A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA PARA O TRABALHO SOCIAL: CONTRIBUIÇÕES DA
PSICANÁLISE SOBRE UMA POLÍTICA DO AMOR
INTRODUÇÃO
Responsável pela formação ético-política no curso de psicologia da PUC-MG em Betim me
interessa despertar no aluno o interesse em analisar os efeitos da globalização da lógica econômica
do capitalismo no funcionamento do Estado neoliberal e na constituição das subjetividades
contemporâneas. Pensamos que, assim, nossos alunos estarão mais bem preparados para
responder às demandas institucionais advindas das políticas públicas, mas também e
principalmente do novíssimo campo do empreendedorismo social, conhecido como Terceiro Setor.
Esperamos que não repitam práticas assistencialistas que impossibilitam a mudança de posição
subjetiva das pessoas beneficiárias desses serviços, reforçando sua condição de dependente frente
ao outro.
Nossa preocupação não é sem motivos, pois além do fato da Psicologia ter historicamente
agregado pessoas que querem ajudar os outros, estamos em uma Universidade Católica que
mantém ações de filantropia na comunidade, baseadas no cuidado e na solidariedade. O apelo à
ética de um amor cristão são os argumentos que fundamentam não só os projetos de extensão
como as ações da pastoral universitária e, ao mesmo tempo em que visam contribuir com a
melhoria de vida do público atingido, também reiteram a despolitização e amenizam a pobreza
espiritual que nos assola na contemporaneidade.
Nosso compromisso é o de não formar profissionais que, sem saber analisar a quem suas
intervenções beneficiam, atendam prontamente a demanda que lhes é feita, esclarecendo-os do
risco de não desarticular o sistema de prestação de serviços que mantém as desigualdades sociais,
porque cristaliza posições subjetivas de submissão e carência. A crítica política ao papel do saber
técnico “psi” deve preparar os profissionais psicólogos para um movimento de resistência aos
modelos de intervenção social que não promovam um saber novo, porque construído pelas próprias
pessoas participantes do processo.
Se no início da institucionalização da psicologia no Brasil essa ciência esteve calcada em um
projeto epistemológico bastante positivista, afastada das temáticas políticas por causa de uma
pretensa neutralidade científica; se esteve associada a projetos modernizadores, de natureza
elitista e de corte autoritário tal como Bock (2003) nos alerta, com a decadência da ditadura militar
e com a abertura democrática, novas possibilidades foram criadas para a expressão de uma
Psicologia que toma como foco o campo político e compromisso social.
A psicologia brasileira foi regulamentada em 1962 e, efetivamente, não foi sem
consequências o fato de ela ter vivido os vinte primeiros anos de sua institucionalização em plena
ditadura militar, com ausência da liberdade de expressão, de organização e de crítica. Os
psicólogos assistiram em silêncio ao sucateamento das políticas públicas de emprego, saúde e
educação; viram o país se endividar para os organismos internacionais; as relações capitalistas se
tornarem cada vez mais hostis, enquanto cidadãos eram torturados ou se tornavam desaparecidos.
Nós, os psicólogos, estivemos fora do espaço da política e do debate público que define a
convivência social da maioria dos cidadãos brasileiros. Estivemos fora das instituições nas quais os
cidadãos brasileiros foram e ainda são maltratados e desrespeitados pelas políticas do Estado.
Tivemos uma trajetória de omissão frente às desigualdades sociais, omissão patrocinada pelo
conforto no qual nos instalamos enquanto classe social.
É claro que, quando pensamos em democratizar a psicologia para os brasileiros que estão
abaixo da linha de pobreza, não somos ingênuos para alegar que isso se trata em dar-lhes
psicoterapia. A psicologia brasileira precisa aprofundar a sua relação com os Índices de
Desenvolvimento Humano e com a história da política do Estado brasileiro, mas se beneficiaria
também ao aceitar a contribuição da psicanálise freudo-lacaniana, pois ela nos ajuda a esclarecer o
que há de dominação e obscenidade escondido no apelo à solidariedade social quando queremos
intervir em contextos estranhos aos da classe média.
