O DIREITO PENAL JUVENIL COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO À
INFÂNCIA E JUVENTUDE*
THE JUVENILE CRIMINAL LAW AS AN INSTRUMENT OF PROTECTION
OF CHILDREN AND YOUTH
Lissa Cristina Pimentel Nazareth
Luiz Antonio Ferreira Nazareth Junior
RESUMO
O presente artigo aborda a situação do adolescente infrator em face do Estatuto da
Criança e do Adolescente, bem como a aplicação do princípio da proteção integral nos
casos de prática de ato infracional. O trabalho busca estudar o problema ocasionado pela
Lei n° 8.069/90 que, no entender de expressiva parcela da sociedade, garante a
impunidade ao menor que pratica o ato infracional uma vez que não prevê qualquer
medida sancionatória para menores infratores. Apresenta como provável solução a
criação de um direito penal juvenil que, adaptado às condições especiais do menor e
respeitando o princípio da proteção integral, possa vir a ser uma resposta estatal
razoável para a contenção e prevenção do ato infracional. Destaca a importância da
criação de políticas públicas para a efetiva aplicação do princípio da proteção integral e
a criação do direito penal juvenil.
PALAVRAS-CHAVES: INFÂNCIA, JUVENTUDE, INFRAÇÃO, ATO
INFRACIONAL, PROTEÇÃO INTEGRAL, DIREITO PENAL JUVENIL.
ABSTRACT
This article discusses the situation of adolescent offenders in the face of the Child and
Adolescent and the principle of full protection in cases of Brazilian Law. The work is to
study the problem caused by Law No. 8069/90, in the opinion of a significant portion of
society, guarantee impunity to practice less than an infraction because it does not make
provision for any penalty for juvenile offenders. It presents as a likely solution to create
a juvenile criminal law that is adapted to the special conditions of the child and
respecting the principle of full protection, might be a reasonable state response for the
containment and prevention of offenses. Stresses the importance of creating public
policies for the effective application of the principle of full protection and the creation
of juvenile criminal law.
KEYWORDS: CHILDHOOD, YOUTH, OFFENSE, OFFENSE, FULL
PROTECTION, JUVENILE CRIMINAL LAW.
*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.
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1. INTRODUÇÃO
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n? 8.069, de 13 de julho de 1990,
representou um grande avanço na regulamentação do chamado direito menorista, posto
que até então vigia entre nós o antigo Código de Menores (Lei n? 6.697/79).
De acordo com Marcelly Walker:
Para a doutrina de situação irregular, os jovens são objetos de proteção e não sujeitos de
direitos. Além disso, segundo João Batista da Costa Saraiva[1], durante a vigência do
Código de Menores, 80% da população juvenil recolhida às entidades de internação não
eram autores de condutas delituosas e estavam presos pelo simples fato de serem
pobres. Realizava-se o controle da pobreza, prendendo a própria vítima.[2]
A diferença conceitual era nítida entre os jovens e crianças tidas como “bem nascidas” e
os menores, que eram os carentes ou autores de delitos.
No dizer de João Batista Costa Saraiva[3], havia dois tipos de infância: nesta
época, uma minoria com as necessidades básicas amplamente satisfeitas (as crianças e
adolescentes), e grande parte da população juvenil com suas necessidades básicas total
ou parcialmente insatisfeitas (os menores).
Em consonância com tal entendimento, defende Wilson Donizeti Liberati[4]:
O Código revogado não passava de um Código Penal do “Menor”, disfarçado em
sistema tutelar; suas medidas não passavam de verdadeiras sanções, ou seja, penas,
disfarçadas de medidas de proteção. Não relacionava nenhum direito, a não ser aquele
sobre a assistência religiosa; não trazia nenhuma medida de apoio a família; tratava da
situação irregular da criança e do jovem, que, na realidade, eram seres privados de seus
direitos. Na verdade, em situação irregular estão a família, que não tem estrutura e que
abandona a criança; os pais, que descumprem os deveres do poder familiar; o Estado,
que não cumpre as suas políticas sociais básicas; nunca a criança ou o jovem.
Até o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente os adolescentes eram privados de liberdade e de suas garantias individuais
pelo simples fato de economicamente hipossuficientes ou de viverem nas ruas. Tudo
sob o argumento de que o Estado estaria os protegendo, pois estavam em situação
irregular.
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O referido Estatuto, originário do comando constitucional do art. 227 da Constituição
Federal, tratou de viabilizar na prática o princípio da proteção integral, ou seja, aquele
que determina tratamento diferenciado à criança e o adolescente, bem como que a estes
devem ser assegurados os acessos à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Assim, tratou o legislador de proteger de forma especial e dentro das suas
peculiaridades, a criança e o adolescente; entretanto, o Estatuto não negligenciou um
ponto de crucial importância, o fato típico[5] praticado por essas pessoas, o qual há
muito já afligia a sociedade. Naqueles tempos não eram poucas as ocorrências
envolvendo menores de idade como agentes do fato típico, assim, surgiu a denominação
“ato infracional” para indicar a prática de infração penal por adolescente, uma vez que
indivíduos com idade inferior a dezoito anos não podem ser processados criminalmente,
tampouco se submetem à aplicação da lei penal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente erigiu um novo padrão de responsabilidade do
jovem infrator. Quando o Brasil rompeu com a ultrapassada doutrina da situação
irregular e incorporou a Doutrina da Proteção Integral, erigiu o então “menor”, outrora
considerado como mero objeto do processo, a uma nova categoria jurídica. Desta feita,
diploma estatutário promoveu o adolescente infrator à condição de sujeito do processo,
conceituando criança e adolescente, determinou uma relação de direito e dever,
advertindo a sociedade acerca da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento,
reconhecida ao adolescente.
