UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA - PPGA
MESTRADO EM ANTROPOLOGIA
Plateias da Morte: discutindo o fim da vida em Comunidades e
Velórios Virtuais
Andréia de Sousa Martins
Orientador: Prof. Dr. Mauro Guilherme Pinheiro Koury
João Pessoa - PB
Março de 2013
Andréia de Sousa Martins
Plateias da Morte: discutindo o fim da vida em Comunidades e
Velórios Virtuais
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós Graduação em
Antropologia da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), como critério
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Antropologia, sob a
orientação do Prof. Dr. Mauro
Guilherme Pinheiro Koury.
João Pessoa - PB
Março de 2013
Para Moisés e Fred
Por terem aberto a porta e acendido a luz.
Agradecimentos
Diversas vezes, durante esta pesquisa, pensei em como seria se a
morte fosse minha. Pensei em como seria trágico – ou cômico – que, durante
um trabalho sobre a morte, a própria autora morresse. Então, eu, que já tinha
maior consciência de minha própria finitude – ciente de que, a qualquer minuto,
ao atravessar a rua, ao descer do ônibus, ao pegar a estrada, ao deitar-me,
levantar-me, ao amar e ao comer aquele poderia ser meu último ato, minha
última ação, consegui criar forças para continuar, consegui amar mais a vida
porque eu só pensava na morte. Na minha morte, na morte de outras pessoas,
comuns ou não, na morte como espetáculo, na morte como sacrifício, na morte
como escolha e como fim em si daquilo que temos de tão precioso.
Eu já tinha pensado na minha própria morte, por diversas vezes. Mas,
depois de um longo hiato, essa ideia me fugiu, e nunca mais voltei a tê-la, até
que perdi minha primeira pessoa querida: meu avô paterno. Hoje, depois de
várias perdas significativas, sei que eu pensava na minha morte de forma
diferente, pois nunca tinha presenciado uma. Agora, sinceramente, me
pergunto se a minha própria partida será sentida. Penso em como é estranho,
como é absurdo simplesmente não existir mais. Sei que Camus já disse que a
vida é absurda; completo: deixar de vivê-la é um pensamento mais absurdo
ainda. Hoje: cá estou! E amanhã, voilà: Não estou mais.
Não posso deixar de pensar também no que poderá acontecer depois de
minha partida: se for prematura, terão curiosidade, terão afeto com meus
objetos, minhas cartas, minhas pedras, meus textos, meus livros, tudo aquilo
que pode se tomar como meu? Serão coisas queridas, serão fragmentos de
mim e representações da minha memória, de fato? Estas perguntas,
infelizmente, não foram respondidas neste trabalho porque ele não trata de
mim, mas de nós, como um todo.
Por isso, alegro-me com este fim - que é, na verdade, um começo:
dentre os pesquisadores, posso ser a única com a certeza de um dia, sem
chance de escolha, pertencer e dar volume ao meu próprio objeto de pesquisa.
Porque, assim como todos os clichês, a morte é nossa única certeza. Tratemos
de adiá-la vivendo o mais intensa e apaixonadamente possível.
Agradeço, então, aos meus pais, e à minha família, pela compreensão
da necessidade da minha ausência; ao meu orientador, pela atenção, carinho e
compreensão nas adversidades, e à equipe da Fundação Margarida Maria
Alves pelo apoio absurdo e raro.
Aos amigos, de ontem, hoje e sempre, por terem me doado tempo,
lágrimas e silêncios quando me perdi, e por todo o carinho, abraços, beijos e
incentivos quando me encontrei pelo mundo. Agradeço às pessoas que
encontrei pelas minhas andanças, por terem acreditado no meu trabalho, e aos
integrantes da PGM pela colaboração.
Agradecimentos também para aquele que tornou tudo mais difícil, mas,
principalmente, para a sua família que tornou tudo mais fácil.
E, novamente, à Zuca, por apoiar e acalmar, silenciosamente, quando não
havia mais ninguém.
Ode imitada de vários salmos
"No banquete da vida, infortunado conviva,
Eu compareci um dia, e eu morro.
Eu morro: e, sobre minha tumba aonde lentamente chego,
Ninguém virá derramar lágrimas.
Saudações, campos que eu amava! E vós, doce verdor!
E vós, risonho exílio de madeira!
Céu, pavilhão do homem, admirável natureza,
Saudações pela última vez!
Ah! Pudera ver por muito tempo vossa beleza sagrada
Tantos amigos surdos ao meu adeus!
Que eles morram com seus dias plenos! Que suas mortes sejam choradas!
Que um amigo feche os olhos seus!"
Nicolas Gilbert, 1780.
"ó doce espontânea
terra, quantas vezes
os
dedos
amorosos de
sôfregos filósofos te
apalparam
e
beliscaram e
o polegar maroto
da ciência explorou
tua
beleza
. quantas
vezes as religiões te tomaram
sobre os joelhos ossudos,
espremendo-te nos braços e
malhando-te para que concebesses
deuses
(mas,
fiel
ao leito incomparável
da morte, teu
rítmico
amante,
tu só lhes
respondes com
a primavera)."
E. E. Cummings, 1920.
RESUMO
Esta dissertação versa sobre as maneiras com que a morte vem sendo tratada
na virtualidade através de comunidades virtuais de Redes Sociais que
catalogam perfis de pessoas que já morreram e em sites de empresas
funerárias que viabilizam a transmissão de Velórios Virtuais. Nestes espaços,
trata do corpo morto no ambiente virtual como vetor de significações e
representações da vida e da morte: primeiramente, o perfil na rede social Orkut
como representação do indivíduo e de sua corporeidade; por último, do corpo
morto no momento do velório, transmitido para a virtualidade através dos
Velórios Virtuais. Comporta, também, uma netnografia, ou seja, uma
netnografia virtual das comunidades "Perfil de Gente Morta" e "Velórios
Virtuais" do Orkut, analisando a forma com que a virtualidade tem abarcado o
tratamento do fim da vida e a discussão da morte, através de uma antropologia
da morte.
Palavras-chave: morte, virtualidade, corpo, antropologia da morte.
ABSTRACT
This dissertation deals with the ways in which death is being treated in virtuality
through virtual communities of Social Networks that have been cataloging
profiles of people who have died and in websites of funerary companies that
enable the transmission of the Virtual Wakes. In these spaces, deals with the
dead body in the virtual environment as a vector of meanings and
representations of life and death: first, the profile on the Orkut social network as
a representation of the individual and his body; finally, the dead body at the time
of the funeral, streamed to virtuality through Virtual Wakes. Also holds a
netnography, i.e. a virtual ethnography of communities "Dead People Profiles"
and "Virtual Wakes" on Orkut, analyzing the way that virtuality has covered the
treatment of end of life discussion and death through the anthropology of death.
Keywords: death, virtuality, body, anthropology of death.
Lista de Figuras
Figura
Página
Figura 1 - Página principal da PGM
41
Figura 2 - Página principal da PGM Moderação
44
Figura 3 - Exemplo de justificativa de expulsão
45
Figura 4 - Regras da PGM
47
Figura 5 - Lista de postagens com a formatação exigida pela
53
moderação
Figura 6 - Discussão acalorada sobre suicídio
59
Figura 7 - Exemplo de postagem
61
Figura 8 - Home da PGM Site
70
Figura 9 - Tópico com perguntas sobre os Velórios Virtuais
79
Figura 10 - Divulgação do vídeo de aniversário na funerária
81
Figura 11 - Observando os Velórios Virtuais
82
Figura 12 - Informações sobre o morto
84
Figura 13 - Ânsia em assistir ao Velório Virtual
85
Figura 14 - Discussão sobre a cor do caixão
86
Figura 15 - Especulações sobre o defunto
87
Figura 16 - Observações sobre o corpo no caixão
88
Figura 17 - Enquete sobre a visualização dos Velórios Virtuais
89
Sumário
Título
Página
Introdução
02
Apresentação do Problema
06
Capítulo I - Construção do objeto de Estudo
15
O trabalho de campo no Ciberespaço em Antropologia
21
Metodologia e Instrumentos utilizados
25
O Cadáver Ideal – o perfil como representação do eu
27
O Perfil como mantenedor da memória
31
Capítulo 2 - Virtualmente observando quem virtualmente
37
observa: Netnografia da comunidade “Perfil de Gente Morta”
do Orkut
O que é a PGM
40
Regras de Funcionamento
43
Perfil dos Participantes
58
O Perfil Falso ou Fake
64
Fluxo de postagens
67
PGMsite.com.br e Profiles de Gente Morta no Facebook
69
Capítulo 3 - Vendo a Morte dos outros: os Velórios Virtuais
73
Velando Virtualmente – o que é um Velório Virtual
73
Netnografia da comunidade Velórios Virtuais
78
Principais motivos para velar desconhecidos
89
Considerações Finais
96
Referências
99
Introdução
Existe assunto mais universal que a morte? Com esta pergunta, Metcalf
& Huntington (1991) abrem seu clássico estudo sobre a Antropologia dos
Rituais Funerários. Se a morte é ou não inerentemente aterrorizante para os
seres humanos, e se o medo que ela inspira aumentou na modernidade, são
questões que ultrapassam o debate acadêmico (Becker, 1973; Kellehear, 1984;
Bauman 2008). É certo, no entanto, que muitos aspectos da morte, como os
funerais, a gestão do corpo morto e o luto tornaram-se, nas modernas
sociedades ocidentais, atitudes privadas, profissionalizadas, escondidas,
removidas de vista, isso sem mencionar sua transformação em tabu (Giddens,
1991, Baudrillard 1993; Mellor & Shilling, 1993; Rodrigues, 2006). Ontem, uma
questão familiar e próxima, a morte de hoje tornou-se estranha e distante
(Ariès, 1988). No entanto, enquanto a morte tornou-se ausente em público,
manteve-se muito presente dentro da privacidade do lar e da família. Dado que
a morte é o destino comum dos seres humanos e única certeza da vida, sua
gestão ritual tem potencial considerável para integrar indivíduos e grupos
(Durkheim, 1915; Berger & Luckmann, 1967); então, o isolamento moderno dos
moribundos e do luto pode ser visto como problemático (ELIAS, 2001).
Na modernidade tardia, no entanto, as histórias de morte e perda
tornaram-se altamente visíveis em uma gama de gêneros na mídia de massa
(Woodthorpe, 2010). Estas mortes, no entanto, são de pessoas que o público
não conhece pessoalmente; por isso, esta nova presença da morte não
articulou ou a aproximou da experiência privada. O tipo de morte a que o
indivíduo e os seus estão susceptíveis (como falência dos órgãos, por exemplo,
na velhice) são raramente aqueles retratados na mídia (crime, fome,
catástrofes). Além disso, o público que assiste à mesma catástrofe produz uma
solidariedade imaginada ao invés de uma solidariedade face-a-face (Walter,
2001). O rápido aumento da morte e da perda como temas dentro da internet,
no entanto, pode contribuir para uma mudança neste aspecto. A apenas um
clique de um botão de distância, a morte já não é apenas uma história em
revistas, jornais e noticiários de TV, mas algo discutido e pesquisado através
2
da internet, com amigos íntimos e estranhos lendo sobre aquela morte e
postando de notícias sobre ela (Walter, Hourizi, Moncur, & Pitsillides, 2011-12;
Moncur, Bikker, Kasket, e Troyer, 2012).
Esse processo - da morte primeiramente escondida na modernidade e,
em seguida, levada para o público através de mortes midiatizadas (MARTINS,
2009), e a sua presença no dia-a-dia da internet - é uma sequencia encontrada
não apenas nas sociedades ocidentais estudadas por anglófonos e
francófonos, mas também no Brasil.
O foco desta dissertação está em um ritual funerário bastante recorrente:
o velório. Aqui, nossos objetivos são os de abordar o velório, transmitido para a
virtualidade através dos sites de empresas funerárias que oferecem este
serviço que não é só acompanhado por familiares e amigos do morto, mas,
principalmente, por desconhecidos, transformado no Velório Virtual.
O velório é parte fundamental de diversas culturas, como período de
margem que pertence a uma série de outros ritos de separação, conforme nos
mostrou Van Gennep (2011). A morte, como outros aspectos da vida, está
alocada em uma tríade, uma estrutura que envolve, primeiramente, o
isolamento de um estado inicial, seguido por um período marginal ou
intermediário que é substituído pela reincorporação a um novo estado. No caso
específico da morte, ela possui apenas uma distinção (morto), duas categorias
(ou se está vivo ou se está morto) e três estágios (o indivíduo ou está vivo,
morrendo ou morto).
No entanto, isto não quer dizer que os ritos, sobretudo os funerários,
possuam um início, um meio e um fim. Sua estruturação é muito mais
complexa; o que Van Gennep logrou em salientar é que existem muitas
semelhanças entre estes pretensos inícios, meios e fins ritualísticos (METCALF
& HUNTINGTON, 1991).
Colocaremos aqui o velório como caractere mediano do ritual funerário;
o indivíduo não está mais vivo, mas também ainda não desapareceu do meio
dos vivos. Está suspenso entre o solo e a cova, ainda não está ausente; sua
presença se faz através da permanência do seu corpo na companhia dos seus.
Durante este momento, durante essa presença inconsciente, o cadáver
desperta,
nos
vivos,
sentimentos
contraditórios,
oriundos
tanto
das
conformações socioculturais e especiais que os configuram como pessoas,
3
quanto das expressamente psicológicas, representadas por seus cursos de
vida, através da experiência de cada um como indivíduo. Aqui temos a relação
direta estabelecida entre indivíduo e sociedade; embora o sentimento de perda
seja íntimo, é regido pelas normas sociais sobre as quais nos falaram Elias
(1993; 1994a; 1994b), Giddens (1993) e Simmel (2005).
São várias as maneiras de lidar com a morte e viver o processo de luto;
não existe uma regra ou uma cartilha: mesmo com os padrões sociais, cada
indivíduo interpreta e introjeta a morte de uma maneira diferente. Todas são
extremamente íntimas e configuram uma infinidade de versões, desde a
negação até a completa exposição pessoal1 em Sites de Relacionamento,
também chamados de Redes Sociais2.
Essa variedade de sentimentos, que engloba dor, ressentimento,
tristeza, alívio, curiosidade e indiferença, é sentida não só por familiares ou
conhecidos, visto que o momento pode ser partilhado com um número
inimaginável de pessoas. Como? Através do Velório Virtual, tratado aqui como
prática transmitida para a virtualidade, como um espetáculo (Debord, 2003)
onde possuímos dois tipos de plateia: a plateia presente corporalmente, no
local do velório, composta por amigos e familiares, e a plateia presente através
da virtualidade, àquela que acompanha o velório através da tela do
computador, formada majoritariamente por anônimos, isto é: por pessoas que
desconhecem completamente o falecido. Para compreender melhor este
momento específico da ritualística da morte transportado para a virtualidade,
analisaremos duas comunidades virtuais pertencentes à Rede Social Orkut,
importantes para a discussão da morte na Internet e para a divulgação do
Velório Virtual.
1
Com práticas como colocar a palavra "luto" precedendo o nome da pessoa; dizendo,
abertamente, que um indivíduo próximo morreu, e por isso se está triste; postando fotos e
imagens com declarações e rememorações, criação de comunidades, no Orkut, e páginas de
memória, como no caso do Facebook.
2
A Rede Social pode ser tomada como uma estrutura edificada por pessoas ou organizações,
conectadas por um ou mais tipos de relações, que partilham valores e objetivos comuns. Uma
das características fundamentais na definição das redes é a sua abertura e porosidade,
possibilitando relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os participantes. Duarte,
Fábio e Frei, Klaus. Redes Urbanas. In: Duarte, Fábio; Quandt, Carlos; Souza, Queila.
(2008). O Tempo Das Redes, p. 156. Editora Perspectiva S/A
4
A primeira comunidade a ser netnografada, ou seja, etnografada através
da virtualidade (Jones, 1995; Kozinets, 1997) é a Profiles de Gente Morta, ou
PGM. A PGM visa, prioritariamente, a discussão da morte através da
catalogação e visualização de perfis de usuários do Orkut que já morreram.
Extinta em abril de 2012, contava com a participação de mais de oitenta mil
pessoas que contribuíam diariamente para seu intenso funcionamento. No ano
de 2009, em um dos tópicos da PGM, foi divulgado o serviço, até então
praticamente desconhecido, do Velório Virtual. A reação dos usuários foi tão
positiva frente à tão curiosa novidade que foi criada uma comunidade exclusiva
para tal atividade: visualizar Velórios Virtuais de desconhecidos. Assim, surgiu
a comunidade intitulada Velórios Virtuais que também será analisada nesta
dissertação, tomada, em conjunto com a PGM, como parte crucial na
construção deste estudo da morte na virtualidade.
Esta dissertação está estruturada da seguinte maneira: 1) Apresentação
do problema, 2) Netnografia da comunidade Profiles de Gente Morta (PGM) e
3) Netnografia da comunidade Velórios Virtuais e debate sobre os principais
motivos para o acompanhamento do Velório Virtual de um desconhecido.
Abordaremos as comunidades virtuais centrais ao nosso tema através
da netnografia de cada uma delas para, com isso, elucidar a maneira com que
funcionam e dar voz aos seus integrantes, na tentativa de esclarecer seus
pontos de vista com relação à discussão da morte nesses espaços. Na última
porção, falaremos exclusivamente sobre os Velórios Virtuais e sobre o
comportamento daqueles que o assistem e comentam sobre ele nas
comunidades estudadas.
Esse resgate é necessário porque no início do século XXI vimos crescer
a popularização do acesso à Internet e ao mundo virtual, à comunicação
instantânea e, consequentemente, às novas abordagens no tratamento da
morte pelo ser humano. Uma dessas novas abordagens é exatamente o
Velório Virtual. O Velório Virtual é a transmissão on-line de um velório real. São
instaladas câmeras no local onde a pessoa está sendo velada e as imagens
são disponibilizadas através da Internet para determinadas pessoas, com
acesso restrito, ou abertas ao público, mediante autorização da família. Os
links para acesso a essas câmeras são disponibilizados no fórum de discussão
de duas comunidades do Orkut, uma rede social bastante popular no Brasil. A
5
comunidades chama-se Profiles de Gente Morta, ou PGM3 e Velórios Virtuais.
Os participantes acessam os links e comentam o que estão vendo no tópico
correspondente, dentro das comunidades.
A visualização de um Velório Virtual por pessoas que nunca conheceram
o morto é a questão principal deste trabalho. O que as leva a fazer isso? A
partir dos dados coletados junto aos integrantes das duas comunidades
estudadas, podemos afirmar que a curiosidade é o principal fator, seguido pela
identificação com a morbidez ou a tentativa de superar o luto.
Apresentação do problema
O problema nesta dissertação consiste na atenção que tem se dado à
morte, através da visualização dos Velórios Virtuais. O que debateremos são
as maneiras com que o ciberespaço pode contribuir na discussão acerca da
morte através da netnografia das duas comunidades citadas anteriormente. A
hipótese que levantamos é que este debate vem da curiosidade que a morte
desperta no ser humano.
Seria errado afirmar que o interesse na morte é um assunto atual. Não
existe nada que chame mais a atenção, que dê mais audiência que a morte. As
arquibancadas do Coliseu romano estavam sempre cheias; multidões
acompanhavam a queima de bruxas durante a Santa Inquisição; as praças de
Paris pululavam quando alguma decapitação acontecia e plateias eram
montadas nas penitenciárias norte-americanas para a execução de um
condenado à pena de morte. Hoje, como ontem, muitos se aglomeram ao redor
de acidentes nas estradas, famílias inteiras partilham a hora do almoço com
programas televisivos policiais que mostram os cadáveres dos bandidos.
O interesse que a sociedade em geral tem hoje na morte é mero reflexo
desse interesse de outrora, um interesse que é rechaçado, julgado e
condenado ciclicamente, que se transforma em tabu para logo em seguida
renascer como questão social e econômica (MITTFORD, 1998). Podemos
encontrá-la em noticiários, na violência do dia-a-dia, nas discussões sobre os
3
Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=993780. Acesso em
17.08.2011.
6
avanços da medicina, nas questões morais e religiosas que envolvem o aborto,
a eutanásia e o suicídio. No entanto, outra porção desta mesma sociedade
ainda possui interesse semelhante em discutir sobre a morte em ambientes
criados para celebrar a vida.
Elias afirma que possuímos hoje um espaço de identificação com a
morte "mais amplo que em outras épocas" (2001, p. 8). De fato possuímos,
mais até que na época em que seu trabalho foi publicado, e este espaço é a
Internet. Afirmamos isto com base nos dados que a própria Rede de
Computadores nos oferece sobre o assunto: ao pesquisar a palavra "morte" no
Google4, são obtidos mais de quarenta milhões de resultados que vão desde
notícias sobre a morte de famosos ou pessoas a eles relacionadas, sites
especializados em imagens e vídeos de acidentes e representações imagéticas
da morte mítica. As sugestões de busca, construídas de acordo com os termos
mais
procurados,
ainda
nos
oferecem
palavras
chave
como
"mensagem morte"; "frases morte"; "morte poemas"; "dia da morte"; "morte
vídeos" e "sonhar com morte". Assim, é possível afirmar que a busca por
qualquer um desses assuntos, atrelados à morte e presentes na vida e
consciência prática dos indivíduos em suas experiências cotidianas (Giddens,
1993) faz da Internet o campo ideal para a discussão do assunto, levando em
consideração a quantidade e a diversidade de respostas para cada sugestão
assinalada que podem ser encontradas nessas mais de quarenta milhões de
páginas.
Mas a identificação da qual nos falava Elias (2001, p. 8), nos dias de
hoje, mesmo com essa busca na virtualidade sobre assuntos relacionados à
morte, ainda é dúbia; podemos recorrer ao site de buscas para encontrar
outros que nos deem alguma ideia de como enviar mensagens de condolências
ou para sanar a curiosidade surgida através da morte de um famoso ou do
mais recente assassinato cruel explorado pela mídia. Mas, a ideia que persiste,
no dia a dia e no cerne de nossa sociedade, não é a da certeza da nossa
morte, mas de que a vida pode ser gradualmente esticada a partir dos avanços
da medicina e da estética.
4
www.google.com. Acesso em 05.08.2011.
7
Esse prolongamento tem estado ao alcance de uma grande parcela da
população. Então, morremos mais tarde, naturalmente, e mais cedo, ao acaso.
No entanto, cabe ao indivíduo imaginar esse acaso como algo seletivo, nunca
apontando suas garras para ele ou para os seus. No momento em que isso
acontece, quando alguém que nos é próximo morre por ação da violência ou de
algum descuido, estamos frente a frente com a ideia genuína de perda que a
morte traz, derrubando a idealização de imortalidade construída por aqueles
mesmos avanços médicos e estéticos.
A convenção social fornece às pessoas umas poucas
expressões estereotipadas ou formas padronizadas de
comportamento que podem tornar mais fácil enfrentar as
demandas sociais de tal situação. Frases convencionais e
rituais ainda estão em uso, porém mais pessoas do que
antigamente se sentem constrangidas em usá-las, porque
parecem superficiais e gastas. As formas rituais da velha
sociedade, que tornavam mais fácil enfrentar situações críticas
como essa, soam caducas e pouco sinceras para muitos
jovens; novos rituais que reflitam o padrão corrente dos
sentimentos e comportamentos, que poderiam tornar a tarefa
ainda mais fácil, ainda não existem (ELIAS, 2001, p. 32).
E se, onze anos após a escrita dessas linhas, afirmássemos que
encontramos, através da tecnologia, uma releitura das velhas formas rituais
que permitem, sobretudo aos jovens, aproximarem-se de situações delicadas
como a morte? Graças à rápida integração desta geração com a virtualidade,
encontramos,
nos
meandros
da
Rede
Mundial
de
Computadores,
possibilidades de rever e recriar rituais bastante arraigados no cotidiano.
Rituais de vida, como o nascimento, o casamento, formaturas e aniversários,
bem como rituais de morte, como a visita ao cemitério e o velório.
O nascimento é acompanhado desde o descobrimento da gravidez e
possibilita que a gestante não só documente o crescimento de seu filho, ainda
no útero, compartilhando desde o resultado do exame e a primeira
ultrassonografia até o gradual aparecimento da "barriga" e publique fotos
tiradas na sala de parto e no berçário.
O casamento, então, é compartilhado desde o momento do noivado,
onde vídeos de propostas originais de matrimônio viram objetos de
8
identificação5 e as fotos da aliança são obrigatórias, bem como sites especiais
para a divulgação e organização da festa.
As formaturas também seguem o mesmo modelo, tendo todas as
comemorações (Colação de Grau, Cultos Ecumênicos, Aula da Saudade e
Baile) compartilhadas de maneira detalhada.
No caso dos aniversários, são feitos álbuns com as fotos das diversas
comemorações, dos convidados, dos presentes, e a etiqueta manda que se
deixem felicitações no perfil do aniversariante, que pode se sentir compelido a
cobrar pela falta de tal demonstração de afeto. Não existe mais a desculpa de
que se esqueceu do aniversário de alguém: todos os contatos são avisados,
em seu perfil, que os aniversários de fulano e fulano estão próximos. No Orkut,
ainda há a ordem: "Hoje é o aniversário de Fulano de Tal. Dê os parabéns".