A comissão de especialistas que analisaram o resultado dos “provões” – testes nacionais que
avaliam os estudantes de psicologia recém-formados pelas universidades do país – encontrou, em
2004, uma situação curiosa. Ao comparar a fabulosa capacidade dos profissionais avaliados de
recomendar um procedimento técnico adequado a uma situação problema apresentada, constatase que são incapazes, no entanto, de justificar teoricamente o procedimento recomendado. Esse
resultado revela que os profissionais continuam saindo das universidades tecnicamente bem
treinados na escolha de opções instrumentais, mas sem fundamentação teórica para explicar o
porquê de suas próprias recomendações técnicas (MENDONÇA FILHO, 2005).
Essas questões se impõem no horizonte de formação do psicólogo, que precisa saber como
contribuir com a sua profissão para a transformação da realidade social brasileira, pois, caso
contrário, cederá facilmente às promessas do Terceiro Setor, que está aí para lhe oferecer
emprego, mas não tem nenhum interesse político em mudar as condições da desigualdade social.
Considerando o alerta que Ramos (2007, p. 117) faz sobre o compromisso político de uma
“certa” psicologia, julgamos fundamental “o desvelamento das relações de dominação ocultas sob
as mediações e determinações materiais do psiquismo e das subjetividades.” Concordamos com o
autor, para quem “esta psicologia” deve funcionar como uma força de resistência e não conformar
o particular à realidade material dada, como se esta última fosse “natureza”, contribuindo dessa
forma para a eternização da lógica capitalista.
Certamente já sabemos que a Psicologia não admite mais pensar a subjetividade sem uma
teoria social, mas não podemos abrir mão de definir uma teoria do sujeito que nos permita
compreender a dialética entre a concretude da subjetividade e a objetividade da História,
implicando em seu cerne a dimensão do vazio. É necessário pensar uma psicologia que não
desconsidere a dimensão do universal mas tenha a singularidade como seu campo primordial.
Sabemos o quanto é difícil ter uma identidade profissional que não se apóie em significantes
identificatórios (sejam eles quais forem), mas estamos buscando algo que possa ser universalizável
na defesa dos direitos de cidadania. Assim, eu penso que, quanto menos identificações tivermos,
mais teremos uma identidade que se distinga pela diferença de tudo que está aí, identidade graças
à subtração e não a identificação.
Sabemos que o projeto de Freud foi também, em certo momento, o de ampliar os efeitos da
Psicanálise para além dos muros do consultório individual. Em 1918, no V Congresso Internacional
de Psicanálise, ele expressou a esperança de que, um dia, alguém se aventurasse na tentativa de
transportar a psicanálise para a comunidade: havia chegado o tempo de se tomar consciência da
comunidade; de se acordar para o fato de que os pobres tenham direito de ajuda para as suas
mentes quanto do cirurgião para salvar sua vida. Teríamos, segundo ele, que despertar para a
tarefa de adaptar nossas técnicas às novas condições (FREUD, [1918] 1996, p. 210).
Quando os psicólogos reconhecem que o seu trabalho deve ser oferecido a todos que dele
precisem como um direito social à saúde, poderiam se inspirar no desejo de Freud e construir
meios para validar o uso desse direito. Temos, portanto, uma grande tarefa pela frente no campo
da produção de conhecimento e de novas práticas “psi.” Temos consciência de que é preciso
produzir referências que nos permitam compreender os processos de subjetivação tal como se
produzem no interior da sociedade brasileira na contemporaneidade.
Preciso confessar que o desejo de estender a psicanálise a todos os serviços encontrados na
cidade onde está o psicólogo é um produto de minha análise pessoal. A falta estrutural que provoca
a demanda e a dependência do Outro viu seu valor se inverter para mim e ao invés de percebê-la
como uma deficiência, tenho tornado-a como a verdade de meu desejo infinito e advertido de que
o saber acadêmico é “não-todo”. Então, se quero ultrapassar uma ética da solidariedade
exatamente por considerá-la uma forma de manutenção do status quo capitalista, tenho que ir em
direção a uma política que se proponha a radicalizar o amor no “em comum” das várias formas de
vida, bens, afetos e conhecimentos, porque sem o amor e a arte dos bons encontros que o
favorece, não há verdadeira democracia e nem justiça social.
Defendemos a tese de que o desejo do analista é o nome de um amor mais digno que a
solidariedade social e que esse amor advém de um trabalho de análise que realizou a operação de
reconhecer o outro enquanto alteridade radical, ou seja, que partiu da crença no Outro e foi até a
descoberta de sua inexistência como completude.
