Periodontia - 19(4):7-10 R. Periodontia - Dezembro 2009 R. - Volume 19 - Número 04 COMENTÁRIOS SOBRE AS RECOMENDAÇÕES ATUAIS DA “AMERICAN HEART ASSSOCIATION (AHA)” Commentaries on new recommendations by the “American Heart Association (AHA)” Dr. Nelson de Castro Mendes Filho (CRM 30312) ENDOCARDITE INFECCIOSA: DECRETADO O FIM DA PROFILAXIA? Vivemos, nesses últimos anos, sob forte impacto da globalização, sem ficarmos discutindo se ela é benéfica ou não. Devemos observar que a meta principal é a obtenção de uma “padronização”, que, de maneira simplista, tornaria todo o planeta muito semelhante no modo de vestir, no modo de se alimentar, nos tipos de carros, telefones celulares, equipamentos de televisão, etc. A área das ciências biológicas também foi levada neste turbilhão. Há todo um esforço na criação de Guidelines ou consensos, tentando padronizar a maneira de diagnosticar, tratar e prevenir as doenças. Não é incomum observarmos jovens profissionais, trabalhando com modernos palm tops, onde, com simples toques, tem-se acesso a todas essas padronizações antes referidas. Isso complica a situação, pois, apesar da globalização, o ser humano possui diferentes características físicas, genéticas e imunológicas que dependem de onde ele vive, além, 1 Especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia Recebimento: 03/09/09 - Correção: 08/10/09 - Aceite: 23/11/09 é claro, de os seus agressores microscópicos também acompanharem esta diversidade. As recomendações da “American Heart Association” voltadas para a endocardite infecciosa (EI) e publicadas em 2007 afirmam que a profilaxia da EI é ineficiente na prevenção da maioria dos casos e que a correlação entre procedimentos de risco e EI é muito pequena para justificar o tratamento (calcula em apenas 5% a taxa de sucesso da quimioprofilaxia). Consideram também que bacteremias podem ocorrer no transcorrer de atividades rotineiras (como a escovação dental diária) numa proporção tão ou mais significativa que os procedimentos dentários. Como conclusão, as novas recomendações resumiram a aplicação da profilaxia da EI a apenas um pequeno grupo de pacientes: “portadores de válvulas protéticas, aos já acometidos anteriormente por um quadro de EI, nas doenças congênitas cianóticas e nos ‘shunts’ sistêmico-pulmonares construídos cirurgicamente com o uso de implante de material protético”. Esse é, realmente, um passo perigoso, pois, dada a nossa nítida influência americana, corremos o risco de observar jovens profissionais da área da saúde vendo repetidas as diretrizes da “American Heart Association” a todo momento e 11 periodez2009 01-02-10.pmd 11 6/8/2010, 10:19 AM R. Periodontia - 19(4):11-14 Tabela 1 ESTADOS ASSOCIADOS A UMA MAIOR INCIDÊNCIA DE ENDOCARDITE INFECCIOSA NOS PACIENTES (N = 77 PACIENTES), SEGUNDO O LABORATÓRIO DE ANATOMIA PATOLÓGICA DO INCOR (2000-2004) ESTADOS ASSOCIADOS: Próteses valvares ............................................... 35,06% Catéteres e enxertos ........................................ 15,58% Cardiopatias congênitas ................................... 14,29% Valvopatias degenerativas/prolapso ................. 14,29% Doença reumática .............................................. 7,79% Septicemia .......................................................... 3,90% Lúpus eritematoso sistêmico .............................. 1,30% Cardimiopatia dilatada ....................................... 1,30% Sem lesão prévia reconhecível ............................ 3,90% a sua reapresentação em vários congressos, esquecendo-se de que “CONSENSO” nem sempre é sinal de “BOM SENSO”. Primeiramente, parece-me incoerente adotarmos uma conduta passiva pela falta de evidências positivas da relação procedimento/endocardite, levando-se em conta que estudos duplo-cegos são, aqui, realmente difíceis de serem aplicados e até eticamente questionáveis no momento em que estamos lidando com uma infecção (endocardite) de alto índice de mortalidade (40%). Por outro lado sobram estatísticas que comprovam a maior facilidade com que os microrganismos se aproveitam do endocárdio já em sofrimento (Tabela 1). Em segundo lugar, questionar a validade do uso de antibióticos como prevenção da EI pelo fato desta poder ocorrer até sem manipulação não acrescenta nenhuma novidade, pois basta, para tanto, um desequilíbrio entre o microrganismo e o sistema imunológico num paciente previamente de alto risco. O que devemos realmente entender é o quanto somos responsáveis ou até indutores do mesmo processo durante um tratamento médico ou odontológico. Saltam aos olhos que as diretrizes americanas estão distantes de nossa realidade, já que, infelizmente, possuímos algumas doenças típicas dos países do terceiro mundo e que não são comuns nos países mais desenvolvidos. Refiro-me aos pacientes acometidos por febre reumática, grande parte deles portadores de lesão valvar mitral ou aórtica, e, ainda, aos portadores da doença de Chagas. Os dados do SUS-2007 mostram que o Brasil gastou, naquele ano, R$ 160.000.000 em internações decorrentes da febre reumática e/ou endocardite reumática e que 31% das cirurgias cardíacas do período abordaram pacientes com (70% delas secundária à febre reumática) sequelas de febre reumática. Procurando fugir da análise puramente hospitalar, os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) -2007 calculam que a incidência de cardiopatia reumática no Brasil é de 7 casos/1000 contra 0,1 casos/1000 nos Estados