Direcção de Serviços de Agricultura e Pescas
Divisão de Agricultura e Pescas
Exploração de Cabras “Serranas” ecotipo “Jarmelista”:
- Produção de leite, produção de carne, ambas?
Rui C. Rodrigues, J. L. Cabral de Almeida, Carlos Alarcão
Resumo
A cabra “Serrana” do ecotipo “Jarmelista” apresenta ainda alguma heterogeneidade, quer no
que se refere ao seu padrão fenotípico quer no que toca ao seu potencial leiteiro. A exploração
destes animais na vertente “leite/queijo” ou na vertente “carne” depende, por outro lado, de uma
série de factores, desde as condições edafo-climáticas à disponibilidade de mão-de-obra e à
existência de um mercado que valorize as produções. Ponderados previamente estes factores,
podemos e devemos lançar mão de ferramentas como a selecção e o melhoramento dos animais,
visando dois objectivos finais: a rentabilidade da exploração caprina e uma boa qualidade de
vida do caprinicultor e seu agregado familiar.
1. Introdução
Os caprinos da raça “Serrana” , mais concretamente os do ecotipo “Jarmelista” (Fig. 1) são
animais de aptidão dupla – leite e carne -, com bom instinto maternal e estão bem adaptados às
condições edafo-climáticas das zonas montanhosas do Centro do País.
Fig. 1. Cabras “Jarmelistas” em pastagem sob-coberto
A raça apresenta ainda alguma heterogeneidade fenotípica (“aspecto exterior”), nomeadamente
no que se refere ao tamanho do úbere, forma e implantação dos tetos. Esta variabilidade torna
possível desenvolver um trabalho de selecção e melhoramento em dois sentidos: produção de
leite ou produção de carne.
Como é lógico, apenas tem viabilidade técnico-económica a exploração de caprinos para
produção de leite em zonas onde seja possível implantar algumas pastagens e forragens de
qualidade, que complementem a alimentação obtida pelo pastoreio em matos e floresta. Por
outro lado, a viabilidade destas explorações “leiteiras” depende muito do factor comercialização,
de um leite de cabra bem valorizado pela indústria de lacticínios ou, idealmente, de um queijo de
cabra produzido “in loco”, a título individual ou em regime associativo. Mas o êxito da produção
de leite (ordenha) e de queijo (fabrico e cura) – e da sua comercialização -, dependem de um
outro pressuposto essencial: a disponibilidade em mão-de-obra.
2. Produção de leite de cabra: algumas noções de fisiologia
Na cabra, à semelhança do que acontece nos outros ruminantes, o leite forma-se nas células
alveolares da glândula mamária e vai-se gradualmente acumulando na cisterna do úbere. Temos
assim, dois “tipos” de leite: o leite cisternal e o leite alveolar.
Nas cabras, o leite cisternal pode representar entre 50 e 80% do total de leite produzido entre
ordenhas (Lollivier et al., 2002), dependendo do tamanho da cisterna do úbere1. Este leite “solta-se” bem e é facilmente ordenhado.
O leite alveolar só se pode obter – e
parcialmente – através do reflexo de
ejecção do leite provocado por uma
hormona – a ocitocina. Esta hormona é
libertada no cérebro da fêmea leiteira
mediante “estímulos positivos” como o
sentir a cria a mamar, a presença de ração
nos comedouros da sala de ordenha, etc.
Gritos, pancadas ou qualquer outra fonte
de stress, pelo contrário, provacam a
libertação de uma outra hormona – a
adrenalina -, a qual impede a libertação
do leite.
Fig. 2. Úbere bem conformado
A cabra possui na glândula mamária uma molécula – FIL 2 – que auto-regula a produção de leite
e evita, dentro de certos limites, que a acumulação de leite no úbere danifique o tecido alveolar e
apresse a involução da mama.
1
As cabras com úberes mais volumosos terão, em princípio, maiores cisternas e maior percentagem de leite
cisternal.
2
Da sigla inglesa Feedback Inhibitor of Lactation.
Assim, quando a cisterna do úbere está repleta, é “enviada uma mensagem” para que a produção
de leite pare. Quando a cabra é ordenhada, as moléculas de FIL também saem no leite, logo,
retoma-se o processo de secreção de leite nos alvéolos.
O leite alveolar é, por norma, mais rico em gordura do que o leite cisternal (Lollivier et al.,
2002). Os primeiros “jactos” de leite que ordenhamos são os que menos gordura possuem,
aumentando esta à medida que vamos “esgotando” o úbere do animal (ordenha, massagem,
“repasse”). Pelo contrário, os teores de proteína e lactose são relativamente constantes nas
diversas “fracções” do leite.
Questão: Ordenhar uma ou duas vezes ao dia?
