A atualização do debate ciência - sociedade está hoje centrada nos temas que discutem os efeitos negativos e positivos das tecnologias disponíveis. Nesse aspecto, a Biossegurança abraça essa preocupação, pois cabe a ela garantir cientificamente as bases dos controles dos efeitos positivos e negativos, considerando a relação entre risco e benefício dessas tecnologias. Na construção da Biossegurança, identificamos como área do conhecimento científico um lastro cognitivo que, historicamente, está associado aos processos que resultaram na confirmação do que hoje chamamos de estruturas científicas e tecnológicas, nas quais onde se apoiam as ciências da vida e suas possibilidades experimentais. Considerando a consolidação desse lastro, remontamos aos processos que contribuíram para dar forma à ciência moderna, processo este que, em sua origem, segundo a História da Ciência, estava mais próximo do Renascimento do que da Modernidade. Encontramos algumas importantes correlações, que podemos atribuir às questões impostas à Biossegurança e aos processos de legitimação da ciência moderna, nas indagações colocadas a partir das proposições existentes, já evidenciadas pela perspectiva do universo newtoniano e suas possibilidades de afirmação, voltadas agora para a compreensão e decodificação científica da natureza, cujo enfoque considerava até então, prioritariamente, as propriedades físico-mecânicas do universo para explicar seus fenômenos. O Universo de Newton estava pleno de forças fora do alcance do plano racional, possibilitando brechas que colocavam para sua ciência a existência de possíveis forças ocultas impossíveis 42 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento Marli B. M. de Albuquerque Doutora em História da Ciência pela Université Paris X Pesquisadora da FIOCRUZ/Casa de Oswaldo Cruz Colaboradora do Núcleo de Biossegurança da FIOCRUZ [email protected] de serem mensuradas e demonstradas no plano físico. Também as ciências de Kepler e Copérnico estavam imbuídas de pressupostos metafísicos provenientes da vertente ocultista do pensamento Renascentista, pois o homem do Renascimento estava francamente dividido entre Deus e a razão, que colocava dúvidas relativas ao plano de respostas, que poderiam estar ao alcance do postulado da Física como ciência, capaz de decodificar a natureza do mundo a partir de teorias apoiadas no instrumental técnico como recurso demonstrativo e probatório. Hoje, uma das questões basilares do novíssimo campo de conhecimento da Biossegurança é a sua capacidade de assegurar, de forma demonstrativa e objetiva, as possibilidades de controle capazes de definir segurança e risco para o ambiente e para a saúde humana, associados à liberação dos Organismos Geneticamente Modificados, os OGMs. Grande parte das manifestações opositoras dos projetos biotecnológicos relativos aos OGMs nos remete a forças que estão ocultas na natureza, minimizando a importância e a eficácia dos monitoramentos propostos pela ciência e colocando, no âmbito do universo natural, os desafios sobre os quais, a priori, a ciência poderá declarar sua impotência. Por outro lado, outros componen- tes, igualmente relevantes, não são claramente considerados nos processos de construção da ciência, pois, historicamente, as afirmações que tendem a consagrar a ciência moderna como triunfo absoluto da razão tendem a minimizar a importância desse movimento como integrado na história da cultura. O aparato ideológico que, nos dias atuais, elabora e executa ações militantes contra os processos bioctenológicos, em especial, contra a tecnologia do DNA recombinante, base da produção dos OGMs, estrutura seus argumentos pautados numa percepção que tende a enfatizar o distanciamento entre os processos estabelecidos pela ciência e as demandas e desejos da sociedade, e entre o estabelecimento de novas tecnologias e a preservação de tradições culturais, entre outras. Nesse contexto, podemos também colocar uma questão essencial, que parece faltar aos debates, ou seja, a recuperação da história recente da sociedade inserida num mundo globalizado, no qual a tecnologia se apresenta como um dos mais valorizados ícones da cultura ocidental, alcançando, mesmo de maneira anacrônica, grupos menos complexos em