Entrevista para o Site-on-line de
Jorge Zahar Editor
Entrevistadora: Renata Magdaleno
Entrevistado: Antonio Godino Cabas
1) Desde quando o senhor vem desenvolvendo as questões relativas ao sujeito
presentes em O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan? Como foi o processo da
pesquisa?
Estas questões –que não apenas estão presentes como representam o
fundamento deste livro- não são recentes. Decorrem de uma série de
preocupações clínicas muito precisas que tem uma história e vêm tomando corpo
com o tempo. A tal ponto que é difícil situar um inicio porque é práticamente
impossível apontar um momento único.
Seja como for, o fato é que no fim da década de ’80, uma tendência
farmacológica que vinha se esboçando no horizonte tomou força e veio mudar a
clínica. O advento dos neurocondutores fez com que a clínica psiquiátrica que se
inspirava nos ensinamentos da –assim chamada- psiquiatria dinâmica mudasse
sua orientação e se assumisse como neuroclínica. Foi assim que surgiu uma
prática que se escora –no plano teórico- na teoria da comunicação: os condutores
e –no plano prático- na existência de medicações cuja eficácia é tida como
certeira. Isso mudou tanto o diagnóstico quanto a clínica propiamente dita. Ambos
passaram a centrar-se nos transtornos correspondentes. Para esta ‘nova clínica’ o
distúrbio da comunicação exigia um tratamento dos condutores e não mais das
condições vitais do paciente. Nesse contexto, a dor de existir passou a ser tratada
pelo viés da recaptação da serotonina e a dor de ser passou a ser concebida como
um distúrbio de bipolaridade enquanto que o restante das questões subjetivas foi
entregue aos cuidados das cirurgias plásticas incumbidas de reconstituir os
semblantes. No fim, a pergunta pelo ser tornou-se uma preocupação com as
figuras da aparência. Foi o surgimento de uma prática destinada a restituir –ou
reconstruir- o ideal. Simplesmente por quanto é uma clínica que concebe que a
realização humana se reduz a um bem passar no plano dos semblantes.
O fato é que, por essa mesma época, fim da década de ’80, após a morte de
Lacan, houve um importante reordenamento no campo analítico. Um grande
número de seus seguidores diretos assim como a grande maioria de seus leitores
viram-se na necessidade de fixar suas posições frente ao legado teórico e clínico
do seu ensino. Um balanço difícil e com conseqüências. Citarei duas delas:
• a primeira (a mais importante) é que, a psicanálise, um saber que nasceu
com o século XX justamente para dar resposta aos problemas éticos que
representava o fim da modernidade e o advento da -assim chamadacontemporâneidade não pôde se fazer presente para dar sua resposta nesse
debate que suprimia a questão subjetiva.
• a segunda é que ao retomar o debate público, os analistas passaram a
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tomar como ponto de apóio as elaborações mais atuais da filosofia política
e da sociologia –perdendo, com isso, sua referência freudiana. O sujeito
passou a ser identificado com o sujeito-da-filosofia contemporânea e as
questões subjetivas ficaram reduzidas a meras questões da ‘subjetividade’.
De tal modo que quando retomaram o debate para assinalar a importância
do sujeito os analíticos haviam perdido a referência clínica. No fim, o
sujeito freudiano ficou ofuscado pelo problema do ‘direito à cidadania’ na
contemporâneidade.
2) O que te motivou a enveredar por esse caminho? Foi ao se deparar com
observações de que hoje estamos diante de um novo sujeito, com novos sintomas,
resultado de novas demandas de um novo milênio? Ou foi pelo caminho inverso,
recorrendo a escritos de Freud e Lacan?
Pelo antedito, foi a clínica. Mesmo porque é ela –a clínica- que põe em
evidência a disjuntiva acima descrita. Me explico. O que o paciente demanda é o
alívio. O alívio para um sofrimento que, no fim, tornou-se insuportável. Acontece
que esta demanda é dúbia. Pode com efeito significar uma demanda de alivio a
qualquer preço, como pode significar uma demanda de solução do conflito. Ora o
analítico sabe que o procedimento normal para se obter alivio imediato é a
supressão de qualquer um dos termos do conflito. E para isso basta consolidar os
recursos do recalque ou da repressão (isto é, do nada querer saber disso) para
manter ou recuperar o equilibrio. Entretanto, o analítico também sabe que o
sofrimento que está na orígem da demanda de alívio não é –apenas- um desarranjo
passageiro ou um transtorno circunstâncial e nem um distúrbio momentáneo. É a
mais pura expressão de um conjunto de inclinações que derivam de outras tantas
tendências que fazem parte da própria vida e que, portanto, são definitivamente
inelimináveis. É o que Lacan denomina: a questão do sujeito. É o que a clínica
deveria visar acima de qualquer outro objetivo. Porque do que se trata na clínica é
de extrair a dita questão para, no fim, pôr o sujeito em questão.