Colocar o amor como agente do discurso do analista, apostando nos efeitos éticos e políticos
que podem surtir nos trabalhos realizados nas instituições públicas e no Terceiro Setor, pode
parecer uma heresia, pelo risco que isso implica em idealizar a posição do analista. Essa é então a
minha heresia, pois não acredito que alguém possa fazer algo novo nas políticas públicas e nos
projetos sociais, sem saber por que tomou a posição de trabalhar com os pobres sem que isso
esteja marcado pela solidariedade para com eles. Por outro lado, temos que considerar que Lacan
nunca investiu contra as heresias, já que ele próprio foi um herege em relação ao dogma analítico
da IPA, tendo sofrido inclusive a sua excomunhão.
A SOLIDARIEDADE SOCIAL É UM SINTOMA DO ESTADO CAPITALISTA NEOLIBERAL
Existem vários significados para o verbete solidariedade no O Novo Dicionário Aurélio da
língua portuguesa (1975). São eles:
1. Qualidade de solidário; 2. Laço ou vínculo recíproco de pessoas ou coisas independentes; 3.
Adesão ou apoio à causa, empresa, princípio, etc. de outrem; 4. Sentido moral que vincula o
indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação ou da
própria humanidade; 5. Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses
comuns de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s)
outro(s); 6. Sentimento de quem é solidário; 7. Dependência recíproca; 8. Vínculo jurídico entre
os credores duma mesma obrigação, de maneira que cada um deles tem compromisso com o
total da dívida, de sorte que o credor pode exigir o pagamento integral ou a prestação do objeto
daquela obrigação.
Assim, na linguagem jurídica, os devedores são ditos solidários se cada um puder responder
pela totalidade da soma que tomaram emprestado coletivamente. Isso tem suas relações com o
vocábulo “solidez”, de que a palavra provém. Um corpo sólido é um corpo em que todas as partes
se sustentam, em que as moléculas são mais solidárias do que nos estados líquidos ou gasosos, de
tal sorte que tudo o que acontece com uma, também repercute na outra. Em suma, a solidariedade
é, a princípio, o fato de uma coesão, de uma interdependência no interior de uma comunidade de
interesses ou de destino. Ser solidário, nesse sentido, é pertencer a um mesmo conjunto e
partilhar, consequentemente, quer se queira ou não, de uma mesma história.
Sabemos que o neoliberalismo propõe o desmantelamento das instituições sociais criadas
pelo modelo do Estado do Bem-estar Social que derivam da aplicação das propostas keynesianas e
neokeynesianas, ou seja, aquelas instituições reguladoras do mercado que tem por finalidade
reduzir os riscos das flutuações que se produzem no funcionamento do livre mercado. A estratégia
do Estado neoliberal de usar o dinheiro público para interesses privados e corporativistas sempre
foi a de sucatear as políticas sociais. Tal como o movimento solidarista aparece no cenário das
mudanças socioeconômicas causadas pelo capitalismo industrial a partir do século XVIII para salvar
a classe trabalhadora da miséria, o definhamento do Estado, no que tange a implementação de
políticas públicas de proteção e seguridade social, fez surgir um novo ator na década de 1990 do
século XX: as organizações civis e comunitárias, sem finalidade lucrativa, qualificadas como
Organizações Não Governamentais (ONGs).
As ONGs aparecem nesse cenário como garantidoras do acesso aos direitos básicos
prescritos na constituição brasileira que, infelizmente, o Estado capitalista neoliberal não consegue
cumprir, fazendo com que se configurassem em um grande setor de “empreendedorismo social”. A
perspectiva para o crescimento deste setor se deu a partir da Medida Provisória n. 1.591, em 1997,
que criou as OSC-IP’s, com a Lei Federal n. 9637/98. Inaugurando uma nova relação entre a
iniciativa privada e o Estado, conhecida como Parcerias Público Privadas (PPPs), oficializa-se a
divisão das responsabilidades de assistência nas políticas sociais.