Para os rituais de morte como a visita ao cemitério, é possível fazê-lo
sem sair de casa, através de passeios virtuais como o oferecido pelo PèreLachaise6, maior cemitério de Paris. No site da visita virtual, se podem localizar
os túmulos de diversas personalidades e ver suas respectivas fotos. Existem
também sites como o Find a Grave (Encontre um Túmulo, em português), uma
ferramenta para se encontrar o local onde estão os restos mortais de
familiares, amigos e famosos7, sendo possível deixar flores virtuais e notas
sobre o falecido.
O velório, então, entra na virtualidade, curiosamente "ao vivo", ou seja,
em tempo real, com a transmissão imediata da realização do velório de
alguém. Os Velórios Virtuais poderiam ser classificados como passíveis de
preencher a lacuna da qual nos fala Elias? O discurso encontrado nos
comentários dos expectadores que frequentam as comunidades integrantes de
nosso estudo é o mesmo relatado por ele, um discurso "superficial e gasto"
(2001, p. 32): "Meus pêsames", "minhas condolências", "meus sentimentos",
mas estão transformados. Transformados como? Em siglas, de acordo com a
5
Como no caso da proposta encerrada em um livro da famosa saga "Harry Potter", ou do
pedido feito com cartazes utilizando memes, figuras bastante populares que expressam
estados de ânimo ou reações a determinadas ocasiões.
6
Disponível em http://www.pere-lachaise.com/. Acesso em 03.06.2011.
7
"Find a Grave is a resource for anyone in finding the final disposition of family, friends, and
‘famous' individuals". Disponível em www.findagrave.com. Acesso em 03.06.2011.
9
cultura do imediatismo virtual que transforma assuntos em hashtags8 e
imagens em memes9, pois a interação na virtualidade necessita de rapidez
para acontecer verdadeiramente em tempo real. Substituímos essas frases
vazias por suas iniciais: Descanse em Paz tornou-se "DEP", assim como sua
variante inglesa, "Rest in Peace", virou RIP. São elas também siglas vazias?
A diferença reside na facilidade com que essas siglas são postadas no
ambiente virtual para a família em luto. Assim como desconhecia o morto, o
internauta desconhece sua família, mas, mesmo assim, direciona para ela,
conscientemente ou não, os pêsames transformados em siglas, os pêsames
expressos, as condolências condensadas da vida virtual, alocadas no perfil que
o falecido mantinha no Orkut (e, hoje, no Facebook). O internauta que deixou
as condolências não precisa, necessariamente, ter desejado direcioná-las para
a família. Esta é uma possibilidade dedutível pela forma que algumas delas
tratam os perfis nas Redes Sociais de seus membros falecidos. Os perfis são
visitados durante algum tempo, provavelmente enquanto durar o luto e, em
alguns casos, assumidos por familiares, caso conhecessem a senha.
Esta prática é inovadora porque, antes, era necessário ter alguma
ligação com a família enlutada; no caso de celebridades, por se tratar de
alguém admirado, possuidor de fãs e de um legado que contribuíra para a
cultura, à história ou outro aspecto importante de um local; no caso de pessoas
desconhecidas, a prática de oferecer condolências a uma família era
restringida pelo pertencimento, ao menos, à mesma cidade, para que os
pêsames fossem justificados pela perda de um concidadão.
Hoje essas barreiras se desfizeram: não é necessário ter informação
alguma sobre a pessoa que morreu. Ela não precisa ser famosa, muito menos
um conhecido que encontramos na rua e cumprimentamos. O próprio fato de
8
Tags são palavras-chave associadas a uma informação, algo que a classifica. As Hashtags
possuem o mesmo conceito, mas surgiram no Twitter (Rede Social onde o indivíduo
compartilha informações utilizando apenas 140 caracteres por vez) e servem para designar os
assuntos discutidos na Rede Social. As hashtags são antecedidas pelo símbolo "#", e
viram hiperlinks, podendo ser indexadas pelos mecanismos de busca.
9
Meme significa a unidade mínima da memória, assim como é o gene para a genética. O termo
foi criado em 1976 por Richard Dawkins e apareceu pela primeira vez no livro "O Gene
Egoísta". É uma unidade de informação capaz de se multiplicar entre locais onde a informação
é armazenada. O meme ainda possui um caráter evolutivo cultural e possui formas de
autopropagação, já que compreendem qualquer outra coisa que possa ser aprendida
facilmente e transmitida enquanto unidade autônoma.
10
ela estar morta é o suficiente para que alguém possa se dirigir à sua família e
dizer as palavras relacionadas às condolências, mesmo que elas nada
signifiquem para que as escreve, nem mesmo a morte daquela pessoa. Isso só
é feito porque existe a possibilidade de fazê-lo, de acordo com o depoimento
de um informante:
Eu acho que muita gente acaba indo nos perfis colocar os
DEPs e RIPs só porque não tem mais nada pra fazer que ficar
bisbilhotando a vida alheia. Não me parece uma demonstração
legítima, acho besteira. Então, se eu tô ali, bisbilhotando tudo
que posso no perfil da pessoa que morreu, dou uma passada
na página de recados dela e deixo lá um "descanse em paz!".
Nem sei se a família realmente entende quando se colocam as
siglas, mas está lá. Talvez seja só como uma marca, algo que
diga que eu passei por ali e sei que aquela pessoa morreu"10.
Neste discurso, vemos o envio de codolências para desconhecidos
como uma perda de tempo ou um comportamento adotado por pessoas
desocupadas que tem interesse em saber da vida dos outros. Ou, neste caso,
da morte. Ele não vê esse tipo de comunicação como uma demonstração
genuína de sentimentos e se questiona se a família terá realmente noção do
que aquelas palavras significam, quando as condolências são postadas em
siglas (RIP e DEP). O informante acredita que isto é feito mais para deixar um
rastro "algo que diga que eu passei por ali e que sei que aquela pessoa
morreu" que para demonstrar real identificação com a morte do indivíduo.
Ora, mas esta prática de se deixar saber presente na ocasião da morte
de alguém é também comum, como quando encontramos diversas pedrinhas
alocadas nos túmulos nos cemitérios. Cada pedra significa uma oração ou uma
visita àquele local. Os recados de condolências nos perfis não passariam,
então, de uma representação dessas pedrinhas? A diferença é que, com as
pedras, por exemplo, não é possível saber quem passou por ali, nem quando.
A partir do momento que se visita o perfil de um falecido e se deixa um recado
para ele ou para sua família, a identidade é conhecida pelo fato do visitante
também possuir um perfil em determinada rede social.
10
Fala de um Informante do sexo masculino obtida através do serviço de mensagens do
Facebook, que permite "conversar" com pessoas que não fazem parte da sua rede de contatos.
O informante havia participado da PGM no Orkut desde sua criação, mas havia abandonado
sua conta no site de relacionamentos e agora só utiliza o Facebook. Nenhuma outra
informação pessoal foi fornecida.
11
Em outra porção de seu estudo, Elias (2001, p.44) fala que "o medo de
nossa própria transitoriedade é amenizado com ajuda de uma fantasia coletiva
de vida eterna em outro lugar", seja este lugar o Paraíso, o Hades ou o
Purgatório, extensamente estudado por Michel Vovelle (2010), ou ainda outros
locais determinados por diferentes religiões e seus preceitos. A ideia
permanece a mesma: os bons vão para um determinado local, os maus, para
outro, e os que não são completamente bons nem maus vão para um terceiro,
intermediário, onde passarão por provas ou rituais diversos de purificação para
serem dignos de permanecer, eternamente, em uma dessas instâncias. Em
todos os sentidos, a vida continua após a morte, ou é retomada com a
reencarnação.
Mas nosso intuito não é a discussão dos lugares esboçados pelas
religiões no pós-morte; queremos apenas ilustrar que é possível se "viver
virtualmente", por toda a eternidade, em outro lugar, sem necessidade de
pertencimento a qualquer doutrina religiosa. E este lugar é a Internet. Conforme
nos fala Baudrillard (1993):
A imortalidade é progressiva e é uma coisa das mais estranhas.
Ela progride com o tempo, passando de limitada para eterna
sobrevivência; no espaço social, a imortalidade se torna
democrática e passa de privilégio de poucos para direito virtual
de todos (BAUDRILLARD, 1993, p.128).
Tomando a fala do sociólogo e filósofo francês, observamos que o
privilégio da imortalidade no seio social pode ser tomado hoje como algo, de
fato, virtual, já que a virtualidade oferece uma nova maneira de imortalizar-se; a
capacidade de armazenamento é infinita, basta procurar pelo perfil do falecido
que ele aparecerá, já que uma impressão, uma representação nossa estará
sempre disponível. Coisas que escrevemos, cadastros que fizemos em sites de
compras, fotos que disponibilizamos. Todos esses documentos virtuais tem o
mesmo intuito da lápide, só que, neste caso, o perfil é a lápide e o epitáfio,
composto por nós mesmos em vida.
Assim é permitida a permanência, mesmo que virtual, dos mortos entre
os vivos, principalmente através de vídeos e fotos alocados na Internet. A
12
fotografia possui uma ligação forte com a morte (BARTHES, 1984)11, mesmo
que preservar a imagem de um morto pareça estranho para muita gente; nos
séculos XIX e XX retratar familiares e amigos mortos era completamente
normal. Com o advento da fotografia pelo francês Louis Daguerre, fotografar
passou a ser uma alternativa econômica para as tradicionais pinturas em telas
(BARTHES, 1984; BENJAMIN, 1984a, 1984b, 1991; BOURDIEU, 1965). Com a
grande taxa de mortalidade da época e a pequena expectativa de vida, a morte
era um assunto corriqueiro; por este motivo, na segunda metade do século,
fotografar parentes recém-mortos tornou-se uma prática importante para
superar o processo de uto e aceitar a perda. Essas fotografias são tomadas
como recordação daquele que se foi, podendo ser encomendadas para
exibição privada, dentro do próprio lar (RIERA, 2006). Ou, como colocou a
pesquisadora Déborah Rodrigues Borges (2008), em sua pesquisa sobre
fotografias mortuárias,
São imagens produzidas com um fim específico e diferente de
todos os outros tipos de imagens que representam pessoas
mortas. Seu uso se associa ao processo de luto, que é uma
experiência vivenciada, sobretudo, dentro de um núcleo familiar;
daí o fato de ser restrita a certo número de pessoas a
visualização das fotografias dos mortos de uma determinada
família (BORGES, 2008, p.3).
A fotografia post-mortem, também chamada de memento mori, era,
talvez, a única chance de reter a imagem de um ente querido, que era, então,
colocado em uma cama ou sofá a fim de parecer que estava dormindo. Aos
poucos, pais, irmãos e outros parentes começaram a posar ao lado de seus
mortos com o intuito de fazer parecer que ele ainda vivia, nos deixando em
dificuldade, em alguns casos, de distinguir quem está vivo ou não. Podemos
encontrar diversas fotografias destas em todo o Brasil, como nos dados
levantados por Koury (2001) em pesquisas sobre imagem, memória e emoção
com uma abordagem socioantropológica.
Uma das ações que mais movimenta a Internet é o compartilhamento de
fotos. Nas Redes Sociais, então, é uma prática dominante que tem o intuito de
mostrar para os contatos todos os momentos que o indivíduo acha passível de
11
Para uma compreensão acerca de fotografias sobre a morte, ver estudos de SONTAG (1986,
2003); KOURY (1998, p. 67-86); DUBOIS (1994, p. 215-250), entre outros.
13
serem compartilhados, como saídas, jantares, viagens e até coisas mais
banais. No entanto, a fotografia está no cerne da comunicação e da interação
na virtualidade; é possível marcar amigos nas fotografias, compartilhá-las, fazer
montagens de cunho cômico ou político; as possibilidades são infinitas: é a
imagem que regula a interação na virtualidade. E é a imagem que vai
protagonizar a discussão da morte no mesmo local, também através do vídeo.
14
Capítulo I - Construção do objeto de Estudo
Este capítulo tem por objetivo salientar os motivos para as escolhas das
comunidades netnografadas nesta dissertação e por destacar algumas razões
pelas quais as pessoas se interessam tanto pela vida e pela morte dos outros,
tal como ela é relatada na virtualidade através das Redes Sociais.
Suscitaremos um diálogo principal entre as noções de Fluxos, Fronteiras
e Híbridos de Hannerz (1997), e das Abordagens Híbridas de Canclini (1997)
com alguns aspectos da ritualística da morte, além de aclararmos a utilização
da pesquisa no ciberespaço em Antropologia. Falaremos sobre a metodologia
e instrumentos utilizados no desenvolvimento da pesquisa e na ideia do perfil
na Rede Social como representação do indivíduo. Fechamos este capítulo com
uma discussão acerca deste mesmo perfil como ferramenta pra a manutenção
da memória dos falecidos.
A Antropologia tem narrado o comportamento do homem frente à morte
em suas formas simbólicas e ritualísticas, como podemos encontrar nos
estudos de Hertz (1960), Metcalf & Huntington (1991) e outros. Hoje,
encontramos estas mesmos simbolismos e rituais no ciberespaço. Por este
motivo, nosso universo de estudo abrange dois tipos de espaços virtuais: duas
comunidades da Rede Social Orkut e os sites institucionais de duas empresas
funerárias que fornecem a visualização dos Velórios Virtuais, uma privada e
outra pública.
A comunidade da rede social Orkut, chamada Profiles de Gente Morta12
(ou PGM) foi escolhida por tratar, direta e exclusivamente, sobre a morte,
listando os perfis dos integrantes da Rede que já faleceram. Os perfis apontam
para a maravilha que é viver e como é possível moldar essa vida para que ela
signifique para o outro o que se gostaria que ela significasse. Os perfis fazem
do corpo vitrine, pois, neles, se mostra a pessoa em vida, o que gosta de fazer,
o que gosta de comer, lugares que visitou. Se a imagem do indivíduo a quem o
perfil pertence não se faz disponível, este não é considerado interessante, pois
a identificação dos outros se faz mais concreta quando se pode avaliar e
12
Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=993780. Acesso em
12.04.2011.
15
comparar gostos. Especialmente após a morte, se faz dele obituário. No
obituário, são colocadas as principais informações sobre aquele indivíduo: o
que fazia, onde trabalhava, quais foram suas principais conquistas. Por isso, os
perfis tomam este papel: neles já se encontram expressas todas essas
informações, basta lê-las.
Perfis que não possibilitam ao público visualizar o corpo com vida, que
não mostram o detentor daquele corpo vivendo fazem com que os visitantes
rapidamente percam o interesse nele, pois os elementos que possibilitariam a
identificação só estão visíveis para aqueles que, de fato, conheceram aquela
pessoa, em vida, de alguma maneira, mesmo que só virtual. Estes perfis são
conhecidos como os perfis "trancados", ou seja: neles, fotos, vídeos e outras
atualizações só são visíveis para seus contatos. Assim, o navegador curioso,
isto é, o internauta qualquer, aquele indivíduo que chegou até o perfil do
falecido através do link postado na comunidade Perfil de Gente Morta, não tem
como construir essa identificação. Geralmente, a identificação se dá através de
interesses em comum. É corriqueiro encontrar nos comentários postados pelos
integrantes da PGM, lamentações como: "Poxa, nós ouvíamos às mesmas
músicas", "Gostávamos do mesmo filme", ou "Ela tinha uma filha da idade da
minha". A identificação acontece em qualquer âmbito, parecendo, até, que o
internauta busca essas informações sobre o falecido no intuito mesmo de
encontrar pontos convergentes.
E realmente o faz, como ilustra o depoimento de uma moça de 32 anos:
Meu interesse pela morte vem de anos, mas não tenho
pensamentos suicidas, não. Desde pequena eu tinha tanto
medo, mas tinha tanta curiosidade! Às vezes eu ia ao cemitério
visitar e para ficar imaginando. Entrei na PGM porque uma
amiga minha do Orkut adicionou a comunidade e eu fui ver o
que era... NOSSA! Pensei: tudo que eu sempre queria está
aqui! Aí, pedi para ser adicionada. E então quando vi lá que
alem de postarem o [link para o perfil do] falecido eles colocam
notícias, eu disse: meu Deus, que bom, porque a gente vai ao
cemitério e lá não dá para saber qual foi o motivo da morte.
Você pode pensar que estou louca, mas sempre gostei de ir ao
cemitério, é mais curioso saber de uma pessoa que morreu do
que saber dela viva, saber como estão os parentes... Antes
era medo que sentia; hoje, paz. Quando criança a gente não
entende, hoje sabemos que eles estão apenas descansando.
Já tive tanto medo de morto quando eu era criança que no dia
que morria alguém eu dormia de cabeça tapada toda a noite. O
16
mais interessante para mim é saber o que a pessoa era, se ela
tinha muitos amigos, se eles dedicaram alguma homenagem
ao falecido e, principalmente, saber como estão os familiares.
Sinto pena mesmo e curiosidade de saber como estão
passando esse momento. Eu fiquei sendo amiga de uma mãe
que perdeu seu filho de apenas oito meses. Hoje falamos
muito por aqui. Engraçado, nesse caso eu fiquei muito mal,
porque era filho único e ela já tinha 40 anos, não sabia se
podia engravidar mais. Mas eu disse a ela: não desanima
porque você pode sim ter outro. Aí ela está grávida, o bebê
nascerá final de junho.
Como vimos no depoimento acima, a identificação pode ser tão forte ao
ponto de fazer com que as pessoas desconhecidas se aproximem por ocasião
da morte, embora esta não seja uma prática tão comum. O comportamento
mais encontrado é o de simples visualização do perfil postado e formulação de
comentários dentro do ambiente da PGM. O Velório Virtual chega para colocar
o corpo morto como apaziguador, como detentor de respostas sobre a finitude
do ser humano. Com ele, podemos verificar se sua transmissão permite uma
solução para a quebra da distância entre a vida e a morte, já que este é o mote
das empresas responsáveis por sua feitura. A questão é que ele ultrapassou as
barreiras do familiar e atingiu consumidores outros, diferentes daqueles
previstos pelos empresários do ramo: o Velório Virtual chamou a atenção de
desconhecidos do morto.
Hannerz (1997, p. 8) se propôs a analisar o “lugar da globalização na
história das ideias antropológicas” através da utilização de conceitos já
conhecidos da disciplina como Fluxos, Fronteiras e Híbridos. Assim, nos
utilizamos das ideias do pesquisador sueco para construir uma pequena ideia
dos mesmos conceitos abordados por ele no microcosmo da discussão da
morte na Internet. O pontapé inicial para a utilização destes pontos, no entanto,
foi dado pela colocação do autor de um pensamento de Strathern (1995, p. 24)
sobre as discussões antropológicas: “às vezes, parecemos estar mais perto do
início do século que de sua metade”. Nós, pertencentes não ao fim do século
XX, mas ao início do XXI, continuamos com o mesmo comportamento. A morte
foi um tema exaustivamente discutido pela academia no início do século
passado. Apesar de estarmos abordando, hoje, mudanças no tratamento da
morte, é notório que estamos voltando a olhá-la como fizeram nossos
17
antecessores. Mesmo que por óticas ou componentes de Fluxos, Limites e
Híbridos diferentes.
Portanto, acompanhados por Hannerz (1997), pensamos no Fluxo de
Informações, nos Limites Comportamentais e nas Abordagens Híbridas dos
indivíduos que assistem aos Velórios Virtuais e comentam o que estão vendo
na comunidade “Perfil de Gente Morta” do Orkut.
A noção de Fluxo por nós apreendida é exatamente aquela “afinada com
o uso corrente, referindo-se ao deslocamento de uma coisa no tempo, de um
lugar para o outro, uma redistribuição territorial” (HANNERZ, 1997, p. 11). Isto
é o que vemos acontecer nas dependências da PGM: a discussão da morte
deslocada para o ambiente virtual após ter sido encoberta ou evitada pela
sociedade. Dificilmente encontraremos, em uma roda de amigos, pessoas que
livremente discutam sobre a morte e o morrer de maneira corriqueira. Quem
necessita falar sobre a morte, por tê-la encontrado na perda de um ente
querido ou por pura curiosidade, certamente será reprimido pelos outros sob
protestos de que este não é um bom assunto, ou que é melhor não falar sobre
a morte, para não atraí-la13. Assim, é possível encontrar, na PGM, um local
para a discussão livre sobre a morte, como a própria descrição da comunidade
a coloca. É um espaço de reflexão e compartilhamento de conhecimentos,
curiosidades e fatos ligados à morte.
Isto nos trás também a ideia de difusão atrelada a esta visão do conceito
de Fluxo abordado por Hannerz. Sem a difusão, ou sem o Fluxo de Informação
relacionada à morte na PGM, não teríamos conhecimento do serviço de Velório
Virtual e não teríamos a possibilidade de nos reaproximar de um assunto ainda
considerado tabu.
Ligando o conceito de Limite ao Limite Geográfico, Hannerz (1997, p.
20) nos fornece material suficiente para compreender sua linha de raciocínio,
sobretudo quando diz que a ideia parece estar mais ligada à noção de
“fronteira” ou “zona fronteiriça”. Os limites não estão apenas entre fronteiras
geográficas ou culturais, mas, sobretudo, comportamentais específicas à
abordagem da morte. A fronteira que nos interessa aqui é exatamente a
comportamental. A parcela da sociedade representada pelas pessoas que ali
13
Este tipo de "superstição" pode ser encontrado em pessoas que não dizem, por exemplo, a
palavra Câncer. Dizem que alguém está com C.A.
18
discutem a morte leva para aquele ambiente, por mais avant-garde que seja,
noções de comportamento moldadas social e culturalmente. Não se pode
desrespeitar o morto em comentários, seja fazendo piadas ou pouco caso
daquele que está no vídeo. Parentes que deixam o morto sozinho são
criticados e a quantidade de pessoas ou flores também estão atreladas ao
discurso social da morte. Aquele que possui um comportamento destoante é o
representante da “terra selvagem” exemplificada pelo autor, em comparação ao
“campo cultivado” da comunidade.
Porque a ritualística da morte compreende também a maneira com que o
indivíduo se deve portar perante o cadáver, coube à Antropologia mostrar as
nuanças dos rituais funerários em diferentes sociedades, reafirmando
comportamentos semelhantes e mostrando outros difusos, como a utilização
das cores (Metcalf & Huntington, 1991, p. 63): não só do preto se constrói o
luto, podendo variar entre o vermelho, em oposição à morte, representando a
vitalidade, e o branco, que demonstra fertilidade e pureza. Esta "tríade" de
cores foi também observada por Turner (1967). Hoje em dia observamos que é
também necessário manter a voz baixa, os gestos contidos, evitar sorrir e,
principalmente, chorar copiosamente. O choro é a demonstração máxima do
pesar, mas, mesmo assim, deve ser contido. Este comportamento é contrário
ao observado em outras épocas, como no Brasil do século XIX, período
analisado por Reis (1991). Naquela época, as carpideiras14, por exemplo, se
faziam obrigatórias, para que suas lágrimas incentivassem as dos outros
participantes do velório. Hoje, com as carpideiras praticamente excluídas, o
choro dos familiares e amigos ainda é imperativo, como sinal de respeito e dor,
mas utilizado com parcimônia. Em suma, a palavra de ordem na ocasião de
uma morte é discrição e contenção. Discrição e contenção de gestos, de
sentimentos, porque expressar pesar e dor, além das lágrimas, é algo feio; a
morte é um tabu (KOURY, 2003). Existe uma moldagem cultural, um
refreamento emocional. Deve-se evitar ao máximo fugir aos padrões de
comportamento socialmente impostos como os que descrevemos acima. Caso
contrário, o indivíduo corre o risco de ser taxado como descontrolado, e logo
14
De acordo com Cascudo (1958), a Carpideira é uma profissional feminina cuja função
consiste em chorar para um defunto alheio. A partir do estabelecimento de um acordo entre a
carpideira e os familiares do defunto, a carpideira chora e mostra seus prantos sem nenhum
sentimento, grau de parentesco ou amizade, e é paga por isso.
19
será domado através de medicamentos ou outras técnicas calmantes por um
perito; no caso, um médico psiquiátrico (Giddens, 1993). O velório deve ser,
acima de tudo, um momento calmo e sereno.
Exatamente por estes motivos, a interpretação das emoções aparenta
ser um problema para o antropólogo, conforme colocam Metcalf & Huntington
(1991, p. 43), visto que não estamos, e provavelmente jamais seremos
capazes de lidar com estados emocionais íntimos, pois a tendência é a do
mascaramento como a da piscadela e do caminhar condicionado pelos
calçados (GEERTZ, 2008; MAUSS, 2003). Mesmo em nossas próprias
culturas, é difícil afirmar, com certeza, que aparências externas correspondem
diretamente a sentimentos internos. A morte é um assunto delicado, e, no calor
do momento, no desenrolar de um velório, é aceitável que o indivíduo se
comporte de determinada maneira, mesmo que ele não se sinta, em seu
âmago, compelido a tal postura de maneira natural. É difícil tomar diretrizes
gestuais, de postura e de tons de voz como algo garantido, certo e infalível,
mas há sempre a noção de imitação, de comportar-se, ao máximo, da maneira
que é socialmente aceita. É só nos lembrarmos do exemplo das piscadelas
analisado por Geertz (2008) ou de todas as observações de Mauss (2003)
sobre as técnicas corporais.