A defesa de duas ordenhas por dia, em caprinos leiteiros, prende-se com várias razões técnicas:
a) - A remoção do FIL, logo, a possibilidade de actuação das várias hormonas lactogénicas,
como a prolactina e a adrenocorticotrofina (ACTH) na glândula mamária,
- favorecimento da síntese e secreção dos componentes do leite;
- estímulo do metabolismo de formação da gordura do leite;
- manutenção da lactação, …
b) – Estímulo da libertação de ocitocina, com a consequente contracção das células
mioepiteliais, que favorecem a libertação (ordenha) do leite;
c) – Aproveitar melhor a gordura produzida. Os glóbulos de gordura, que estão “presos” nos
alvélolos, não são totalmente transferidos através dos ductos mamários para a cisterna, antes do
fim da ordenha da manhã e só são “libertados” na ordenha da tarde (Lollivier et al., 2002);
d) – Aproveitar plenamente o potencial genético dos animais. Passar de uma ordenha/dia para
duas ordenhas/dia pode significar um aumento de cerca 35% na produção leiteira, sem
penalização da composição do leite (Akpa et al., 2003).
e) – Evitar a degradação das células epiteliais secretoras dos alvéolos – onde se forma o leite -,
que pode ocorrer ao aumento de pressão intra-mamária provocado pelo prolongado acumular de
leite na mama (24 h ou mais). O risco de degradação é tanto maior quanto menor for o úbere.
Esta degradação conduz a involução precoce da mama.
A prática de duas ordenhas por dia é especialmente recomendável nas fêmeas primíparas e nas
jovens cabras (Lollivier et al., 2002; Akpa et al., 2003; Salama et al., 2003).
3. Tomada de decisão: a frequência de ordenha
Partindo dos pressupostos que:
a) existe um mercado para escoamento do leite / do queijo;
b) temos mão-de-obra para proceder à ordenha,
podemos então equacionar de uma forma mais global a questão de melhorarmos os animais para
a produção leiteira e a questão de ordenharmos as cabras uma ou duas vezes ao dia.
A frequência com que se ordenha os animais tem implicações directas nos encargos variáveis
(alimentação, mão-de-obra, consumíveis / bens não duradouros, etc.). Segundo Blake e
McDaniel (1978) e Albright (1964), citados por Akpa et al. (2003), o custo do trabalho para a
ordenha pode atingir 80% do custo total anual da actividade “ordenha” e mais de 50% das
necessidades operacionais de rotina (mão-de-obra) numa exploração “leiteira”, respectivamente.
Uma cabra boa produtora de leite é aquela que não só produz uma quantidade apreciável de leite
(variável com a raça), mas “liberta” esse leite com facilidade. Em princípio, será um animal com
um úbere relativamente grande (para poder “armazenar” na cisterna a maior quantidade possível
de leite cisternal). A rentabilidade do trabalho (ordenha) nestes animais será logicamente muito
superior àquela que temos com cabras de úberes pequenos.
Com menos animais, conseguimos a mesma quantidade de leite. Gastamos menos tempo,
gastamos menos alimentação, ocupamos menos espaço no capril.
Quando iniciamos uma exploração caprina para a produção de leite, é raro, sobretudo quando
utilizamos raças autóctones – como a “Serrana Jarmelista” -, que não haja alguma
heterogeneidade no efectivo. Há que então proceder a uma selecção dos animais, baseada não só
na observação do seu aspecto e do seu comportamento – como a produção e facilidade de
libertação do leite -, mas também apoiada em medições objectivas, como é o caso do contraste
leiteiro mensal – ver Fig. 3.
Podemos assim constituir grupos de animais e depois, em função dos factores limitantes e das
potencialidades internas (como a mão-de-obra) e externas (como o mercado), decidir a
orientação técnico-económica da exploração, como seja: produção de leite como actividade
principal, produção mista (“2 rebanhos”), ordenha 1 ou 2 vezes ao dia em função da
produtividade dos animais, da sua fase de lactação e da sua idade, entre outros factores.
Fig. 3. Procedendo ao contraste leiteiro mensal
Cada situação é um caso único e específico. Pretendemos apenas contribuir para uma análise
racional. Assim, por exemplo, podemos decidir na fase inicial – em que o nosso rebanho é
heterogéneo -, ordenhar duas vezes ao dia os animais mais produtivos e ordenhar uma vez ao
dia as cabras de inferior produção (eventualmente, na ordenha da manhã). Estaremos assim a
“optimizar” o factor “trabalho”.
Poderemos também optar pela formação inicial de dois “rebanhos”, ordenhando duas vezes ao
dia os animais mais produtivos (“rebanho leite”) e orientando as cabras de menor produção
para a produção de cabritos (“rebanho carne”): as crias mamam à vontade das mães até serem
vendidas, após o que as cabras sofrerão uma “secagem forçada” (Rodrigues et al., 2006).
Por outro lado, através de um devido maneio reprodutivo – e alimentar -, este “rebanho carne”
poderá ser explorado no sentido de se atingir o objectivo ideal de 3 partos em 2 anos (ou seja, 1
parto em cada 8 meses).