Se a princípio as ONG’s estavam em oposição ao Estado, fiel a pressão que os movimentos
sociais faziam em 1980 para forçá-lo a melhor funcionar, as OSC-IP’s se dispõem a executar
serviços sociais complementares aos oferecidos pelo poder público, aprofundando a precariedade
do Estado em realizar a justiça social. Sem anular a importância política das ONGs e dos
movimentos sociais de onde elas vieram, é necessário reconhecer que o Terceiro Setor tem usado
da ciência e da tecnologia para defender uma propalada capacidade de criar soluções inovadoras e
criativas para os problemas sociais de caráter local. A solidariedade que daí emana não é contrária
à linguagem utilitária e capitalista que se organiza para maximizar os recursos, minimizando custos
operacionais das “empresas sociais.”
Embora o Brasil nunca tenha desfrutado de fato do Estado do Bem-estar Social, ideologia
que agora está em declínio nas grandes potências mundiais, temos visto a sociedade civil se
organizar de boa vontade em ações de voluntariado, utilizando-se da grande mídia para sensibilizar
todos os brasileiros para a consciência de nossas mazelas sociais. O apelo por uma “ética da
solidariedade”, que apareceu no Brasil na década de 1990 como uma forma de arrecadação de
recursos para a realização de projetos sociais, partilhado por organismos internacionais como a
UNICEF e a UNESCO, não é uma estratégia nova na história do capitalismo e apenas reedita os
objetivos do movimento solidarista francês do século XIX.
Verificamos que a idéia dos solidaristas do século XVIII está na base do fundamento do
Terceiro Setor, de maneira que não foi difícil demonstrar que o apelo por uma “ética da
solidariedade”, como uma das grandes saídas para o mal estar contemporâneo, apenas repete o
sintoma do sistema capitalista na sua versão neoliberal globalizada, que privilegia a saúde da
economia em detrimento da saúde das pessoas. Não é sem razão que temos produzido patologias
“novas”, “novos” remédios e “novos” tratamentos de acordo com o freguês.
Os defensores do voluntariado orgânico argumentam que a responsabilidade social não é
exclusiva do Estado, mas o que eles não problematizam é que a solidariedade social coloca em um
mesmo patamar as intenções nobres do cidadão que doa e trabalha voluntariamente para ajudar o
próximo e os interesses daqueles que lucram com as desigualdades sociais e que não tem
escrúpulos ao se apossarem das melhores doações antes que elas cheguem ao seu destinatário.
Outra observação pouco comum de se fazer sobre a solidariedade diz respeito a
mecanismos coletivos associados a sentimentos e comportamentos destrutivos e mortíferos como a
xenofobia, o racismo e as discriminações de todo gênero. Isso acontece também na economia,
quando grupos econômicos (os cartéis da indústria ou de serviços) se unem para consolidar seu
monopólio ou sua exploração em relação aos concorrentes ou aos consumidores. Há, portanto, uma
solidariedade e uma fidelidade obrigatórias baseadas no terror entre os membros de toda
organização estruturada na violência, popularmente nomeadas como “máfias” ou “gangs”, que se
“solidarizam” para agredir, assaltar ou roubar. Por último, não podemos nos esquecer de que há
solidariedade quando os políticos legislam em causa própria, aumentando seus próprios soldos em
detrimento de toda uma classe de trabalhadores que não alcançam um valor para o salário mínimo
que lhes permita viver com dignidade.
Para defender a tese de que a solidariedade é um sintoma social do capitalismo, utilizamos
do conceito de sintoma na psicanálise, já que essa é a teoria que nos orienta. De acordo com Lacan
([1966] 1998, p. 234-235) Karl Marx foi o inventor do sintoma, porque foi ele quem demonstrou
que todos os fenômenos que se afiguram à consciência comum como simples desvios do
funcionamento “normal” da sociedade, tais como as crises econômicas, guerras, etc., são os
lugares em que transparece sua verdade, seu caráter antagônico imanente. Podemos perceber que
a invenção marxiana do sintoma pode ser diretamente referida à posição metodologia de Marx
enquanto propõe o procedimento teórico de “crítica da ideologia” que é, propriamente falando,
sintomal.
Zizek (1992, p. 122-123) diz que este é o método discursivo, mas aponta para um segundo
método que visa extrair o núcleo do gozo pré-ideológico que estrutura a fantasia ideológica
fundamental, que é a de construir uma visão da sociedade que exista, que não seja
antagonicamente dividida e que a relação entre as suas diferentes partes seja orgânica e
complementar.