Mesmo sem destoar do comportamento aceito nos limites do “campo
cultivado” das comunidades por nós estudadas, é possível perceber
abordagens outras que aquelas mais socialmente conhecidas. Neste sentido,
temos as Abordagens Híbridas propostas por Canclini (1997), que reúnem a
discussão da morte em uma mistura difusa de visões pessoais e
comportamento social. Aqui, o autor cita o escritor afro-americano W. E. B.
Dubois (1961, p. 16-17): “é na mente do homem marginal que a confusão moral
ocasionada pelos novos contatos culturais se manifesta sob formas mais
patentes”. O homem marginal protagonista de nosso estudo não é outro senão
aquele que visualiza o Velório Virtual. A marginalidade aqui é expressa no
sentido antropológico, como aquele que está nas bordas do comportamento
socialmente aceito, mas que pertence, em parte, a outra porção socialmente
execrada. Neste caso, é a morte. O hibridismo é percebido na variedade de
pessoas, de profissionais de diversas áreas que frequentam o espaço em
questão. E isto faz com que diversas maneiras de ver o mundo e de encarar
20
um fato definitivo como a morte se encontrem em um único local, mesmo ele
sendo virtual.
Um dos pontos mais interessantes do texto de Canclini (1997) remete ao
uso das tecnologias na produção e transformação cultural, sobretudo pelo lado
simbólico. Consideramos seu pensamento pertinente pelo nosso trabalho tratar
exatamente da transferência do velório, um ritual funerário e real, para o
ambiente virtual do computador. Essa transferência se deu da forma como o
autor coloca: não só pelos meios comunicacionais, mas, sobretudo através dos
atores, ou seja; nós, os usuários. Este processo, sem dúvida, está ligado ao
crescimento urbano do qual ele fala; se não, a maior prerrogativa para o
oferecimento do Velório Virtual – a crescente distancia entre famílias, resultante
do crescimento econômico – não seria válida.
Outro ponto importante está na necessidade do crescimento da
intimidade doméstica, o que reforça nossa linha de pensamento. Mesmo
distantes geograficamente, os indivíduos estão procurando manterem-se
próximos, através da virtualidade, em momentos chave da convivência social,
como a morte. As tecnologias comunicacionais não estão substituindo “a
herança do passado e interações públicas” (CANCLINI, 1997; 290), mas
remodelando-as.
Ao citar a busca significativa da modernidade através das “tensões entre
desterritorialização e reterritorialização”, o autor também nos remete à
reterritorialização da morte na Internet: a transferência de seu debate para lá.
Os processos de “perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios
geográficos e sociais”, recolocados em locais relativos, como a virtualidade, faz
com que as “velhas e novas produções simbólicas” se encontrem (CANCLINI,
1997; 309).
Abordaremos agora como elas foram trabalhadas neste estudo.
O trabalho de campo no Ciberespaço em Antropologia
A ideia de Clifford (1998) de que o etnógrafo seria praticamente um
“intérprete literário da realidade” que estuda (p.27) é bastante pertinente para
nós. A observação participante, ingrediente ressaltado por ele na fusão entre
21
etnólogos e antropólogos a partir dos trabalhos de Malinowski, é indispensável
na etnografia virtual, ou netnografia:
A etnografia é a abertura das portas do tradicional método
etnográfico para o estudo de comunidades virtuais e da
cibercultura. Originado no campo da Antropologia, o método
etnográfico 'consiste na inserção do pesquisador no ambiente,
no dia-a-dia do grupo investigado' (VERGARA, 2005, p. 73).
Portanto, a netnografia é, ao mesmo tempo, experiencial e interpretativa,
pois é indispensável para o pesquisador que ele interaja com o grupo, algo que
pode acontecer de diversas maneiras – ainda anônimas, inclusive. Ele não
precisa se revelar como pesquisador, de imediato, mas necessita compreender
a linguagem utilizada. A partir dessa compreensão, poderá aproximar-se do
grupo, revelando sua identidade e suas intenções. Este foi o método por nós
adotado, pois já fazíamos parte das comunidades estudadas. Em determinado
momento, já empoderados dos dados básicos e com o contato e apoio de
alguns integrantes, partimos para a abertura total dos nossos propósitos nas
comunidades.
O informante é parte crucial não só na construção do texto, mas,
também, na aceitação do pesquisador dentro do grupo. Assim, cada um deles
tem seu discurso analisado diretamente e ainda inserido no trabalho na íntegra,
em diversos casos. As tais vozes nativas que se tanto tentou encobrir nos
primórdios etnográficos certamente ganharam vez e ajudam na construção do
trabalho final. Este, sem dúvida, é o método mais eficaz na netnografia. Aqui
temos, então, a fusão da escrita no campo e a escrita em outro ambiente da
qual Clifford (1998, p. 40-41) também fala. Já que a netnografia pode ser feita
em qualquer lugar e, certamente será o mesmo onde o pesquisador redigirá o
trabalho final, essa ambiguidade da virtualidade certamente traz uma nova
perspectiva à etnografia, não estando mais separada de seu contexto (local
estudado) e produção acadêmica. Embora possa trabalhar virtualmente com
realidades, as mais distintas, o trabalho se dá em um único lugar: o
computador ligado à Web.
Etnografar no virtual é uma tendência relativamente nova, mas utilizada
em Antropologia desde o início dos anos 2000. Cristine Hine (2000) define o
22
campo virtual como contexto cultural. Portanto, é passível de ser netnografado,
já que a etnografia consiste em um modelo para a compreensão da cultura.
Corroborando seu raciocínio, temos a definição de Monica Pieniz (2009):
Pode-se analisar o ciberespaço como ambiente de inteligência
e memória coletivas, como mídia passível de apropriações
culturais de cidadãos comuns, como meio de produção,
recepção ou circulação de discursos, como cenário de
visibilidade diante de um contexto de midiatização. E, ainda,
como formas de representação do eu, como espaço de
reafirmações ou reconfigurações identitárias, como palco de
expressão da diversidade, como ícone da globalização, como
território virtual que desterritorializa e reterritorializa culturas
locais, como espaço de ciberativismo e difusão de ideias de
minorias. Enfim, como novo espaço de sociabilidade humana
(PIENIZ, 2009, p. 3).
O Ciberespaço15 é, exatamente, um ambiente que foi criado pela
inteligência e memória coletivas, sendo alimentado diariamente por elas. São
esses cidadãos comuns dos quais Pieniz nos fala que contribuem para seu
funcionamento e constante renovação. O meio de produção criado pela
virtualidade oferece à Antropologia um vasto campo de observação, pois é
receptáculo, exatamente por ser sustentado por pessoas comuns, das mais
diversas exemplificações comportamentais, culturais e sociais. É criador
também destes mesmos caracteres, visto que a virtualidade permite uma
soltura, uma maneira mais aberta de interação entre os indivíduos,
resguardados pelo anonimato que as máquinas oferecem. Por essa abertura, o
indivíduo também se sente mais à vontade para representar-se de maneira
diferente ou melhorada; para construir ali uma imagem ou imagens suas, bem
representadas pelos perfis nas Redes Sociais. Essa diversidade caracteriza
não só um "novo espaço de sociabilidade" humana, como colocou a
pesquisadora, mas também um ambiente criador de novas formas de
sociabilidade.
15 O termo ciberespaço foi utilizado pela primeira vez pelo romancista William Gibson no
romance de ficção científica Neuromancer, mas o seu sentido mais específico relacionado às
novas tecnologias pode ser encontrado em Pierre Lévy, segundo o qual 'o ciberespaço
(também chamado de rede) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial
dos computadores. O termo especifica não somente a infraestrutura material da comunicação
digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres
humanos que navegam e alimentam esse universo' (LÉVY, 1999, p. 17 apud ROCHA, 2005, p.
2).
23
Os computadores podem transformar, em alguns sentidos, o
modo como a pesquisa qualitativa vem sendo feita e, até
mesmo, sugerir novas pesquisas sobre o próprio uso da
Internet como fonte de dados ou como meio de relacionamento
entre grupos (AMARAL, S/D).
Os motivos para a utilização da Internet como fonte de dados expostos
pela pesquisadora Rita Amaral são, precisamente, nossa maior justificativa, a
base para a construção de todo o nosso projeto. E, desde o início dos anos
2000, a tendência tem aumentado entre os Antropólogos. Quais os benefícios
de se pesquisar através da Rede Mundial de Computadores? Atualmente,
podemos dizer que se resume ao fato de estar no Campo de maneira diferente,
talvez mais rápida que nos moldes tradicionais. O acesso aos computadores se
tornou bem mais fácil e menos custoso e a pesquisa pode ser feita de qualquer
lugar onde se possa conectá-lo à Internet. Além disso, o contato com os
informantes também pode ser feito mais rapidamente; basta apenas que
estejam conectados também. Claro que existem problemas, como a não
certificação de que tal pessoa tenha, de fato, visto o que escrevemos para ela,
como na fase da aplicação de questionários, se este for o caso. Mas esta
dificuldade é facilmente contornada quando da arguição direta, em outra
ocasião, ou a substituição de tal dificultador por outra pessoa que esteja
disposta a colaborar. Isto não é diferente do campo físico.
A Internet se consolidou como campo de pesquisa etnográfica e como
responsável maior pela criação ou modificação de certos comportamentos.
Tem sido largamente utilizada na pesquisa antropológica exatamente por
possibilitar a exposição, de maneira direcionada e centrada, de opiniões sobre
os mais diversos assuntos. Outra contribuição para a solidificação de sua
utilização vem da facilidade em checar as fontes do relato etnográfico.
O uso do Ciberespaço não ameaça o relato etnográfico; são ambientes
paralelos e que podem ser utilizados como complementares a pesquisa. O
olhar do Antropólogo é indispensável: é ele quem vai decodificar os
comportamentos mostrados naquele local virtual. Sua capacidade de
distanciamento e análise é que ficam mais evidentes com a possibilidade
imediata de checagem de suas fontes.
24
Foi exatamente sobre estas facilidades que Rita Amaral discorreu; suas
ideias também foram utilizadas por Eliane Portes Vargas (2008) ao falar sobre
a questão da adoção por casais com problemas reprodutivos. Outra questão
bastante discutida sobre a netnografia, termo cunhado por um grupo de
pesquisadores norte-americanos, Bishop, Star, Neumann, Ignacio, Sandusky &
Schatz, em 1995, (apud Pieniz, 2009), é a possibilidade de invisibilidade do
etnógrafo. Este pode escolher manter-se anônimo e, neste caso, não interferirá
no campo, uma das premissas da etnografia tradicional. A este anonimato deuse o nome de lurking (Kozinets, 2002), termo em inglês que, de acordo com o
dicionário Collins Cobuild Advanced Dictonary (2009, p. 937-938), significa
estar em um local sem ser visto e geralmente envolve más intenções.
As intenções do etnógrafo que escolhe manter-se invisível não são por
nós postas em dúvida; esta mostrou-se uma forma de aproximação bastante
segura e eficaz. Aproveitando-se do escudo da invisibilidade, pode-se colher
uma significativa quantidade de material que possibilitará a aproximação mais
completa quando escolher revelar sua personalidade de pesquisador, pois a
ética manda que o faça, em algum momento, para que os informantes possam
autorizar a reprodução de suas impressões. O pesquisador poderá, assim,
apenas analisar o discurso de seu público alvo para estruturar estratégias de
aproximação. Mas, da mesma maneira que no campo real, ele poderá ser ativo
desde o início, recorrendo à observação participante, método enaltecido por
Kozinets (2002).
A netnografia, assim, é um modo de trabalho que possui variantes
construídas com o desenvolvimento das tecnologias virtuais, sendo vitais aos
pesquisadores, sobretudo, se seu tema for diretamente ligado à virtualidade,
como é o caso deste trabalho.
Metodologia e Instrumentos utilizados
Nosso trabalho é ligado à netnografia, onde os informantes se
expressam, primeiramente, através de perfis, que funcionam como extensões
do self daquelas pessoas ou até mesmo um segundo self, onde elas
demonstram apenas aquelas características pessoais de que tem consciência,
25
muitas vezes selecionando-as, e, em segundo lugar, através de comentários
em uma comunidade do site de relacionamentos Orkut.
Para fazer parte do universo pesquisado em nossa netnografia e para ter
acesso a este universo, é necessário ao pesquisador possuir um perfil na Rede
Social, para depois fazer parte das comunidades que se quer trabalhar; no
caso desta dissertação, a Profiles de Gente Morta (ou PGM) e a Velórios
Virtuais. Em campo, neste estudo, a primeira técnica utilizada foi a da
observação, depois a observação participante. Em um primeiro estágio, o
comportamento dos integrantes da PGM foi percebido, caracterizado e
selecionado. Após essa fase, começaram as aproximações com os integrantes
de forma geral, através da criação de enquetes e da chamada para a
participação nelas. Em seguida, partimos para uma abordagem mais direta,
focada em determinados integrantes que já haviam se mostrado dispostos a
contribuir em outras ocasiões. Nestes casos, a entrevista fluiu, ainda sem
direcionamentos, como forma de primeiro contato, através de ferramentas de
bate-papo e e-mails. É necessário afirmarmos que a coleta de dados se deu,
também e de maneira fundamental, através da leitura dos comentários dos
usuários das comunidades em questão nos fóruns destinados à visualização do
Velório Virtual. As impressões lá deixadas foram coletadas através do printscreen16.
A veracidade das informações repassadas por estas pessoas que
podem não ser aquilo que clamam pode ser questionada; mas, para nosso
estudo, dados pessoais deste tipo não são tão relevantes: o que importa é que
estas pessoas interagem, sim, nas comunidades (o que constitui um lugar) e lá
debatem questões sobre a morte e o morrer e comentam as peculiaridades dos
velórios que estão sendo transmitidos, em tempo real, pelas empresas
funerárias que oferecem este serviço. A realidade dos nossos informantes é
esta, e ela está localizada no Ciberespaço.
DaMatta (1997, p. 123) afirma que falar de maneira aberta sobre a morte
é caracterizado como um comportamento moderno, de destemor perante a
vida, e que "discursar sobre os mortos, porém, revela o exato oposto, sendo
algo sentimental e mórbido". Partindo desta afirmação, trataremos aqui de
Técnica que permite transformar o que se está vendo na tela do computador em um arquivo
de imagem.
16
26
como a abordagem do tema da morte acontece na Internet, em primeiro lugar,
a partir da construção dos perfis nas Redes Sociais, tendo em mente os perfis,
especificamente os aqui trabalhados, como representantes do "eu".
O Cadáver Ideal – o perfil como representação do eu
Segundo Contrera (2002, p. 13-14), criamos formas mágicas de lidar
com a realidade quando esta não mais nos deleita e projetamos nossos
temores e anseios em signos estereotipados, refletindo o fenômeno irracional e
primitivo da magia ou da edificação dos mitos. Desta maneira, diante da crise,
tais fenômenos podem restituir o equilíbrio pessoal. Assim, notamos que os
mitos e as mitologias antigas e contemporâneas têm uma função primordial no
fantástico coletivo, entre outras coisas, porque espantam o medo da morte. E
existiria um assunto tão extremado, radical, preocupante quanto a morte?
Talvez, só a própria vida, as paixões, percepções, emoções, as afeições mais
primorosas, mesmo que libadas através da virtualidade – mas todos esses
sentimentos e impressões partem do corpo.
No que concerne, particularmente, à transferência do corpo para as
mídias, Nunes (2001), em sua obra sobre a evolução dos memes17 de afeto,
nos fala que:
A fome insaciável remete-se à melancolia e à angústia infinita,
por sua vez, contrapartida psíquica da fragilidade biológica com
a qual o ser humano chega ao mundo, se lembrarmos de Freud
(LAPLANCHE e PONTALIS, 1988). Aqui, o sentido imputado à
angústia aproxima-se daquele apresentado no mito ao enfatizar
a prematuridade dos homens nus, sem qualidades. No corpo, a
cultura. A fragilidade biológica e a prematuridade, fruto da
escolha equivocada e do esquecimento epimetéicos. Na mídia,
o corpo. Mais uma vez, o rumor como furo, marca corporal do
impresso, enreda sentidos plurais (NUNES, 2001, p.140).
O sentido da transferência do corpo para o espaço virtualizado das
mídias pode ser desvelado se observarmos o interesse ontológico que
desenvolvemos por aquilo que está se renovando. Notamos que as nossas
17
Unidades mínimas da memória.
27
próprias
relações
interpessoais
estão
irremediavelmente
ligadas
às
experiências da morte e do renascimento, daí o entusiasmo diante da
possibilidade
e facilidade
relacionamentos,
e
virtual de
também
o
encontrarmos
hábito
de
novas
aceitar
pessoas
e
naturalmente
o
desaparecimento de um amigo virtual: temos a consciência de que tudo isso,
de algum modo, já se encontra previsto no programa da vida digital.
O êxtase da comunicação interativa advém do poder de acessar
informações diversas e, a partir daí, nos sentimos livres para discutir de tudo,
inclusive a morte, que, para muitos, indica apenas o fim de um ciclo e o início
de uma nova jornada. O interesse pelo assunto encontra analogias com as
formas de resgate histórico, cultural. E o Orkut (e o ciberespaço) é, também,
um dispositivo que nos leva a refletir sobre outra forma de se recontar a
história, resgatar os mortos, as corporeidades, as reminiscências e tudo aquilo
que a história oficial, letrada, iluminista – de algum modo – deixou à sombra.
Essa facilidade de transferência e integração “mágica” no mundo virtual
beneficia a troca de experiências e informações, contribuindo também para
formação e identificação de novos grupos sociais, nascidos exclusivamente no
campo virtual.
Com o surgimento e popularização das Redes Sociais no Brasil vimos
surgir outro fenômeno que se encaixa nestas novas configurações de formação
e identificação de novos grupos sociais oriundos da virtualidade: o da listagem
e visualização não somente dos corpos de pessoas mortas, mas também de
seus perfis. Estes perfis são oriundos das próprias Redes Sociais, como é o
caso do Orkut. Para a comunicóloga Paula Sibilia (2008), a exposição do
individuo na Internet é sempre interessante para os outros, num “festival de
vidas privadas”:
Ao longo da última década, a rede mundial de computadores
tem dado à luz um amplo leque de práticas que poderíamos
denominar ‘confessionais’. Milhões de usuários de todo o
planeta – gente ‘comum’, precisamente como eu ou você – tem
se apropriado das diversas ferramentas disponíveis on-line,
que não cessam de surgir e se expandir, e as utilizam para
expor publicamente a sua intimidade. Gerou-se, assim, um
verdadeiro festival de ‘vidas privadas’, que se oferecem
despudoradamente aos olhares do mundo inteiro. As
confissões diárias de você, eu e todos nós estão aí, em
palavras e imagens, à disposição de quem quiser bisbilhotá28
las; basta apenas um clique do mouse. E, de fato, tanto você
como eu e todos nós costumamos dar esse clique (SIBILIA,
2008, p. 27).
Portanto, o Orkut é a representação maior deste movimento de
publicitação voluntária da vida. Para participar, é necessário criar um perfil
onde são colocadas as informações desejadas: nome, sexo, idade, cidade
onde reside, relacionamento, fotos, vídeos e o que mais o usuário desejar
disponibilizar. O conceito do perfil vai além: ele é, muitas vezes, aquilo que eu
gostaria de ser. Mas, após a morte, este perfil torna-se uma sombra daquela
pessoa que, um dia, sentou ao computador e passou para aquele banco de
dados as impressões que tinha de si mesmo. Tudo o que ficou ali foi uma
impressão porque não é possível descrever-se, definir-se de maneira alguma
através de caracteres ou imagens, muitas vezes posadas e não espontâneas.
O perfil é uma sombra, sombra que toma vida independentemente da
vontade de seu genitor, como no conto de Hans Christian Andersen (1847,
apud CALVINO, 2004), onde, numa noite quente, a sombra de um jovem bemsucedido é projetada para dentro da casa da Poesia e de lá sai como homem.
A sombra visita seu antigo dono, agora bem sucedido, e, aos poucos, este se
torna servo daquele. Pois é exatamente através dessa sombra que nós
projetamos que seremos conhecidos no mundo virtual e, depois da nossa
partida, que serão feitos julgamentos de valor.
Para Durkheim (1970), o julgamento de valor expressa não o valor que
determinadas coisas têm em relação a um sujeito consciente, mas a maneira
com que tal fato é enxergado pelo indivíduo, utilizando-se de seu arcabouço
intelectual. Quando atribuímos valores a seres ou objetos, exprimimos o valor
que estes possuem, para mim, mesmo que eles não me sejam importantes. O
tipo de opinião atribuída não importa; se contra ou a favor, mas seu valor não
será considerado menor que aquele atribuído na ocasião. Em contraponto,
Durkheim (1970) também classifica o que é o julgamento de realidade. Para
ele, é a maneira com que enunciamos algo. Nossas opiniões ou julgamentos,
neste caso, correspondem à maneira que nos comportamos em face de certos
objetos e situações. Isto exprime nossos gostos e primazias. Exatamente estes
gostos e primazias é que são considerados fatos por Durkheim; por este
motivo, os julgamentos de realidade funcionam ao contrário dos de valor: não
29
atribuem valor ao objeto em questão, mas mostram os estados determinados
do sujeito.
Julgamentos de valor e de realidade se encontram nos discursos
proferidos por um sujeito, já que o julgamento de realidade é uma avaliação
sobre algo real, um fato ou um objeto. Ele é uma expressão do
empoderamento do conhecimento da realidade. Sua formulação tem a
finalidade de informar, posto que é uma verificação objetiva. De maneira
contrária, o julgamento de valor é algo subjetivo: valores são visões pessoais e
diferenciadas de cultura para cultura. Valores e definições do que é tomado
como Belo, Bom e Justo, por exemplo, são diferentes também entre os
indivíduos pertencentes a uma mesma cultura, abrindo possibilidades
praticamente infinitas. Estes representam um posicionamento, uma opinião
frente à realidade. Desta forma, todo individuo é capaz de ajuizar um fato
através do julgamento de valor ou de realidade.
Assim, ao visitar o perfil de um falecido e buscarmos elementos que nos
ofereçam bases para a identificação, estamos buscando, também, elementos
para que possamos emitir julgamentos de valor. Estamos interpretando as
fotos, os vídeos e as postagens daquela pessoa. Se possui os mesmos gostos,
as mesmas inclinações culturais. Ou o contrário. Desta mesma forma,
podemos também emitir conclusões valorativas que possam justificar, até, a
morte daquela pessoa. Se um indivíduo morreu em um acidente de carro e
possui em seu perfil uma foto com alguma bebida alcoólica em mãos, ou fotos
que indiquem que frequentava muitas festas, algumas pessoas afirmam:
"morreu porque era imprudente, devia beber e dirigir". As informações
colocadas no perfil por cada indivíduo são coletadas, após sua morte, por
aqueles que o visitam. Como o morto não pode mais se defender, sua vida,
retratada naquele espaço, torna-se objeto de elucubrações e especulações,
mesmo que não sejam verdadeiras.
É por causa da maneira com que o perfil é construído que o chamamos
de Cadáver Ideal. O ideal aqui vem do verbo idealizar, que, de acordo com o
dicionário Aurélio Buarque de Holanda da Língua Portuguesa, significa “tornar
ideal, fantasiar, projetar, planejar, imaginar-se de modo ideal”. (HOLANDA,
2001, p. 371). Já que a construção do perfil é de inteira responsabilidade do
30
seu criador, nada mais justo que ele seja uma representação ideal desta
pessoa. E, após sua morte, o que restará será essa imagem idealizada.
Através desta projeção do que é um perfil é que se torna possível chegar
a membro de qualquer comunidade, que são fóruns de discussão sobre todo e
qualquer assunto, criadas pelos próprios usuários do Orkut. Deste modo, não é
de se espantar que encontremos comunidades que tencionam discutir assuntos
os mais variados, dentre eles a morte.
Uma vez disponibilizado o perfil de alguém morto para visualização, os
internautas o visitam na promessa de ver aquele que morreu enquanto ele
ainda vivia. Seriam estes perfis, então, Fantasmas Virtuais das pessoas que já
partiram? Se levarmos em consideração que o perfil é uma representação de
seu usuário, um signo que o simula com o benefício de mostrar somente o que
ele próprio caracteriza como importante de ser mostrado, poderíamos atribuir
esta nomenclatura a ele.
O Perfil como mantenedor da memória
Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa;
Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende
uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do
amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e
podia compará-las na lembrança aos veios de um livro
encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas
da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da
batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples;
cada imagem visual estava ligada às sensações musculares,
térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os
entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia
inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já
tinha requerido um dia inteiro. Disse-me: "Mais recordações
tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde
que o mundo é mundo". E também: "Meus sonhos são como a
vigília de vocês". E, igualmente, próximo do amanhecer: "Minha
memória, senhor, é como despejadouro de lixos". Uma
circunferência num quadro-negro, um triângulo retângulo, um
losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo
acontecia a Irineu com as emaranhadas crinas de um potro,
com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutável e
com a inumerável cinza, com os muitos rostos de um morto
num longo velório. Não sei quantas estrelas via no céu
(BORGES, 2007, p. 543).
31
Neste breve conto de Jorge Luis Borges - Funes, o memorioso, o
personagem principal é um rapaz com uma habilidade rara: a memória
extraordinária. Porém, incapaz de articulá-la, era considerado inferior pelos
seus concidadãos. O saber enciclopédico de Funes abarcava desde obras
literárias completas, fluência em diversos idiomas até detalhes ínfimos sobre
a disposição do céu em determinado dia e hora. A memória de Funes era
formidável.
