o campo semântico de palavras relacionadas a frutas brasileiras.
A difusão e a distribuição de sistemas de computação, inseridas na agenda das políticas públicas de educação e
cultura, estão facilitando o acesso das crianças, principalmente as de camadas da população de baixa renda, aos
meios digitais. Entretanto, há carência de conteúdos de qualidade que consigam, de fato, utilizar a riqueza de
possibilidades pedagógicas disponibilizadas pelos meios computacionais. São muitos os jogos disponibilizados hoje
comercialmente ou na internet, tarefa difícil, porém, é encontrar aqueles que efetivamente contribuam para o
desenvolvimento da leitura e da escrita dos alunos. Em vista disso, este projeto tem potencial para contribuir para a
melhoria dos níveis de leitura e produção escrita, como também contribuir para um avanço significativo dos
métodos e técnicas atualmente utilizados nos processos de alfabetização.
Quando comparamos os processos de ensino de circulação nas salas de aula, notamos que a relação é de uma
proposta pedagógica específica para cada turma (grande número de alunos), fato que não leva em consideração as
diferenças de estruturas cognitivas específicas de cada aluno. O ALADIM propõe, graças às estruturas reticulares
não lineares dos jogos digitais, que haja várias propostas pedagógicas aninhadas em um livro específico (percurso
particular dentro de uma vasta rede de possibilidades propiciada pela estrutura não linear dos jogos) para cada aluno.
O projeto parte do pressuposto que cada aluno é diferenciado nas suas capacidades cognitivas em função de fatores
sociais, históricos, psicológicos e biológicos. A ideia é, portanto, que cada aluno seja capaz de otimizar seu processo
de alfabetização/letramento em função dos percursos mais adequados aos seus modos de percepção/cognição.
REFERÊNCIAS
1. J.P. Gee. What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave/St. Martin‟s, 2003.
2. G. Jones. Brincando de matar monstros: por que as crianças precisam de fantasia, videogames e violência de faz. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004.
3. Love2D, Documentation. Disponível em <http:// love2d.org> Acesso em 29 novembro de 2009.
4. Lua, The programming language Lua. Disponível em < http://www.lua.org> Acesso em 29 de novembro de 2009.
5. J. Nielsen and R. L. Mack (Eds.). Usability Inspection Methods, John Wiley & Sons, New York, 1994.
6. M. A. Oliveira.Trabalhando com a sílaba no ensino da escrita. Revista Educação Especial: Guia da alfabetização. São Paulo:
Editora Segmento / Ceale, 2009, pp. 76- 90.
7. M. A. Oliveirae M. do Nascimento. Da análise de „erros‟ aos mecanismos envolvidos na aprendizagem da escrita. Educação
em Revista. Belo Horizonte (12), dez/1990, pp. 33-43.
8. S. Papert. A Máquina das Crianças: Repensando a Escola na Era da Informática. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.
9. D. W. Shaffer. How computers games help children learn. New York: Palgrave MacMillan, 2006.
10. M. Soares. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Ceale, Autêntica, 2003.
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