Se considerarmos o sintoma como aquilo que do real vem para impedir que as coisas
andem, tal como Lacan o teoriza no final de seu ensino, não poderíamos nomear a solidariedade
como um sintoma, porque sua função sempre foi a de tamponar a verdade do sistema capitalista,
que é a de produzir uma fratura na promessa liberal de universalizar a liberdade e a igualdade
burguesas. O sintoma, nesse caso, seria então a incessante produção de pobreza e de
desigualdade social. No entanto, quando ele é apresentado por Lacan como algo que corrige a falha
da estrutura, o sintoma funciona para manter a neurose universal submersa na fantasia humana de
que a comunidade igualitária exista e então a solidariedade social é sim um sintoma do capitalismo.
Lacan universalizou a função do sintoma a partir do seminário de 1975-1976 sobre o
escritor irlandês James Joyce, a partir daquilo que pode aprender com ele sobre o sintoma não se
reduzir apenas a certa psicopatologia. Aprendemos com a psicanálise que os pacientes podem se
manter atados ao seu modo de gozo, mesmo depois de terem interpretado seu sintoma e ido além
de sua fantasia. Foi diante dessa realidade que Lacan ([1975-1976] 2007) respondeu com o
neologismo “sinthome”1, que é uma formação significante perpassada de gozo, na medida em que
é o gozo que o sustenta. Em outras palavras, o sinthoma é a maneira como cada um de nós “evita
a loucura”, a maneira pela qual preferimos “escolher alguma coisa” ao nada. Quando o sinthoma,
nessa dimensão radical, se desfaz, isso significa literalmente o fim do mundo, pois a única
substituição do sinthoma é o nada: o puro autismo, um suicídio psíquico, o ato de se deixar levar
pela pulsão de morte até a destruição total do universo simbólico.
Portanto, se considerarmos o conceito de sinthoma, escrito com th, como o que há de mais
singular, fugimos completamente da análise do inconsciente como transindividual, ou coletivo e
ainda assim podemos reafirmar a solidariedade como sinthoma, pois sempre encontraremos
sujeitos que, interpelados pela carência do outro, irão dispor de sua vida em prol da caridade (seja
na Igreja ou em ações de voluntariado civil). A solidariedade como sinthoma depende de como o
sujeito se posiciona frente às consequências da brutalidade do capitalismo. Assim, veremos a
solidariedade se degradar potencializando a paranóia contemporânea ou veremos um número cada
vez maior de pessoas tomarem a via da ajuda humanitária, fazendo de suas férias e de seus
períodos de descanso momentos para se dedicar ao trabalho social. Além disso, outras poderão
apelar para uma vida humilde e santa em lugares afastadas da vida urbana, fugindo do espírito
consumista como meio de encontrar um sentido para a vida.
Mas não podemos nos esquecer também de que Lacan ([1960] 2005, p. 39) nos alerta do
perigo de se utilizar “do altruísmo, seja ele educativo ou familiar, filantrópico, totalitário ou liberal”
como algo diferente do amor em si mesmo. Lacan ([1959-1960] 1988, p. 228) nos diz que o
1
Lacan estabelece esta grafia com a homofonia, em Francês, entre Saint-homme, Saint Thomas e sinthome, certamente nada
casual. O Sinthome, como algo que pede remédio, se enlaça à prática de uma certa santidade.
egoísmo se satisfaz muito bem com certo altruísmo, aquele mesmo que se coloca no nível do útil,
já que é da natureza do bem ser altruísta. Portanto, desse ponto de vista, a solidariedade está no
campo da “gestão do necessário” ou do “serviço dos bens”, bastante coerente com a maneira como
vem sendo chamada atualmente pela grande mídia.
Ora, Freud ([1921] 1996) no texto “Psicologia de grupo e analise do eu” nos ensina que a
solidariedade só se realiza quando existe “uma importante qualidade emocional comum”, isto é, um
laço libidinal que leva a uma identificação entre iguais, como também a identificação desses
mesmos iguais com um líder, tomado como ideal do eu grupal. Teríamos assim um “eixo
horizontal” de identificação dos membros de um grupo entre si e um “eixo vertical”, que faria com
que os membros se identificassem a uma “causa” ou a um “líder” comum, ou seja, um grupo de
iguais se une em torno de um “desigual”, o líder ou o chefe que serve como um Ideal do Eu. Os
vínculos são, portanto, constitutivos do sujeito e o definem de imediato como um ser
essencialmente político. Mas, enfim, nos parece que a psicanálise reitera o que todas as outras
teorias postulam, ou seja, não existe solidariedade entre desiguais.