Unidos. Provavelmente, estamos caminhando para tratar a relação profissional de saúde/paciente apenas como mais um apêndice da Tecnologia da Informação: “de um lado você coloca as informações e de outro você tem a conduta”. O velho “jargão” de que cada caso é um caso vai sendo esquecido, e as nossas prestigiosas Universidades terão que reavaliar o que até hoje nos foi ensinado. Vocês lembram? A base teórica da profilaxia da EI está fundamentada: identificação dos pacientes com risco de desenvolvimento de EI, conhecimento dos procedimentos indutores de bacteremia e que necessitam profilaxia e seleção do agente antimicrobiano mais adequado. De que modo? - Primeiro: O cardiologista analisa o estado hemodinâmico do paciente e observa se o paciente possui zonas de sobrecarga e agressão ao endocárdio, com alta probabilidade de conter depósitos de fibrina e plaquetas, propícias para receber o agente agressor, e classifica o paciente em alto e baixo risco. Cerca de 2/3 dos pacientes com EI apresenta pelo menos um dos elementos da classificação de risco (Tabela 2). - Segundo: O cirurgião-dentista analisa a região a ser tratada, a extensão do procedimento a ser realizado e a presença prévia de algum quadro infeccioso. Também classifica o paciente em alto e baixo risco com critérios clínicos para o quais também já foi treinado em sua formação. Observe que, com a mudança da pirâmide etária, o Brasil vem deixando de ser um país de jovens e o 12 periodez2009 01-02-10.pmd 12 6/8/2010, 10:19 AM R. Periodontia - 19(4):11-14 Tabela 2 PACIENTES COM MAIOR RISCO CARDIOLÓGICO PACIENTES PORTADORES DE: Valvas protéticas* Endocardite bacteriana prévia* Doença congênita cianótica * “Shunts” sistêmico-pulmonares construídos cirurgicamente* Ducto arterioso patente Regurgitação aótica Estenose aórtica Valvulopatia tricúspide Hipertrofia septal assimétrica Regurgitação mitral Estenose mitral Prolapso mitral com regurgitação Dupla lesão mitral Comunicações interventriculares Coarctação da Aorta Lesões intracardíacas reparadas cirurgicamente nos primeiros 6 meses ou com anormalidade hemodinâmica residual Miocardiopatia dilatada com dilatação do anel mitral Miocardiopatia chagásica com aneurisma de ponta e/ou dilatação do anel mitral Usuários de drogas endovenosas Marcapasso Cardíaco Desfibrilador automático implantável Catéteres de ação central ou fístulas arteriovenosas (cada vez mais presentes nos pacientes com insuficiência renal ou quimioterapia) *apenas estes estão presentes no “Guideline” da A.H.A. (2007). Tabela 3 MÉDIA DE IDADE INCIDÊNCIA DE ENDOCARDITE INFECCIOSA Segundo a OMS-2007, as análises mundiais mostram: Década de 20 - a média das idades era 26 anos Década de 40 - a média das idades era 39 anos 2000 - a média das idades - > 50 anos Nos Estados Unidos : incidência global - 1,9 casos/100 mil pessoas incidência > 80 anos - 30casos/100 mil pessoas prolongamento da vida passa ser acompanhado de uma série enorme de procedimentos médicos e odontológicos mais agressivos. Obser ve que também a média de idade de pacientes com EI vem crescendo gradativamente (Tabela 3). - Terceiro: Cardiologista e cirurgião-dentista trocam informações e, conjuntamente, analisam o quadro clínico do paciente visando entender o seu estado imunológico. Qual o risco do paciente sob o ponto de vista de cada profissional? - Quarto: Definem se a antibioticoterapia será ou não aplicada. Classicamente, os estreptococos são os agentes etiológicos mais comuns (30-50% dos casos), mas a presença dos estafilococos vem aumentando, já atingindo 30% em algumas pesquisas. Será que o uso de amoxicilina, após quase 30 anos de uso, ainda tem poder protetor? Dados mostram que quase 35% das endocardites ocorreram apesar de terem sido prescritos antibióticos previamente (MansurGrimberg-1996). 13 periodez2009 01-02-10.pmd 13 6/8/2010, 10:19 AM R. Periodontia - 19(4):11-14 Como conclusão, respondendo ao questionamento inicial, devemos certamente nos opor à tentativa de reduzir o leque de proteção aos nossos pacientes, pois, num país pobre como o nosso, com grande parte da população carente em termos nutricionais e em higiene bucal, o seguimento das diretrizes da “American Heart Association” não é o mais adequado. A classificação dos pacientes em ALTO e BAIXO risco tem que ser mais ampla, com uma participação realmente ativa e em equipe do Cardiologista e do cirurgião-dentista. Obviamente, estamos cientes de que tal trabalho de aproximação não é tão fácil e de que, na maioria das vezes, a solicitação de avaliação cardiológica prévia é apenas protocolar, mais como instrumento de defesa para uma eventual complicação do que no sentido da obtenção de melhores resultados no tratamento do paciente. Por outro lado, com sapiência, os índices de EI certamente serão reduzidos se entendermos que os pacientes são diferentes e que seus riscos também são muito distintos. Podemos e devemos questionar a real eficiência dos esquemas “simplificados” de profilaxia antibiótica: para casos de maior gravidade, certamente devemos usar antibióticos de maior espectro e por um número de dias também maior. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Agnihotri AK, McGiffin DC, Galbraith AJ, O’Brien MF. The prevalence of infective endocarditis after aortic valve replacement. J Thorac Cardiovasc Surg 1995;110 (6):1708-1720. 2. Barbosa PJ, Müller RE, Latado AL, Achutti AC, Ramos AIO, Weksler C, et al. 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