A palavra Memória possui duas raízes: uma grega, mnemis, e outra
latina, memoria, advinda de memor, ou “aquele que se lembra18”. Em ambas
etimologias, designa a permanência de uma lembrança. Para os gregos, a
memória correspondia à "deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem
as artes e a história" (CHAUI, 2000; 138). Marilena Chauí acrescenta:
"memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e
guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva
aquilo que se foi e não retornará jamais" (p. 138). Com a narração da lenda de
Simônides, Chauí exemplifica as propriedades da memória na prática.
Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos a
fazer um poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema
em duas partes: na primeira, louvava o rei e, na segunda, os
deuses Castor e Pólux. O rei ofereceu um banquete no qual
Simônides leu o poema e pediu o pagamento. Como resposta,
o rei lhe disse que, como o poema também estava dedicado
aos deuses, ele pagaria metade e que Simônides fosse pedir a
outra metade a Castor e Pólux. Pouco depois, um mensageiro
aproximou-se de Simônides dizendo-lhe que dois jovens o
procuravam do lado de fora do palácio. Simônides saiu para
encontrá-los, mas não encontrou ninguém. Enquanto estava no
jardim, o palácio desabou e todos morreram. Castor e Pólux, os
dois jovens que fizeram Simônides sair do palácio, salvando o
poeta, pagaram o poema. As famílias dos demais convidados
desesperaram-se porque não conseguiam reconhecer seus
mortos. Simônides, porém, lembrava-se dos lugares e das
roupas de cada um e pôde ajudar na identificação dos mortos
(CHAUÍ, 2000; 160).
A memória ajudou Simônides a obter a simpatia dos deuses que, após
castigarem o rei injusto, colocaram-no como único capaz de reconhecer os
mortos. A memória e a morte estão diretamente ligadas, visto que a ideia de
18
Da raiz Indo-Europeia MEN-, pensar, de onde vem a palavra mente. Disponível em:
http://origemdapalavra.com.br/palavras/memoria/. Acesso em 22/05/2012.
32
esquecimento é uma das que mais atormenta os vivos. Questionam-se se
serão lembrados pelos seus, se sua passagem neste mundo será notada, bem
como sua ausência. Elias (2001, p. 41), em seu estudo sobre os moribundos,
afirmou que "o medo de morrer é sem dúvida também um medo de perda e
destruição daquilo que os próprios moribundos consideram significativo".
Caberia a nós, os vivos, interpretar as mensagens deixadas pelos
mortos, dar-lhes significação ou não, e isto aconteceria não só pelas narrativas
do que aquele indivíduo fez em vida - coisa que pode se perder na memória mas, principalmente, pelas mensagens nos túmulos, os epitáfios. Muitas vezes,
essas pedras, utilizadas exatamente por sua propriedade quase imperecível,
lembram-nos de que tal pessoa foi um pai, uma mãe, um avô, um filho, um
irmão, e eles mesmos nos chamam, através destas palavras, para contemplar
sobre a vida. O epitáfio é uma epígrafe, uma inscrição póstuma ou um elogio
póstumo. (HOUAISS, 2008, p. 350). Elias (2001) afirma que é através destas
mensagens, destes chamados, que os mortos mantém sua existência. É assim
que atingem a memória dos vivos e lá podem permanecer, por mais um pouco,
ligados à vida. Afinal, como reza a sabedoria popular, "quem não é visto não é
lembrado". Neste caso do epitáfio, quem não é visto, lido ou visitado no
cemitério.
No entanto, o epitáfio está localizado no túmulo, e o túmulo, no
cemitério. Sem a ida ao cemitério, a mensagem dos mortos se faz inútil. Se não
há quem a veja, a mensagem e, por conseguinte, a memória daquela pessoa
que se foi está fatalmente dependente de que os seus, sua família, amigos,
preservem a informação de que ele viveu e realizou feitos. Esta preservação
exclusivamente alocada na memória alheia está condenada ao esquecimento.
Pois a quantidade de informação que hoje recebemos faz com que o estoque
de lembranças se torne cada vez mais renovável ou, então, armazenado
artificialmente nos computadores.
Ao aumentarmos a memória, propriedade antes exclusivamente humana
no tocante à quantidade de detalhes, com o auxílio do computador, em um
ambiente virtual, rapidamente chegamos a uma possível solução para a sua
perda. O computador, no entanto, não substitui a memória - ele a auxilia.
Necessitamos lembrar, de início, onde colocamos determinado arquivo, em
33
qual pasta, com qual nome. O mesmo acontece com os mortos e com os seus
perfis.
Em primeiro lugar, nos deparamos com a questão do nome. Para
acessar o perfil de alguém em uma rede social é necessário, primeiro, ter seu
nome em mente, lembrá-lo e, em seguida, digitá-lo. Fazia parte das proibições
após a morte de alguém chamar o defunto pelo nome. Pois, ao fazer isso,
acreditava-se que se estava realmente convocando o morto para voltar ao meio
dos vivos (Cascudo, 1958). Ligamos aqui o perfil à ideia do epitáfio, uma pedra
tumular onde é permitido ao morto, em vida, dizer tudo aquilo que deseja, tudo
que pensou em outros momentos, quando não cogitava a morte ou quando ela
ainda era um pensamento distante19. O epitáfio construído como perfil é um
aglomerado de sentimentos e sensações que permitem aos vivos identificar-se
de maneira ainda mais próxima como o falecido, através de fotos, vídeos,
músicas, e funciona melhor ainda que aqueles dizeres clássicos que
deliberadamente chamam a atenção do passante no cemitério, como é o caso
de um dos monumentos aos mortos na II Guerra Mundial no Père-Lachaise, em
Paris: "Você que passa, lembre-se daqueles que combateram por sua pátria,
pela liberdade e pela dignidade do homem. As cinzas daqueles que morreram
no campo (de concentração - Dachau), estão depostas neste memorial20".
E, exatamente por ter sido construído em vida, o perfil pode, muitas
vezes, alcançar o status de relíquia, ser tomado como representação da
pessoa que se foi e, em consequência disso, como ferramenta para a
manutenção de sua memória. Uma ferramenta que pode, ainda, ser retomada
por um parente que a administrará, mantendo, por ainda mais tempo, a
memória daquela pessoa que se foi.
Amigos, na maioria, acham estranho quando isso acontece. Sentem-se
incomodados com a "presença", mesmo virtual, de alguém que se foi. Uma
informante conta da experiência não com um perfil de Rede Social, mas de um
programa de bate papo, o Messenger:
19
A palavra Epitáfio vem do grego, significando "sobre a tumba", e é geralmente composto por
pequenas frases ou versos pensados anteriormente pelo próprio morto ou por sua família após
sua morte.
20
Inscrição observada in loco pela pesquisadora em junho de 2010.
34
Eu estava em casa. No computador, conversava com amigos
pelo MSN. De repente, me sobe a janelinha informando:
"Fulano está online". Tive um susto enorme! Há uma semana,
Fulano tinha morrido; como era possível que estivesse
conectado à Internet? Na verdade, era a irmã dele que, na
posse de sua senha, estava usando exatamente o MSN dele
para avisar da realização da Missa de Sétimo Dia. Nunca vi
nada mais bizarro. Foi assustador! Depois, todo mundo
reclamou com ela do susto. Acho que não foi de bom tom21.
Neste relato, vemos como o perfil de um indivíduo em uma Rede Social
assume a identidade deste mesmo indivíduo. Na ocasião da morte do jovem,
seus amigos passaram a considerar morto também sua representação digital,
daí o susto quando viu que este estava novamente ativo. Somente após a
explicação de que a irmã do falecido estava utilizando o perfil dele no bate
papo para avisar aos amigos da Missa de Sétimo Dia que o fato do falecido
estar online foi esclarecido, mas tomado como atitude de mau gosto. Neste
caso, a irmã do jovem possuía sua senha e pode acessar sua conta,
assumindo a administração do seu perfil.
Mas, como proceder se ninguém sabe a senha que o falecido utilizava
para fazer o login em seu e-mail ou perfil em Redes Sociais? Existem
possibilidades que vão desde serviços que disparam e-mails com as senhas
para pessoas escolhidas anteriormente, após comprovação da morte22, até as
opções fornecidas pelos sites administrados pelo Google. É possível também
recuperar senhas, como é o caso do Gmail23, ou de extinguir um perfil, como é
o procedimento do Orkut. Em todos os casos, a comprovação documental é
obrigatória, sob a pena de responder por crime de perjúrio. Para solicitar a
remoção, é necessário o preenchimento de um formulário específico, além da
comprovação documental.
Já o Facebook e o Twitter dispõem de uma ferramenta que permite
transformar o perfil do falecido em um memorial, local que intenciona
proporcionar aos amigos e familiares o compartilhamento de memórias
relacionadas ao morto. Um perfil memorial torna-se privado, podendo ser
visualizado apenas pelos contatos firmados antes da morte; informações de
21
Depoimento coletado através do MSN com uma jovem de 23 anos de João Pessoa. O fato
ocorreu em 2006.
22
Como o LegacyLocker - www.legacylocker.com. Acesso em 20.10.2011.
23
O prazo para verificação da comprovação documental e fornecimento da senha é de trinta
dias.
35
contato, atualizações e login são removidas. O perfil torna-se um espaço
impossível de ser administrado, isto é: não existe controle sob as informações
que os contatos postarão lá e as informações que permanecem são aquelas
postadas pelo seu proprietário antes de sua morte.
Este perfil transformado em memorial é a expressão máxima da
capacidade da virtualidade de condensar, de perpetuar a existência de um
indivíduo através das informações que ele compartilhou na rede social em vida.
É a mutação completa do perfil em epitáfio, em túmulo.
36
Capítulo 2 - Virtualmente observando quem virtualmente observa:
Netnografia da comunidade “Perfil de Gente Morta” do Orkut
No dia 24 de abril de 2012, chegava ao fim a maior comunidade
brasileira do site de relacionamentos Orkut sobre a morte. Após oito anos de
funcionamento frenético, oitenta mil integrantes deixaram de poder contribuir
com as postagens da PGM, ou Profiles de Gente Morta. Em seus tópicos, eram
listados os usuários do Orkut que haviam falecido, fornecendo o link para o
perfil de cada um deles, a causa da morte e, se possível, uma notícia que
corroborasse o acontecimento. Desde 2004, os participantes debatiam, após
visitar estes perfis de pessoas mortas, sobre a vida, sobre sua fragilidade e,
claro, sobre a própria morte. Em casos de suicídio, bastante comuns e
reportados com incrível frequência por amigos e familiares das vítimas, eram
questões como problemas psicológicos, vontade de viver e debates religiosos
que sempre vinham à tona.
A PGM, superficialmente, funcionava como qualquer outra comunidade
do Orkut. Possuía um proprietário, isto é, a pessoa responsável pela sua
criação, o paulistano Guilherme Dorta. Em 28 de abril de 200824, foi
implementada
a
possibilidade
de
adicionar
dois
coproprietários
nas
comunidades, para auxiliar seu funcionamento e evitar o roubo por hackers. A
PGM não adotou esta prática, mas, sim, a dos moderadores, que passaram a
ser três: “Silvia”, “Fabiana” e “Juli”25.
O ambiente da PGM, em praticamente tudo, é perfeitamente idêntico a
outros do mesmo tipo: uma comunidade virtual composta por pessoas que
dividem os mesmos interesses e lá discutem sobre os vários desdobramentos
possíveis desse assunto. Só que, neste caso o que vemos é um desfile
constante de maneiras de morrer. Acidente automobilístico, assassinato,
http://googlediscovery.com/2010/01/24/orkut-comemora-6-anos-de-vida/. Acesso em
10.12.2011.
25
Colocamos os nomes entre aspas, pois não foi possível verificar se eram realmente os nomes
das pessoas que possuíam tais perfis e auxiliavam na administração da PGM. Foram
realizadas várias tentativas de contato, mas não obtivemos resposta. Estes nomes, juntamente
com os links para seus respectivos perfis, estavam listados na página principal da comunidade,
juntamente com o de Guilherme, que possuía um perfil exclusivo para a titularidade da
comunidade, intitulado “Dorta Moderador” e outro para a moderação, chamado apenas de
“Guilherme”.
24
37
suicídio e doenças são os principais causadores das mortes daqueles
indivíduos que 99% dos integrantes da comunidade desconhecem. Não foram
apresentados em vida, não compartilharam momentos. Apenas um deles
morreu e o outro, participante desta comunidade, placidamente colocou seu
nome junto ao de tantos outros que se foram, desde o ano de 2004, e estavam
catalogados lá.
Dificilmente poderemos encontrar, hoje, um internauta brasileiro que
nunca tenha entrado no Orkut. Por razões pessoais ou aversão a modismos,
podemos elencar quem tenha se recusado a manter um perfil no site de
relacionamentos, mas é praticamente impossível que nunca tenha visto sequer
sua interface. Com a proposta de estreitar laços de amizade e criar novos
amigos através da interação por meio de recados, fotos e vídeos, além da
discussão de assuntos variados nas chamadas “comunidades”, a popularidade
do site no Brasil progrediu geometricamente entre janeiro de 200426 e agosto
de
201027.
As
comunidades,
fóruns
de
discussão
que
contemplam
praticamente qualquer assunto, são tidas, até hoje, como maior atração da
rede social. É possível abordar desde atividades esportivas, culinária e filmes a
preferências sexuais. Por esta maleabilidade, o Orkut já foi alvo de processos
judiciais envolvendo incitação à pedofilia, pirataria e discriminação racial28.
Ora, se a gama de discussão de assuntos é tão extensa que
contemplava até a ilegalidade, nada mais justo que possibilitar a abordagem de
26
O Orkut foi criado em 24 de janeiro de 2004 e, desde então, bastante acessado pelo Brasil e
pela Índia. À época, para participar, era necessário receber um convite, em inglês. O próprio
site só funcionava na língua inglesa e só ganhou uma versão em português em maio de 2005,
o que contribuiu para o aumento no número de usuários, bem como a possibilidade de adesão
apenas através de um cadastro, abolindo o convite.
27
Quando o Facebook, de acordo com uma pesquisa do Ibope Nielsen Online, contabilizou o
maior número de usuários únicos – 30,9 milhões. Grande parte da fama do Facebook pode ser
atribuída ao filme que fala sobre sua criação – lançado no Brasil em dezembro de 2010. Dados
do Ibope disponíveis em http://bit.ly/n6FBHP. Acesso em 23.12. 2011.
28
Um homem, que não teve a identidade revelada, foi condenado, em 2009, pela Justiça
Federal de Uberaba, a oito anos de reclusão por distribuir fotos, vídeos e outros materiais
pornográficos envolvendo crianças através do Orkut. Disponível em: http://bit.ly/yKRZm, acesso
em 23.12.2011. Já o caso de pirataria é o da comunidade intitulada “Discografias”, que
disponibilizava álbuns completos de diversos artistas nacionais e internacionais de maneira
gratuita. Contava com mais de 900 mil usuários cadastrados e o acesso regular de mais de um
milhão. Foi fechada em 16 de março de 2009 após intensa disputa judicial. Disponível em:
http://bit.ly/f0u7, acesso em 23.12.2011. No âmbito do racismo, em 2006, o então estudante de
Letras da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Valle Silveira Mello, foi denunciado pelo
Ministério Público do Distrito Federal por chamar negros de “macacos burros,
subdesenvolvidos, urubus, ladrões” e outros xingamentos, em uma comunidade do Orkut.
Disponível em: http://bit.ly/y1LHY9, acesso em 23.12.2011.
38
um bastante nobre: a morte. Portanto, no final do mesmo ano de criação do
Orkut, surgiu a comunidade intitulada Profiles de Gente Morta, também
conhecida por PGM, no dia 23 de dezembro.
A PGM, alvo desta netnografia é um espaço de discussão e constante
rememoração da morte, mas também é um berço e ferramenta de
popularização para abordagens diferenciadas no tratamento do final da vida.
Uma prática que ainda se encontra na vanguarda dos serviços funerários, o
Velório Virtual, foi popularizada por um tópico criado em suas dependências,
até se tornar uma comunidade independente. É por causa deste fato que a
PGM é tão importante para nosso estudo.
Bizarra, mórbida, inútil, curiosa: essas palavras e muitas outras já foram
usadas para tentar caracterizá-la, e rapidamente ganhou fama fora dos
domínios do Orkut. Personagem principal de matérias em jornais29 e revistas
de circulação nacional30, citada em programas de grande audiência31, sites e
blogs com editorias de tecnologia32 e aludida até por familiares33 de pessoas
29
Correio Braziliense de 23/06/2010. “Os mortos na Web”. Disponível em: http://bit.ly/yQKEnh,
acesso em 23.12.2011. Folha de São Paulo Online de 23/03/2008. “Mortos ganham
homenagem nas páginas do Orkut”. Disponível em: http://bit.ly/jq0z1Y, acesso em 23.12.2011.
No entanto, a jornalista responsável pela matéria não coloca o nome da PGM no texto, apenas
refere-se a ela na passagem: “Uma pesquisa simples no Orkut com a palavra "morte" aponta
cerca de mil comunidades relacionadas ao tema. A mais popular em português supera os 40
mil associados. O objetivo da tal comunidade é abrigar perfis do Orkut de pessoas que
morreram”. O jornal O Norte, de circulação local, também já colocou a PGM em pauta em
28/07/2010: “Luto compartilhado na Rede”. Disponível em: http://bit.ly/yorbdI, acesso em
23.12.2011.
30
A Revista TPM de outubro de 2005 fala de comunidades com o objetivo semelhante ao da
PGM sem, no entanto, citá-la. Disponível em: http://bit.ly/zms63a, acesso em 23.12.2011. Já a
revista Trip de agosto do mesmo ano cita a PGM diretamente. Disponível em:
http://bit.ly/zU8JOb, acesso em 23.12.2011.
31
A então estudante carioca de dezoito anos, Verônica Verone de Paiva, enforcou seu amante,
o empresário Fábio Gabriel Rodrigues, de 33 anos, em um motel do Rio de Janeiro em
16/05/2011. A história repercutiu em todo o país e o perfil da moça no Orkut analisado
minuciosamente. Ao ser descoberto que ela era participante da PGM, a comunidade foi tema
de programas televisivos como o Mais Você, da Rede Globo, do dia 17/05/2011, e, de acordo
com os integrantes da comunidade, também nos programas de Sônia Abrão e José Datena.
Disponível em: http://bit.ly/yfrPhx, acesso em 23.12.2011. O próprio fato da assassina fazer
parte da PGM foi ressaltado por integrantes de uma outra comunidade do Orkut intitulada
“Celebridades de segunda linha”: http://bit.ly/xWLlwT, acesso em 23.12.2011.
32
Como o G1, em 22/06/2009, com a matéria intitulada “Curiosidade de internautas cria ‘vida
após a morte’ nas Redes Sociais”. Disponível em: http://glo.bo/jc8Pi, acesso em 23.12.2011
33
O Blog “Saudades da Fran” foi criado em fevereiro de 2010 por Isabela Deschamps, irmã de
Francine Deschamps, morta em 2009 por overdose. O espaço foi utilizado para transcrever os
relatos de Francine em seu diário durante reabilitação para a desintoxicação e relatos da sua
própria família sobre os acontecimentos que antecederam sua morte. Na postagem do dia
13/08/2010, Isabela comenta ter sido informada por uma jornalista da existência de um tópico
na PGM sobre a morte de sua irmã. Disponível em: http://bit.ly/xQ5ro5, acesso em 23.12.2011.
39
mortas que tiveram seus perfis lá postados, a PGM, durante muito tempo, foi
alvo de constante curiosidade.
No entanto, o Orkut não é mais tão popular como antes34. A maioria dos
usuários cancelou suas contas, muitas comunidades não mais existem ou
estão completamente inativas. Qual o motivo de etnografar uma comunidade
que pertence a uma estrutura aparentemente fadada ao desaparecimento? O
motivo maior reside em fatos palpáveis: o número de participantes desta
comunidade continuou estável, até crescente em certos períodos, até sua
extinção em maio de 2012, por problemas técnicos do próprio Orkut. Enquanto
outras comunidades foram fechadas, a PGM permaneceu forte, com
atualizações de hora em hora. Portanto, nos é extremamente importante
conhecer melhor o funcionamento deste ambiente virtual tão intrigante e
importantíssimo para nossa pesquisa.
O que é a PGM
A PGM foi criada em dezembro de 2004 pelo paulistano Guilherme
Dorta, e reuniu curiosos sobre a morte desde então, contabilizando, até janeiro
de 2012, mais de oitenta mil participantes35. Por conta de seu conteúdo
delicado, a participação necessitava da aprovação de um moderador. Um dos
moderadores é o criador da comunidade, que conta com a ajuda de outras três
pessoas para administrá-la. Os participantes contribuíam ativamente para a
criação e/ou atualização de, em média, 77 tópicos por dia. Entre os dias 18 de
julho e 18 de agosto de 2011, foram computadas mais de 250 adesões36.
Apesar de o objetivo explicitado na descrição da comunidade ser o de
catalogação dos perfis de usuários do Orkut que já falecerem, os assuntos
debatidos abrangem todo o espectro relacionado à morte, correspondendo aos
questionamentos também ali apresentados.
34
Em janeiro de 2012, a quantidade de usuários ativos no Facebook superou a de usuários do
Orkut. Disponível em http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/01/facebook-passa-orkut-evira-maior-rede-social-do-brasil-diz-pesquisa.html. Acesso em 20/01/2012.
35
80.791 em 04/01/2012. Doze dias mais tarde (16/01/2012), a PGM possuía 81.062 membros.
36
Dados coletados durante o referido tempo de observação.
40
De acordo com a descrição da própria comunidade, seu principal
objetivo é a pesquisa e catalogação de perfis de usuários do Orkut que já
faleceram.
Figura 1 - Página inicial da PGM
Na descrição da comunidade se lê:
Essa comunidade é dedicada à pesquisa de profiles (perfil) de
gente que faleceu.
41
Aqui vemos como, de uma hora pra outra, nossa vida acaba e
deixamos tudo para trás, inclusive banalidades como Orkut,
Fotolog, MSN e etc... Banalidades estas que, por vez, podemos
chamar de 'rastros virtuais'.
Mas o que são esses rastros? Seriam eles úteis? Um conforto
para quem fica? Uma imortalidade virtual?
Bom, estamos aí para discutir...
Queremos que você poste o profile de algum conhecido seu
que tenha falecido ou algum profile que você conhece.
Não é permitido brincadeiras de má intenção, bem como falta
de respeito com os mortos.
Deixo claro também que sou contra qualquer tipo de violência e
jamais faço apologia à morte aqui nessa comunidade.
Sem mais, desejo que todos descansem em paz...
Ass.: Guilherme Dorta.
Antes de entrar, leia as regras em: (endereço da postagem na
comunidade PGM Moderação)"
O objetivo principal da comunidade, deste modo, é pesquisar e catalogar
os perfis de usuários do Orkut que já morreram. Por esta característica,
interpretamos a PGM como um “obituário em tempo real” (Martins, 2009, p. 47)
em uma análise realizada em outra ocasião37. O formato ainda não mudou:
apesar das várias mudanças no layout da rede social, ainda possui diretrizes
bem definidas de funcionamento, que abordaremos em outro momento.
Com essa catalogação, a comunidade busca salientar como as
atividades por nós exercidas em vida, em especial aquelas ligadas ao virtual,
ficam para trás após a nossa morte, como o próprio Orkut, Fotolog (blogs para
a postagem exclusiva de imagens) e MSN (aplicativo de bate-papo), e coloca
as informações disponibilizadas através dessas atividades como "rastros
virtuais", questionando-se da sua utilidade após o falecimento. As perguntas
lançadas na descrição da comunidade relacionadas à utilização desses
"rastros" ficam sem resposta, já que é um objetivo secundário descobrir se
37
Trabalho monográfico de conclusão do Curso de Bacharelado em Comunicação Social pela
Universidade Federal da Paraíba, “A morte midiatizada: o caso Eloá, do noticiário na TV à
fabricação de obituários na comunidade Profiles de Gente Morta”, defendido em agosto de
2009.
42
podem servir como conforto para os que ficaram e se podem ser tomados
como componentes de uma "imortalidade virtual".
Em seguida, convoca os participantes a contribuir com a postagem de
perfis de conhecidos que tenham falecido para alimentar o banco de dados da
comunidade e começa a já esboçar algumas regras, como a não aceitação de
"brincadeiras de má intenção", ou seja, as que notadamente podem ser
tomadas como "falta de respeito com os mortos". O moderador finaliza a
descrição salientando que não apoia a violência e que não pretende fazer
apologia à morte com a criação daquele espaço. Deseja que "todos descansem
em paz" e pede que as regras de funcionamento sejam lidas, colocando o link
para elas na comunidade PGM Moderação.
Regras de Funcionamento
Os interessados em ingressar na PGM eram incentivados a ler as regras
antes de confirmar o pedido de adesão. Essas regras estão dispostas,
detalhadamente, em outra comunidade, anexa à PGM, chamada PGM
Moderação:
43
Figura 2 - Página inicial da comunidade PGM Moderação
Na descrição da comunidade, podemos ver:
Comunidade criada para que os membros possam ver o que
anda ocorrendo na moderação da PGM.
