A construção e utilização da figura de Agripina como instrumento de formação da
imagem do governo de Nero
Flávia Florentino Varella1
Na Antigüidade a forma como a história era pensada e escrita baseava-se essencialmente
na retórica, na tradição oral e no conteúdo dos anais. Sendo a História na Antigüidade um gênero
literário. O relato de Tácito, assim, é uma construção literária onde os critérios para a exposição
dos fatos e motivos obedecem a regras diversas daquelas que seguem os historiadores
contemporâneos.
De acordo com esta concepção de História, nos propomos a analisar os Anais de Tácito
objetivando entender como através da sua estrutura textual e do encadeamento dos
acontecimentos ele pretende passar uma imagem do principado de Nero. Um dos artifícios
utilizados por Tácito na construção textual deste principado foi a figura de Agripina. Na fase que
abarca o quinquennium Neronis2, ou seja, de 54 a 59 d.C., período que aos olhos de Tácito Nero
teria realizado um bom governo, Tácito constrói uma narrativa com o intuito de desvincular
Agripina de decisões ligadas ao governo de Nero.
Para analisarmos como Tácito emprega Agripina nos primeiros cinco anos do principado
de Nero é necessário que pensemos em dois momentos: 1. Sob o principado de Cláudio, no qual
Agripina obteve acentuada visibilidade por Tácito e foi largamente associada a este imperador,
como tentativa de desmerecer seu governo. 2. Sob os primeiros cinco anos do governo de Nero,
nos quais Tácito tenta desvincular a sua imagem como aliada política do imperador, vinculando
Nero preferencialmente a Sêneca e Burrus, pessoas que tinham uma boa imagem construída nos
Anais.
A historiografia moderna compartilha da concepção de que os primeiros cinco anos de
Nero como governante foram um período de um bom governo, repetindo a visão que é dada por
Tácito. Contudo, seria impossível concretizar um bom governo tendo participação feminina em
sua administração, pois era notório que as mulheres não poderiam participar de instituições
políticas no mundo romano. Entretanto, através de interações sociais, informalmente, elas
participaram. Deste modo, Tácito usa Agripina para realçar que o final do governo de Cláudio foi
dirigido por uma mulher e o início do governo de Nero conseguiu anular esta influência.
Comecemos com o papel atribuído por Tácito a Agripina dentro do governo de Cláudio.
Agripina tornou-se mulher do imperador Cláudio graças a um consilium libertinus
convocado por ele para o aconselhar sobre qual seria a melhor escolha para sua futura esposa. A
escolha de Cláudio, após ouvir seus libertos, recaiu em Agripina. Contudo, ela era sua sobrinha.
Era necessária a autorização do Senado para permitir a união entre sobrinha e tio3. Foram
senadores que se responsabilizaram por implementar a decisão tomada através do conselho de um
liberto. Claramente Tácito constrói uma narrativa que visa deixar clara a inevitabilidade de um
mau governo que se instituiu por libertos que deram poder a uma mulher, sendo que, os
senadores aparecem como servis colaboradores de seus inferiores hierárquicos.
1
Graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto.
Para uma exposição mais detalhada deste período: GRIFFIN, 1985, pp. 50-66.
3
TÁCITO, Anais,12.4.
2
Com isso Tácito inverte os papeis, na medida que demonstra que o governo de Cláudio
não seguiu os preceitos da Res publica e o mostra se aconselhando com libertos de estatutos tão
inferiores e não com membros da aristocracia romana. Tácito, nessa parte de sua narrativa,
constrói uma associação da imagem de Agripina a libertos e, conseqüentemente, a imagem do
imperador a libertos e uma mulher.
A partir de seu casamento com Cláudio, Agripina ganha maior destaque no relato de
Tácito, que descreve os seus furores e como o imperador submetia-se prontamente a suas
vontades, mesmo sendo estas as mais absurdas. Um bom exemplo disto é quando Tácito relata
que Cláudio pediu a Tarquício Prisco acusar Estatílio Tauro unicamente porque Agripina queria
seus jardins4. O que, obviamente, faz com o intuito de ridicularizar Cláudio. Em seu relato não
foi apenas Agripina que controlou Cláudio, era uma característica deste imperador ser
manipulado por mulheres e libertos e, desta forma, ter um governo mal administrado devido à má
escolha de seu consilium.
Tendo participação no governo de Cláudio, Agripina consegue participar dos assuntos da
administração da Res publica, assim como construir todo um círculo de poder no interior da corte
de Cláudio. Em outras palavras, Agripina tinha poder e se fortalecia porque muitos deviam
favores a ela.
Para obter esta posição, Agripina realizou as seguintes manobras políticas: Trouxe Sêneca
do desterro para ser o preceptor de Nero5 e seu aliado político no interior da corte de Cláudio.
Burrus foi levado ao comando da Guarda Pretoriana6. Diversos libertos de sua confiança foram
alçados a postos estratégicos na administração da Domus Caesaris. Além de fortalecer sua
posição, paralelamente buscava isolar e enfraquecer quem se colocasse fora de sua área de
influência. É o que ocorre quando ela progressivamente foi minando as possibilidades de
Britânico, filho legítimo de Cláudio, de ser o futuro imperador através da precariedade da sua
educação e do afastamento de seus aliados políticos7.