O texto freudiano “Totem e Tabu” ([1912-1913] 1996) nos mostra que há uma violência
originária contra cada um dos membros que pertencem a uma sociedade e que ela está presente em
qualquer organização social, de maneira que toda cultura contém em seu cerne a segregação dos
desiguais. Portanto, vale a pena perguntar, a partir do que nos ensina a psicanálise, qual podem ser
os traços identificatórios comuns entre a classe de pessoas que pratica a “solidariedade” com os
milhões de brasileiros excluídos de seus direitos sociais básicos. Mesmo argumentando que esse
traço seja a busca pela justiça, não podemos garantir que a justiça de uns seja a mesma que a de
outros, e poderemos estar confundindo solidariedade com a caridade que cala nossos sentimentos de
culpabilidade ou de piedade pela situação dos desfavorecidos.
Vale ressaltar que, considerando esse aspecto, sabemos que se abre um espaço abissal
entre quem dá e quem recebe, pois, afinal, quem recebe está sempre no lugar de uma vítima, um
dependente, um humilhado e, portanto, a doação não deixa de ser uma forma de dominação, pois
vem da potência de quem pode dar. A inclinação para ajudar o outro, valorizada como um
elemento constitutivo da cidadania responsável carrega, portanto, a ameaça de uma doação sem
reciprocidade, que só permite, como única volta, uma gratidão sem limites, criando uma dívida que
não pode nunca ser honrada pelos beneficiários. As relações de dependência pessoal que esse tipo
de solidariedade favorece correm o risco de aprisionar o pobre numa situação de inferioridade. Em
outros termos, é portadora de um dispositivo de hierarquização social e manutenção das
desigualdades, apoiada nas redes sociais de proximidade que podem exprimir-se através de
escolhas aparentemente anódinas, mas que não liberam o sujeito de seu sintoma. Quando
psicólogos estão trabalhando nas políticas públicas e em projetos do Terceiro Setor em um país que
mantém uma desigualdade de estrutura como é o Brasil, é preciso pensar bem em como agir “sem
solidariedade”.
Lacan (1959-1960] 1988, p. 228) nos diz que: “É uma questão muito diferente a de saber o
que significa num encontro a resposta, não da beneficência, mas do amor” e daí podemos notar o
quanto a posição de Lacan em relação é intrigante, principalmente quando nos fiamos em sua
fórmula negativa do amor que é: “amar é dar o que não se tem” (LACAN, [1960-1961] 1992, p.
133).
É preciso esclarecer que nossa posição não é a de idealizar um “novo amor” que
reconstituísse o bom e velho Deus do cristianismo em outros termos. O amor de que tratamos não
é o de ágape e está condenado a um “destino fatal”, pois se trata de um mal-entendido ineludível,
não nos deixando alternativa a não ser a de assumi-lo com a valentia necessária de quem quer
viver relações respeitosas com uma alteridade absolutamente radical.
O DESEJO DO ANALISTA COMO
SOLIDARIEDADE SOCIAL
O
NOME
DE
UM
AMOR
MAIS
DIGNO
QUE
A
Se o mundo dos Direitos Humanos (DH), efeito do discurso da ciência, homogeneíza os
sujeitos, o discurso da psicanálise tem o compromisso de recuperar o lugar da singularidade no
universal da política. Em nosso país, o significante “público” significa “assistido” e as funções régias
do Estado (saúde, educação e assistência para todos) servem para discriminar e segregar,
definindo uma zona de exclusão do laço social que revela que nem todos os brasileiros estão sob a
égide dos DH. Aqui os serviços públicos não são destinados para todos os cidadãos, mas somente
para os excluídos. Isso altera completamente a natureza do laço social, fazendo com que essas
instituições públicas sejam, metaforicamente falando, grandes orfanatos.
Neste ponto é preciso lembrar que “não há clínica do sujeito sem clínica da civilização” e, se
a frase de Lacan ([1966 b] 1998) “o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência”
vale para os extratos da população que estão inseridos na lógica dos DH, quando entramos para as
políticas públicas, o discurso não é o da ciência, mas sim o da religião. É na medida em que eles
não advêm sujeitos da ciência que eles permanecem cativos de uma lógica religiosa. Junto com
essa lógica vem outra: a de viver ao “Deus dará”: hoje tem, amanhã não tem, é a providência
divina que dá ou a beneficência do Estado.