Com a finalidade de proteger o adolescente privado de liberdade, além das
medidas adotadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que são primordiais para
preservar os direitos processuais e substantivos da criança e do adolescente em qualquer
circunstância, o legislador Constituinte elegeu como princípio constitucional a
dignidade da pessoa humana. Com o intuito de elucidar tal princípio evoca-se o
entendimento de Immanuel Kant, que propôs a dignidade como imperativo
categórico[6], segundo o qual, o homem é um fim em si mesmo, não podendo jamais
ser “coisificado” ou utilizado como meio de obtenção de qualquer objetivo. Para Kant,
todo ser humano deve conceber o valor da dignidade como absoluto, no limite em que
sua racionalidade determine. Segundo o autor, as coisas, que podem ser trocadas por
algo equivalente, têm preço, as pessoas, dignidade. [7]
Em consonância com o valor fundante de tal princípio, toda pessoa, independente da
circunstância que se encontre, é titular do direito à dignidade, que permeia diferentes
tratados e diplomas internacionais de Direitos Humanos.[8]
Embora o legislador ordinário não tenha medido seus esforços no sentido de
regulamentar a aplicação das “medidas socioeducativas” (equivalentes às respostas que
o Estado dá ao adulto infrator da lei penal), inclusive estabelecendo diretrizes para o
procedimento e aplicação destas, muito pouco foi feito acerca da prática, posto que não
se deu a devida atenção à causa menorista do ponto de vista da infração penal. No
decorrer dos anos, desde a edição do Estatuto, observou-se um crescimento bastante
acentuado da criminalidade no Brasil, mormente dos casos envolvendo adolescentes
figurando como agentes da prática infracional.
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Ainda que o arcabouço jurídico tenha sido criado para proteger o adolescente
privado de liberdade, verifica-se que na realidade prática das Varas da Infância e
Juventude brasileiras, nem sempre a “proteção integral” ao adolescente em conflito com
a lei é respeitada.
Desta feita, a sociedade vem questionando vários aspectos pertinentes ao tema, como
por exemplo: a redução da maioridade penal[9], de dezoito para dezesseis anos, as
instituições destinadas ao amparo de menores infratores, tais como a FEBEM[10], a
eficácia das medidas socioeducativas, e o descaso do poder público para com o tema,
gerando uma sensação de ausência de punição.
Diante o exposto, é possível afirmar que na atualidade, encontramo-nos diante de um
grande impasse: ou se aplica efetivamente as normas contidas no Estatuto e se investe
mais nos programas de proteção à criança e ao adolescente, inclusive nas instituições
voltadas à internação daquele que comete ato infracional, ou assume-se a necessidade
de se criar um outro sistema, o do direito penal juvenil, devidamente adaptado às
condições daqueles indivíduos.
2. ATO INFRACIONAL
É importante sempre ter em mente que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao
adotar a teoria da proteção integral, que vê a criança e o adolescente como pessoas em
condição peculiar de desenvolvimento, necessitando, em conseqüência, de proteção
diferenciada, especializada e integral, não teve por objetivo manter a impunidade de
jovens, autores de infrações penais, tanto que criou diversas medidas socioeducativas.
Visou ele a proteção integral, porém, nem sempre foi assim na legislação pátria. Em
outros tempos o menor infrator era tido como um indivíduo doente, que merecia
proteção sim, mas deveria ser segregado da sociedade, logo, surgiram instituições que
se destinavam a manter esses jovens internados, todavia, na prática, tais
estabelecimentos em muito se assemelhavam ao cárcere, aliás, pior, posto que na prisão
aos adultos infratores eram concedidos os direitos processuais penais constitucionais,
bem como os benefícios da Lei de Execução Penal, tais como: a comutação, a
progressão da regência carcerária, o indulto, a anistia, a graça dentre outros, ao passo
que, ao menor infrator, por não ser ele considerado criminoso, nenhum favor legal
processual penal estaria ao seu dispor.
Não foram poucas as vozes que se insurgiram contra o sistema que se encontrava
instalado no País, logo, entidades destinadas à defesa dos direitos dos menores, bem
como aquelas protetivas dos direitos humanos, exigiram com bastante ênfase uma
providência do Estado no sentido de melhorar a situação do adolescente infrator, não
obstante também houvesse aqueles que aplaudiam o sistema vigente.
Antes da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, como já se observou, a Lei
Federal nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Código de Menores) rezava que: “O menor
de dezoito anos, a que se atribua autoria de infração penal, será, desde logo,
encaminhado à autoridade judiciária” (art. 99), isto é, o indivíduo até dezoito anos de
idade que praticava uma infração penal, deveria receber uma resposta estatal. Esta regra
do antigo Código mudou: atualmente não se fala mais em “menor”, mas sim em
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“criança e adolescente”, novas categorias de pessoas já apresentadas pela Constituição
Federal de 1988. Nos dias de hoje não se usa mais a expressão “infração penal”,
contudo, utiliza-se o termo “ato infracional” (o que inclui crime e contravenção penal),
o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu art. 103, define o que seja o ato
infracional.
“Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção
penal.”
O ato infracional, a rigor, assemelha-se ao crime e este, por seu turno, é o fato típico,
antijurídico, sendo que a culpabilidade constitui pressuposto da pena[11].
Inclusive, O Código Penal, assim como a Constituição Federal, em seu art. 228, bem
como o ECA, no seu art. 104, vedam a aplicação de pena a indivíduo menor de dezoito
anos, assim, o referido diploma, no seu art. 27, diz que:
Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos
às normas estabelecidas na legislação especial.
Ademais, não se pode olvidar aqueles que vêem na legislação menorista uma
salvaguarda para a “criminalidade” infanto-juvenil, vale lembrar, outrossim, que a
pessoa menor de dezoito anos é inimputável à luz do ordenamento penal, contudo, não o
é em face do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quanto à competência para a aplicação da chamada resposta estatal também ocorreram
alterações, assim, não existe mais apenas o “Juiz” como única autoridade competente
para atuar perante a prática de ato infracional, sendo a nova autoridade administrativa, o
“Conselho Tutelar”, aquela com atribuição de dedicar atendimento à criança – pessoa
até doze anos de idade incompletos – que o pratica. Observa-se, desta forma, que a
criança deixou de ter um atendimento por parte de um ente singular, investido de uma
função jurisdicional, para ser atendida por uma autoridade administrativa (não judicial)
e colegiada. Jurisdição e Administração são funções estatais que não se confundem, se
diferenciando por diversas características que as justificam enquanto poder do Estado.