TODA pessoa expulsa da comunidade será justificada aqui.
Que sirva de exemplo para que os membros tenham uma boa
conduta dentro da PGM e evitem problemas com a moderação.
Aproveitamos também essa comunidade para passar as regras
da PGM antes mesmo que a pessoa participe da comunidade.
Essa comunidade é fechada, portanto não peça para participar
que o pedido será negado.
Obrigado!
Você já leu as regras da PGM?
Acesse: (endereço para o tópico com as regras)
O objetivo principal da criação da PGM Moderação é mostrar aos
integrantes da PGM o que acontece em suas dependências. Como a
44
comunidade era muito visualizada, discussões e desentendimentos aconteciam
diariamente. Portanto, a moderação viu a necessidade de esclarecer os
motivos das expulsões dos integrantes que não respeitavam as regras. Assim,
todas as expulsões eram detalhadas ali, na PGM Moderação, não só para
esclarecer algumas contendas, mas também para servir "de exemplo para que
os membros tenham uma boa conduta dentro da PGM e evitem problemas com
a moderação". Esta é uma clara demonstração do desejo que a moderação da
comunidade tinha em relação à manutenção de seu bom funcionamento.
Tomemos esta imagem como exemplo:
Figura 3 - Exemplo de justificativa de expulsão
A primeira expulsão da PGM justificada nesta comunidade data de 17 de
agosto de 2008, exatamente a que é mostrada pela imagem acima. O
participante chamado Luis Branco postou uma morte fake, ou seja, uma morte
falsa. Essa expulsão aconteceu quatro dias após a criação da comunidade
PGM Moderação.
Com a criação desta comunidade, também foi possível disponibilizar as
regras da PGM para os que intentavam dela participar. Assim, não poderiam
alegar, depois, que entraram na PGM sem saber do seu funcionamento, posto
que as regras estavam expostas num ambiente externo a ela. Podia-se
consultar as regras da PGM na PGM Moderação antes de enviar o pedido de
participação na primeira.
O espaço da PGM Moderação era exclusivo para os moderadores sem
possibilitar a participação de outras pessoas, que teriam o acesso negado caso
assim intentassem. A descrição da comunidade termina com a disponibilização
do link para as regras da PGM, que abordaremos mais adiante.
45
Cada página do fórum de qualquer comunidade do Orkut exibe 50
tópicos por vez. Assim, como cada postagem da PGM Moderação38
corresponde à justificativa para a exclusão de um integrante, em 15 de agosto
de 2011 a comunidade possuía 23 páginas. Levando em consideração que
nem todas possuem 50 postagens, temos, em média, mil membros expulsos
desde agosto de 2008. A própria criação deste espaço para a exposição das
exclusões da PGM corrobora a organização da comunidade, ancoradas nas
regras exibidas a seguir.
Uma das características mais destacadas da PGM é a sua organização.
A comunidade funciona de acordo com uma série de normas, estipuladas pelo
moderador, conforme vimos e analisamos a seguir. Como são muitas as
postagens diárias, a padronização se faz necessária para o funcionamento
adequado da comunidade:
38
Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=65537209. Acesso em
10.12.2011.
46
Figura 4: Regras da PGM
47
[[[ Regras da PGM ]]]
Por favor, leiam atentamente as nossas regras. Elas são
cumpridas radicalmente lá na PGM e é importante que seja do
conhecimento de todos para que não haja problemas
posteriormente. Segue:
Morte Fake (de mentira) - Proibido e o autor é expulso. Se
alguém ajudar no trote, é expulso também.
Tópicos fora do Assunto (TI) - Permitido. Porém poderão ser
deletados. As chances são grandes. Cerca de 95% desses
tópicos são deletados, pois senão a comunidade ficará cheia
de assuntos variados, deixando os profiles em segundo plano.
Pense bem e use o bom senso antes de postar algum tópico
sem perfil. Mas esteja ciente que ele poderá ser excluído. Se
95% deles são excluídos, há grandes chances do seu ser
também. Quem decide excluir ou não, é a moderação. Não há
como escrever regra para TODO tipo de tópico e também não
há como abrir uma enquete antes de excluir CADA tópico.
Portanto cabe à moderação decidir se será excluído ou não.
Tópicos com Homenagens Póstumas e comunidades de
falecidos - Favor não postar. Será excluído.
Fotos e Vídeos chocantes - Proibido. Não postem nada de
conteúdo pesado, como fotos e vídeos de gente morta e outras
bizarrices. A grande maioria das pessoas não está aqui para
ver isso.
Ofensas - Proibido. Não é tolerado ofensas a outros membros,
aos falecidos, aos familiares e à moderação. Nem mesmo no
chat. Se você for ofendido, não retruque, senão você será
penalizado também. Apenas informe a moderação, coloque o
link e se possível a imagem (printscreen) da ofensa. Aguarde
até que providências sejam tomadas. Cabe à moderação
decidir se É ou NÃO É ofensa. Respeite a atitude da
moderação e tenha paciência. A PGM não é ambiente para
brigas e se você não se sente à vontade com esse tipo de
regra, sinta-se à vontade para se retirar da comunidade.
Bate papo (Chat) - Permitido somente no tópico de chat. Dentro
de tópicos que contenham profiles, mantenha-se no assunto.
Se o papo começar a mudar de rumo, dirija-se ao chat para
evitar problemas.
Falta de Respeito - Proibido e pode causar expulsão.
Qualquer tipo de falta de respeito com os familiares e os
falecidos não é permitido na PGM, dando total abertura para
que a moderação exclua o post e talvez o membro.
Discussões Religiosas e Políticas - Permitida com moderação.
Evite radicalismo e mantenha o respeito ao colocar sua
opinião. Fanáticos que frequentemente arrumam confusão
devido à esse tipo de problema serão banidos.
48
Propaganda - Proibido e pode causar expulsão. É proibido
propaganda de outras comunidades, de produtos, de
empresas, etc...
Julgando um falecido - Permitido com moderação Cuidado para
que o julgamento não falte com respeito, infringindo assim a
regra
sobre
Falta
de
Respeito.
Cabe à moderação dizer se a pessoa passou dos limites ou
não.
Membros causadores de confusão - Membros que
frequentemente causam confusão por algum motivo não são
interessantes para a PGM e poderão ser expulsos.
Fakes - Permitido, desde que não seja nada pornográfico ou
que ofenda diretamente alguém, como fakes com pedofilia,
racismo ou fakes criados para ofender alguém.
Reclamações, Críticas e sugestões - Deve ser feito via scrap
para os moderadores, NUNCA abrir tópicos para isso.
Tópico repetido - Favor comunicar via scrap algum moderador.
Não ficar de bate papo dentro do tópico, pois apesar de ser
repetido, temos o nome de um falecido anexado.
Padronização - Ao postar um tópico, atente-se à padronização
que deve ser como o exemplo abaixo: "† José da Silva †
Acidente; † Maria das Graças † Suicídio; † João Pereira †
Pneumonia". Para fazer o sinal da cruz, segure a tecla ALT
apertando 0 1 3 4 junto. Se não conseguir, pode usar o sinal de
"mais"(+).
[[[[ Observações ]]]]
* Para começar, essa comunidade possui um conteúdo
pesado, onde conversamos sobre morte, assassinatos,
suicídios, doenças, etc... Se você não se sente bem ou não
concorda com esses tipos de assuntos, é aconselhável que
você não entre lá. Respeitamos você, assim como você deve
nos respeitar.
* A comunidade é pública, portanto o proprietário não se
responsabiliza pelo conteúdo postado.
* Pessoas de má fé também podem entrar na comunidade.
Infelizmente não tem como filtrar a entrada de membros, já que
não posso pré-julgar uma pessoa baseado no Perfil.
* As informações dos Profiles são de conteúdo público, sendo
assim estamos livres para ler, copiar e discutir em cima do que
é visto (O próprio Orkut nos alerta isso no cadastramento).
* Pedidos de familiares e de pessoas muito próximas dos
falecidos serão atendidos.
* A PGM não é regida por um "Estatuto de boas condutas",
cheio de leis e regras. Infelizmente não tem como prever todo
tipo de problema que uma comunidade pode ter, portanto o
49
bom senso vem antes de tudo. A moderação não segue
somente as regras escritas nos eventos, portanto, não use os
próprios eventos como argumento para fazer algo que nós (e
outros membros) julguem errado.
* Antes de pedir algo ou reclamar de algo que fez, pense que
se eu abrir exceção para você terei que abrir para os outros.
* A PGM preza muito pela qualidade de seus tópicos e é por
isso que muitos são deletados. Essa é a fórmula da
comunidade e tem dado certo até agora. Não vai mudar. A
democracia está presente na PGM. Lembrem-se que até
mesmo na democracia nós temos leis e, acima de tudo, ética.
Contudo, sei que muita gente não sabe diferenciar democracia
de anarquia. Liberdade de libertinagem. Portanto se preferir
achar que há uma ditadura na PGM, Ok. Mas não use isso
como argumento de defesa.
A rigidez da moderação pode trazer injustiça, mas infelizmente
é impossível ser 100% justo. Não tem como a moderação estar
por dentro de TUDO que acontece na comunidade. Impossível,
por maior que seja o número de moderadores. Portanto,
paciência.
Caso alguém discorde de alguma das regras e/ou pretende não
cumpri-las, faça o favor de se retirar antes de causar problema
para os bons membros.
Agradecemos pela cooperação!39
A moderação da PGM começa pedindo aos interessados em aderir à
comunidade que leiam as regras com bastante atenção, já que "são cumpridas
radicalmente". Isso se faz necessário para evitar problemas e expulsões. A
atitude que configura expulsão sumária é a postagem de morte fake, ou seja:
uma morte de mentira, que não aconteceu. Neste caso, toma-se essa postura
como desmoralizada, tanto do autor da postagem como de qualquer outra
pessoa que contribua para este ato. A pessoa que tem o seu perfil postado na
PGM de maneira errônea está, de fato, viva; portanto, não pertence à
comunidade e o responsável pela postagem é visto como alguém que está ali
para fazer brincadeiras. As brincadeiras não configuram como objetivo da PGM
exatamente pela morte ser tomada como um assunto sério e que merece
respeito; brincar com a morte é tomado como uma atitude desrespeitosa.
39
Disponível em:
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=65537209&tid=5235757002899152661.
Acesso em 12.12.2011.
50
O Tópico Inútil, ou TI, colocado pela moderação também como "Tópicos
fora do Assunto", são permitidos, mas terão uma vida curta e compõem um dos
três tipos de postagem na PGM, além daquele destinado à divulgação da morte
de alguém, junto com os Offs e Chat40 (Bate Papo). Os TIs são Tópicos Inúteis,
conforme descrição da moderação, que podem ter ligação ou não com a
discussão sobre a morte. Esse tipo de tópico geralmente é composto por
piadas, brincadeiras e até acusações contra os participantes da comunidade,
em maioria criados por curiosos ou outras pessoas que são contra a PGM e
logo são deletados pela moderação. Os Offs são tópicos que abordam
assuntos diretamente ligados à discussão sobre a morte. Apesar do alerta de
iminente exclusão expressado pelo moderador nas regras colocadas
anteriormente, o Off pode ter uma longa vida, dependendo da aceitação e da
participação dos integrantes.
Existiam quatro tópicos Off bastante comentados: “Aparição de pessoas
que
já
partiram”,
com
4.359
comentários41
relatando
experiências
sobrenaturais, “Experiência com Psicografia”, com 4.79442, que fala sobre a
modalidade espírita de comunicação com os mortos, a Psicografia, onde um
médium escreve as mensagens ditadas a ele por espíritos desencarnados, e
“Mortes Bizarras”, com 2.420 comentários43, que lista uma série de mortes
relatadas pelos participantes, acontecidas por eventos banais. Mas o tópico Off
vencedor disparado é o “Velórios Virtuais”, com 11.422 comentários44, onde
são disponibilizados links para câmeras de empresas funerárias que
transmitem, ao vivo, os velórios que estão sendo realizados em suas
dependências. Este foi o tópico que originou a comunidade homônima
independente da PGM e que também é alvo de nossa netnografia. Falaremos
mais dela adiante.
40
O chat já foi criado diversas vezes com o intuito de deixar as postagens nos tópicos apenas
para a discussão das mortes e disponibilização de materiais a elas relacionados e evitar que os
participantes falassem de assuntos transversais, o que muitas vezes acontece. O chat da PGM
está disponível em: http://bit.ly/A5UK1F, acesso em 29.12.2011.
41
Tópico criado em 04.04.2010. Disponível em: http://bit.ly/AikUmy. Número de postagens
coletado em 16.02.2012
42
Tópico criado em 21.06.2011. Disponível em: http://bit.ly/zkBcfL. Número de postagens
coletado em 16.01.2012.
43
Tópico criado em 30.12.2009. Disponível em: http://bit.ly/xMrFYR. Número de postagens
coletado em 16.01.2012
44
Tópico criado em 23.01.2009, resultante de dois outros, anteriores, apagados pelo Orkut em
decorrência de alguma pane no sistema. Disponível em: http://bit.ly/yVyw1J. Número de
postagens coletado em 16.01.2012.
51
Os tópicos com homenagens póstumas e de divulgação de comunidades
relacionadas aos falecidos também serão apagados, avisa a moderação. Esta
proibição está relacionada ao fato da comunidade ser destinada somente à
análise dos perfis e da discussão de assuntos transversais a ela. A PGM não
foi criada como espaço de lembrança de pessoas específicas, mas para as
reflexões que a morte pode suscitar.
Outro assunto que está fora de cogitação para os participantes da
comunidade é a visualização direta do momento da morte de alguém através
de fotos e vídeos chocantes, como os de acidentes, por exemplo. A moderação
os classifica como de "conteúdo pesado" e "bizarrices" e afirma que seus
participantes não estão lá à procura desse tipo de material.
Seguindo as regras de boa conduta, também não é permitido ofender
ninguém, vivo ou morto, mesmo no tópico destinado às conversas, como o
Chat. Eles pedem que, caso se sinta ofendido, o integrante não responda, sob
pena de ser prejudicado também. Deve-se informar à moderação do caso de
ofensa, disponibilizando o link para o tópico onde ela ocorreu e, se possível,
salvando-a também através de um printscreen. As providências cabíveis (como
a própria expulsão) serão tomadas pela moderação, única responsável por
decidir se a reclamação consiste ou não de uma ofensa.
As conversas com conteúdo mais pessoal, como troca de informações
alheias aos casos expostos na comunidade devem ser realizadas no tópico
específico para elas, ou seja, Chat, como já colocamos anteriormente. Pede-se
que não se converse nada além do pertinente às mortes nos tópicos a elas
relacionados
Ao decidir divulgar na PGM o perfil de alguém que morreu, após seguir
as diretrizes de postagem e disponibilizar o link para o perfil em questão, os
participantes fazem seus comentários a respeito do falecido e/ou da maneira
como ele morreu. A porção mais importante da padronização da postagem – e
a mais cobrada pelos próprios participantes – é aquela referente à fórmula Cruz
+ Nome + Causa da Morte + Cruz. Assim, é possível saber, de imediato, o que
aconteceu para que aquela pessoa viesse a óbito. O motivo do óbito é a
principal razão para a visita e/ou comentário em um tópico, de acordo com os
próprios participantes, como nos mostra a Figura 5:
52
Figura 5 - Lista de postagens com a fórmula exigida pela
moderação
Aqui, temos a listagem de tópicos atualizados, que ficava disponível na
página inicial de qualquer comunidade do Orkut. Vimos que a morte de Joelson
de Souza, que foi esquartejado num quarto de motel, estava sendo bastante
discutida, com mais de mil comentários. A seguir, o caso do suicídio de Joacir
José Bresolin estava com menos participação. Podemos afirmar que a
diferença da quantidade de comentários produzidos por essas mortes se
baseia no fato do esquartejamento ter sido amplamente divulgado pela mídia,
ao contrário do suicídio. Casos que são noticiados amplamente tendem a ser
acompanhados com maior interesse pelos integrantes da comunidade.
Vejamos os depoimentos de alguns integrantes sobre a preferência da
visualização e discussão sobre alguns tipos de mortes. Os casos mais
explorados são os de assassinato e suicídio, como os exemplos que
colocamos acima:
Eu costumo ter mais atenção principalmente com casos de
suicídio, porque eu considero um sofrimento extremo ainda
muito mal interpretado e compreendido pela sociedade.
Sempre que vejo e tenho a oportunidade de debater esse
conceito do desespero que leva as pessoas a tirar a própria
vida, eu levanto essa questão.
Esta participante declara que costuma debater o "conceito de
desespero" que acarreta o suicídio por considerar o ato de tirar a própria vida
como uma atitude final para um "sofrimento extremo ainda muito mal
interpretado e compreendido pela sociedade".
53
Os de suicídio com pessoas novas que não aparentam motivo
são os mais tocantes para mim. Os de crianças também, você
vê o perfil e muitas vezes não acredita que uma pessoa tenha
cometido um ato de tirar a vida muitas vezes por motivo fútil.
Já esta participante também trás o suicídio como causa de morte mais
interessante, mas limita sua indignação a casos que envolvem pessoas mais
jovens e até crianças. Acredita quase inverossímil, ao visualizar o perfil de um
suicida, que aquela pessoa tenha tomado tal atitude "muitas vezes por motivo
fútil". A motivação se apresenta como fraca ou fútil, nesses casos, exatamente
por se tratar de pessoas novas e sem experiência.
Suicídios e Assassinatos misteriosos me chamam mais
atenção por alimentar nossa imaginação e pensar nas
inúmeras possibilidades. No caso dos suicídios, me faz refletir
também sobre casos de depressão (acho que sou um pouco
deprimida) e lendo sobre os suicídios e sofrimentos da família e
amigos dos suicidas, me faz afastar esta possibilidade, quando
este desejo vem à tona.
Aqui, já vemos os assassinatos com causas misteriosas chamarem mais
a atenção, junto aos suicídios, "por alimentar nossa imaginação e pensar nas
inúmeras possibilidades". Os motivos que levariam uma pessoa a tirar a vida
de outra, por exemplo, alimentariam a imaginação, fazendo com que se
considerassem diversas hipóteses para o crime. A discussão em torno desses
casos é amparada pela mídia, principal fornecedora de informações
compartilhadas na comunidade no tópico respectivo a cada caso. A visão desta
participante no caso dos suicídios já engloba a depressão, por se
autoidentificar como uma pessoa deprimida. A leitura de casos como este faz
com que ela afaste a ideia de pôr fim à própria vida por suscitar uma reflexão
acerca do sofrimento infringido à família e aos amigos, pensando, talvez, no
que os seus próprios amigos e familiares passariam caso ela mesma decidisse
se matar.
Para mim casos de suicídio são mais interessantes, pois gosto
de saber que não sou a única pessoa que aceite o fim da vida
como o fim do interesse pela vida. Assimilar as duas coisas
para mim é natural, mas para a maioria é chocante.
54
Neste depoimento, temos mais uma afirmação do interesse pelos casos
de suicídio através de uma identificação pessoal com o tema. A participante
aceita "o fim da vida como o fim do interesse pela vida", uma postura clara de
defesa deste ato. Ela finaliza declarando achar natural a ligação entre a perda
do interesse na vida com o término dela, o que acredita ser uma visão difícil de
ser assimilada pela maioria das pessoas. O mesmo pode ser visto neste outra
fala:
Me intrigam os casos de suicídio, pois a parcela desses casos
é na sua maioria adolescentes e jovens. Me preocupa os
motivos reais que levam essas pessoas a cometerem o suicídio
e me entristece pois são "crianças", tem todo um futuro pela
frente e estão se entregando cada vez mais cedo.
O depoimento abaixo mostra a visão que o participante tem, nos casos
de suicídio, como uma contradição. Toma a vida deles como "superficial",
escondendo "uma grande dor" que não foram capazes de dominar ou de sanar.
Ele diz que também se interessa, com a análise dos perfis dos suicidas, em
tentar descobrir indícios de que eles se matariam, "nas entrelinhas". Essas
entrelinhas são as dos pensamentos, fotos e músicas compartilhadas por
essas pessoas em seus perfis e que lá ficaram registrados após sua morte.
Além disso, cita o interesse nos crimes passionais por funcionarem como uma
demonstração dos limites a que o ser humano pode chegar, ou até mesmo a
"sua falta de controle". Por fim, afirma que todos estamos sujeitos a essas
situações:
Tenho interesse nos suicidas, pela maioria demonstrar que a
vida em que viviam era superficial e que dentro havia uma
grande dor da qual não souberam lidar. Ou até mesmo verificar
os indícios nas entrelinhas. Os passionais por saber até onde
vai a pulsão do ser humano e sua falta de controle. Pode
acontecer com qualquer um.
Na fala seguinte, podemos apontar uma identificação, novamente, com
os casos de suicídio e de assassinato, mas estes, especificamente, nos de
mulheres que encontraram o fim da vida pelas mãos de seus companheiros.
Nossa depoente, neste caso, é uma mulher; talvez este seja um bom motivo
para que ela se coloque "no lugar do falecido", como ela afirma, abaixo:
55
Os que me chamam atenção são os de suicídio e de mulheres
mortas por seus companheiros. Pois são situações que eu me
coloco no lugar do falecido.
Nos dois depoimentos a seguir, identificamos o interesse maior com
acidentes e casos de homicídio, novamente. Mas, desta vez, vemos que os
participantes se envolvem, se sentindo tristes, pela oportunidade de visualizar o
perfil dessas pessoas mortas de maneira tão abrupta e reconhecendo a
fragilidade da vida, como é o primeiro caso:
O que mais me choca são acidentes, pessoas que se vão
repentinamente, e de repente você vê o perfil e estão ali
sorrindo, com planos, isso nos deixa triste, mas sabemos que
estamos aqui como uma chama de uma vela que pode apagar
a qualquer momento.
E também a identificação que leva ao envolvimento no sentido de tentar
imaginar, de alguma forma, como o homicídio, no caso, possa ter ocorrido. A
integrante acha interessante ver a maneira com que os participantes da
comunidade "opinam, vivem a realidade das famílias das vítimas, sofrendo por
elas, 'odiando' os assassinos", quando é o caso, e também montando possíveis
soluções e explicações para cada situação. A integrante ainda afirma que faz
ligações entre os eventos apresentados na comunidade e os que vivenciou em
sua própria família, no intento de buscar conforto na ideia de que o que
aconteceu com ela e com os seus pode nem sempre ser o pior ou um fato
singular:
Casos com causas mal definidas, em que gire alguma
investigação em torno da morte, porque muitas investigações
têm finais diferentes dos esperados. Além disso, é interessante
ver como os membros opinam, vivem a realidade das famílias
das vítimas, sofrendo por elas, "odiando" os assassinos
(quando há) e sempre imaginando um futuro e uma solução
para tudo. Acho interessantes também os casos parecidos com
os que já vi em minha família (câncer, acidentes), porque fico
comparando e sempre vejo que os que já vi não são casos
piores e nem únicos.
Os casos aqui expostos como os recebedores de maior atenção pelos
participantes da PGM são também os geradores de grandes contendas por
56
conta dos diferentes pontos de vista das religiões dos integrantes. Na
comunidade, podemos encontrar representantes de todos os tipos de credos
ou nenhum. São exatamente os que seguem alguma doutrina religiosa os
responsáveis por discussões acaloradas, mas, infelizmente, é impossível
determinar a crença predominante.
A PGM possui uma linguagem característica, arraigada no discurso dos
participantes mais antigos e que, muitas vezes, deixa os novatos sem
entenderem o que se passa. No entanto, o entendimento se faz presente
mesmo com componentes diacríticos como as siglas; elas não comprometem a
interação entre novos e antigos participantes. Mesmo assim, é comum
encontrar os primeiros perguntando o quê significam determinadas siglas
postadas nos comentários em diferentes casos. As mais comuns, que
compõem o vocabulário básico da PGM, são: RIP (Rest in Peace), DEP
(Descanse em Paz), Off (tópico que trata de assuntos transversais à listagem
de perfis de pessoas que já morreram, como denúncias, notificações de
desaparecimento, questionamentos sobre a vida e a morte e outros), JFP (Já
Foi Postado, utilizada quando há repetição de profiles dentro da comunidade),
NSC (Não Sei a Causa, utilizada quando a pessoa não sabe qual a causa da
morte daquele cujo perfil está sendo postado) e TI (Tópico Inútil, geralmente
execrado pelos participantes e que trata de assuntos considerados fúteis).
57
Perfil dos Participantes
Mesmo necessitando da aprovação de um moderador para fazer parte
da PGM, à época de sua extinção, a comunidade possuía mais de oitenta mil
participantes. Devido a este elevado número e pela maneira com que o Orkut
disponibiliza
a
visualização
dos
participantes
das
comunidades,
fica
extremamente difícil delimitar o número de homens e mulheres. Desta maneira,
para se obter ao menos uma estimativa com relação ao sexo, seria necessário
visitar o perfil de cada um. Com um pouco de tempo e determinação, este
numero poderia ser traçado dentro de um período, mas a grande dificuldade
reside mesmo na ampla quantidade de perfis falsos, ou fakes (que
abordaremos adiante).