termos de organização social. É o caso do fascínio que a tecnologia exerce sobre indígenas, por exemplo, cujos membros de vários grupos, usam relógios digitais, televisões, rádios, com- putadores e outros produtos fornecidos pela nova era tecnológica. Vários fatores estão associados às estratégias dos grandes interesses políticos e econômicos embutidos na questão, mas o fato contundente é a relação entre o fascínio tecnológico e a manutenção dos valores tradicionais das sociedades. Negar os processos científicos, mesmo os que causam mais impacto na sociedade, como é aquele gerado pela bioctenologia em curso, seria descartar ou diminuir a importância dos grandes investimentos destinados ao avanço do conhecimento sobre a vida e sobre o homem, tal como foi o fato associado à história recente da ciência, projetado pela descoberta da estrutura do DNA, realizada por Watson e Crick em 1953. A partir desse fato científico, concretizouse irreversivelmente o avanço da Biologia Molecular, abrindo novas fronteiras para a ciência, inclusive a possibilidade da arquitetura de novas formas de vida. Diante dessa realidade, pergunta-se: O homem está brincando de Deus? Ao abordarmos, nesta reflexão, a projeção do impacto das inovações técnicas e científicas na sociedade que foi contemporânea da estruturação da ciência moderna, podemos verificar um questionamento semelhante àquele formulado no século XVI: O homem está negando Deus? E foi com base nessa questão, que, aparentemente, opunha a ciência ao contexto mental da sociedade da época, que muitos homens de ciência tiveram que negar suas teorias, enquanto outros foram julgados e executados pelo Tribunal do Santo Ofício. É imperativo ressaltar que essa negação expressa também a desconsideração da ciência como valor cultural da sociedade. É sonegar, sobretudo, que, por um lado, a tecnologia do DNA recombinante passou a suscitar preocupações e até pânicos, acelerando a necessidade da formalização de um campo do conhecimento científico mais preciso, a Biossegurança, a partir das decisões tomadas na Conferência de Asilomar, de 1975, quando aquele fórum sistematizou questões que estavam na pauta dos cientistas desde 1973. Aquele evento serviu de marco para registrar as preocupações pontuais de um grupo de pesquisadores, cujas principais indagações estavam centradas nos riscos e nos benefícios que envolviam a ciência da recombinação, preocupações estas explicitadas na reunião realizada no Massachusetts Institute of Tecnology. Em Asilomar, declarou-se que os experi- mentos de clonagem continham riscos, em maior ou menor grau, e que os mais preocupantes eram os biológicos. Diante dessa complexidade, acordou-se que os projetos que envolviam as técnicas de recombinação ficassem sob observação até que fossem ajustados cientificamente métodos de controle de riscos laboratoriais. Assim, um outro grande resultado de Asilomar foi a franca demonstração da capacidade que tem a comunidade científica de absorver e de acatar preocupações apontadas pela sociedade, além de empenhar esforços para construir suportes para responder positivamente a essas preocupações, tanto no tocante à segurança dos espaços laboratoriais, como no tocante à aplicação de novas tecnologias, mais precisamente a biotecnologia, dando atenção especial à liberação dos OGMs, com base, sobretudo, nos instrumentos previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e nos Relatórios de Impacto Ambiental. Tomando como exemplo as questões mais atuais colocadas pelo surgimento acelerado de novas tecnologias, o desenvolvimento dessa proposta reflexiva pretende destacar os grandes processos de construção da cultura científica, com a intenção clara de destacar que a ciência em si pode optar, pode construir seus próprios objetos, pode propor suas linhas de investigações e formular diferentes métodos, pois o conhecimento em si é um valor, e a ciência, em sua estrutura, está livre dos condicionamentos ideológicos. No entanto, se a ciência não pode estar presa a uma rigidez moral e ética, pode e deve estar ao uso que dela se faça, considerando suas implicações sociais. Essa questão, como veremos, sempre esteve presente no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, pois, não nos esqueçamos, a