Entre outras: a) enquanto a Jurisdição pressupõe a existência de prévia controvérsia, só
agindo por provocação, a Administração age de ofício; b) enquanto a Jurisdição utiliza
critérios jurídicos, decidindo de um modo neutro e imparcial pelo que é “direito e justo”
para as partes, a Administração utiliza critérios políticos de oportunidade e
conveniência, decidindo de forma interessada e parcial pelo que é de interesse público e
por aquilo que melhor atende ao bem comum; c) enquanto a Jurisdição possui
procedimentos rígidos e subordinados às formalidades do devido processo legal, a
Administração possui, de regra, procedimentos espontâneos.
A sociedade vive sob forte tensão em face do crescente aumento da criminalidade,
mormente nas grandes capitais, força é saber que não se pode, sob pena de retrocesso,
imaginar que uma das soluções para os problemas da violência urbana reside na
alteração do sistema proposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente acerca da
resposta do Estado para aqueles jovens que cometem atos infracionais, desta feita, cabe
à sociedade envidar todos os esforços a fim de por em prática os comandos legais da
legislação menorista, bem como ao Poder Executivo incumbe a tarefa de olhar com
mais atenção para a causa da criança e do adolescente, investindo na especialização dos
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recursos humanos e na melhora da infraestrutura dos estabelecimentos de internação e
na viabilização da aplicação das medidas socioeducativas.
Para João Batista Costa Saraiva,
O Direito Penal Mínimo é intermediário entre a Doutrina do Direito Penal Máximo[12]
e a do Abolicionismo Penal, caracterizando-se por reconhecer tanto a necessidade de
prisão para situações específicas, quanto a aplicação de penas alternativas, reservando a
privação de liberdade para os casos de risco social efetivo, norteado por princípios como
o da brevidade e o da excepcionalidade.[13]
Não são poucos os que pretendem reestruturar o Direito da Infância e da Juventude e
impregná-lo de garantias que lhe são inerentes. Alexandre Morais da Rosa elenca
algumas modificações procedimentais pertinentes ao direito penal juvenil:
a) direito de defesa técnica com tempo e meios adequados, inclusive na remissão; b)
direito à presunção de inocência e liberdade como regra, com excepcionalidade da
internação provisória; c) direito de recorrer em liberdade mesmo sem se recolher ao
centro de internamento, justificando- se fundamentalmente a eventual negativa do
direito de recorrer em liberdade; d) direito a juiz e Ministério Público competente; e)
direito a ampla defesa, com intimação para todos os atos processuais, inclusive
precatória; f) direito ao silêncio e de não se incriminar; g) vedação da reformatio in
pejus; h) vedação do uso de provas ilícitas, salvo em benefício da defesa; i) direito à
publicidade do processo em sua relação; j) proibição do non bis in idem processual; l)
direito de jurisdicionalização da Execução da medida socioeducativa; m) direito de estar
presente nos atos processuais e se confrontar com as testemunhas e informantes; n)
prescrição da medida socioeducativa; o) direito de solicitar a presença de seus pais e
defensores a qualquer tempo; p) impetrar habeas corpus e mandado de segurança;
q) inutilização das provas não produzidas no processo e em contraditório; r)
inconstitucionalização da internação-sanção por violação do devido processo legal. [14]
Os direitos acima dispostos são provenientes de uma concepção das garantias
individuais e coletivas do cidadão. Além de estarem em conformidade com o cerne
ideológico do Direito Penal Juvenil, estão inseridos no próprio Estatuto.
Logo, existe incoerência quando se rejeita o caráter penal das medidas socioeducativas e
afasta a aplicabilidade de um rol de garantias, da mesma forma que se defende a
redução da idade penal, tendo em vista que a inimputabilidade contemplada pela
Constituição Federal em seu art. 228[15], não faz dos infantes irresponsáveis, e nem
mesmo significa que estão impunes. Apenas os remete à submissão à legislação
especial, em razão da peculiaridade de pessoa em estado de desenvolvimento. Ademais,
não faltam motivos para combater a proposta de redução da idade penal, eis que as
medidas socioeducativas, têm o condão de se apresentarem como medidas alternativas e
até mesmo como privativas de liberdade. Tais medidas já demonstram seu caráter
retributivo. Para tanto, é necessário que os prejuízos sofridos pelos adolescentes em
razão de não lhes serem conferidos os ditames do direito penal comum sejam afastados
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por meio de políticas públicas e atendimento social que vise proteger a infância e a
juventude na sua integralidade.
3. PROCEDIMENTO
A criança acusada da prática de um fato típico deverá ser conduzida imediatamente à
presença do Conselho Tutelar ou Juiz da Infância e da Juventude. Se efetivamente tiver
praticado ato infracional, será aplicada medida específica de proteção (art. 101 do ECA)
como orientação, apoio e acompanhamento temporários, freqüência obrigatória em
ensino fundamental, requisição de tratamento médico e psicológico, entre outras
medidas.
Sendo o caso de apreensão de adolescente e em caso de flagrância de ato infracional, o
jovem de 12 a 18 anos incompletos será conduzido até a autoridade policial
especializada (antiga Delegacia de Menores). Na polícia, não poderá haver lavratura de
auto e o adolescente deverá ser levado à presença do juiz. Ressalte-se que os
adolescentes não são igualados a réus ou indiciados e não são condenados a penas
(reclusão e detenção), como ocorre com os maiores de 18 anos. Recebem medidas
socioeducativas, sem caráter de apenação. É totalmente ilegal a apreensão do
adolescente para "averiguação". Ficam apreendidos e não presos. A apreensão somente
ocorrerá quando houver flagrância ou por ordem judicial e em ambos os casos esta
apreensão será comunicada, de imediato, ao juiz competente, bem como à família do
adolescente (art. 107 do ECA).