A mesma dificuldade aparece com relação à faixa etária. No entanto,
com uma estimativa geral, na maioria das postagens, encontramos
comentários de pessoas jovens, entre 18 e 30 anos. O Orkut pede que, ao se
cadastrar, o usuário tenha alcançado a maioridade legal brasileira. Mesmo
assim, sabemos que crianças e pré-adolescentes fazem parte da rede,
colocando no cadastro uma data de nascimento diferente de sua e que atinja a
idade pedida pelo Orkut. Assim, estamos levando em consideração que os
participantes da PGM sejam todos maiores de idade, por conta de seu
conteúdo, ou que estejam próximos de atingir tal condição.
A mesma flexibilidade também pode ser encontrada na outra
extremidade etária, já que nos deparamos com relatos de profissionais da
saúde com anos de experiência, delegados e advogados que emitem
pareceres em casos específicos de discussão intensa, como aconteceu na
época do assassinato da jovem Eloá pelo seu ex-namorado, em 2008.
Portanto, não seria difícil presumir que existam pessoas com idade próxima ou
superior aos 50 anos nas dependências da PGM.
Com uma gama tão grande de possibilidades, nos foi necessário
recorrer às enquetes feitas pelos próprios participantes quando do auge da
comunidade, que nos forneceram um esboço do perfil de seus frequentadores.
Em uma enquete aberta em 2007, relativa à religião45, 39% são católicos, 22%
45
Pesquisa com respostas de 3118 usuários criada em 05/07/2007 com última resposta
constante do dia 10/08/2011. Disponível em: http://bit.ly/xGUYZu, acesso em 10.08.2011.
58
evangélicos, 10% ateus, 16% espíritas e 13% de outras crenças não
explicitadas.
Os que mais expressam suas opiniões com relação ao suicídio e ao
assassinato são os que seguem alguma religião. Sobretudo nos casos de
suicídio, onde os juízos de valor são mais salientados. Colocamos abaixo um
print-screens com duas opiniões:
Figura 6 - Discussão acalorada sobre suicídio
O primeiro quadro mostra claramente um posicionamento extremo, de
condenação do suicídio e de sua classificação como uma atitude de fraqueza.
O integrante diz:
59
Não tenho pena dessa criatura fraca que não soube lutar em
prol da vida. Uma hora dessa ela está comendo o pão que o
diabo amassou no umbral... Mas tenho pena da família que
deve estar pagando pela inconsequência dessa criatura sem
amor próprio. Força aos familiares. Ela não merecia estar entre
vocês.
Pela linguagem utilizada, podemos dizer que este participante ou segue
ou é simpatizante da doutrina espírita, notadamente a que possui o conceito de
umbral46. No entanto, o que chama a atenção neste discurso é a opinião
expressada, claramente condenando a suicida. A chama de "criatura fraca" e
afirma ter pena da família e das consequências que terão que sofrer. Mesmo
assim, deseja força a eles. Por fim, ataca novamente a moça que se matou,
dizendo que não era merecedora da família.
O segundo quadro contém a fala de uma integrante que discorda do
primeiro no tocante aos termos que ele utilizou, embora comece seu discurso
colocando o suicídio como pecado:
Que pecado! Desejo de coração que ela encontre a paz que
não estava tendo aqui na terra, assim como muita luz ao seu
espírito. Força aos familiares e que possam seguir adiante.
Espero que a moderação passe nesse tópico e veja a
PORCARIA de comentário que esse merda de Jig Saw fez!
Cuidado com seu telhado de vidro! Uma hora ele pode se
espatifar bem acima da sua cabeça! Pode ser alguém que você
ama muito e tenho absoluta certeza que JAMAIS você gostaria
de ler esse tipo de MERDA que tu escreveu. De uma coisa Ana
Clara não precisa: julgamento e leviandade de pessoas que
sequer a conheciam!
Ela deseja que a moça "encontre a paz que não estava tendo aqui na
terra, assim como muita luz ao seu espírito". Dirige-se também aos familiares e
46
Umbral, para o espiritismo, é um estado ou lugar transitório por onde passam a maioria dos
homens após a morte, no qual experimentam sofrimentos "físicos" e morais, como a sensação
da necrose do corpo e a vergonha de se ver incapaz de ocultar suas fraquezas e desejos mais
íntimos dos olhares curiosos e/ou inquisidores de outros espíritos. As referências ao umbral,
que surgem em romances mediúnicos brasileiros em meados do século XX, são bastante
diversificadas entre si, ora dando a entender que se limitaria a um estado de confusão mental
por que passa o espírito após a morte, ora descrevendo-o como um "lugar espiritual" situado
próximo à crosta terrestre e habitado por espíritos obsessores. Disponível
em: http://www.forumespirita.net/fe/artigos-espiritas/umbral23598/?PHPSESSID=cd90f08e85df37e13dda39769df8ac3d#ixzz2IUtKIxmh.
Acesso
em
03.02.2013.
60
chama a atenção da moderação para que verifiquem o comentário feito pelo
participante Jig Saw, que pode ser caracterizado como desrespeitoso, e o
censura colocando algumas palavras em caixa alta, salientando seu significado
e, por fim, defendendo a moça que morreu.
Mesmo assim, o tópico sobre a morte de alguém não precisa,
necessariamente, despertar algum sentimento mais afetado. Pode-se apenas
escrever condolências de uma maneira bastante peculiar: coloca-se RIP (rest
in peace) ou DEP (descanse em paz), simplesmente, prática mais comum e
aceita pelos participantes como mais correta e, na falta de materiais como
mensagens, notícias ou depoimentos de pessoas que conheciam o falecido e
que mantenham a discussão, os comentários cessam e, então, a atenção dos
participantes passa a ser direcionada à morte mais recente lá postada. Isso
acontece quando não há identificação dos participantes com o falecido em
questão, ou quando nenhuma discussão é suscitada, colocando-se apenas
observações sobre a morte. Vejamos um tópico referente:
Figura 7: Exemplo de postagem
O enforcamento acidental ocorreu em seis de abril, Sexta-Feira
Santa. Tiago representava o papel de Judas Iscariotes na peça
sobre a encenação da Paixão de Cristo. Durante a
representação, o ato devia subir em uma pedra do cenário com
uma corda colocada em volta do pescoço para, em seguida,
simular o enforcamento do personagem, conforme relata a
história bíblica. Nesta cena, Tiago sofreu o sufocamento. O
61
jovem ficou aproximadamente quatro minutos desacordado até
que alguém percebeu que ele estava realmente enforcado.
Tiago morreu em 22 de abril após ficar 17 dias em coma
profundo na Unidade de Tratamento Intensivo da Santa Cada
de Itapeva (SP). Segundo a equipe do hospital, ele sofreu
lesões cerebrais. Os ferimentos foram provocados por
Isquemia Severa Encefálica Bilateral, ou seja, houve falta de
fluxo sanguíneo no cérebro devido ao enforcamento.
Reportagem: (endereço para a página do G1)
Facebook: (link para o perfil do rapaz na outra Rede Social)
A postagem da morte acidental deste rapaz foi construída pela notícia
extraída de um site jornalístico e do link para o perfil dele na rede social
Facebook, mesmo que tenha sido colocada originalmente no Orkut. O único
comentário que se seguiu foi o de Descanse em Paz, representado pela sigla
DEP. O comportamento, e em outros casos, seria semelhante à leitura de um
obituário jornalístico apenas com a possibilidade diferenciada de ver fotos,
vídeos,
pensamentos
e
qualquer
outro
dado
que
o
falecido
tenha
disponibilizado em seu perfil, em vida, e a partir deles, tecer comentários e
julgamentos de valor. Mesmo que isto não tenha acontecido neste caso
específico, o utilizamos para demonstrar que nem toda morte é amplamente
comentada ou analisada, mesmo com divulgação por parte da mídia.
A PGM foi definida ainda de diversas maneiras pelos participantes
através das entrevistas realizadas individualmente:
Conheci a PGM ainda no Orkut, não sei ao certo como fui parar
lá. Sempre tive uma forte sensação sobre a morte. Frequentei
durante muito tempo, mas quando entrei em depressão, por
ordem médica, minha mãe vigiava meu Orkut e acabei saindo
da comunidade. Ela achava que poderia me influenciar e na
verdade eu concordo: não é legal uma pessoa depressiva
frequentar um grupo com tantos casos de suicídios. No
Facebook eu voltei, mas minha mãe não sabe que eu
frequento. Não é o caso de achar a morte algo fascinante. É
algo comum e pode acontecer com qualquer pessoa. A PGM
mexe mais com meu lado curioso sobre como a vida é frágil.
Para esta integrante, a PGM é um espaço para saber mais sobre a
morte. Mas, diagnosticada com depressão, teve que se afastar da comunidade
exatamente por conta dos altos índices de suicídio lá relatados. Sua família via
62
o ambiente da PGM como um local de má influência neste sentido. Mas,
passado algum tempo, ela retornou para a comunidade, agora no Facebook,
mas sem o conhecimento de sua mãe. Apesar do interesse, ela não vê a morte
como algo fascinante, mas sim, a fragilidade da vida, que é o que realmente
desperta a sua curiosidade.
Um lugar que me encontro pelo desencontro da vida. Uma
comunidade que passou do status de grupo para se tornar uma
fuga da própria realidade vivendo por alguns momentos a
realidade dos outros e opinando sobre elas como se tivesse o
direito. É o alimento da curiosidade mórbida. É o escape do
medo de morrer.
Este depoimento mostra a PGM como um local de fuga, fuga da
realidade própria do indivíduo para a realidade de outros. O interessante é que
esta nova realidade é perpassada por momentos de violência e sofrimento, o
que nos faz questionar a respeito da preferência mesma dessa troca. Ela foca
na opinião emitida pelos outros, como se tivessem "o direito" de emiti-las em
detrimento da saciedade da curiosidade, aqui colocada como mórbida e como
paliativo para o medo da morte.
Pra mim é algo natural ao qual vamos todos passar pelo mesmo
processo, e o mais importante é que a PGM me serviu de
conforto. Assim que entrei no Orkut ainda era em inglês (foi uma
dificuldade), me senti aliviada com minha dor, pois tinha acabado
de perder um filho assassinado e me deparei com mães que eu
poderia compartilhar o meu sofrimento e isso foi muito bom pra
mim, não me senti sozinha.
Nesta última fala, vemos a PGM como auxiliadora no processo de
aceitação da morte. A integrante tinha perdido um filho de maneira trágica,
pouco antes de ingressar na comunidade, e lá encontrou outras mães que
passavam pela mesma situação. Esse ponto em comum fez com que elas
pudessem "partilhar" o sofrimento, aliviando um pouco a ideia de solidão que
pode se seguir a um acontecimento traumático como esse.
Enfim, vimos a PGM como um ambiente com diversas facetas. Através
dele, pode-se procurar auxílio e conforto, partilhar ideias, expor pontos de vista
acerca da vida e da morte e, principalmente, saciar a curiosidade inerente ao
ser humano quando o assunto é o fim da vida.
63
O Perfil Falso ou Fake
Exatamente por todas essas possibilidades, algumas pessoas preferem
não expor sua real identidade na PGM e se utilizam de um perfil falso ou Fake.
Definir o perfil falso é uma tarefa complicada, pois nem todos possuem o intuito
de deixar essa falsidade transparecer. Por outro lado, a identificação de um
perfil fake segue o preceito daqueles que desejam que a falsidade de sua
identidade seja percebida logo de início. Isso acontece, principalmente, com
perfis que usam nomes e imagens de pessoas famosas ou personagens de
desenhos ou filmes. Sabe-se que aquele personagem é fictício; portanto, seu
criador está resguardado. Dificilmente será tomado como verídico um perfil
com o nome e a foto do Mickey Mouse, por exemplo.
Basicamente, o propósito do perfil falso é exatamente este: proteger a
identidade de seu criador. Também se pode perceber que um perfil é
possivelmente falso através de outras nuanças, como por exemplo: poucos
amigos, amizade com perfis declaradamente falsos, poucos recados, ausência
de fotos ou fotos retiradas da internet e informações pessoais indisponíveis.
Entende-se que, com a popularização do acesso às Redes Sociais,
todos podem - e devem – possuir um perfil. Por isso, a pessoa que tem poucos
contatos deve ter algum problema: deve ser falsa. Mesmo assim, se o indivíduo
declaradamente não se relaciona com outros em seu perfil, ele está no local
errado, já que o Orkut é uma rede social, e não anti-social, como brincam
alguns. A pessoa que não quer se relacionar não deveria criar um perfil.
Portanto,
os
julgamentos
de
valor obedecem
a
essa
ordem.
Mas,
declaradamente, por se tratar de um espaço de discussão de um assunto tão
estigmatizado como a morte, a PGM está coalhada de fakes.
O mais importante no perfil fake é que ele é usado como escudo pelo
seu usuário, que obviamente, prefere não se identificar. Este é um reflexo da
sociedade individualista que vivemos, conforme também colocou Bauman
(2001). No caso da PGM, este uso é recorrente exatamente pela natureza da
comunidade e porque as pessoas preferem não se comprometer com o tipo de
comentários que são postados lá, evitando possíveis represálias. Pode
acontecer de alguém não gostar de um comentário que você fez e ir insultá-lo
na sua página de recados, em seu perfil pessoal, extrapolando os limites da
64
comunidade. Este é um dos motivos para criar um perfil falso: evitar ser
incomodado por terceiros no espaço que você caracteriza como seu e que
está, de alguma forma, desligado daquele mostrado dentro da comunidade.
Também é grande o número de pessoas que utilizam seus perfis reais,
aqueles mesmos usados para contatar amigos ou deixar recados para
familiares. Estas pessoas tendem a se comportar de maneira mais branda,
emitindo juízos de valor mais elaborados, que justificam tal comportamento
relacionado a uma discussão. É claro que, dentro desses dois tipos de
usuários, podemos encontrar ainda uma gama de comportamentos adjacentes;
portanto, estamos salientando apenas os mais comuns.
De
acordo
com
uma
enquete
criada
em
200847
e
aberta
ininterruptamente para votação, 25% (59 votos) das 234 pessoas que
responderam afirmam que seu perfil é falso, contra 75% (175 votos) que dizem
que seus perfis são reais. No entanto, observamos, nas postagens da
comunidade, exatamente o contrário. Afirmamos estes dados baseados na
análise do discurso dos integrantes nos comentário feitos no espaço
especificamente destinado a elas, na página da enquete48.
Mas, como se chega a uma comunidade como a PGM? Como alguém
se propõe a participar de um espaço onde serão enumerados perfis de
pessoas semelhantes a nós que morreram das mais diversas maneiras? Essas
perguntas, também, só podem ser respondidas em parte. Com relação à
maneira com que tomaram conhecimento da comunidade, as respostas estão
desatualizadas. Foram extraídas de uma enquete realizada em doze de março
de 2009 pela participante Bruja49. Na ocasião, foram formuladas nove
perguntas, em um tópico, que contribuíram para traçar o perfil dos participantes
de então. As perguntas foram:
1) O que o levou a frequentar a PGM?
47
A resposta mais recente data de 19/12/2011. Disponível em: http://bit.ly/xZuPFb, acesso em
23.12.2011.
48 Nas enquetes, é possível responder de acordo com as opções colocadas pelo seu próprio
criador e adicionar um comentário pessoal. Muitas pessoas que responderam possuir um perfil
verdadeiro utilizam fotos e nomes que foram retirados da Internet, daí a nossa afirmação.
49
Este tópico-enquete foi acompanhado por mim desde sua criação, em 2009, visto que iniciei
a observação da comunidade em 2008 e, a partir de então, venho recolhendo dados sobre seu
funcionamento.
65
2) Você gostaria que seu perfil fosse exposto aqui depois que
você morresse?
3) Você acha que é normal esta obsessão pela vida dos mortos
(sic)?
4) Em uma comunidade de receita culinária ninguém usa
(perfil) fake. Por que na PGM a maioria dos membros são
fakes? Os membros fakes da comunidade estão tentando se
proteger de possíveis represálias (por parte de outros membros
ou parente de falecidos, por exemplo)?
5) Que tipo de morte chama mais a atenção quando acontece?
6) Qual a sua opinião em relação ao numero crescente (e
apavorante) de suicídios nos tópicos desta comunidade?
7) Você mudaria algo aqui na PGM?
8) Você postaria a morte de um parente próximo aqui na PGM
(ex: pai, mãe filhos...)?
9) Qual a sua opinião a respeito dos "DEP e RIP"
eventualmente postados nos perfis dos falecidos? Isso lhe
pareceria ofensivo, se o falecido fosse você ou alguém
próximo?
As respostas listadas a seguir foram disponibilizadas entre 22 de
fevereiro e 22 de março de 2009, totalizando opiniões de 141 integrantes em
183 postagens.
Sessenta e quatro por cento afirma já ter curiosidade ou interesse pelo
assunto morte. Portanto, buscaram o assunto no banco de comunidades do
Orkut e se depararam com a PGM. 13,47% alegam ter encontrado a PGM por
acaso, quando procuravam comunidades ou informações relacionadas a outros
assuntos. 8,51% não se lembram de como chegaram até lá, enquanto 7,80%
afirmam ter recebido indicações de amigos ou terem visto divulgação em
revistas ou outros sites. 2,83% dos integrantes dizem ter procurado a PGM
quando em período de luto pela morte de pessoa próxima; 2,12% forneceram
respostas indeterminadas e 1,41% resumiram sua participação pelo simples
sentimento de alívio ao ver que outras pessoas (e não ela) estavam morrendo
diariamente, numa clara expressão do “antes ele do que eu”.
Na mesma pesquisa, chamada de entrevista pela sua criadora, é
possível verificar que os integrantes acham normal o interesse pela discussão
sobre a morte nas respostas à pergunta três. 75,17% afirmam que o interesse
pela morte é normal, enquanto apenas 18,43% dizem que não, 2,83% não
66
sabem ou não se importam e 4,25% das respostas não puderam ser
determinadas. Portanto, podemos afirmar que a principal busca dos
participantes da PGM é a de, através da visualização dos perfis de pessoas
mortas, possibilitar uma reflexão sobre a morte, mesmo que esta seja através
da pura curiosidade. Afirmar que o curioso não se questiona a respeito do que
vê ou tem vontade de conhecer seria errado, assim como afirmar que todos os
participantes estão refletindo sobre a morte. Mas, algumas observações
colocadas em certas situações servem como provas de que este é um
comportamento comum.
Temos tomado essas enquetes elaboradas por outros membros da PGM
como base de análise neste estudo porque, hoje em dia50, é muito difícil contar
com a colaboração dos participantes na construção desse perfil da
comunidade. De alguma maneira, com o crescimento da PGM, foram surgindo
muitos integrantes hostis, e aqueles que sempre contribuíram para sua
manutenção, com a postagem de perfis e notícias, tem se ocupado
exclusivamente disto, deixando outros assuntos de fora, o que dificulta a
netnografia. Por estes motivos, pedidos de contribuição não são bem atendidos
como já o foram em outras ocasiões, como pudemos comprovar anteriormente.
Também podemos afirmar que a PGM é basicamente composta por
usuários voyeurs, aqueles que apenas visualizam as informações ali
disponibilizadas, raramente comentam alguma delas e dificilmente contribuirão
para a criação de conteúdo propriamente dito; esses usuários provavelmente
nunca contribuirão com um link para o perfil de alguém morto. Mesmo tendo
um número grande de usuários que não postam nada, os que o fazem
suplantam essa diferença. Vejamos o fluxo de postagens da PGM a seguir.
Fluxo de postagens
Foi possível calcular, através da observação dos autores de postagens
nos seis primeiros dias de novembro de 2011, que cinquenta e nove usuários
adicionaram informações à comunidade, pouco mais de 0,7% do total de
oitenta e quatro mil. Infelizmente, não é possível verificar se essas postagens
foram criadas em novembro ou anteriormente, já que o Orkut disponibiliza, na
50
Isto é, em 2011, antes do fechamento da comunidade.
67
lista de tópicos hospedados no fórum, apenas a data do último comentário.
Para verificar o dia em que cada tópico foi criado, é necessário visitar um por
um, tarefa bastante trabalhosa, visto que duzentos e oitenta e nove tópicos
foram comentados ou criados nestes mesmos seis dias, caracterizando a
criação/comentário de 48,16 tópicos a cada dia, 4,013 tópicos por hora. Destes
duzentos e oitenta e nove tópicos, cento e doze foram abertos pela integrante
"[email protected].@" e quarenta e quatro pelo "♣♠Diego Alves♠♣", residentes em
Londrina e Goiânia, respectivamente, se tomarmos como fidedignas as
informações colocadas em seus perfis.
Para ilustrar nossa dificuldade em determinar melhor o perfil dos
integrantes da PGM, salientamos que elaboramos uma enquete para descobrir
os motivos pelos quais as pessoas lá representadas assistiam aos Velórios
Virtuais. A enquete foi disponibilizada em oito de agosto de 2011 e oito meses
depois51 só contava com dezoito respostas. Em outra ocasião52, uma enquete
disponível por apenas dez dias recebeu 166 respostas. Na época, a
comunidade possuía pouco mais de 65 mil participantes. Ouso afirmar que tal
mobilização não era mais possível dado o crescimento do número de usuários
voyeurs, o que pode ser percebido pela frequência de postagens e
comentários: o número de colaboradores varia muito pouco. Apesar da
estabilidade da quantidade de participantes da PGM, pode-se perceber que até
a colaboração daqueles mais assíduos estava defasada. Além disto, com a
ascensão do Facebook, o acesso regular ao Orkut diminuiu bastante, tendo a
própria rede social se tornado motivo de chacota, termo pejorativo para alguma
coisa. Uma prova disto é a utilização da expressão “Orkutização de”,
geralmente colocada quando se quer dizer que algo foi popularizado em
demasia, que deixou de ser exclusivo e está sendo “invadido” pelos recados
prontos e spams.
Mas, como colocamos anteriormente, a quantidade de participantes da
PGM e sua frequência de atualização de postagens pouco sofreu com essas
mudanças, até seu fim. A PGM estava em um patamar à parte que, hoje,
extrapolou até as dimensões do próprio Orkut. Mas a capacidade e/ou
51
04/01/2012. Disponível em: http://bit.ly/zWIfjq. Com o fim da PGM, não foi possível verificar
se mais pessoas haviam respondido à enquete nos quatro meses que se passaram após a
última checagem.
52
Entre 30 de julho e 10 de agosto de 2009.
68
disponibilidade de colaboração de seus participantes foi extremamente
abalada.
PGMsite.com.br e Profiles de Gente Morta no Facebook
Com a constante aparição da PGM na mídia e divulgação do teor de seu
conteúdo, foi necessário aperfeiçoar a organização dos tópicos da comunidade,
criando-se outra, intitulada “PGM – Já foi postado?53”. A medida tencionava
diminuir a duplicidade de postagens, visando concentrar, na PGM, comentários
sobre determinado caso apenas no tópico mais antigo ou com mais
informações. Seguindo esta iniciativa, para garantir a permanência dos
dados54, a usuária chamada “Ursinha Putz” começou a complicada tarefa de
transferir os perfis listados alfabeticamente na “PGM – Já foi postado?” para
uma base de dados fora do Orkut, hospedada no Google Docs55. A iniciativa,
intitulada “Lista da Ursinha” teve continuidade até o ano de 2008. Por não ter
sido possível localizar a usuária, os motivos para a interrupção das
atualizações da lista são desconhecidos.
Victor Pinto, outro usuário bastante ativo da PGM, resolveu dar
continuidade à compilação, desta vez em uma web site intitulada “PGM Site56”,
inaugurada em 2009, em endereço também externo ao Orkut, com domínio
próprio. De acordo com Victor, a iniciativa surgiu por interesse em manter uma
ferramenta de busca dos tópicos postados na PGM do Orkut, visto que, pela
comunidade possuir conteúdo visível apenas para seus participantes, tal
ferramenta dentro do Orkut é desabilitada. Aproveitando-se de seus
conhecimentos na construção de sites, Victor resolveu criar a PGM Site. O
contato com ele também se deu através do Facebook, visto que os usuários
que ainda mantém um perfil no Orkut para a utilização da PGM só o faziam
53
A comunidade foi criada em 13 de dezembro de 2006 por uma integrante bastante ativa da
PGM, chamada Cláudia Dracena, que utilizava o pseudônimo de Soninha Mattos. Em
09/12/2010, Cláudia faleceu, aos 33 anos, vítima da leishmaniose. Sua morte foi divulgada e
amplamente debatida na PGM, juntamente com seu perfil, e o tópico que relata seu falecimento
conta com 3002 postagens. Disponível em http://bit.ly/yJKtbt, acesso em 23.12.2011.
54
Desde 2004, o sistema do Orkut sofreu diversas modificações e passou por problemas
internos. Muitas postagens da PGM já foram perdidas, inclusive dois tópicos sobre os Velórios
Virtuais.
55
O Google Docs é um pacote de aplicativos que funciona on-line, permitindo aos usuários criar
e editar documentos, colaborando, ao mesmo tempo, com outros usuários.
56
www.pgmsite.com.br, acesso em 04.09.2012.
69
com a finalidade de participar da comunidade e não mais de interagir com seus
amigos.
Figura 8 - Página inicial da PGM Site
Com a popularização do Facebook no Brasil, também foram adicionados
perfis de seus usuários mortos à lista da PGM Site. O site funciona
basicamente como uma ferramenta de busca onde se podem utilizar tanto o
nome, a causa da morte ou o link do perfil referente ao morto que se tenciona
visualizar. A busca resulta não só no link direto para o perfil em questão, mas
70
também para o tópico específico da PGM onde a morte foi relatada e discutida.