construção das bases da ciência moderna registrou eventos e fatos tidos hoje como cruéis. Em nome da manutenção das tradições, Giordano Bruno foi queimado, Galileu Galilei enfrentou a Inquisição. Ao resgatar os processos cognitivos das revoluções científicas no que se refere à constituição das bases da ciência moderna, devemos considerar a perspectiva cultural, que registra com vigor a passagem da percepção do mundo baseado no neoplatonismo, que considerava como categorias fundamentais a matéria e o espírito, para a percepção que seria imperativa na ciência moderna, ou seja, o deslocamento daqueles esses fundamentos para as categorias de SUJEITO-OBJETO em busca da OBJETIVIDADE RACIONAL. O cenário cultural e científico do Renascimento conjugou as expectativas da sociedade originadas nas transformações da vida material com o plano mental e cultural dos homens a fim de confirmar os espaços abertos, que resultaram na constituição de um processo que levaria à consolidação de condições favoráveis para a formalização da ciência moderna, conjugando, nesse processo, as contradições e as percepções paradoxais entre o desejo do avanço para novos padrões e valores sociais, e os temores justificados pela guarda das tradições. A ambiência material, mental e cultural possibilitou a concepção da idéia de um mundo físico organizado a partir das bases da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (1473-1543), mundo este até então organizado segundo a percepção geocêntrica de Aristóteles-Ptolomeu, que entendia os fenômenos do mundo dividos entre passageiros e corruptíveis (esfera sublunar) e perfeitos, eternos e absolutos (esfera supralunar), estando os primeiros associados aos atos humanos e os segundos, associados ao plano divino. Essa noção de organização dos fenômenos do mundo atendia plenamente à compreensão cosmológica legitimada pela igreja católica, que confirmava, assim, a existência de um universo regido pela manifestação da onipresença, da onipotência e da onisciência de Deus. As bases dadas pela teoria de Copérnico iriam construir um novo rumo para a compreensão do espaço e dos fenômenos físicos, pois propunha uma perspectiva baseada na objetividade e na concretude para a observação destes, e uma perspectiva subjetiva e mental destinada à leitura dos anseios e das expectativas humanas. A intercessão entre as demandas materiais, o contexto da transformação dos valores culturais e a configuração de novos quadros mentais, processados entre os séculos XIV e XVI, estava contemplada por um conjunto de eventos amparados e possibilitados pelas conquistas realizadas no campo científico, que caracterizam uma revolução cognitiva que trazia em si consonância com os desejos instalados na sociedade. A partir dessas transformações introduzidas pela ciência, o mundo passa a adquirir uma conformação mais integrada, mais globalizada. Novas percepções dos fenômenos físicos confirmados pela Física Mecânica modificaram a percepção da inserção do Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento 43 homem no mundo, assim como modificaram dramaticamente a inserção do mundo no universo, abrindo novas dimensões e novos parâmetros para a avaliação da potencialidade humana diante do universo físico e natural. Concretamente, no rastro das inovações colocadas pela ciência renascentista, efetivaram-se importantes iniciativas que modificaram totalmente a noção sobre o mundo, como foram, por exemplo, as grandes navegações e o desenho de uma nova cartografia do mundo; mundo mais diverso em termos de sua natureza e de sua cultura. Esses fatos causaram um grande impacto e transformaram substancialmente o mundo europeu, consolidando também a ciência como valor essencial para o processo civilizatório num mundo, agora, definitivamente ampliado. Essas transformações manifestadas pelas necessidades da vida material e pela ansiedade cognitiva dos processos de transformação dos valores e da cultura possibilitaram distinções entre o alcance do conhecimento interior e o do conhecimento exterior, e aceleraram a percepção do mundo com características distintas, onde o homem material se apresentava, na sua relação com o conhecimento, sendo portanto o homem racional, mas este mesmo homem era também subjetivo, no