O primeiro passo a ser observado será o de que a autoridade policial deverá averiguar a
possibilidade de liberar imediatamente o adolescente. Caso a detenção seja justificada
como imprescindível para as investigações e manutenção da ordem pública, a
autoridade policial deverá comunicar os responsáveis pelo adolescente, assim como
informá-los acerca de seus direitos como ficar calado se quiser, ter advogado, ser
acompanhado pelos seus pais ou responsáveis etc. Após a apreensão, o adolescente será
imediatamente conduzido à presença do promotor de justiça, que poderá promover o
arquivamento da denúncia, conceder remissão-perdão ou representar ao juiz para
aplicação de medida socioeducativa e, por seu turno, o juiz deverá aplicá-la de forma
mesurada a fim de que tal resposta não tenha caráter de pena.
O procedimento para a apuração da prática de ato infracional em muito se assemelha
aos procedimentos do Processo Penal, entretanto, no caso do Estatuto é fundamental a
lembrança de que maior risco de violação de direitos há, uma vez que o adolescente, no
mais das vezes, fica tolhido, até em face da sua condição peculiar de desenvolvimento,
de exercitar um dos mais importantes meios de defesa, a autodefesa e, na prática, em
muitas ocasiões o adolescente infrator se vê pego sozinho, sem a proteção de familiares
ou de advogado e, infelizmente, não são poucas as situações em que este é detido em
cela comum juntamente com adultos infratores, o que constitui num das mais graves
violações de direitos.
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4. GARANTIAS PROCESSUAIS
O Estado, na qualidade de titular do poder-dever de punir os indivíduos maiores de
idade condenados pela prática de delitos, tem para a realização desta prerrogativa o
processo penal e, por se tratar de uma sociedade politicamente organizada, tal processo
é previamente regulamentado por normas postas no Código de Processo Penal e na
legislação extravagante.
Todavia, não basta a regulamentação do direito adjetivo para que o Estado exercite seu
direito, mister se faz que tais regras estejam conforme o preceituado na Lei Maior, posto
que nesta se encontram os primados reguladores do processo, quais sejam, os princípios
constitucionais.
Os direitos fundamentais constitucionais têm natureza de direito de defesa, isto é,
servem para proteger o cidadão dos excessos do Estado, afinal este detém o poder,
porém, tal poder deriva do povo e em seu nome deve ser exercido, logo, o abuso no seu
exercício só pode ser coibido por garantias tão fortes quanto a atuação do Estado.
Os referidos direitos fundamentais dividem-se em direitos e garantias individuais. No
dizer de Jorge Miranda, citado por Alexandre de Moraes:
(...) os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a
fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias acessórias e, muitas delas
adjectivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os
direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por
isso, as respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que
possuem com os direitos; na acepção jus racionalista inicial, os direitos declaram-se e as
garantis estabelecem-se. [16]
No que tange ao processo penal, tais direitos e garantias têm o escopo de proporcionar
ao acusado da prática de infração penal a boa aplicação da função estatal, garantindo a
este que seu processo será justo, legal e inviolável quanto a qualquer excesso do poder
público.
Desta feita, após breve passagem ao que se chamaria “Direitos e Garantias Processuais
Penais Constitucionais dos adultos”, possível é observar que o legislador constituinte
originário não negligenciou a proteção daquele que se vê criminalmente processado. Ao
se integrar todo o sistema de garantias constitucionais ao princípio da proteção integral,
previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, verificar-se-á que ao Adolescente
infrator está disponível o maior rol possível de proteção. Se o indivíduo adulto tem um
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sistema jurídico de proteção especial a seu favor, logo, dispõe da “proteção integral”,
que abrange os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa,
do juiz natural, do duplo grau de jurisdição, do indubio pro reo, da verdade real e da
dignidade da pessoa humana.
5. MEDIDAS PROTETIVAS
Os Códigos Penais do Império e da República, de 1830 e 1890, respectivamente,
adotaram a Teoria de Ação com Discernimento no que concerne à imputação de
responsabilidade penal. A Teoria do Discernimento ainda hoje conta com adeptos que a
invocam com o objetivo de substituir o critério cronológico absoluto atualmente
vigente.
O critério cronológico para a determinação da idade de imputabilidade penal é
consagrado pela Constituição Federal, art. 228, Código Penal, art. 27, e Lei n. 8.069/90,
Estatuto da Criança e do Adolescente, todos fixando-a em dezoito anos de idade.
O Brasil subscreveu a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 30 de novembro de 1989, que
consagra a Doutrina da Proteção Integral trazendo novos paradigmas para o trato da
questão infanto-juvenil. No seu art. 1º, define a criança como: todo ser humano menor
de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança,
a maioridade seja alcançada antes.[17]
Esta flexibilidade foi necessária na busca de um consenso entre os diversos Estados
partes do Tratado.
Referências à idade de forma precisa surgem em apenas dois dispositivos da
Convenção, os art. 37 e 38. O primeiro proíbe a aplicação da pena de morte e prisão
perpétua a menores de dezoito anos de idade. O art. 38, por sua vez, contempla normas
de direito humanitário “aplicáveis em caso de conflito armado no que digam respeito às
crianças”, tanto no que concerne a participação de forma direta de “hostilidades”,
como através de compromisso dos Estados Partes em abster-se de recrutar “pessoas que
não tenham completado quinze anos de idade para servir em suas forças armadas”.
As Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção dos jovens privados de
liberdade define o jovem como “uma pessoa de idade inferior a dezoito anos. A lei deve
estabelecer a idade-limite antes da qual a criança não poderá ser privada de sua
liberdade” (art. 11).
As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da
Juventude, Regras de Beijing de novembro de 1985, reconhecem a necessidade de que a
autoridade competente tenha à sua disposição “uma ampla variedade de medidas”, de
forma a evitar ao máximo a institucionalização (art. 18), e vê a internação como “uma
medida de último recurso e pelo mais breve período possível” (art. 19), em outras
palavras, deve-se reconhecer o caráter excepcional da institucionalização.