Mesmo assim, é necessário possuir perfil na rede social para poder acessar os
perfis e comentários sobre cada morte nos tópicos da PGM. Com a extinção da
comunidade no Orkut, só é possível visualizar o perfil, hoje. Mas, de toda
forma, o nome da pessoa e a causa da sua morte ainda estão catalogados no
site.
Atualizado quase diariamente, o PGM Site é, hoje, a ferramenta mais
completa para se encontrar dados de pessoas mortas citadas pela PGM no
Orkut ou no Facebook. A própria PGM também migrou para a rede social
criada por Mark Zuckerberg57 e tem adicionado novos participantes
diariamente, contanto, com 1500 membros58. Com a interface diferente do
Orkut, a PGM no Facebook é chamada de página ou grupo e não mais de
comunidade. Cada perfil postado lá é chamado de publicação e as
observações dos participantes são chamadas, literalmente, de comentários.
Para participar, também é necessário pedir aceitação mediante autorização dos
responsáveis por seu funcionamento. A adição de um novo participante é
automaticamente postada na página principal do grupo, seguindo a fórmula
“Fulano de Tal foi adicionado por Sicrana de Tal”. Foi possível identificar três
principais responsáveis por aceitar/declinar os convites de adesão: Victor
Pinto59, Julyana Oliveira60 e Dani Andrade61.
Como a página no Facebook ainda é nova, a quantidade de
participantes é pequena se comparada à comunidade original no Orkut, o que
faz com que as discussões girem em torno, basicamente, de informações sobre
as mortes lá divulgadas, sem terem surgido, ainda, outras transversais como as
que observamos anteriormente.
O que podemos dizer é que a nova discussão sobre a morte inaugurada
com a virtualidade e as impressões pessoais sobre o morrer dos participantes
da PGM extrapola os domínios originais do virtual. O assunto não está restrito
àquele endereço respectivo: é capaz de mudar, se transformar e se adequar às
necessidades daqueles que contribuem para seu desenvolvimento, como
57
http://on.fb.me/x7vH3O, acesso em 20.01.2012.
Em 20/01/2012, acesso em 20.01.2012.
59
http://on.fb.me/ywlmbC, acesso em 20.01.2012.
60
http://on.fb.me/Ae0xN3, acesso em 20.01.2012.
61
http://on.fb.me/xWI3Gh, acesso em 20.01.2012.
58
71
pudemos expor ao etnografar a comunidade em questão. Em suma, a linha do
tempo da PGM foi construída como qualquer empreendimento bem sucedido:
inauguração (2004), ramificações (2005-2006) ascensão (2006-2008), auge
(2008-2009), período estável (2008-2009), declínio (2010-2011) e extinção
(2012).
A extrapolação da comunidade para outra rede social e para um domínio
externo nos fala muito sobre a curiosidade do internauta atual sobre a morte e
o morrer. Além disso, em 26 de abril de 2012, Guilherme Dorta, o responsável
pela PGM original, criou outra versão da comunidade62, visto que a primeira foi
extinta. Hoje, conta com 1.473 usuários e tem o funcionamento idêntico.
Vamos nos debruçar agora sobre a comunidade dos Velórios Virtuais,
desdobramento da PGM e que é o foco principal da nossa pesquisa.
Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=122228887, acesso em
23.12.2011.
62
72
Capítulo 3 - Vendo a Morte dos outros: os Velórios Virtuais
Velando Virtualmente – o que é um Velório Virtual
Agora o homem está só diante dos outros homens e de Deus,
e será inteiramente responsável por sua "salvação". Não há
mais confissão, nem compadrio, nem purgatórios, nem
indulgências, rezas ou missas que os outros possam realizar
por sua melhoria moral. Em outras palavras, não há nenhuma
mediação realizada por meio das relações pessoais, tornandose diretas as falas dos homens com Deus! Conforme nos diz
Weber, ecoando estranhamente Feuerbach, tudo isso traz uma
'inacreditável solidão interna do indivíduo' (DAMATTA, 1991, p.
122).
DaMatta afirma que, na hora de sua morte e nos eventos que se imagina
o desenrolar após seu acontecimento, o homem está completamente só, não
possui intercessores que talvez lhe auxiliem. Onze anos depois, podemos
afirmar que a solidão do morto permanece: mas é possível que possua uma
plateia, ao mesmo tempo semelhante e completamente destoante da que
acompanhava o moribundo, em seu leito de morte, até seu último suspiro
(ARIÈS, 1988). A plateia que aqui nos referimos pode não estar interessada no
que aconteceu com o morto, não precisa nem mesmo conhecê-lo. Trata-se da
plateia invisível composta de internautas por intermédio da exibição dos
Velórios Virtuais. Esta plateia possui pessoas que podem estar há quilômetros
de distância ou na casa ao lado, mas que estão acompanhando o velório
através dos seus computadores. Como assim?
Imagine o leitor, então, um velório tradicional. Um velório comum, sem
elementos que fogem ao padrão: flores, muitas ou algumas pessoas, um
ambiente descaracterizado e padronizado, de cores claras, cruzes, cadeiras. E,
claro, um caixão com um corpo morto em seu interior. O caractere que muda
tudo é a presença de uma câmera, simples, como as de circuito interno
utilizadas para segurança de empresas e residências. Certamente já nos
deparamos várias vezes por dia com uma deste tipo, acompanhadas, muitas
vezes, da plaquinha que diz: "sorria, você está sendo filmado". No ambiente do
velório, a plaquinha não existe, mas, sim, os indivíduos estão sendo filmados, e
73
suas imagens estão sendo transmitidas, em tempo real, através de streaming63,
pela Internet, disponibilizadas no site da empresa funerária contratada pela
família para tomar conta do tratamento do corpo até o seu enterro. Mas qual a
maior razão para a contratação de um serviço como este?
Primeiro, vamos falar sobre as duas empresas por nós escolhidas para a
análise neste trabalho, o Grupo Vila e a Urbanizadora Municipal S.A. (ou
Urbam). Estas são as empresas com Velórios Virtuais mais visualizados pelos
usuários das comunidades PGM e Velórios Virtuais.
O Grupo Vila, empresa funerária fundada em 1948, na cidade de Natal,
Rio Grande do Norte, foi pioneira no ramo, no Nordeste, em diversos aspectos,
dentre eles o Cemitério do tipo Parque64, plano de assistência funeral65 e o
próprio Velório Virtual, sendo a primeira empresa a oferecer este tipo de
serviço no Brasil.
A empresa assim explica o serviço de Velório Virtual por ela prestado:
O Velório Virtual é uma forma de diminuir a distancia de
familiares e amigos que por algum motivo estão longe e
não podem acompanhar o velório no local.
Criado para atender aos que querem compartilhar com os
presentes o momento de despedida de um ente querido, o
serviço de Webcam oferecido pelo Grupo Vila desde 2001
é pioneiro no Brasil.
A partir de uma solicitação da família, o serviço será
disponibilizado e as imagens do velório passarão a ser
transmitidas pelo nosso portal, por meio de uma câmera
instalada no local, permitindo que o velório seja
acompanhado à distância. Para dar mais segurança e
comodidade ao cliente, o serviço tem acesso restrito,
mediante senha, aos familiares e amigos autorizados.
Pode-se também enviar mensagens eletrônicas que serão
entregues aos familiares presentes no velório.
63
Técnica que permite ao usuário ver ou ouvir o conteúdo de um arquivo enquanto ele é
enviado pela Rede Mundial de Computadores, sem ter que esperar o download total do
arquivo.
64
Que possui placas no solo demarcando o local de cada túmulo, ao invés de cruzes, anjos e
todas as outras figuras que compõem um cemitério tradicional.
65
Plano criado em 1994 que, em seu surgimento, de acordo com o site da empresa, era
"voltado para clientes de baixa renda que, no momento de se despedirem de um ente querido,
não tinham condições financeiras para o funeral". Hoje, expandido, compreende também
assistência não só na hora da morte, mas durante a vida, como um plano de saúde.
74
O Velório Virtual atualmente transmite imagens de
velórios realizados na capela central do Centro de Velório
São José, em Natal, na capela central da Funerária
Morada da Paz, em João Pessoa, e na capela central do
Cemitério Parque Morada da Paz, em Recife66.
A empresa começa justificando o oferecimento do serviço de Velório
Virtual como uma ferramenta que possibilita aos familiares e amigos ausentes
acompanharem o último adeus ao morto através de seus computadores. Essa
viabilização da visualização do velório, mesmo que através de um computador,
pelas pessoas próximas ao falecido, nos remete à necessidade do
acompanhamento do corpo até o seu enterro, prática enraizada na cultura
ocidental (ARIÈS, 1988, 1989, 1989a) e brasileira conforme nos conta o
historiador João José Reis (1991).
No século XIX, quando os velórios ainda aconteciam na residência do
morto, eram usados diversos artifícios para anunciar o acontecimento. A morte
de alguém era então exposta à comunidade através da decoração funerária,
composta por panos e flores fúnebres dispostas à entrada da residência como
aviso de que a morte ali se encontrava. Não obstante, eram também enviados
convites aos amigos e pessoas importantes, para que pudessem "abrilhantar"
(REIS, 1991, p.129) o funeral. Então, as pessoas eram, de fato, convidadas a
tomar parte no velório e no cortejo fúnebre até o local do enterro. Estes
convites eram escritos à mão e entregues por pessoas contratadas para tal
serviço. Reis salienta ainda outros comportamentos adquiridos pela família no
momento do velório e após a realização do enterro, como o comportamento a
ser tomado durante o período de luto. Com isso, afirma: "pode-se ver - e era
tudo feito para ser visto - que não era pouca a energia gasta pela família e
pessoas próximas nessa parte doméstica do funeral. A tudo isso se somava o
próprio luto" (REIS, 1991, p. 132). Hoje, embora o processo aconteça rápido
demais - os costumes da sociedade contemporânea, regidos pela lógica da
higienização, querem que o processo entre o morrer e o enterro seja rápido e o
mais invisível possível (Ariès, 1989a) - a curiosidade e a vontade de despedirse dos mortos são grandes. Se antigamente se acreditava que um cortejo
66
Disponível em http://www.grupovila.com.br/velorio-virtual/, acesso em 03.02.2013.
75
numeroso era bom para o morto, isso parece ainda acontecer hoje, embora
com nova roupagem e de forma invisível e anônima, com o mesmo ímpeto e
interesse e, inclusive, com rezas e despedidas para os que morreram e votos
de condolências para os que o perderam, pois o Velório Virtual não é somente
acompanhado pelos familiares e amigos do morto, mas também - e
principalmente - por desconhecidos.
Como isto acontece? A empresa descreve a contratação do Velório
Virtual como um processo simples, o que foi, de fato, verificado. Para contratar
o serviço com o Grupo Vila, a família paga um valor de aproximadamente cento
e vinte reais67 e assina um termo que permite a transmissão das imagens, em
tempo real, no site destinado para este fim. Mas a visualização controlada
deste momento não é totalmente privada, isto é: pode ser vista por qualquer
pessoa que acesse o site no momento em que o velório está sendo realizado.
Como a transmissão é realizada através de streaming, isto é, em tempo real,
só é possível ver o Velório Virtual enquanto o velório de verdade acontece. As
imagens não são gravadas e a câmera, fixa em um único ponto68, permite que
se tenha uma visão geral do local. Pode-se acompanhar todo o evento de
acordo com seu tempo de duração (geralmente até 24 horas, como reza o
costume brasileiro).
As localidades onde os Velórios Virtuais são oferecidos pelo
Grupo Vila - Natal, João Pessoa e Recife - são de extrema importância: são as
capitais dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, grandes
centros com populações de 806.20369, 742.47870 e 1.555,03971 de habitantes,
respectivamente. Mesmo assim, o que pode contribuir para a popularização do
Velório Virtual é, simplesmente, a possibilidade de fazê-lo.
A outra empresa que realiza os Velórios Virtuais mais visualizados pelos
integrantes das comunidades estudadas é a Urbanizadora Municipal S.A., ou
Urbam, localizada na cidade de São José dos Campos, no Vale do Paraíba,
região do interior do estado de São Paulo. A cidade tem uma taxa de violência
67
Cotação realizada com a empresa através de e-mails.
Existem funerárias que disponibilizam mais de uma câmera por sala de velório, mas ainda
são poucas.
69
De acordo com o Senso de 2008
70
De acordo com o Senso de 2012
71
Idem
68
76
elevada e possui 636.876 habitantes72. A Urbam é uma sociedade de economia
mista, fundada em 1973, tendo a Prefeitura Municipal de São José dos
Campos como maior acionista. É responsável pela administração e
manutenção da limpeza na cidade e também pelo complexo Funerário de São
José dos Campos.
A Urbam assim justifica o oferecimento deste serviço:
VELÓRIO VIRTUAL
Nesta seção você poderá acompanhar o velório de um ente
querido pela internet.
O velório virtual é um serviço oferecido pela Urbam às famílias
que utilizam qualquer uma das quatro salas de velório do
Complexo Funerário de São José dos Campos. Este é um
recurso moderno e inovador por meio do qual as famílias
podem fazer uso da tecnologia para romper a barreira da
distância física, permitindo àqueles que estão longe
compartilhar do momento de despedida do ente querido.
A partir de uma câmera conectada à pagina de internet da
URBAM são disponibilizadas imagens do velório em tempo
real. Também é possível enviar mensagens de condolências
para a família através do link de e-mail.
O serviço de velório virtual só é liberado quando a família
autoriza a transmissão junto à administração da Funerária73.
Ao colocar que "Nesta seção você poderá acompanhar o velório de um
ente querido pela internet", a empresa está presumindo que somente
conhecidos assistem aos Velórios Virtuais, o que, como já falamos, não é o
caso. Não só os familiares e amigos da pessoa que está sendo velada estão
presentes no Velório Virtual; os desconhecidos também são beneficiados por
este "recurso moderno e inovador por meio do qual as famílias podem fazer
uso da tecnologia para romper a barreira da distância física", e também permite
"àqueles que estão longe compartilhar do momento de despedida do ente
querido" - do ente querido dos outros.
72
Dados do IBGE de 2011.
Disponível em: http://urbam.com.br/SiteNovo/Funeraria/VelorioVirtual.aspx, acesso em
03.02.2013.
73
77
Então, o Velório Virtual é explicado de maneira simples, ao descrever a
disposição da câmera nas salas de velório do Complexo Funerário de São José
dos Campos e alertando sobre a possibilidade do envio de mensagens de
condolências para a família enlutada em questão e da necessidade da
autorização desta para a realização da transmissão do Velório Virtual.
Uma coisa que a Urbam não informa é que este serviço é gratuito, ao
contrário do oferecido pelo Grupo Vila, e também não é protegido por senha.
Em suma, ambos funcionam da mesma maneira e são observados pelos
integrantes da PGM e da comunidade Velórios Virtuais, sobre a qual falaremos
agora.
Netnografia da comunidade Velórios Virtuais
Em 2007, uma integrante da PGM chamada Kyria criou um tópico Off
para a visualização de Velórios Virtuais. O serviço, então, praticamente
desconhecido,
rapidamente
chamou
a
atenção
dos
participantes
da
comunidade, contribuindo para o rápido crescimento do interesse pelo assunto,
como já informamos. O Velório Virtual é a transmissão on-line, em tempo real,
de um velório real. São instaladas câmeras (uma ou mais) no local onde a
pessoa está sendo velada e as imagens são disponibilizadas através da
Internet para determinadas pessoas, com acesso restrito, ou abertas ao
público, mediante autorização da família. No entanto, em duas ocasiões, por
panes internas no sistema do Orkut, o tópico da PGM foi apagado, sendo
recriado em 2009 e utilizado desde então como o local padrão para a
visualização dos Velórios Virtuais e discussão acerca da morte.
Ainda em 2007, foi criada a comunidade destinada apenas para a
visualização dos Velórios Virtuais, externa à PGM. O funcionamento da
comunidade é semelhante ao da PGM e muitos de seus integrantes são
oriundos do último espaço. No entanto, não existem padrões de postagem: os
links para as câmeras das empresas funerárias estão listados em um único
tópico74, onde também são tecidos os comentários dos participantes. Existe um
tópico importante que busca sanar dúvidas mais comuns em relação aos
74
O tópico chama-se “Velório Agora” e foi criado em 22/11/2008, contando com 3978
postagens. Disponível em: http://bit.ly/ykEHci, acesso em 03.02.2013.
78
Velórios Virtuais e ao próprio funcionamento da comunidade. O tópico é
intitulado "Respostas para perguntas idiotas". As respostas que lá estão
dispostas são para as seguintes perguntas:
Figura 9 - Tópico com perguntas e respostas sobre os
Velórios Virtuais
A linguagem utilizada pela criadora e administradora da comunidade,
chamada Kirya, é completamente diferente daquela empregada pelos
responsáveis pela PGM. Ela utiliza um tom mais direto e menos diplomático,
muitas vezes até proferindo xingamentos contra os usuários que encontram
dificuldades em visualizar os Velórios Virtuais. Vejamos a transcrição abaixo,
seguida por sua análise:
Por que não abre nada, nenhum link? -Porque no momento
não tem nenhum velório...
Por que o velório está tão parado? -Porque o defunto está
morto, senão ia ser mais animado...
Será que vai enterrar o defunto hoje? - Não, eles vão esperar
começar a feder primeiro...
Por que não tem áudio (som). - Porque não é festa.
79
Onde é esse velório? -Se a anta analfabeta ler vai descobrir
rapidinho...
Esse velório é gravado? -Não, é ao vivo, mesmo o defunto
estando morto.
Continuação... (Essa é a pergunta clássica).
Quando vai ser o próximo velório?-Depende, vc vai matar
alguém?
*Agora me fala:
-Como eu vou saber que hora as pessoas vão morrer?
Por favor, não comentar nesse tópico, só upar... Os
comentários vão ser apagados, para atualização do tópico.
Cada dia que passa, aparecem mais perguntas idiotas.
Atualização.
Quem é o morto? -Aquele que está dentro do caixão.
O QUE É UP? -Pra subir o tópico75.
As questões que a moderadora tenta responder são diretamente ligadas
à visualização dos Velórios Virtuais. São perguntas que surgem por se tratar de
um assunto novo e ainda desconhecido, e que muitas pessoas creem não ser
verdade. Analisando as postagens no tópico para a visualização do Velório
Virtual, comprovamos que as pessoas que fazem esse tipo de pergunta são as
que ainda não assistiram a um ou o estão fazendo pela primeira vez. As
páginas das empresas funerárias apenas deixam as câmeras das salas de
velório quando existe, de fato, um velório com transmissão autorizada sendo
realizado. Esta informação é desconhecida pelos usuários de primeira viagem,
daí a existência da primeira pergunta. No entanto, houve um episódio em que a
câmera ficou ligada e uma festa de aniversário de um dos funcionários foi
flagrada pelos participantes da comunidade. Um dos integrantes mais ativos,
chamado Pintinho, salvou o vídeo e o editou em seu computador, colocando
uma música da Xuxa como trilha sonora. O vídeo foi exibido na comunidade
depois de editado, como mostra a imagem abaixo:
Disponível em:
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=36418721&tid=5296592517494429346.
Acesso em 24.05.2012.
75
80
Figura 10 - Divulgação do vídeo de aniversário na funerária
A moderadora Kirya comenta:
Festa de níver na funerária...
Ontem aconteceu uma coisa inusitada...
Teve uma festa de niver na sala de velório, essa mesa de
acrílico no centro é onde colocam o caixão, com direito a
balões e parabéns escrito na parede....kkkkk
Eu achei só meio bizarro...
A sala de velório é em Recife - PE.
Vídeo com sonorização da Xuxa, isso coisa do Pintinho que
gravou... kkkkk
http://video.google.com/videoplay?docid=2399596596592661884
*Detalhe que o povo nem sonha que tinha um monte de gente
acompanhando a festa on-line... kkkkkkkk
O fato da festa de aniversário ter sido realizada em uma das salas de
velório foi o aspecto mais curioso; se é uma prática comum dos funcionários ou
se foi uma piada preparada para o aniversariante, nós nunca saberemos. Até o
comentário de Kirya a respeito do desconhecimento dos convivas sobre
estarem sendo filmados durante a festa pode ser tomado como aplicável ao
81
próprio Velório Virtual. É possível que nem todos os presentes, em pessoa, no
velório, saibam que estão sendo filmados e, portanto, tomando parte em um
Velório Virtual.
A existência de velórios que não são tão "movimentados" também é
motivo de questionamento; se o local está vazio, mesmo o internauta que vê o
Velório Virtual pela primeira vez possui em seu imaginário a ideia de que este é
um momento de despedida e que deve contar com a participação do maior
número possível de pessoas, como reza o costume (REIS, 1991).
A resposta seca da moderadora, "Porque o defunto está morto, senão ia
ser mais animado", não condiz com as reais possibilidades que estão nas
entrelinhas dessa ausência. Os motivos podem ser diversos e nem sempre é
possível determinar o quê, de fato, aconteceu. Mas é nestes momentos que
vemos que a curiosidade desperta outros sentimentos nos usuários durante a
visualização do Velório Virtual:
Figura 11 - Observando os Velórios Virtuais
Os dois primeiros integrantes desejam que os corpos velados, de duas
crianças, descansem em paz; o terceiro reflete sobre o fim da vida, colocando-
82
o como "triste" no caso de uma morte prematura, mas rapidamente interrompe
sua reflexão ao perceber a presença de outra criança de colo no local do
velório: "quase meia noite... absurdo. Não há necessidade", finaliza.
A resposta ácida em relação à pergunta de quando será realizado o
enterro - "Será que vai enterrar o defunto hoje? - Não, eles vão esperar
começar a feder primeiro" - reflete também a dificuldade de se determinar a
duração de um velório que está sendo transmitido. O costume brasileiro reza
que o sepultamento deve ser realizado não antes das 24 e nem depois das 36
horas da ocorrência do óbito, mas não existe uma norma fixa quanto à duração
do Velório. Portanto, cabe à família decidir o que fazer durante este período. O
mais comum é que se realize o velório durante 24 horas, exatamente para que
todos tenham a possibilidade de se despedir do falecido. Na ocasião da
realização do Velório Virtual, quando se sabe que parentes e amigos que estão
distantes não poderão chegar ao local, é ainda mais comum que essas 24
horas sejam cada vez mais reduzidas.
A pergunta sobre a ausência do áudio no Velório Virtual também é
pertinente e a resposta "Porque não é festa" não corresponde à realidade. A
ausência do áudio é justificada, mais uma vez, pela tentativa de preservação
da privacidade dos envolvidos no velório. Sem o áudio, não ouviremos o choro
dos parentes e amigos, nem os comentários deles sobre a pessoa que partiu.
Estes dados, no entanto, podem ser encontrados caso os envolvidos possuam
perfis no Orkut e no Facebook, por exemplo, e usem o perfil do falecido como
meio de expressar essas mesmas ideias. Mas, ao mesmo tempo, nos
perguntamos: as imagens já não são uma quebra dessa privacidade?
No tocante ao local onde o velório está sendo realizado, é possível sabêlo na própria página onde o Velório Virtual está sendo transmitido, pois esta
informação é disponibilizada junto às imagens, no caso dos velórios do Grupo
Vila e, no caso dos da Urbam, é notório que são os que acontecem em São
José dos Campos.
O Velório Virtual, de fato, não é gravado; é transmitido ao vivo, "mesmo
o defunto estando morto", de acordo com as palavras da moderação. Mesmo
assim, esta é uma dúvida também pertinente por ser possível encontrar
gravações desses velórios em sites de transmissão de vídeos, como o
YouTube, por exemplo. Os vídeos de Velórios Virtuais disponibilizados lá foram
83
salvos e colocados no site por pessoas alheias às empresas funerárias, já que,
institucionalmente, a gravação nunca ocorre. A disponibilização desses vídeos
em outros locais acontece para que se possa ver como é um Velório Virtual
sem ter que esperar pela realização de um, ao vivo. Com a gravação, muitas
vezes de apenas alguns minutos, pode-se ter uma ideia de como é sua
realização. Assim, o internauta pode decidir se tem interesse em assistir ao
Velório Virtual de verdade, que, como já falamos, pode durar até 24 horas.
Sobre a realização do próximo velório: esta também é uma questão
imprevisível. A transmissão do Velório Virtual depende não só da morte de
alguém, mas, principalmente, da contratação do serviço pela família. É
impossível determinar uma frequência para a sua disponibilização, daí ser
comum o fato de algumas pessoas passarem dias para finalmente
conseguirem assistir a um - como é o caso da integrante chamada Sofia, que
esperou duas semanas, conforme veremos adiante.