De tal maneira que, posto diante da demanda de alívio, ao analítico cabe
uma decisão. A de aceitar a demanda para atendê-la, ou a de aceitá-la para deixála em suspense por um certo período de tempo. O justo necessário para pôr de
manifesto a questão que subjaz.
Como pode se ver, a clínica –quero dizer: a clínica propriamente ditaimplica na assunção de uma escolha.
• A de satisfazer a demanda de alívio e para isso bastaria ao praticante
reforçar os recursos do ideal (cuja eficácia pode ser relativa mas é tão
garantida quanto o recurso à fluoxetina, à paroxetina ou uma eventual
cirurgia remodeladora)… ou,
• a de suspender a demanda para dar lugar à possibilidade do paciente
encontrar-se com os fundamentos do seu sofrimento. Uma proposta que a
miúde tem sido criticada como representando um elogio do ‘sofrimento’
mas que no fundo é a única alternativa efetiva haja visto que o sofrimento
nada mais é do que o doloroso efeito que se depreende de uma espera. Isto
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é, da manutenção de uma pendência.
Em suma, é uma disjuntiva que embutida na própria demanda de cura se
resume –para o clínico- à escolha de uma alternativa: ou a terapeutica, ou a
analítica. E aquí, é mais do que evidente que os escritos de Freud e de Lacan tem
um papel decisivo desde que é neles que encontramos a definição formal,
conceitual, epistêmica e clínica do que é uma analítica.
Afinal, não é de Lacan –e mais precisamente de Televisão- essa frase que
diz, mais ou menos assim: “que pelos tempos que correm e dependendo das
circunstâncias não há terapeutica que visando o bem não leve ao pior”?
3) O senhor acredita que essa é uma questão que está presente hoje nos consultórios
de psicanálise? Que os psicanalistas estão se questionando sobre a existência de
novos sintomas?
Certamente. Até por quê um debate deste tipo se faz presente no dia-a-dia
e afeta à prática analítica. Só que, dito assim, uma pergunta se impõe. Tendo em
vista o sigilo que envolve a intimidade dos consultórios analíticos: como pôde,
esta questão, ter vindo a público? A resposta é imediata: pela mão dos
psicanalistas. E como pode isso ter acontecido?
Simplesmente pela necessidade que têm os psicanalistas de tratar estes
assuntos nas respectivas escolas –onde se discute a formação analítica- e no
espaço público das mesas redondas e os debates universitários –onde se discute a
relação da psicanálise com os outros saberes e por extensão a transmissibilidade
dos conceitos freudianos. E o certo é que, ao que tudo indica, os analistas
entraram no debate apoiando-se na experiência clínica. Mas como dialogar
significa fazer-se entender e para isso, às vezes, é necessário traduzir-se parece
que pelo rumo da discussão o sujeito freudiano foi se equiparando à referência
filosófica vigente. Uma referência, por definição, isenta de qualquer exigência
clínica. E aí, com o correr do tempo, os termos da equação parecem ter se
invertido. Em vez de ser a clínica a referência das intervenções dos analistas
foram as idéias vigentes no debate em curso o que passou a orientar as
concepções dos analíticos.
É verdade que um tal deslocamento só pode ter ocorrido sobre um pano de
fundo muito nítido. Mais do que isso: denso. O último quarto do Século XX ficou
marcado por uma série de eventos que representaram uma reviravolta. A queda do
muro de Berlim, o fim do socialismo real e a correlativa expansão da economia
em uma escala global sem precedentes deram a impressão de estarmos vivendo o
fim de uma época. E aí, sob o mote do ‘fim das ideologias’ surgiu a necessidade
de uma nova ideologia…
Tanto e a tal ponto que na busca de uma nova Weltanschaaung, tanto as
mesas redondas como os debates universitários mergulharam de cheio na tarefa de
compreender o que parecia ser uma nova realidade: as novas questões do novo
milênio. A partir daí, a função do sujeito –o sujeito do inconsciênte- acabou
equiparada à questão da cidadania e ao problema da subjetividade em um mundo
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onde a palavra “globalização” parecia ser o novo nome de uma realidade há muito
conhecida da psicanálise: a Psicologia das Massas –essa peculiar subjetividade
das multidões.
Porque o fato é que a dita ‘contemporâneidade’ não é um fato novo
surgido no fim do milênio. Ela aparece como um traço marcante já no advento do
Século XX quando teve lugar o sepultamento da modernidade e se pôs na mesa
uma pergunta, tão radical como absoluta, que a psicanálise encarna. É a pergunta
pelo sujeito. Sua responsabilidade. Sua ética.
No mais, uma afirmação como esta pressupõe uma peculiar elaboração
epistemologica que, talvez, exceda o marco de uma entrevista. Ainda assim, como
não dar um exemplo capaz de ilustrá-la? E aí, (creio que é Karel Kosik que o
observa) basta evocar o fato que o próprio Século XX terminou da forma que
começara. Iniciado em Sarajevo ao som dos tiros que detonaram a debacle da
primeira guerra, encerrou na mesma Sarajevo com o estrondo da metralha
disparada em nome da limpeza étnica.
