Metabolismo do heme - Rui Fontes
Metabolismo do heme
1. Os hemoproteídos são heteroproteídos cujo grupo prostético é o heme, uma porfirina contendo
Fe2+. São exemplos de hemoproteídos a hemoglobina, a mioglobina, os citocromos da cadeia
respiratória, o citocromo P450, a catálase, a peroxídase e a pirrólase do triptofano.
2. O heme pode ser descrito como sendo formado por protoporfirina III, um composto corado e
fluorescente que contém “pontes” metenilo (não metileno como nos porfirinogénios precursores
que são incolores e não fluorescentes) unindo 4 anéis pirrólicos (4C,1N), e Fe2+. As cadeias
laterais da protoporfirina III podem ser descritas pela seguinte sequência: metil, vinil, metil,
vinil, metil, propiónico, propiónico, metil.
3. O heme é sintetizado na maioria das células do organismo, nomeadamente nas células da medula
óssea precursoras dos eritrócitos e nos hepatócitos. No processo de síntese do heme o primeiro
passo, que é também o limitante da velocidade do processo, é catalisado pela síntase do ácido δaminolevulínico (ALA) (equação 1). O heme inibe a síntese desta enzima.
succinil-CoA + glicina → ALA + CoA + CO2
(1)
4. Na via metabólica de síntese do heme duas moléculas de ALA originam, por acção catalítica da
desidrátase do ALA (equação 2), o porfobilinogénio que contém um anel pirrol com duas cadeias
laterais distintas (ácidos acético e propiónico).
2 ALA → 2 H2O + porfobilinogénio
(2)
5. Por acção sequencial de duas enzimas distintas (a síntase do uroporfirinogénio I e a cosíntase do
uroporfirinogénio III) forma-se o uroporfirinogénio III que contém 4 anéis pirrol (equação 3).
No uroporfirinogénio III as cadeias laterais são os ácidos acético e propiónico que ocorrem por
esta ordem: acético, propiónico, acético, propiónico, acético, propiónico, propiónico, acético. Ao
contrário do que acontece no uroporfirinogénio I as cadeias laterais do anel pirrol IV do
uroporfirinogénio III estão invertidas.
4 porfobilinogénio → uroporfirinogénio III + 4 NH3
(3)
6. Sucessivamente forma-se o coproporfirinogénio III (descarboxílase do uroporfirinogénio III que
catalisa a descarboxilação das quatro cadeias laterais acetato a metilo; equação 4), o
protoporfirinogénio III (oxídase do coproporfirinogénio III que catalisa a descarboxilação e
oxidação dos propionatos dos anéis I e II a vinilos; equação 5), a protoporfirina III (oxídase do
protoporfirinogénio III que catalisa a oxidação das pontes metileno a metenilo; equação 6) e
finalmente o heme, pela incorporação de Fe2+ na protoporfirina III (síntase do heme; equação 7).
uroporfirinogénio III → coproporfirinogénio III + 4 CO2
coproporfirinogénio III + O2 → protoporfirinogénio III + 2 CO2 + 2 H2O
protoporfirinogénio III + 3O2 → protoporfirina III + 3 H2O2
protoporfirina III + Fe2+ → heme
(4)
(5)
(6)
(7)
7. Algumas enzimas da via metabólica da síntese do heme são citosólicas (desidrátase do ALA,
síntase do uroporfirinogénio I, cosíntase do uroporfirinogénio III e descarboxílase do
uroporfirinogénio; correspondentes às equações 2-4). Contudo, a primeira (síntase do ALA;
equação 1) e as últimas 3 (oxídase do coproporfirinogénio, oxídase do protoporfirinogénio III e
síntase do heme; equações 5-7) são mitocôndricas. Significa isto que existem na membrana da
mitocôndria transportadores para o ALA (que sai) e para o coproporfirinogénio (que entra).