Agripina vai, então, ganhando poder e enfraquecendo seus adversários. Tácito indica que
o coroamento desta articulação seria o assassinato de Cláudio, seu marido e a quem ela devia sua
posição, para a construção de uma nova corte que teria por Imperador seu filho, Nero.
No relato de Tácito, Nero é um produto da ambição de Agripina. Ela o faz casar com
Octávia, filha de Cláudio8. Além disto, coloca a seu serviço alguns de seus aliados políticos, com
ênfase para Sêneca, seu preceptor. Depois de isolar ou mesmo eliminar fisicamente possíveis
pretendentes à sucessão de Cláudio e fortalecer os apoios em favor da ascensão de seu filho ao
trono, Agripina trama o assassinato de Cláudio e Nero sobe ao poder.
A partir deste momento Tácito começa a dar maior ênfase ao papel desempenhado por
aliados de Agripina, notadamente Sêneca e Burrus que têm papel central o consilium princeps.
Tácito mostrou Cláudio cercado de conselheiros libertos e mulheres. Ao contrário, Nero foi
apresentado em seus primeiros anos ao lado de homens de grande valimento, membros da
aristocracia romana. Agripina e os libertos que atuavam na corte passaram a um segundo plano e,
em alguns anos, desapareceram completamente.
4
TÁCITO, Anais,12.59.
TÁCITO, Anais,12.8.
6
TÁCITO, Anais,12.42.
7
TÁCITO, Anais,12.41.
8
TÁCITO, Anais, 12.58.
5
No relato de Tácito, Nero tinha a proposta de uma política de governo diferente daquela
de Cláudio. Uma delas era em relação a manter os assuntos da Res publica independentes dos da
domus9. A principal personagem que tinha influência advinda da domus era Agripina.
Tácito abre o livro 13o contrapondo os perfis de Agripina aos de Sêneca e Burrus. No
primeiro parágrafo, Tácito relata assassinatos cometidos por influência de Agripina; no segundo
parágrafo, ressalta as virtudes de Sêneca e Burrus, criando um contraste com as maldades de
Agripina, relatadas no primeiro parágrafo. Tácito demonstra claramente a sua concepção que para
se ter um bom governo seria necessário que Nero tivesse como aliados Sêneca e Burrus. Em
outras palavras, Tácito divide, já no primeiro ano do governo de Nero, o que no governo de
Cláudio era um único grupo de poder articulado por Agripina. Produzindo através de seu relato
uma separação entre Agripina e Sêneca e Burrus.
O anúncio de Tácito do declínio gradual do poder de Agripina em 55, 10 menos de um ano
após o início do governo de Nero, foi mais uma tentativa de desvincular Agripina de Nero. Ao
nosso ver esta afirmativa não se sustenta a partir do momento que temos uma análise mais
cuidadosa de sua narrativa. Tomemos alguns exemplos contidos em sua própria obra que são
contrários a esta afirmação.
Em 55, Nero já estava tão indisposto com a presença de sua mãe que a tira da Domus
Caesaris e a manda para a casa que tinha sido de Antônia, tirando-lhe as guardas. Estando
Agripina afastada de seus amigos, seria o momento perfeito para que seus opositores a pudessem
atingir. É nesta conjuntura que Junia Silana executa um complô contra Agripina acusando-a de
conspirar contra Nero. Sendo a intenção de Junia Silana descoberta, Agripina pede que os
envolvidos no caso sejam punidos. Ela obtém a punição de seus inimigos e ainda consegue a
nomeação de pessoas de sua confiança para cargos públicos11. Nos parece estranho como uma
pessoa que estava perdendo influência sobre Nero e abandonada por seus amigos conseguisse,
além da punição dos seus acusadores, a nomeação de pessoas de sua confiança para cargos
públicos.
No ano de 59, quando Agripina foi morta pelos desejos de Nero, o encarregado de
perpetrar sua morte foi Aniceto, já que Burrus achou que a Guarda Pretoriana não executaria tal
missão. As pessoas que acompanharam Aniceto, igualmente a ele, eram vinculadas à marinha12.
Não havendo nenhum integrante do exército no assassinato de Agripina. Desta forma, no final de
sua vida Agripina ainda tinha aliados importantes. Se não, por que matar uma mulher que já não
tinha influência política significativa?
Um problema que encontramos para analisar o declínio do poder de Agripina atribuído
por Tácito deve-se ao fato de ele não nos fornecer nenhuma informação dos movimentos de
Agripina de 56 até 59. Neste intervalo de tempo dedica-se a decisões do Senado e da guerra que
estava acontecendo. Não podemos afirmar, contudo, que esse desaparecimento foi devido a
Sêneca e Burrus. Nestes anos, Sêneca aprece na narrativa de Tácito uma vez, quando é insultado
por Publio Suílio, e Burrus, assim como Agripina, não é mencionado.