tocante a sua relação com Deus. Essa perspectiva da percepção humana diante dos fenômenos do mundo promoveria a separação do conhecimento científico da religião, e conduziria a um processo que resultou na dessacralização do mundo. As progressivas descobertas propiciadas pela Física com base na observação da mecânica dos corpos abririam o caminho de uma nova percepção dos fenômenos do mundo e da natureza. A criação do método experimental proposto por Francis Bacon (1561-1626) e por Galileu Galilei (1564-1642) foi fundamental para dinamizar os processos de pesquisas e de descobertas científicas acompanhados pelo valor do rigor e da objetividade científica. Os grandes marcos que definiram a separação entre o racional e o sagrado centraram-se nas pesquisas e descobertas sobre as macro-estruturas do universo, demonstradas especialmente nos estudos de Kepler (1571-1630); sobre a forma elíptica dos astros, que consolidou a idéia da ausência da perfeição divina que caracterizavam a idéia, até então vigente, da criação divina para explicar o universo e tudo que nele 44 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento existe. A busca da precisão técnica para ajustar e confirmar as novas proposições sobre a organização cosmológica do mundo também seria essencial para legitimar os processos de consolidação da percepção científica a respeito dos fenômenos da natureza. O alargamento da busca científica sobre o movimento mecânico dos astros e dos corpos sobre a superfície da Terra começou a ganhar mais consistência a partir do uso da luneta, inventada por Galileu. Esse recurso tecnológico consolida o campo do conhecimento da Física, favorecendo a criação de leis voltadas para a concepção da noção de um universo uniforme. Essa linha de percepção do universo e de seus fenômenos ganha um novo reforço a partir da perspectiva de visualização dessa uniformidade, através da geometria, proposta por Descartes (1596-1650), quando este congrega os recursos da matemática, fundindo a álgebra, a aritmética e a geometria para organizar a estrutura do raciocínio matemático, e abrir novas possibilidades de demonstração padronizada voltadas para os métodos baseados na experimentação. A idéia de um mundo uniformizado, regido pelas leis da Física Mecânica, permite o avanço de observações e definições padronizadas dos fenômenos ocorridos no universo, tal como a gravidade, proposta, como Lei da Mecânica, por Isaac Newton, e contribui para a construção da percepção do mundo, cujos movimentos reguladores de sua ordem eram agora baseados na razão matemática, que os visualizava como máquina, e substituíam a vontade voluntariosa e misteriosa dada por Deus. O racionalismo configura uma forma de compreensão do mundo, dos objetos e das coisas, mas o movimento mental e ideológico do homem continua ligado à valorização da criação divina, fato que será também objeto de preocupação da ciência e de seus filósofos. Para resolver essa dicotomia entre o racional e o divino, Descartes propõe a distinção entre o mundo objeto manipulado (res extensa), e o mundo subjetivo e pensante (res cogito), e separa o conceito de homem do conceito de natureza, sugerindo que os fenômenos humanos estão fora do âmbito da natureza, pois a idéia de homem passa a ser correlata ao conceito de espírito, onde reside o mundo subjetivo do pensamento. O conceito de natureza está fora do homem e o homem, fora do conceito de natureza. No âmbito da reorganização do conhe- cimento, o estudo e a reflexão da natureza caberá à ciência, e a reflexão sobre o homem caberá à Filosofia; ao homem caberá o status de sujeito pensante e à natureza o status de objeto manipulável e controlado pela razão científica. Essa dimensão do alcance da ciência, do lugar do homem e da importância de Deus se volta para a definição do homem segmentado em corpo, mente e espírito, e contribui para a constituição de campos científicos mais especializados. A Medicina se preocupará com os fenômenos do corpo humano, sobretudo a partir do avanço das pesquisas sobre anatomia realizadas por Vesálio (1514-1564); os fenômenos mentais, que caracterizam a produção do pensamento, passam ao domínio da Filosofia; e as questões espirituais ficam sob o domínio da Teologia. A ciência, que