9171
A Constituição Federal, em seu art. 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente
agasalharam a Doutrina da Proteção Integral , introduzindo-a no nosso Ordenamento
Jurídico. A criança e o adolescente, de acordo com os novos paradigmas conceituais e
normativos, deixam de ser capitis deminutae, objeto a ser tutelado, para ser sujeito de
direitos e merecedores de proteção integral pela sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, proteção esta a ser assegurada com absoluta prioridade.
O Diploma Estatutário é uma lei que se destina a toda criança e adolescente, sendo a
criança aquela pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre
doze e dezoito anos incompletos (art. 1º e 2º). Assim, a regra é que esta Lei Especial
tem a sua aplicação limitada à pessoa até os dezoito anos de idade, e, apenas em caráter
excepcional, “nos casos expressos em lei”, o Estatuto poderá ser aplicado à pessoa até
os vinte e um anos de idade (parágrafo único do art. 2º). Lembramos o disposto nos art.
36 (tutela), 40 (adoção) e 121, parágrafo 5º (internação) do referido Diploma Legal.
Feitas as considerações preliminares, passa-se à análise do tema em espécie.
6. MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS. ESPÉCIES
A Lei n. 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu art. 104 dispõe que aos
autores de ato infracional são aplicadas “as medidas previstas nesta Lei”. À criança são
aplicáveis as medidas protetivas (art. 105 e 101), enquanto que aos adolescentes as
medidas socioeducativas elencadas no art. 112.
A idade a ser considerada na aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente é a
idade à data do fato (parágrafo único do art. 104).
Não raro é a hipótese em que o adolescente venha a praticar ato infracional (art. 103 considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal) às
vésperas de atingir a maioridade penal. Por mais célere que seja a tramitação do
processo com vistas a sua apuração, no momento em que a sentença for proferida
encontrará o então adolescente já com dezoito anos.
Tratando-se de medida de internação a questão prescinde de maiores indagações, uma
vez que, por força do contido no parágrafo 5º do art. 121, até os vinte e um anos o
infrator poderá ser mantido em instituição para cumprimento da medida.
Não configurando o ato infracional que lhe é atribuído dentre as hipóteses dos incisos I
e II do art. 122, inadmissível será a aplicação da medida de internação, impondo-se um
estudo mais aprofundado da questão, o que ora nos propomos.
A este respeito, com clareza e objetividade, dizem Cury, Garrido & Marçura:
“O rol é exaustivo, não cabendo internação fora das hipóteses expressamente
previstas”.[18]
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Outra situação diz respeito ao adolescente que, no curso do cumprimento de medida que
não internação, venha a alcançar a maioridade, ou mesmo quando, em cumprimento de
medida de internação, seja beneficiado com a progressão da medida.
Em todas estas hipóteses, confrontamo-nos com a ausência de um dispositivo legal que
expressamente autorize a aplicação de medida após os dezoito anos, que não a
internação.
Se quisesse o legislador que fosse aplicável todo o elenco das medidas socioeducativas
ao maior de dezoito anos, incluiria dispositivo neste sentido na Seção destinada às
“Disposições Gerais”, o que não ocorreu.
Resta a indagação: de fato a restrição da aplicabilidade de medida à internação foi a
vontade do legislador ou constitui mera omissão, de ordem técnico-legislativa?
Recomenda a boa técnica que as medidas de caráter geral devem preceder o grupo de
assunto jurídico ao qual digam respeito, quando a lei for extensa.
O parágrafo, por sua vez, guarda relação direta com o artigo a que se refere,
constituindo-se, em relação a este, disposição secundária.
As medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente
constituem a resposta estatal àquele jovem que comete o ato infracional, porém, nunca é
demais lembrar que tais medidas não podem ser consideradas sanção penal, posto que
não possuem uma das características da pena, qual seja, a retribuição do Estado ao
indivíduo pelo mal injusto causado por aquele.
O sistema do Estatuto previu um rol taxativo de medidas, cuja disposição se dá de
maneira gradativa, sendo a mais branda a advertência, prevista no art. 115, e a mais
grave a internação, constante dos art. 121 a 125 do mesmo Estatuto.
Dentre a mais branda e a mais grave das medidas socioeducativas podemos encontrar, a
Obrigação de reparar o dano (art. 116); a Prestação de serviços à comunidade (art. 117);
a Liberdade assistida (art. 118 e 119); a Internação em regime de semiliberdade (art.
120) e, por fim, como a medida mais grave, a Internação pelo período máximo de três
anos.
Ademais, o legislador menorista, visando a boa aplicação das medidas socioeducativas,
entendeu que deveria regulamentar sua aplicação, tudo a fim de que em momento algum
restasse qualquer dúvida no aplicador do direito na forma como proceder, logo, o art.
101, nos seus incisos I a V, traçou as diretrizes básicas para tal aplicação.
No que concerne à analise da finalidade de cada uma das medidas sócio educativas,
pode-se dizer que, quanto à Advertência (art.115, ECA), esta consistirá na admoestação
oral que deverá ocorrer durante entrevista com juiz da Vara da Infância e Juventude,
aplicável às infrações de menor potencial ofensivo e seu objetivo será o de alertar os
pais para as atitudes do adolescente ora infrator.
Quanto à Obrigação de reparar o dano (art.116, ECA), pode-se dizer que esta deverá ser
aplicada no caso de ato infracional pertinente às lesões patrimoniais cometidas pelo
9173
adolescente e seu intuito será o de despertar no jovem infrator o senso de
responsabilidade acerca do bem alheio.
No que diz respeito à Prestação de serviços à comunidade (art.117, ECA), é correto
asseverar que esta consiste em uma forma de “punição” útil à sociedade, onde o infrator
não é subtraído ao convívio social, desenvolvendo tarefas proveitosas a seu aprendizado
e a necessidade social.