Assim, Tácito cria um enredo com três momentos. Inicialmente, mostra Sêneca e Burrus
afastados de Agripina e ela presumidamente perdendo poder. Em um segundo momento ele tira
9
TÁCITO, Anais, 13.6.
TÁCITO, Anais, 13.12.
11
TÁCITO, Anais, 13.19-22.
12
TÁCITO, Anais, 14.7-8.
10
os três da cena. Em um terceiro momento, é eliminada pelo novo núcleo de poder que não mais
controla e que deseja evitar que ela retome sua condição anterior.
Mas no próprio relato de Tácito é possível entrever que tal construção não correspondia às
articulações políticas em movimento. Já vimos que é contraditório afirmar que Agripina havia
perdido poder quando os eventos relatados demonstram o contrário. O mesmo pode ser percebido
no que se refere à separação entre Agripina e seu antigo aliado Burrus. Em 55, como
mencionamos, Agripina foi acusada por Junia Silana de conspirar contra Nero. Imediatamente
após ser notificado deste possível complô, Nero mandou tirar a Guarda Pretoriana do comando de
Burrus alegando que este foi colocado no seu posto por Agripina. Apesar de Burrus ser logo
restituído em seu cargo, o fato dele ter ido interpelar Agripina sobre essa acusação junto com
Sêneca e alguns libertos, demonstra a desconfiança de Nero em relação a Burrus e deixa claro
que ele era um homem de Agripina. Logo em seguida a este acontecimento, Burrus é acusado de
conspirar junto com Palas, um liberto importante da corte de Cláudio e aliado de Agripina. Tácito
associou, assim, Burrus com o liberto de maior confiança de Agripina e relatou que a conspiração
foi atribuída ao grupo de Agripina e não a ela. Quando Tácito fez Tigelino falar sobre a morte de
Burrus, este se vangloriou de sua lealdade a Nero não ser dividida, como era a de Burrus13.
Concluímos que ainda que Tácito se esforce por desvincular Burrus de Agripina ele foi visto
correntemente como seu aliado próximo.
Tácito constrói sua narrativa com o intuito de aproximar a imagem de Sêneca e Burrus, na
condição de amici princepis, a Nero e promover um afastamento de Agripina. Nero ser um
governante destituído de vínculo político com sua mãe era um ponto positivo na visão de Tácito.
Tanto que, quando Tácito tenciona desmerecer Nero, faz questão de lembrar ao leitor que ele é
Imperador graças a Agripina.
Em síntese, nossa conclusão em relação a afirmativa de Tácito do declínio gradual do
poder de Agripina é vista como uma estratégia retórica e, consequentemente, de construção
textual para melhor convencer seu leitor da imagem que queria passar deste período do
principado. Já que, através de uma análise do período que abarca o quinquennium, é possível
afirmar que não ocorreu esse declínio, nem tão pouco o rompimento de Burrus com sua
patronesse. Agripina ocupou um lugar central na narrativa de Tácito tanto no final do principado
de Cláudio quanto no início do principado de Nero. Ela obteve tal importância tanto no que se
refere ao controle da exposição ou supressão de sua figura no relato dos eventos destes dois
principados, quanto pela aproximação ou distanciamento de Agripina com relação a outros
personagens.
13
Cf. BARRETT, 1996, pp. 238-40.
BIBLIOGRAFIA
BARRETT, Antony A. Agripina: Sex, power, and politics in the early empire. London: Yale
University Press, 1996.
FEITOSA, Lourdes Maria G. C., FAVERSANI, Fábio. “Sobre o feminino e a cidadania em
Pompéia”. In: Pyrenae Barcelona: Universitat de Barcelona, 2002-2003, pp. 253-59.
GRIFFIN, Miriam T. Nero: The end of a dynasty. London: Yale University Press, 1985.
MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In COOK, S. A.; ADOCK, F. E.; CHARLESWORTH, M. P.
(eds.). The Cambridge Ancient History. vol. X. Cambridge: Cambridge University Press, 1934,
pp. 702-42.
RUBIÉS, Joan-Paul. “Nero in Tacitus and Nero in Tacitism: The historian’s craft”. In.: ELSNER,
Jás & MASTERS, Jamie (eds.) Reflections of Nero. Cultur, history and representation. London:
Duckworth. 1994.
SHOTTER, David A .C. Nero. London: Routledge. 1997.
TÁCITO. Anais Trad. J.L. Freire de Carvalho. São Paulo: W.M. Jackson Inc. Editores, 1952
(Clássicos Jackson, Vol XXV).
WALLACE-HADRILL, Andrew. “The Imperial Court” In: BOWMAN, A. K., CHAMPLIN, E.
& LINTOTT, A. The Cambrigde Ancient History. 2 nd edition. Vol. X: The Augustan Empire, 43
B.C. – A.D. 69. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
LEEDS, R. H. Martin. “Structure and interpretation in the ‘Annals’ of Tacitus” In: Aufistieg und
Niedergang Der Römischem Welt. II. 33.2. Berlim: Walter de Gruyter, 1990.
Download

Flávia Florentino Varella