Em suma, o próprio Século XX se apresenta, desde o inicio, como um
século tão idêntico a sí mesmo que serve de exemplo do que é o real de uma
contemporâneidade que se revelava, desde o inicio, pós-moderna.
4) Há tempos o senhor deixou o eixo Rio-São Paulo para se instalar no Paraná. De
certa forma, essa escolha reflete uma busca em seguir seus próprios caminhos, sem
se deixar influenciar por correntes da psicanálise das duas grandes cidades?
Me permita uma retificação… Minha instalação no Paraná, em Curitiba,
data de 1976, ano em que cheguei ao Brasil. Portanto, não é uma decisão tardía
mas um fato primeiro. Ocorre que, a partir de 1977 e por muitos anos, mantive um
ritmo de viagens periódicas e regulares ao Rio de Janeiro e São Paulo –e de forma
mais esporádica a outras cidades- para onde me deslocava com o propósito de dar
cursos, conferências e seminários.
Na época, duas razões me animavam. Em primeiro lugar, o desejo de
transmitir e divulgar o saber analítico; algo que só se tornara possível graças à
disposição dos meus interlocutores cujo interesse pela matéria era muito grande.
Em segundo lugar a necessidade de encontrar respondentes e devo dizer, sem
sombra de dúvidas, que os tive à altura. De resto, também devo dizer que na
época eu era muito jóvem e a minha impaciência era grande. Não me era fácil
esperar até a consolidação de um ambiente de estudo e reflexão na terra que eu
escolhera…
Mas eis que na década de ’90 e após manter essa prática por mais de dois
septênios, me sobreveio uma dúvida quanto ao sentido da mesma. Como manter a
confiânça numa transmissão –cujo maior fruto era a difusão dos conceitosquando eu próprio considerava que a mesma não era senão a parte mais
superficial da formação de um analista? Em suma, como sustentar um ensino que
faz apelo à razão quando considerava que a formação do analista não depende da
ampliação do horizonte intelectual e sim da efetiva elaboração da questão que,
para cada um, representa seu sí-mesmo?
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Face a tais dúvidas só tinha uma saída. De assumir, simultaneamente com
os cursos, a responsabilidade de acolher demandas de análise com fins didáticos.
Uma solução contrária as minhas convicções; um sintoma; talvez um arranjo. Por
sinal, pouco aceitável.
* Em principio por ter a suspeita que a demanda de saber dirigida a um
ensinante representa um sério obstáculo ao saber que se deve visar no trabalho da
análise. Portanto, um avatar que não favorece a instalação do trabalho analítico.
* A seguir, por ter certeza que a demanda de análise exige do futuro
analisante um preço. De assumir o endereçamento de sua transferência. De medir
a distância que separa sua demanda e a presença do Outro. De mensurar a fenda
que separa a demanda de saber do sujeito-suposto-saber que a subtende. Algo que,
na dita solução, aparece em forma invertida ao recair não mais no futuro
analisante mas no pretenso analista a iniciativa de deslocar-se.
* E finalmente por levar em conta algo que representa um obstáculo à
direção da cura. A miúde, a prática do ensino margeia o empuxo a convencer. Um
impulso contrário ao discurso analítico já que a paixão por convencer é –junto
com a ambição de curar- um dos maiores obstáculos ao ‘desejo do analista’.
Diante destas considerações só restou dar por encerrada uma etapa que
sendo rica do ponto de vista da transmissão, era insuficiente do ponto de vista da
formação. E aí, você tem razão quando diz que “a escolha de deixar o eixo RioSão Paulo reflete uma busca em seguir meus próprios caminhos”.
Em contrapartida, não parece plausível dizer que o objetivo teria sido de
“não me deixar influenciar por correntes da psicanálise das duas grandes
cidades”.
A prova é que após interromper a rotina dessa transmissão coube-me
assumir novas funções no seio de uma associação na qual já vinha assumindo
posições por mais de uma década. Aliás, uma associação que englobava não
apenas o trabalho que se desenvolvia no próprio eixo Rio-São Paulo, como
também em outras regiões. E quando o momento de concluir veio encerrar esse
compromisso, lá pela virada do milênio, minha escolha não enveredou pela
solidão das sendas que sulcam o planalto curitibano mas voltou-se para a
retomada de uma experiência societária, mais precisamente uma escola, onde o
problema da formação continua sendo o eixo que orienta os trabalhos do conjunto.
Sublinho estes detalhes com o objetivo de dizer que a idéia que a solidão
possa ser uma garantia de pureza me é radicalmente alhéia. Pois, como poderia o
analísta ter como máxima o exemplo do eremita ou a deriva do lobo estepário
quando seu afazer cotidiano o inscreve em um laço social e o põe em permanente
contato com o ‘desejo do Outro’?
Por lógica conseqüência… como conceber o analista a não ser no marco e
no contexto de uma Escola?
Curitiba, Fevereiro de 2009
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