Afinal, a serviço do quê alguns psicanalistas atuam em instituições públicas que são, na
verdade, instituições de assistência social? Estamos investidos da função de representantes do
Estado que assegura o essencial ao exercício dos direitos e deveres do cidadão? O que é ser
analista em uma situação como essa? Certamente não é a mesma coisa que ser analista nos
estratos médios da população nos quais os regimes do gozo, de prazer e de desejo se instalam de
modo completamente diferente.
Quando trabalhamos nesses espaços nós não o fazemos enquanto assistentes sociais, e foi
pensando nessas questões que põem em jogo a nossa definição enquanto profissionais que
defendo o desejo do analista como um amor mais digno que a solidariedade social.
Advogo que é preciso recuperar o efeito subversivo da psicanálise em uma cultura na qual a
ciência aliada ao capitalismo se apropriou inclusive do saber introduzido por Freud para explicar
tudo. Não há como negar que a psicanálise ajudou a fundamentar teoricamente a luta pela
liberação da sexualidade, concorrendo, por exemplo, para conquistas no movimento das mulheres,
dos Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais (GLBTS), o movimento a favor da cidadania do louco,
dentre outros. Mas quando pensamos no nível do sinthoma, quando nós nos encontramos face a
face com os pobres desses serviços, é preciso colocar um amor que seja diferente de Eros, de Philia
e de Ágape, porque é produto de um processo de análise e está para além da referência ao Pai e
das identificações imaginárias.
Lacan sempre tomou o santo como referência de virtude, mas um santo aos olhos de Lacan
([1973], 2003) se presta a bancar o dejeto, não faz caridade e nem suporta toda a miséria do
mundo. Por isso que não é qualquer santo que serve para Lacan fazer essa aproximação com o
psicanalista. Quando o papa Bento XVI apresenta, na segunda parte de sua primeira encíclica, em
2005, seu desejo de manter viva a religião católica através da caridade para com os miseráveis e
sofredores em nossos dias, ele pede aos fieis que tomem São Martinho como o exemplo de santo a
seguir. O curioso é que o santo escolhido pelo Papa é justo aquele que Lacan, em O seminário,
livro 7, critica a propósito da tentação utilitarista de dividir seu manto com o pobre que encontrou
no caminho.
É em Baltasar Gracian que Lacan se inspira para utilizar-se de sua teorização sobre um tipo
de prudência muito especial que favorece a saída do discurso capitalista. A prudência de não se
identificar com um ser que alimente a falta de ser do sujeito, faz disso seu meio de gozo. O
problema posto por Gracian trata de determinar como estar no lugar do objeto a como uma latusa,
sem fazer-se consumir. Interessava a ele saber como adquirir todas as virtudes possíveis, sem
oferecer à mirada malvada do Outro a imagem de uma perfeição que excitaria sua inveja.
Em sua “Nota italiana”, Lacan ([1973] 2003, p. 315) diz de “um amor mais digno do que a
profusão do palavrório que ele se constitui até hoje” como exigência para um tipo de analista que
não esteja gozando de sua posição de saber. Visto que o ser humano é antes de tudo um ser
falante, e que o gozo fálico é ele próprio equivalente ao gozo da palavra, gozo esse nomeado por
Lacan como do blábláblá, o analista deve renunciar dele.
Quando o analista opera escutando alguém não buscar compreender nada a partir de seu
ponto de vista, interrompendo o uso do inconsciente estruturado como linguagem, estruturado a
serviço da comunicação, do sentido, da decifração. Não se trata mais de lançar o sujeito,
necessariamente, no caminho da procura de uma verdade escondida, mas de tomar aquilo que ele
diz como a medida daquilo pelo qual ele terá que se responsabilizar.
Com a versão do pai como o que n’homeia, o que funciona como Nome-do-Pai é o próprio
ato de dizer, na medida em que o ato de dizer implica o sujeito com seu real. Isso é muito
diferente do que ocorre com o discurso universitário, no qual tudo pode ser verdade. Quando se
coloca o dizer do sujeito em lugar de agente, esse dizer funda uma verdade com a qual o sujeito
terá que se a ver.