irá se ocupar dos fenômenos da natureza, irá investigá-la, percebendo-a basicamente como uma coleção de corpos dotados de movimentos mecânicos, e procederá, a partir dessa noção, à sua classificação, atributos e utilização, favorecendo a construção de uma lógica utilitária dos recursos encontrados na natureza em benefício do progresso material da sociedade, consolidando que se perceba a natureza como estoque de recursos, e lapidando noções que iriam se concretizar verticalmente durante os processos das revoluções industriais. No entanto, também o avanço industrial criou uma nova demanda para a ciência, abrindo-lhe caminho para a estruturação de outros campos especializados da ciência, em particular para a Química e para a Biologia, ciências fundamentalmente apoiadas no método experimental baseadas na observação isolada do fenômeno em laboratório, para confirmar regularidades do fenômeno observado ou provocar repetições. O método, ancorado na necessidade incondicional do experimento, foi supervalorizado pelos estudos promovidos por essas ciências, e realizou uma transformação paradigmática na percepção do mundo e de seus fenômenos. Os experimentos liderados pelos laboratórios de química e de biologia comprovaram, enquanto fato essencial da ocorrência dos fenômenos da natureza, o movimento interno da matéria, superando a predominância da visão que considerava essencialmente a externalidade dos mesmos pelo movimento regido pelas leis da mecânica. Dentro dessa nova percepção dos fenômenos da natureza, algumas passa- gens constituíram marcos para a construção do paradigma que percebia a natureza como estrutura interna vital. Em Lavoisier (1743-1794), a Química iria afirmar esse movimento interno e dinâmico dos fenômenos, apontando para a existência de uma natureza cíclica, por intermédio da clássica afirmação que traduzia o movimento interno da matéria: na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Nessa linha de preocupação, Newton avançaria em seus estudos, procurando perceber o movimento interno da matéria, investindo nas pesquisas sobre a luz e a ótica, contribuindo com a formulação da teoria dos movimentos ondulatórios. Também Lineu (1741-1783) contempla, em seu estudo de sistematização da classificação das espécies vegetais, a noção de evolução, e Lamarck, ao dedicar-se ao estudo dos seres vivos, desenha a idéia de evolução natural, que será, posteriormente, desenvolvida por Charles Darwin (1809-1882), estudo que abrangeria os campos das ciências naturais e humanas, como a biologia, a história, a antropologia e a filosofia, favorecendo a construção de percepções interdisciplinares nos estudos sobre a natureza e a dinâmica da vida, enfatizando uma relação mais estreita entre o homem e a natureza, dentro da perspectiva do pensamento científico, reabilitando o homem como parte integrante do mundo natural, dando aos fenômenos naturais uma conotação orgânica no sentido de sua continuidade. Um outro importante marco foi elaborado pelas observações e pesquisas realizadas por Louis Pasteur, de formação química, que funda a doutrina microbiana para explicar o princípio microbiano das doenças, deixando a vacina disponível para a sociedade como terapêutica preventiva das moléstias de caráter epidêmico, e contribuindo decisivamente para a organização de uma medicina voltada para a saúde coletiva, atendendo às demandas do crescimento urbano e das urgências sanitárias como conseqüência do aceleramento da produção industrial. O contexto definido pelo progresso industrial verticaliza a percepção e a conseqüente utilização da natureza como fonte de recursos, traduzida em solos férteis, ocorrência de minérios, existência de mananciais, de florestas, etc., itens classificados como riqueza e potencial econômico das nações. A construção dessa visão da natureza, agora, sem a intervenção direta da ciência, vai estimu- lar a mercantilização dos espaços naturais para atender aos projetos industriais, criando as condições necessárias para a eclosão de conflitos e disputas entre os Estados, na luta pela conquista dos melhores territórios. Nesse contexto, valorizam-se os estudos e os levantamentos baseados nas pesquisas amparadas pelo campo científico das geociências, como lastro seguro do