Pertinentemente à Liberdade assistida (art.118, ECA), esta terá lugar de aplicação
quando se entender a inutilidade da internação de um lado e uma maior necessidade de
fiscalização e acompanhamento de outro. O jovem não é privado do convívio familiar
sofrendo apenas restrições a sua liberdade e direitos. Tal medida se assemelharia, em
tese, ao cumprimento da pena privativa de liberdade, no Direito Penal, no regime semiaberto.
Pode-se dizer que, por seu turno, que o Regime de semiliberdade (art.120, ECA), deve
ser aplicado desde o início ou consistir em transição para o semi-aberto, em qualquer
das duas hipóteses a medida deverá ser acompanhada de escolarização e
profissionalização.
A medida de internação, de conformidade ao art. 121, §2º, ECA, não comporta prazo
determinado uma vez que a reprimenda adquire o caráter de tratamento regenerador do
adolescente.
Quanto ao disposto no art. 101, I a VI, do Estatuto da Criança e do Adolescente, vale a
lembrança de que se trata aqui das medidas específicas de proteção como
encaminhamento aos pais, freqüência obrigatória a estabelecimento de ensino,
programas comunitários, tratamento médico e psicológico, abrigo e família substituta.
Em face da doutrina da proteção integral, preconizada pelo Estatuto em seu art. 1º,
temos que as medidas aplicáveis possuem como desiderato principal demonstrar o
desvalor da conduta do adolescente e afastá-lo da sociedade num primeiro momento,
como medida profilática e retributiva, possibilitando-lhe reavaliação da conduta e
recuperação, preparando-lhe para a vida livre, a fim de que num segundo momento, seja
re-inserido na sociedade.
Em sendo assim, é possível verificar que as Seções II à VII do Estatuto da Criança e do
Adolescente dizem respeito às medidas em espécie, contendo disposições específicas a
cada uma delas. A Seção I, por sua vez, contém normas de caráter geral a serem
aplicadas ao elenco das medidas.
Desta forma chega-se à conclusão, do ponto de vista técnico-legislativo, a aplicabilidade
de medida socioeducativa a adolescente autor de ato infracional restringe-se à idade de
dezoito anos, excetuando-se a de internação.
Entendimento diverso ensejaria argumentos no sentido de que a interpretação da norma
ao arbítrio do operador do direito é contrária aos paradigmas da Doutrina da Proteção
Integral, incorporada ao nosso ordenamento jurídico, na medida que não reconheceria
no adolescente a sua condição de sujeito de direitos.
9174
Todavia, sem deixar de admitir a importância da técnica legislativa, que é fundamental
para a interpretação, estudo e aplicação das leis, nem tampouco considerar o adolescente
“objeto“ a ser tutelado, devemos destacar a finalidade sociopedagógica das medidas.
O nosso Sistema Jurídico adotou o critério cronológico absoluto ao fixar a maioridade.
Parece-nos, todavia, que o mero alcance dos dezoito anos não tem o condão de, do
ponto de vista emocional e psíquico, tornar desnecessários a um indivíduo os benefícios
da Legislação Especial. Tanto que a própria Lei n. 8.069/90 prevê a sua aplicação aos
que se encontram entre os dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei
(parágrafo único do art. 2º do Estatuto).
Sob este prisma não é demais concluir que o legislador incorreu em falha.
Assim, como bem sintetizou o Professor César Barros Leal, no seu texto “O Ato
Infracional e a Justiça da Infância e da Juventude”, do Programa de Atualização em
Direito da Criança: Endereçadas ao adolescente autor de ato infracional, as medidas
socioeducativas visam, em primeiro plano, a sua (re)integração familiar e
comunitária.[19]
No mesmo entendimento o Dr. Olympio Sotto Maior, do Ministério Público do Paraná:
Então, para o adolescente autor de ato infracional a proposta é de que, no contexto da
proteção integral, receba ele medidas socioeducativas (portanto, não punitivas),
tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento objetivando melhor
compreensão da realidade e efetiva integração social.[20]
Em respeito aos direitos assegurados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e
do Adolescente deverá o operador do direito manifestar-se pela extinção de uma
medida, que não internação, diante do alcance da maioridade penal por parte do então
adolescente, a despeito desta medida constituir oportunidade, muitas vezes única, para a
sua ressocialização? Ou mesmo negar-lhe sequer o início deste processo de reflexão e
reeducação?
Um outro dado há de ser considerado: deseja o autor do ato infracional receber em seu
favor a medida que lhe foi aplicada ou prosseguir com a mesma, caso esteja em curso?
Logo, parece crucial uma definição quanto a este aspecto, diante do princípio da
legalidade contido no art. 5º, inciso II da Constituição Federal, segundo o qual: (in
verbis) ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei.
Em respeito à sua condição de sujeito de direitos, não será permitido à autoridade
judiciária aplicar ao autor de ato infracional maior de dezoito anos qualquer outra
medida que não a de internação, caso este não manifeste a sua concordância.
Em sentido contrário, diante do conteúdo socioeducativo das medidas, deverão as
normas ser aplicadas em seu favor.
9175
Não é demais, atendo-se ao senso jurídico, recordar o clássico brocardo: In eo quod plus
est semper inest et minus (quem pode o mais, pode o menos), desde que assegurados os
direitos e garantias individuais e em consonância com a regra de hermenêutica jurídica
contida no art. 6º da Lei n. 8.069/90.
À exceção da hipótese acima, a aplicação de medida, que não de internação, a
adolescente autor de ato infracional que contar entre dezoito e vinte e um anos de idade,
estará impossibilitada, cabendo, conforme o caso, a extinção da medida em curso ou a
procedência da ação sem a sua aplicação.
Levando-se em conta que o objetivo da medida não é a de meramente segregar da
sociedade aquele que praticou o ato infracional, e que a finalidade sócio-pedagógica é
presente em todas elas, necessário faz-se suprir a omissão do legislador, incluindo nas
Disposições Gerais do Capítulo IV a previsão de sua aplicabilidade às pessoas entre
dezoito e vinte e um anos de idade.