Queremos defender a tese de que é de amor e não de solidariedade que precisamos para
fazermos barreira ao capitalismo, já que Lacan ([1972-1973] 1985, p. 20) coloca o amor no campo
do discurso, ou melhor, ele seria o signo de uma mudança de discurso. O amor pontuando um
corte na situação lança em circulação a possibilidade de construção de uma nova verdade. O amor
que sustenta o ato analítico não está marcado pelo gozo fálico que está em jogo no laço social
contemporâneo, que é o gozo do poder sob todas as suas formas (política epistêmica, artística,
etc.), aditivado com o ter os objetos de consumo fetichizados pelo mercado. Esse é um amor que
serve como signo da emergência do novo e não é um sentimento e nem é compreendido nos
limites do narcisismo.
É por isso que o desejo do analista não pode ser o desejo do falo, pois o falo é a medida
pela qual se introduzem as diferenças relativas. A diferença pura, a qual Lacan ([1964] 1985,
p.160) faz alusão, intervém quando o sujeito confrontado com o significante primordial acede pela
primeira vez à posição de sujeição a ele. Nesse caso, esse significante é muito especial, pois a
partir dele pode surgir a significação de um amor sem limites, por estar fora dos limites da lei.
Se Lacan parece hesitar em dar à relação que o sujeito tem com os objetos o nome de
amor, é porque nela o que se constitui é muito mais uma forma de gozo do que propriamente uma
relação de amor, na medida em que aí a dimensão do Outro está elidida. Podemos dizer que o
amor é signo daquilo que falta, mas que traduz algo de opaco na significação fálica. Lacan nos diz
de um mais-de-gozar contável é completamente diferente de um mais-de-gozar encarnado,
expressão que une à sua beleza o efeito de mente em branco, o que dificulta a qualquer um que,
encontrando com um mais-de-gozar encarnado, saiba dizer do que se trata.
Seguindo Lacan, podemos dizer que o amor pensado como dom ativo visa o outro, não na
sua especificidade narcísica, mas visa o outro em seu ser, ou seja, é um amor que se situa no
plano simbólico. Essa dimensão afasta a perspectiva freudiana de que o amor é sempre narcísico,
quer dizer, visa a si mesmo no outro. O axioma lacaniano da não relação sexual impõe ao amor
outra função, a de suplência para essa inexistência através da fala em direção ao outro. Como
signo de gozo e como sintoma, o amor substitui o real do que não existe como suplência da relação
que falta entre os sexos.
Como nossa pesquisa não visa apenas a ser um dizer que se compreenda, mas visa
apresentar um escrito que sirva para se mostrar o amor que move o analista em seu ato,
apresento um matema. Com um amor que se situa no plano simbólico no lugar de agente, visando
o outro em seu ser teremos sempre os problemas colocados pela situação como o sujeito do
discurso. Proponho colocar Lacan e seu ensino no lugar da produção (em baixo à direita) pois foi ai
que ele próprio se colocou quando dizia que ensinava o que não sabia, pois so assim um saber
novo poderia advir. Por outro lado, a formalização dos enunciados de saber sobre a psicanálise
(S2) terá que ser colocada embaixo e à esquerda na fórmula do discurso do analista, garantindo
“um ensino digno deste nome”.
A (amor)
a
P (problemas)
$
S2
E (ensino)
S1
L (Lacan)
A ruptura de continuidade encontrada na estrutura dos discursos tem a função crucial de
mostrar, no nível do discurso analítico, que ele é articulado em torno da desconexão entre S1 e S2.
Dessa maneira um saber (S2) é sempre suposto e tem que se contentar em começar sempre e
indefinidamente para fazer valer sua atualidade e não tem nenhuma garantia de chegar a um
determinado ponto.
De acordo com Lacan ([1972-1973] 1985, p. 27), “há emergências do discurso do analista a
cada travessia de um discurso a outro e o amor é o signo de que trocamos de discurso”. Foi isso
que Lacan fez durante toda a sua vida em seus seminários, transmitindo a psicanálise para não
deixá-la morrer, dando provas de seu amor ao inconsciente. Se o desejo está ausente no último
ensino de Lacan, em meu entender o sinthoma é o que representa, já que nele não tratamos
apenas de sujeito como efeito do significante, mas do indivíduo humano por inteiro. Assim é o
desejo do psicanalista posto em ato que faz a psicanálise existir em todos os programas sociais.
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