método cartográfico ou georeferenciado para determinar as fronteiras naturais dos Estados. Por outro lado, esta conjuntura e as preocupações bem pontuais impõem a percepção do espaço natural associado à história dos territórios, contemplando seus aspectos culturais para estabelecer as diferenças territoriais. As proposições metodológicas de Carl Ritter (1779-1859) marcam essa perspectiva da percepção do espaço natural, o espaço intimamente relacionado com as intervenções das necessidades humanas, tanto no plano objetivo de sua sobrevivência, como no plano de sua identificação subjetiva e cultural. Os estudos elaborados por Ritter e, mais tarde, por Friedrich Ratzel (1844-1905) lançariam as bases para a formulação de uma outra percepção do espaço natural, ou seja, aquela que concebia o homem como resultado do meio natural, e considerava a construção civilizatória do homem incluída no quadro geral da natureza por ele conhecida e onde ele se encontra adaptado biologicamente e mentalmente, delineando, assim, a prénoção daquilo que seria posteriormente uma vertente teórica para a construção do paradigma ecológico. O paradigma ecológico retomaria criticamente a lógica do racionalismo cartesiano para redefinir a percepção do movimento do universo natural, minimizando a importância hierárquica da dinâmica da vida, mas, sobretudo, reintegrando o homem nessa dinâmica, e valorizando acentuadamente, a diversidade da natureza, incluindo os aspectos da diversidade cultural humana com base no pressuposto teórico que conduziria a percepção de que o processo natural se realiza por sínteses, através da produção e da reprodução da vida, sendo, portanto, o fator sintetizador, o ponto, ao mesmo tempo, unitário e diversificador do mundo, e considerando que o movimento vital congrega, simultaneamente, o orgânico, o inorgânico, o fragmentário e o unitário, onde a evolução é a condição fundamental para a existência do diverso que caracteriza a unidade em escala planetária. O que parece ser um contexto de encantamento ou de desencantamento diante das potencialidades, projetos e promessas da ciência solidifica a estruturação mental do desejo de uma natureza lúdica, de um planeta igualitário, enfim, do sonho do Éden. Essas bases ideológicas deságuam de várias maneiras nos discursos e nas ações que se afirmam ecológicas. No entanto, devemos salientar que a relação entre ciência e sociedade possui uma história que faz parte da história do homem. A atualização do debate ciência sociedade está hoje centrada nos temas que discutem os efeitos negativos e positivos das tecnologias disponíveis. Nesse aspecto, a Biossegurança abraça essa preocupação, pois cabe a ela garantir cientificamente as bases dos controles dos efeitos positivos e negativos, considerando a relação entre risco e benefício dessas tecnologias com o objetivo de cuidar da segurança da vida e de diminuir assim, a distância histórica que se construiu entre a sociedade e os laboratórios. Devemos estar atentos às implicações dos atos que anunciam e agem para desconstrução da ciência e da tecnologia, ou que reeditam visões e percepções enraizadas na tradição religiosa ou em quaisquer outras apoiadas em posições dogmáticas, para bloquear o alcance da ciência. Lembramos que, quando Charles Darwin publicou seu livro A Origem das Espécies, a sociedade revelou medo e pânico diante das heresias que negavam a idéia criacionista sobre a origem do homem e do mundo. Em termos contemporâneos, essa ideologia preparadora do pânico, arquitetada para conduzir enfrentamentos com as perspectivas dos avanços científicos e tecnológicos, pode redefinir e legitimar pensamentos e ideologias que ingenuamente pretendem decretar o fim da ciência. Referências Koyré, A. Do mundo fechado ao unuverso infinito. 1957, ed. Forense. Jacob, François. A lógica da vida (uma história da hereditariedade). 1983, Graal, RJ Mason, S.F. História da ciência. 1962. Ed. Globo, Porto Alegre. Morin, Edgar. O método, 3 volumes. S/ d, Zahar Editores, RJ Moreira, Ruy. O círculo e a espiral. A crise paradigmática do mundo moderno. 1993, ed. Cooautor, RJ Wilson, Edward O. L´enjeu Écologique. http://www.larecherche.fr/view/333/ 03330141.html. Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento 45