Com clareza solar, Alyrio Cavallieri expõe:
(...) diminuir a menoridade penal somente iria contribuir para aumentar a população nas
Penitenciárias brasileiras, que já não são nenhum exemplo de reeducação, dificultando
mais ainda a ressocialização do preso, o que viria de encontro ao próprio caráter
retributivo da pena. Nestes termos, a pena não servirá para punir o menor infrator, mas
apenas irá mascarar uma situação irreal de punição, pelo simples fato deles não estarem
sob a égide do ECA, mas aos dispositivos do Código Penal. [21]
Assim, considerando o disposto no art. 121, parágrafo 5º combinado com a art. 2º,
parágrafo único da Lei n. 8.069/90, e art. 5º, inciso II da Constituição Federal, a
aplicação de medida socioeducativa após dezoito anos a autor de ato infracional é
restrita a de internação. Tal dispositivo contradiz o espírito do Diploma Estatutário,
tendo em vista o caráter socioeducativo das medidas. Assim, respeitando-se o princípio
da legalidade previsto na Lei Maior, a possibilidade do adolescente vir a cumprir ou
permanecer no cumprimento de medida, que não a de internação, é condicionada ao seu
consentimento.
7. O DIREITO PENAL JUVENIL E A DIGNIDADE DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Abordada como “pedra angular” pela Constituição Federal, a dignidade da
pessoa humana é o fundamento norteador do ordenamento jurídico brasileiro.
De acordo com Maria Celina Bodin de Moraes: Será desumano, isto é,
contrário à dignidade da pessoa humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o
sujeito de direitos) à condição de objeto.[22]
9176
A Constituição Federal considera a dignidade como fundamento da República. De
acordo com a estrutura normativa dos fundamentos constitucionais e a integração do
ordenamento jurídico, a inserção da tutela constitucional à dignidade da pessoa humana
denota importante modificação no sistema jurídico brasileiro. Desta forma enquanto o
Código Civil protege os direitos da personalidade, o Estatuto da Criança e do
Adolescente - posterior à promulgação da Constituição, garante de modo integral a
infância e a adolescência, tendo em vista a especial condição de pessoas em
desenvolvimento que devem ser dotadas de condições suficientes e necessárias para que
possam compreender a função que devem ocupar na sociedade.
Uma das questões mais complexas no campo do direito penal é o modo como
adolescente infrator é considerado um inimigo social, “o outro” de uma sociedade em
que o princípio do certo e do errado é ampliado com a firme divisão incentivada pela
cultura norte americana entre mocinhos e bandidos. Os apontamentos de cunho
preconceituoso justificam o uso da violência em face do adolescente, que antes de ser
infrator, é uma vítima social. A manipulação da opinião pública através da mídia amplia
a sensação de insegurança e, apesar da incompatibilidade com o fundamento da
República, passa a legitimar o direito penal do terror.[23]
Como sujeitos de direitos, às crianças e aos adolescentes é garantido um
tratamento diferenciado. O conceito de proteção integral da legislação objetiva a
proteção total, absoluta, sem limitações – e não parcial, relativa, limitada. No plano da
aplicação, o sistema de justiça socioeducativa estabelecido pelo ordenamento jurídico é
integrado por operadores do direito e técnicos qualificados, todos em maior ou menor
extensão pessoalmente comprometidos com a política oficial de proteção integral da
infância e da juventude. Diante das boas intenções do legislador e da dedicação dos
protagonistas do sistema de justiça socioeducativa, não há como negar a existência da
cruel falta de proteção da infância e juventude no Brasil.
Para fazer frente a essa situação, importa recordar, com Celso Lafer[24] o
pensamento de Hannah Arendt e a importância de resguardar o valor atribuído à pessoa
humana, conquista histórica e valorativa subsumida dos direitos humanos. Reconhecida
especialmente após as atrocidades cometidas pelo próprio homem durante a 2ª. Guerra
Mundial, que matou mais de 50 milhões de pessoas em seis anos de conflito, a
dignidade da pessoa humana deve ampliar o olhar dos operadores do direito penal em
direção a essa vítima de um sistema punitivo violento, não apenas como condição de
sobrevivência física do adolescente infrator, mas também na sua dimensão social, moral
e psíquica como tutela da vida humana em sociedade.
A dignidade da pessoa humana tem a eficácia de garantir condições mínimas
existenciais para uma vida saudável, além de promover a participação ativa e coresponsável do indivíduo nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos. Ao vincular a dignidade da pessoa humana aos direitos
fundamentais, a Constituição Federal estabeleceu um valor fundante capaz de reunir em
si dois aspectos basilares: uma ação negativa por parte do Estado, no sentido de evitar
agressões; e uma ação positiva, com o escopo de promover ações concretas que, além de
evitar agressões, criem condições efetivas de vida digna a todos.
De acordo com a interpretação que vem sendo feita acerca do Estatuto da Criança e do
Adolescente, as medidas socioeducativas merecem atenção especial no sentido de
9177
efetivar as garantias aos direitos fundamentais dos sujeitos em peculiar estado de
desenvolvimento.
Em face do contexto proposto pela dignidade da pessoa humana, há que se aliar o
Direito Penal Juvenil de acordo com os enunciados pelas garantias constitucionais, o
que proporciona a instrumentalização dos direitos previstos na Carta Magna.
8. CONCLUSÃO
Diante do exposto, merece registro o fato de que não pode a sociedade olhar para o
Estatuto da Criança e do Adolescente sem antes relembrar do processo históricoevolutivo que nos trouxe até aqui, posto que, não obstante tenhamos hoje uma
legislação menorista da mais alta qualidade, não foi fácil a evolução até os dias de hoje,
muitas crianças e adolescentes tiveram que sofrer e até mesmo perder suas vidas para
que a sociedade chegasse à conclusão de que jovem infrator não é um monstro e, por
seu turno, assim como qualquer réu adulto, não desmerece tratamento humano e digno.