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8. O catabolismo do heme tem lugar principalmente em células macrofágicas do baço, fígado e
medula óssea e inicia-se com a acção catalítica do sistema microssomático oxigénase do heme;
este sistema catalisa a rotura entre os anéis pirrólicos I e II do heme formando-se biliverdina
(equação 8). A biliverdina é, por sua vez, reduzida a bilirrubina; esta reacção é dependente do
NADPH e é catalisada pela redútase da biliverdina (equação 9). A bilirrubina formada nesta fase
do processo diz-se não conjugada, é lipossolúvel, viaja no sangue ligada à albumina e, por este
motivo, não passa para a urina.
heme + 3 O2 + 3 NADPH → biliverdina + CO + 3 NADP+ + 3 H2O + Fe3+
biliverdina + NADPH → bilirrubina + NADP+
(8)
(9)
9. A bilirrubina não conjugada entra para os hepatócitos por difusão facilitada e reage com o
ácido glicurónico numa reacção catalisada pela transférase do ácido glicurónico formando-se
diglicuronil-bilirrubina, a bilirrubina conjugada, que é hidrossolúvel. O dador do ácido
glicurónico à bilirrubina é o UDP de ácido glicurónico (equação 10). Excretada para a árvore
biliar por mecanismos de transporte activo, a bilirrubina conjugada sofre a acção de bactérias
intestinais dando origem ao urobilinogénio que pode ser reabsorvido e de novo excretado na bile
(ciclo entero-hepático do urobilinogénio). O urobilinogénio pode, em contacto com oxigénio,
ser oxidado a urobilina (ou ao composto similar estercobilina) que tem cor castanha corando as
fezes e sendo também parcialmente responsável pela cor normal da urina.
2 UDP-glicurónico + bilirrubina → 2 UDP + diglicuronil-bilirrubina
(10)
10. A ictrícia é um sinal clínico que consiste na coloração amarelada da pele, mucosas e esclerótica
do olho causada por aumento da bilirrubina. Pode ser causada por (1) aumento da sua síntese (ou
seja, aumento do catabolismo do heme como acontece, por exemplo, na icterícia fisiológica do
recém nascido), (2) diminuição da velocidade de conjugação ou (3) alterações no processo de
excreção quer de origem meramente mecânica (como, por exemplo, uma obstrução no canal
colédoco) ou quer por lesão do hepatócito (como, por exemplo, na hepatite vírica). Nos dois
primeiros casos aumenta no plasma a bilirrubina não conjugada (também chamada indirecta); no
último está aumentada no plasma sobretudo a bilirrubina conjugada (também chamada directa)
que é filtrada no glomérulo e aparece na urina, corando-a de cor de “vinho do Porto”. A
incapacidade de excretar bilirrubina na bile implica a não formação de urobilina e,
consequentemente, a formação de fezes de cor clara.
11. As expressões “bilirrubina directa” e “bilirrubina indirecta” têm a sua génese nos métodos que
classicamente são usados em “Química Clínica” para o doseamento da bilirrubina sérica [1]. Estes
métodos baseiam-se na formação de um composto corado quando um determinado reagente reage
com a bilirrubina. Quando a reacção é feita na presença de substâncias que promovem a
dissociação da bilirrubina não conjugada da albumina a que estava ligada, toda a bilirrubina sérica
contribui para a formação do composto corado e, consequentemente, a absorvância mediada
corresponde à “bilirrubina total”. Na ausência de adição ao meio reactivo das substâncias que
promovem a referida dissociação, a bilirrubina que permanece ligada à albumina não reage e não
contribui para a absorvância medida; nestas condições, a absorvância registada é uma medida da
bilirrubina conjugada. Porque o valor obtido resulta da medição directa de uma absorvância
chama-se a esta medida “bilirrubina directa”. O valor que resulta do cálculo da diferença entre a
“bilirrubina total” e a “bilirrubina directa” designa-se de “bilirrubina indirecta”. Do exposto se
conclui que o valor da bilirrubina indirecta corresponde à bilirrubina que estava no soro original
ligado à albumina, ou seja, corresponde à bilirrubina não conjugada.
1. Calbreath, D. F. (1992) Clinical Chemistry. A Fundamental Textbook., 1st edn, W. B. Saunders Company.,
Philadelphia
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