Em relação ao “rebanho leite”, um dos cuidados que deverá haver na selecção dos animais é,
como já referimos, sempre que as condições de exploração o permitirem, procurar escolher
cabras com úberes relativamente bem dimensionados (com boas “cisternas”). Estes animais,
devido à sua capacidade de armazenamento de leite no úbere, são aqueles que menos sofrem
com a eventual adopção, por qualquer razão, de uma única ordenha por dia. Por outro lado, é
evidente que com este tipo de cabras deverá haver algum cuidado no pastoreio de matos, já que
correm maiores riscos de se ferirem nos úberes.
A sub-ordenha dos animais pode contribuir para a formação de mamites de retenção. Estas
mamites podem não ser clínicas, ou seja, visualmente identificáveis, mas detectam-se se
procedermos a contagens de células somáticas nos leites individuais – CCSi (mamites subclínicas). À inflamação (mamite) do úbere correspondem elevadas CCSi (nas cabras, da ordem
dos milhões de células/ml).
É importante, durante a fase de amamentação – e em
especial se a cabra pariu apenas uma cria -, verificar
se as duas metades mamárias estão a ser mamadas
(ver Fig. 4), chegando a cria àquela que não o está a
ser ou ordenhando-a, aproveitando-se assim o leite.
Fig. 4. Úbere pouco aproveitado, notando-se bem o
maior volume da metade mamária esquerda.
Após o desmame dos cabritos, é de todo aconselhável que se ordenhem duas vezes ao dia todas
as cabras – excepto aquelas que destinámos à “secagem forçada”. Os animais estão no pico da
lactação, pelo que sofrem um stress não só pela separação das crias, mas também da passagem
de um esgotamento frequente do úbere (mamadas periódicas da(s) cria(s)), para um esgotamento
mais espaçado. Esta precaução assume uma especial acuidade nas cabras primíparas / mais
jovens (Lollivier et al., 2002). A ordenha duas vezes ao dia, nesta fase inicial, tem também um
efeito positivo sobre a velocidade e a facilidade de libertação do leite – a taxa de fluxo do leite
(Akpa et al., 2003) - e sobre a persistência da curva de lactação (as cabras dão leite , ou seja,
estão produtivas, durante mais meses).
A partir do meio da curva de lactação, e sobretudo no terço final, os efeitos negativos da
passagem para uma ordenha por dia sobre o nível de produção, a composição do leite e a saúde
dos úberes são menos marcados e apresentam menos riscos (Salama et al., 2003).
Esta “gestão do factor trabalho” pode ser aplicada sobretudo nas cabras mais velhas.
4. Conclusão
A identificação individual – inequívoca – de todas as cabras do rebanho, o registo da data e do
resultado do parto (número de crias), do nível de produção (contraste leiteiro), entre outros
dados escritos – que devem estar permanentemente actualizados -, são algumas das
“ferramentas de gestão” que nos permitem obter um compromisso entre dois objectivos:
- Tirar o melhor partido possível dos animais (produtividade), respeitando o seu bem-estar;
- Assegurar uma “qualidade de vida” satisfatória (não sermos “escravos dos animais”…).
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Rui Cabral Rodrigues – Técnico Superior de Produção Animal
Carlos Alberto Alarcão e Silva – Engenheiro Agrónomo
José Luís Cabral de Almeida – Médico Veterinário
Referências bibliográficas:
Akpa, G. N.; Osuhor, C. U.; Olugbemi, T. S. e Nwani, P. I. (2003). Milk Flow Rate and
Milking Frequency in Red Sokoto Goats. Pakistan Journal of Nutrition 2 (3): 192-195.
Albright, J. L. (1964). Problems in increasing size of the dairy herd. J. Dairy Sci., 47: 941-943.
Blake, R. W. e McDaniel, B. T. (1978). Relationship among rates of milk flow, machine time,
udder conformation and management aspects of milking efficiency. J. Dairy Sci., 61:
375-375.
Lollivier, V.; Guinard-Flament, J.; Ollivier-Bousquet, M. e Marnet, P.-G. (2002). Oxytocin
and milk removal: two important sources of variation in milk production and milk quality
during and between milkings. Reprod. Nutr. Dev. 42: 173-186. INRA, EDP Sciences,
2002.
Rodrigues, R. C.; Alarcão, C.; Almeida, J. C.; Gama, J.; Vidal, P.; Cabral, A. e Simões, P.
(2006). Acompanhamento de um rebanho caprino Jarmelista, explorado para a dupla
aptidão (carne/leite). In Comunicações da I Reunião Nacional de Caprinicultura,
Bragança, 19-21 de Outubro de 2006, Ed. ESA Bragança, p. 130.
Salama, A. A. K.; Such, X.; Caja, G.; Rovai, M.; Casals, R.; Albanell, E.; Marin, M. P. e
Marti, A. (2003). Effects of once versus twice daily milking throughout lactation on
milk yield and milk composition in dairy goats. J. Dairy Sci., 86 (5): 1673-1680.
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Exploração de Cabras “Serranas” ecotipo