É certo que existe um debate político e jurídico em torno da responsabilidade juvenil, da
criminalidade e da delinqüência na adolescência. De imediato, o foco da discussão
acarreta uma proposta de rebaixamento da idade penal. Desse debate emerge um grupo
extremista, partidário da Doutrina do rigorismo penal, que fundamenta suas idéias no
movimento repressivo que deve culminar em maior segurança. De outro prisma,
existem os seguidores do abolicionismo penal, que proclama a falência da proposta
retributiva sugerida pelo estatuto juvenil. Esses pensadores recomendam a construção
social de novas alternativas para o enfrentamento da criminalidade, tais como as penas
alternativas em substituição às privativas de liberdade.
Diante de tais extremos, existe a doutrina do direito penal mínimo, que reconhece a
necessidade da restrição da liberdade para determinadas situações e que sugere a
aplicação de penas alternativas, reservando a privação da liberdade para a prática dos
atos infracionais que representem um risco social efetivo, podendo comprometer
gravemente a segurança social. Nessas circunstâncias, a privação da liberdade é um
dever estatal e um direito da coletividade.
A Constituição Federal contempla o direito à dignidade como direito fundamental. Em
consonância com o referido valor, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece
um sistema de resposta ao ato infracional de caráter pedagógico de forma retributiva,
associado à garantia dos princípios norteadores do direito penal como instrumento de
cidadania dessa categoria de pessoas em peculiar estágio de formação.
O sistema de atendimento aos adolescentes infratores privados da liberdade está em
crise, entretanto, menos intensa que a superpopulação das penitenciárias, para onde se
pretende enviar os infantes infratores. Há que se ressaltar que os centros de
internamento proporcionam ao internado um sentimento de aflição tal qual ou mais
intenso que a do sistema penitenciário.
9178
Cabe à sociedade uma reflexão que impeça o retrocesso normativo, como a proposta de
redução da idade da imputabilidade penal, tratando como iguais os desiguais.
O que deve ser feito é uma reavaliação do sistema infracional da adolescência, a luz do
Direito Penal Juvenil proposto pela doutrina, que busca aliar as garantias jurídicas do
Estatuto ao Direito Penal Mínimo, por conseqüência, afastar a malfadada insegurança
jurídica, de maneira a efetivar o princípio nodal do ordenamento jurídico: a dignidade
da pessoa humana.
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WALKER, Marcelly. Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Monografia
apresentada ao Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá. UEM: 2006.
[1] Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei – Da
Indiferença à Proteção Integral: Uma abordagem sobre a responsabilidade penal
juvenil. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 51.
[2] WALKER, Marcelly. Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá.
UEM: 2006, p. 26.
[3] SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil –
Adolescente e Ato Infracional. 3. ed., ver. Ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006, p. 26.
9181
[4] LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do
Adolescente. 7. ed. rev. e ampl. de ac. c/ o Novo CC. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 1516.
[5] Optou-se por usar a expressão “fato típico” em vez de infração penal ou ato
infracional, por ora, em razão da abordagem futura dos termos, a qual tratará da
diferença entre ambos.
[6] Em termos simples, eis o que o grande filósofo alemão Immanuel Kant chamou de
imperativo categórico: você deve agir sempre baseado naqueles princípios que desejaria
ver aplicados universalmente. Por que "imperativo categórico"? Imperativo, porque é
um dever moral; Categórico, porque atinge a todos, sem exceção.
[7] Kant, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini.
São Paulo: Edipro, 2003. p. 75.
[8]. E.g., Declaração dos Direitos da Criança de 1959; do Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador, de 1988); Preâmbulo da Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989.
[9] Neste sentido, invoca-se a PEC 179/2003 Que pretende dar nova redação ao art. 228
da Constituição Federal e atribuir responsabilidade penal ao jovem maior de dezesseis
anos.
[10] Hoje “Fundação Casa”.
[11] Conforme a Teoria Finalista.
[12] A Doutrina do Direito Penal Máximo difunde a idéia de que com mais rigor, com
mais pena, com mais cadeia, com mais repressão em todos os níveis, haverá mais
segurança. (SARAIVA, João Batista Costa. As garantias processuais e o adolescente a
que se atribua a prática de ato infracional. In Justiça Adolescente e Ato Infracional:
socioeducação e responsabilização. ILANUD; ABMO; SEDH; UNFPA (orgs). São
Paulo: ILANUD, 2006. p. 177.
[13] SARAIVA, João Batista Costa. As garantias processuais e o adolescente a que se
atribua a prática de ato infracional. In Justiça Adolescente e Ato Infracional:
socioeducação e responsabilização. Idem.
[14] ROSA, Alexandre Morais da. Direito Infracional: Garantismo, Psicanálise e
Movimento Anti Terror.
Florianópolis: Habitus, 2005, p. 149.
[15] Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às
normas da legislação especial.
[16] MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 1997, p.
49.
9182
[17] LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do
Adolescente. 7. ed. rev. e ampl. de acordo o Novo Código Civil. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 12.
[18] CURY, Munir; MARÇURA, Jurandir Norberto; GARRIDO DE PAULA, Paulo
Afonso. Estatuto da criança e do adolescente anotado. São Paulo: Ed. Forense, p. 147.
[19] LEAL, César Oliveira de Barros. O ato infracional e a justiça da infância e da
juventude.
Artigo
publicado
na
rede
mundial
de
computadores:
http://www.abmp.org.br/textos/448.htm
[20] SOTTO MAIOR, Olympio. Ato infracional, medidas sócio-educativas e o papel do
sistema da justiça na disciplina escolar. Artigo publicado na rede mundial de
computadores:
www.mpes.gov.br/.../17_2081102525492008_Ato%20infracional,%20medidas%20soci
oeducativas%20e%20sist.%20de%20justiça%...
[21] CAVALLIERI, Alyrio. Falhas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, p. 56.
[22] Moraes, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85.
[23] AZEVEDO, Mônica Louise de. Penas alternativas à prisão:os substitutivos penais
no sistema penal brasileiro. Curitiba:ABDR, 2005, p. 72.
[24] LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 118.
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9163 o direito penal juvenil como instrumento de