Finalmente, a pergunta que muitos integrantes perseguem resposta com
afinco: quem é o morto? Não, não é só distinguir, entre os presentes, que é
aquele cujo corpo está depositado no caixão. Os participantes da comunidade
querem informações, querem saber quem aquela pessoa foi, o que fazia, e, em
alguns casos, até como a família está lidando com a sua perda. No caso de
assassinatos e crimes que são divulgados pela mídia, essas informações são
facilmente acessadas. Em casos de morte natural ou não noticiadas, o trabalho
detetivesco é voltado para os obituários dos jornais locais - uma vez que se
saiba onde o velório está sendo realizado, ou nos próprios sites das empresas
funerárias. Assim, podemos encontrar informações padronizadas que podem
servir de ponto de partida para o integrante mais curioso:
Figura 12 - Informações sobre o morto
84
Em posse do nome do falecido - no caso da imagem, Adhemar Lobao,
falecido em 17/02/2012, aos 73 anos, pode-se colocar o nome em um site de
busca e encontrar mais informações, se disponíveis, sobre ele. Mas isso
depende da curiosidade dos que estão assistindo ao Velório Virtual e se há
algum indício de que a morte aconteceu por motivos não naturais, como
homicídio, acidente de trânsito ou suicídio.
Apesar de também abrir espaço para discussão de assuntos
transversais aos velórios e possuir tópicos que falam sobre mumificação,
cemitérios famosos e enterro de anões, a movimentação da comunidade reside
na própria visualização dos Velórios Virtuais, o que vem acontecendo com
menor intensidade desde 2010, quando o Facebook superou o Orkut em
popularidade entre os internautas. A comunidade sofreu uma baixa na
quantidade de integrantes - em outubro de 2011 possuía 4.275; em janeiro de
2013, possuía 4.040.
Mesmo assim, podemos encontrar as reflexões dos participantes sobre o
próprio serviço e a ânsia dos novatos em assistir aos Velórios por pura
curiosidade:
Figura 13 - Ânsia em assistir ao Velório Virtual
Nesta imagem, vemos a participante chamada Sofia dizendo: "Até que
enfim peguei um velório aqui! Tava morrendo de curiosidade!". E é exatamente
85
a curiosidade que funciona como estopim para a visualização do Velório Virtual
de um desconhecido. Assim, é possível analisar todos os aspectos com uma
visão distante e, muitas vezes, fria.
Analisa-se o caixão, a quantidade de flores, de pessoas, se estão
vestidas de preto, se conversam, se tem qualquer atitude descontraída. Aqui,
vemos uma discussão sobre a cor do caixão:
Figura 14 - Discussão sobre a cor do caixão
A primeira a comentar, coincidentemente, é uma integrante em luto, pois
substituiu seu nome próprio por esta palavra exatamente para indicar o
momento em que está vivendo, que recentemente perdeu alguém querido,
prática comum nas Redes Sociais. Ela diz: "também queria saber se é uma
criança, a imagem está ruim". Logo depois, pergunta: "Tem velório agora, tem
alguém aí?" A integrante chamada Denise responde, dizendo que está
assistindo e que o caixão é branco, portanto, deve pertencer a um jovem. Após
a menina em luto afirmar que, pelo local estar vazio, o velório deve se estender
por toda a madrugada, a Denise volta, após pesquisa, e coloca a possibilidade
do defunto não ser uma criança, mas sim uma freira exatamente por causa do
caixão ser branco, ter muitas senhoras em volta e o nome da pessoa sendo
velada ser o mesmo de um usuário do Orkut, o qual ela fornece o link para o
perfil, e é da mesma cidade onde o Velório está acontecendo - no caso, Passo
86
Fundo, em Minas Gerais. Em seguida, temos a opinião da integrante
Solit@ari@, que diz que "o caixão não é branco... o véu dá a impressão de ser
branco, mas é marrom...". assim, percebemos o distanciamento através da
importância dada a cor do caixão em contrapartida à identidade do falecido.
Mas
o
morto
é
minuciosamente
observado,
sim,
não
passa
desapercebido: mesmo sem informações mais detalhadas sobre a causa da
morte, é especulado se é homem, mulher, idoso ou jovem, se aparenta estar
dormindo ou até mesmo sorrindo, como podemos ver na imagem abaixo:
Figura 15 - Especulações sobre o defunto
A participante chamada Ana Lopes chama de "maquiavélica" a
expressão do cadáver, que aparentemente está sorrindo. Já a Lady Épica
comenta que "até que enfim" está assistindo a um velório desses, como se já
estivesse tentando fazê-lo a algum tempo. E aproveita para comentar sobre a
quantidade
de
presentes,
fazendo
a
analogia
entre
popularidade
e
acompanhamento na hora da morte. É notório que uma pessoa querida terá
muitas outras em luto pela sua partida; portanto, o velório estará cheio. Mas,
neste caso, como só existem quatro presentes, ela conclui: "Parece que a
pessoa não era lá muito querida, porque se tiver quatro pessoas na sala tem
muito".
87
Vemos, em seguida, a participante Sofia comentando: "preciso pegar um
velório desses!", pois estes comentários foram feitos no dia 7/10/2011 e
somente no dia 22/10/2011, ou seja, quinze dias depois, como mostra a
imagem anterior, foi que ela conseguiu finalmente sanar sua curiosidade.
Temos mais exemplos da postura dos integrantes da comunidade
quanto à análise do corpo no caixão nas imagens seguintes:
Figura 16 - Observações sobre o corpo no caixão
No dia 13/10/2011, a integrante Denise Maróstica começa dizendo:
"Parece que um deles é bem fortinho, pois o caixão é bem grande". Como não
se seguiram mais respostas a este comentário, ela voltou, dois dias depois,
para comentar sobre outro velório: "Velório agora... acho que é uma senhora."
Desta vez, a participante Mirela Oliveira também está acompanhando o
acontecimento e confirma: "Realmente é uma senhora... mas eu acho que a
última roupa que a pessoa vai vestir não precisa ser preto... (risos)... devia ser
muito querida!".
A partir desses comentários, podemos verificar que o funcionamento da
comunidade é, basicamente, este: 1) um ou mais usuários da comunidade
disponibiliza o link para o Velório Virtual no tópico especialmente destinado
para este fim, 2) os integrantes que estão on-line, naquele momento, clicam no
link e assistem a ele na página das funerárias, 3) voltam para o tópico e, lá,
fazem comentários, alternando a visualização do velório e a "conversa" iniciada
por ele no tópico. O esquema se repete até que o Velório em questão chegue
ao fim ou que outro se inicie.
Mas, quais são os motivos que levam essas pessoas a assistirem aos
Velórios Virtuais de desconhecidos? A partir de enquetes e entrevistas
realizadas com 52 e 10 usuários, respectivamente, temos algumas respostas,
expostas e analisadas a seguir.
88
Principais motivos para velar desconhecidos
Colocadas todas essas informações do funcionamento da comunidade e
do comportamento de seus integrantes, nos perguntamos: mas quais seriam os
motivos pra velar virtualmente um desconhecido? Como a resposta para esta
pergunta não pôde ser encontrada nos comentários exibidos abertamente nos
tópicos sobre os Velórios Virtuais, realizamos enquetes e entrevistas com
alguns participantes. Em primeiro lugar, criamos uma enquete geral, utilizando
uma ferramenta disponibilizada pelo próprio Orkut, aberta para todos os
integrantes da comunidade Velórios Virtuais. A enquete ficou disponível para
votação entre 06/08/2011 a 06/08/2012. Nestes doze meses, recebemos
respostas de cinquenta e dois usuários, número baixo se levado em
consideração o universo de quatro mil pessoas. Mas este número é justificado
também pelo movimento decrescente da comunidade com a popularização do
Facebook, que já mencionamos anteriormente. Os resultados obtidos foram:
Figura 17 - Enquete sobre a visualização dos Velórios Virtuais
A maioria - 29 integrantes ou 56% - declara assistir aos Velórios Virtuais
por Curiosidade Mórbida; ou seja, curiosidade diretamente relacionada à morte.
A curiosidade pelo fim da vida é uma característica comum, inerente ao ser
humano, pois "a morte é algo compartilhado e nós devemos saber como
compartilhá-la entre objetos tanto quanto entre os homens"76, já nos disse
Baudrillard (1993).
76
Tradução livre da autora.
89
A visualização do Velório Virtual de um desconhecido como ferramenta
para auxiliar na superação da perda de um ente querido foi votada por apenas
duas pessoas, formando 4% dos participantes. Esta hipótese foi construída a
partir da possibilidade de internalizar a ideia da perda através da constatação
de que outras pessoas também a estão sofrendo naquele momento, uma
expressão que pode revelar necessidade de aceitamento, mesmo que íntimo,
ao perceber que não se está só naquele período. Mesmo que as pessoas que
estão sofrendo com a perda de um ente querido, mostradas no vídeo pela
ocasião do Velório Virtual também sejam completamente desconhecidas, são
modelos, exemplos de que o fim da vida chega para todos.
A terceira opção - Curiosidade por coisas diferentes - foi a segunda mais
votada, somando 19 votos ou 37% das opiniões. Com esta visão, buscou-se
tomar o Velório Virtual como algo esdrúxulo e curioso, sendo a sua novidade
mesma a principal razão para o despertar da curiosidade em relação à sua
visualização. Esta é uma clara exemplificação da curiosidade ligada às coisas
novas e diferentes, não necessariamente relacionadas à morte.
Por fim, foi deixado em aberto, na quarta opção, outro motivo, alheio aos
outros três, pra a justificativa da visualização do Velório Virtual. Por este
motivo, foi colocado como "Outro", e pedimos para que fosse especificado nos
comentários. Apesar de ter recebido dois votos, somando também 4% dos
participantes, eles não foram explicitados. Assim, ficamos sem saber quais
outras razões poderiam ser estas. Como não é possível identificar qual usuário
optou por determinado voto, não pudemos buscar detalhamentos dessas
respostas, deixando, então, a partir da enquete, as três primeiras opções como
as razões mais comuns para tal comportamento.
Seriam elas: 1) Curiosidade Mórbida; 2) Superação da perda de um ente
querido e 3) Curiosidade por coisas diferentes.
Levando nosso trabalho netnográfico mais adiante, acionamos os
integrantes com quem já tínhamos estabelecido contato preliminarmente,
notadamente os que tinham participação mais ativa. A partir da observação das
postagens na comunidade, verificamos os participantes mais colaborativos e
entramos em contato, diretamente com eles, através de mensagens privadas
enviadas para seus perfis na rede social. Com o consentimento de colaborar
para nossa pesquisa, fomos fortalecendo o vínculo através de conversas que,
90
muitas
vezes,
possuíam
conteúdo
pessoal,
nem
sempre
voltado
exclusivamente para a coleta de dados. Essa coleta foi feita de forma gradual,
com dez pessoas. O foco era exatamente os Velórios Virtuais, e as conversas,
desta vez, realizadas através do Facebook, dada a grande quantidade de
pessoas nesta rede social ao invés do Orkut. Esses participantes foram
acionados através do bate-papo, e as conversas foram estabelecidas entre os
anos de 2011, 2012 e início de 2013. Novamente, a curiosidade se fez o fator
mais tomado como estopim para a visualização do Velório Virtual, mas a
Curiosidade de forma geral, muitas vezes confundida e misturada com a
curiosidade mórbida, esta tomada como um produto daquela.
Vejamos este depoimento:
Um desconhecido é alguém que você nunca viu na vida, nunca
nutriu um sentimento, mesmo sendo doloroso é uma coisa fria
assistir um Velório Virtual de uma pessoa que você nunca viu
na vida; e ela está ali naquele lugar que um dia um conhecido
seu já esteve ou vai estar - uma capela mortuária. Dá um
aperto no coração, mas não dá vontade de chorar, se você
frequenta o site de Velórios Virtuais sempre isso acaba se
tornando tão comum - Você diz: Ah, nunca vi tal pessoa
mesmo... Não ligo, estou aqui mais pela curiosidade, tipo:
nossa, morreu como? De quê? - Não tem quase ninguém ali,
que triste... E por aí vai. Curiosidade pelo mórbido apenas... No
caso de uma pessoa conhecida, você já teve contato alguma
vez com ela, então se torna surpreendente saber que essa
pessoa faleceu. Já estive em três velórios na vida e um deles
era do filho de 13 anos de um amigo da minha família, eu só
tinha visto ele umas duas vezes na vida, e no velório dele eu
chorei como se ele fosse da minha família. Há uma coisa mais
pessoal, com certeza. Quando meu padrasto morreu eu achei
inacreditável, as pessoas me contavam e quando eu fui à
capela mortuária eu tive a comprovação: aquele cara forte, que
era militar, estava ali em um caixão. Doeu demais. A dor de
quem perde alguém conhecido é imensa se comparada à dor
de um desconhecido que está ali sendo velado. São mundos
diferentes: um virtual, outro real e mais doloroso.
O ponto de vista desta moça é bastante contundente: afirma que a
visualização do Velório Virtual de um desconhecido pode levar à identificação
pessoal somente por conta da morte, por ser um momento que todos nós
teremos que enfrentar, um dia. Mas não desperta sentimentos mais profundos.
91
O que faz com que se assista a tal transmissão é a curiosidade em saber o que
aconteceu, de fato, com a pessoa que morreu. Ela faz uma relação com o
velório de uma pessoa conhecida, seja este virtual ou não, e relata
experiências próprias, colocando a morte, nestes casos, como algo
inacreditável, que só é apreendido no momento em que se vê o corpo no
caixão. A dor da perda, então, só existe no caso de alguém com quem se
conviveu, com quem se partilhou momentos. O Velório Virtual realmente
pertenceria a um mundo diferente do real exatamente por esta separação; o
velório real ou Virtual de um ente querido está bem mais próximo não só por
conta da presença física - sua ou de pessoas conhecidas - mas mais pela parte
psicológica, pelos momentos que já foram partilhados anteriormente com o
falecido.
No ponto de vista desta outra moça, não existem diferenças entre o
Velório real e o Virtual, e mais: os participantes da PGM podem ser tomados
como doentes:
Não vejo diferença, penso que é igualmente as situações, nunca
perdi alguém tão próximo, mas não acho que tenha diferença, a
indiferença de alguns com isso é a mesma, todos participam,
mas ninguém quer estar lá. Na minha opinião, todos que tem
fascínio pela morte (digo isso pelo grupo PGM) ou tiveram uma
experiência com a morte ou são possíveis suicidas, todos sem
exceção tem uma perturbação ou transtorno mental.
Talvez a falta de percepção desta moça para as diferenças entre os
velórios reais e virtuais resida no fato de que ela mesma nunca perdeu alguém
tão próximo, como afirma em seu depoimento. Seja real ou virtual, ninguém
quer, a seu ver, estar num velório, mesmo que dele participe. Ela coloca a
curiosidade pela morte expressa no ambiente da PGM e na comunidade
Velórios Virtuais como algo derivado de dois fatores: da experiência de ter
perdido alguém ou como algo doentio, propenso ao suicídio, chegando a
colocar esse comportamento como "perturbação ou transtorno mental".
Aqui, temos a fala de um integrante que nunca viu um Velório Virtual:
Nunca assisti a um velório virtual. Em caso de algum
desconhecido, o que me levaria assistir seria a curiosidade de
92
saber como as pessoas presentes estão se comportando para
relacionar isso aos aspectos da morte. A morte de alguém
próximo deixa as pessoas sensíveis e talvez um pouco “fora de
si”, portanto quando se conhece quem está sendo velado (pelo
menos no caso de pessoas próximas), a sensação é de que se
“não viu, não aconteceu”. Por exemplo, conheço alguém que
morava em outro país e que quando a mãe morreu, pediu para
que os parentes tirassem fotos dela no caixão. Fora nesses
casos, não vejo muita utilidade.
Neste depoimento, temos a reafirmação da curiosidade como estopim
para a visualização do Velório Virtual, principalmente voltada para o
comportamento dos presentes no local. Mas temos também a ideia de que é
necessário ver o corpo no caixão, no caso de um conhecido, para que se
introjete a ideia de que a outra pessoa se foi.
Outra integrante que nunca assistiu a um Velório Virtual responde:
Nunca assisti a um velório virtual e acho super chato e
desnecessário. Assistiria se por um acaso estivesse sendo
comentado na hora que eu tivesse online de algum babado que
tivesse acontecendo.
Apesar de considerar o Velório Virtual uma coisa chata e desnecessária,
a vontade de assisti-lo viria caso soubesse de um acontecimento interessante,
ou "babado", como ela coloca, no momento da transmissão. A curiosidade aqui
estaria ligada somente a um comportamento extraordinário dos presentes no
velório, comportamento este que pode ou não estar diretamente ligado à morte
daquela pessoa que está sendo velada.
No depoimento seguinte, vemos novamente a ideia da curiosidade como
principal fator:
O principal motivo para se assistir um velório virtual de um
desconhecido, na minha concepção, é a curiosidade. A
curiosidade de saber como as pessoas ali presentes vão se
comportar naquela cerimônia, como estarão lidando. E
conforme esses pontos são notados surgem outros que
prendem a atenção, por exemplo, um presente que chora mais
ou se exalta, faz quem assiste supor um parentesco. Nunca
assisti um velório virtual de uma pessoa conhecida, mas
acredito que a principal diferença seja não poder olhar pra
pessoa e se despedir, não poder abraçar quem está ali e você
93
ama. Acho que o velório virtual é um exemplo bacana de como
a tecnologia pode interferir de uma maneira positiva nesse
processo, permitindo que a distância seja de certa forma
superada, que pessoas que assistem mesmo que
aleatoriamente possam pensar a respeito desse momento.
Mais uma vez, a vontade de saber como amigos e familiares do morto se
comportam no momento do velório se faz presente. É a partir desse
comportamento que serão construídas as ideias dos espectadores sobre o
morto e essas mesmas pessoas que lá estão. A integrante afirma nunca ter
assistido um Velório Virtual de uma pessoa conhecida e acredita que a
diferença no comportamento assumido durante o Velório Virtual de um
conhecido e um desconhecido reside na necessidade que se tem, no primeiro
caso, de realmente se despedir do ente querido. Ela assegura que esta é uma
tecnologia que interfere de maneira positiva na lida com a morte e que pode ser
utilizada como ferramenta para a quebra da distância física, no caso de um
conhecido, e que pode suscitar a discussão sobre a morte no caso de um
desconhecido.
Vimos, aqui, como o Velório Virtual funciona. Primeiro, nos debruçamos
sobre as empresas escolhidas, salientando a justificativa de cada uma para a
adoção do serviço e a maneira que cada uma o conduz: o Grupo Vila, de forma
paga a podendo ser restrito à família, disponibilizado para o público somente
após autorização da família enlutada, e a Urbanizadora Municipal, ou Urbam,
que oferece o serviço de graça, o que implica a autorização para sua
veiculação no site da empresa de maneira livre.
Também abordamos, através da netnografia, como a comunidade
Velórios Virtuais do Orkut é gerida. Abordamos suas regras de funcionamento,
um pouco menos sofisticadas que às pertencentes à comunidade que lhe deu
origem, a PGM. Possuindo apenas um moderador, a Velórios Virtuais deixa
muitas das perguntas suscitadas pelos seus integrantes sem respostas.
Exatamente por esse hiato, pudemos coletar as opiniões desses
integrantes em entrevistas privadas, realizadas através do Facebook por conta
da queda da popularidade do Orkut durante o desenvolvimento de nossa
pesquisa e pudemos verificar opiniões diversas quanto à realização e
visualização
do
Velório
Virtual.
Descobrimos
que,
regidos,
então,
94
majoritariamente pela curiosidade, os internautas que buscam visualizar os
Velórios Virtuais querem apenas saber o que acontece quando alguém, que
eles não conhecem, morre. Será que aqueles no vídeo se comportam da
mesma maneira que as pessoas que eu conheço? E, no caso de nunca terem
tido a oportunidade de comparecer, pessoalmente, a um velório, tomam a seu
formato virtual como uma maneira de se inteirar do assunto, de se preparar
para a eventualidade de necessitar participar, de fato, no velório de um
conhecido.
Mas também podem se envolver tanto nesta atividade ao ponto de rezar
em favor dos mortos exibidos na tela, principalmente se estão sozinhos ou se
puderam saber a causa de sua morte, quem era aquela pessoa, o que fazia,
quais os seus gostos. Esse processo de identificação é um pouco mais
incomum, presente apenas no discurso de alguns dos entrevistados e notado
de maneira escassa durante a fase da observação participante.
De todas as opiniões colhidas ou posturas observadas, o que se fez
mais presente foi a reafirmação do interesse do homem pela morte, seja
manifestada pela discussão acerca do fim da vida, do acompanhamento e das
posturas que se deve tomar diante do corpo no velório ou do que a morte - do
outro - pode significar para um indivíduo.
95
Considerações Finais
Suscitar a discussão da morte, em qualquer âmbito, é um ato
melindroso, muitas vezes até mal visto, precedido de maus presságios e
protestos. Mas, passado o choque inicial da escolha do fim da vida como tema
para qualquer debate, é possível perceber o interesse geral que o assunto
desperta. Nosso objetivo de analisar o movimento de reaproximação do debate
sobre a morte e de seus rituais após sua migração para a virtualidade foi
composto pela netnografia de dois espaços: as comunidades Profiles de Gente
Morta e Velórios Virtuais, ambas surgidas na rede social Orkut e a primeira
transferida para o Facebook após seu fechamento no local original.
A netnografia se colocou como chave para o desenvolvimento deste
trabalho por ser o método mais adequado para o descobrimento das práticas
existentes nos espaços que estudamos - espaços virtuais. Esse tipo de
pesquisa que contempla o ciberespaço tem sido utilizado largamente nos
últimos anos, em estudos que versam sobre romance (Silva e Takeuti, 2010),
sobre o amor e a ausência do corpo nas relações iniciadas no campo virtual
(Vieira e Cohn, 2008) e mesmo nas práticas de luto em comunidades do Orkut
(Tomasi, 2010). Com o nosso trabalho, estamos contribuindo para a contínua
legitimação deste método para a investigação antropológica.
Ao nos aproximarmos um pouco do trabalho de antropólogos,
sociólogos, historiadores e filósofos que se inclinaram para a discussão de
questões próximas e aplicáveis à realidade dos grandes centros, através da
análise antropológica no ciberespaço, pudemos perceber que, para a análise
da sociedade moderna e contemporânea, hoje, e aqui especificamente,
também a abordagem da morte a Internet se faz referência e cada vez mais
significativa para não só para a Antropologia, mas para todas as áreas do
saber, vista a interdisciplinaridade encontrada na abordagem deste assunto. A
morte está presente em todos os campos.
Tomamos o perfil nas Redes Sociais como representação do indivíduo e
como ferramenta para a preservação de sua memória após a morte, e
abordamos a visualização de sites de empresas funerárias que transmitem os
Velórios Virtuais. Com isso, nos propomos a identificar os principais motivos
para o surgimento, utilização e divulgação deste serviço, bem como o
96
comportamento de seus usuários, exposto nas comunidades por nós
netnografadas. Durante nossa pesquisa, a PGM foi extinta pelo Orkut,
permanecendo ativa somente no Facebook, para onde havia migrado meses
antes e, logo em seguida, reaberta no próprio Orkut, mas todos os dados
pertencentes à versão original não estão mais disponíveis online, apenas nos
printscreens que salvamos durante a análise. Este foi um acontecimento
inesperado, mas que pouco interferiu em nosso estudo.
Os dados que coletamos são oriundos de ambos os espaços - Orkut e
Facebook - e muitos de seus integrantes permanecem ativos no segundo local.
Assim, pudemos dar continuidade à investigação que se propôs verificar em
que medida a transmissão de Velórios Virtuais pode oferecer uma solução para
a quebra da distância entre a vida e a morte, já que a virtualidade possui a
propriedade de estreitar laços e criar outros, através de interação entre seus
usuários.
Nos propusemos também a averiguar a tentativa de reaproximação da
morte e dos demais ritos funerários através da exibição dos Velórios Virtuais e
da discussão sobre o tema nas comunidades, buscando, principalmente,
distinguir e analisar os motivos para a identificação pessoal de internautas com
a exibição de Velórios Virtuais na Internet. Chegamos à conclusão que os
principais fatores que levam as pessoas a assistirem a um Velório Virtual de
um desconhecido é, principal e predominantemente, a curiosidade, seguida
pela ideia de superação do luto pessoal através do conhecimento da perda de
outrem.
Foram realizadas enquetes nas comunidades e entrevistas pessoais
com os integrantes que se propuseram a colaborar com nosso estudo. Todo o
contato foi feito de maneira virtual, bem como as próprias entrevistas. Ao dar
voz aos participantes dessas comunidades, complementamos a análise
iniciada com a dissecação do funcionamento desses espaços, suas regras e
condutas propostas. Através do posicionamento dos participantes frente ao
funcionamento das comunidades e de seu conteúdo, pudemos compreender
melhor como essas pessoas enxergam a morte e o seu debate.
Reforçamos que esta é uma tarefa ainda em desenvolvimento. O que
pudemos aprender e expor, até então, mostra que os estudos sobre a cultura
da morte e o morrer em uma sociedade específica, - seja ela engajada à
97
tecnologia e suas novas denominações e possibilidades ou ao curso do que se
conveniou chamar de figurações mais tradicionais de comportamento, - fazem
parte do conjunto de modos de vida e de organização social em um processo
contínuo de interação entre emoções e sociabilidades. O campo cada vez mais
significativo, iniciado no final dos anos de 1970, pela Antropologia das
Emoções, que tem por objeto a cultura emocional de um povo, de uma
comunidade, pode ainda nos revelar diversos desdobramentos para melhor
compreender os novos caminhos traçados pela contemporaneidade.
98
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Plateias da Morte - CCHLA - Universidade Federal da Paraíba