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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPERTAMENTO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA
ASCESE E EDUCAÇÃO DOS IMPULSOS NA CONTEMPORANEIDADE
GABRIEL LUIZ AUGUSTO
SÃO CARLOS – SP
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPERTAMENTO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA
ASCESE E EDUCAÇÃO DOS IMPULSOS NA CONTEMPORANEIDADE
Monografia exigida para conclusão Curso
de Licenciatura Plena em Pedagogia sob
orientação da Professora Doutora Sandra
Aparecida Riscal.
GABRIEL LUIZ AUGUSTO
SÃO CARLOS – SP
2009
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Dedico tal trabalho a mim-mesmo, por força
de vontade que sei que tenho. Tornar Senhor-de-Si é
mais que uma meta, é uma vontade.
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“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor”.
(Fernando Pessoa)
“Todos os dias em que não a dança, estão perdidos”.
(Colligere)
“O que torna heróico? – Ir ao encontro, simultaneamente, da sua dor suprema e da sua
[esperança suprema”.
(Nietzsche)
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AGRADECIMENTOS
Para a realização desse trabalho, muito tempo, investimento e determinação foram
postos não só a mim, mas a pessoas muito especiais em minha vida, as que eu mais tenho
apreço.
Portanto, queria primeiramente agradecer a meus pais (Valquíria e Nelson), não
somente pelo excessivo invetimento financeiro que a ciência demanda, mas por serem
meus heróis, sempre. Agradeço a meu irmão Guilherme, que apesar de tudo, tenho afeto.
Agradeço a minha orientadora Sandra A. Riscal, que desde meu primeiro ano de
graduação aceitou prompitamente me orientar, ajudando-me não somente e dando
conselhos não somente para minha vita comtemplativa, mas também minha vita activa,
cotidiana, comum.
Agradeço também ao pessoal do Grupo de Pesquisa – Estado,
Administração Pública e Políticas Educacionais em São Paulo, pela fluente troca de idéias,
tanto acadêmicas quanto de “bobagens”cotidianas (que às vezes foram melhor ao espírito
que as acadêmicas!).
Agradeço a meus amigos do lado de fora da academia, que me fazem sentir de
“peito cheio”. A amizade é uma ética que somente se conhece quando se vive, que escapa a
imperativos, normas, moral e ideal – e esses amigos do lado de fora, mesmo sem conhecer
as vezes tais termos, praticam em sua vida diária. Aos que talvez em breve irão partir, e a
alguns que já estão um pouco mais longe – lembrei de uma frase não sei de quem, mas que
“longe” é um lugar que não existe, aqui dentro é perto e é o lugar de vocês.
Agradeço a Carla, amiga de curso, menina guerreira, que mesmo tendo uma visão
oposta a minha, aprendemos em “pé de guerra” a nos respeitar e, para além disso, sermos
bons amigos.
Agradeço a Van, menininha brilhante e engraçada, que em pouco tempo se tornou
imensa amiga e comparsa de teorias.
Agradeço a Bia que, mais que minha amiga, é minha irmã. A pessoa “mais certas
em horas incertas”. Passamos em 4 anos momentos bons e ruins, mas em todos estavámos
juntos, “um cobrindo o outro”. Quero ter você sempre em minha vida.
Agradeço somente aqui, mas não porque eu esqueci, a Clau, minha companheira –
tanto de minha vida “afetiva”, quanto acadêmica. Já passamos por tantas coisas juntos, em
graduação e mesmo antes dela. Se tracejarmos a medíocre genealogia da minha vida, com
certeza ela foi o mais forte divisor de águas da minha alegria.
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RESUMO
Este trabalho é uma monografia exigida para a conclusão de Curso de Licenciatura
Plena em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos. Ele consiste em pesquisa
bibliográfica de forma a fazer uma sistematização das Práticas Ascéticas, Ideais Ascéticos
e Educação dos Impulsos como característica da formação e constituição dos sujeitos
hodiernos. A questão surgiu a partir do questionamento sobre de que e quais maneiras o
sujeito se submete às heteronomias, e quais possibilidades existem (ou não) para a
constituição do Governo-de-Si. Para tanto, busca-se a crítica na filosofia contemporânea
(Nietzsche, Weber, Foucault e Sloterdijk) às tradições do pensamento ocidental (religião,
filosofia e ciência). O trabalho, através do método genealógico, busca, em suma, as raízes
do adestramento e apequenamento do sujeito moderno frente a uma moral servil.
Palavras-chave: Ascese; Moral; Formação; Governo-de-si; Filosofia (Contemporânea).
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................7
CAPÍTULO 1
VONTADE, ASCESE E RACIONALIZAÇÃO.................................................................................8
A Vontade para Schopenhauer...........................................................................8
Nietzsche, Ascese e Vontade de Poder...................................................................10
CAPÍTULO 2
WEBER E FOCAULT: FORMAS DE DIREÇÃO DE VIDA E TECNOLOGIAS DE GOVERNO............16
Max Weber e o Racionalismo Ascético.............................................................16
Foucault e o Indivíduo Moderno.......................................................................19
CAPÍTULO 3
IDEAL ASCÉTICO E A FORMAÇÃO DO APEQUENAMENTO DO ANIMAL-HOMEM.......................24
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................30
REFERÊNCIAS................................................................................................................31
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INTRODUÇÃO
“Como se chega a ser o que é”, eis a sentença. Nietzsche expõe a frase de tal
maneira em sua obra, que incomoda quem lê. Uma pergunta nada ingênua e simples, antes
disso, ela é extremamente provocativa e perigosa: provocativa porque nos instiga a dar
uma resposta, e perigosa porque nos põe de frente a nós mesmos, de modo que se torna
quase inevitávell ensaiar respostas.
Neste trabalho – apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso para a
graduação em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos – busquei, ao contrário,
algo que poderia ser exposto como “como não se tornar o que se é” ou “como se tornar o
que querem que seja”. E para tais pergunta, semelhante a de Nietzsche, é dificil também
uma imediata resposta. Para tanto, foi – mesmo que tenha sido elaborada bem depois do
início de tal trabalho – essa a questão desse trabalho: como tornar-se o que se é em uma
época que tudo ao nosso redor nos parece empurrar a ser o que querem que seja?
O caminho que escolhi, dentre muitos caminhos possíveis, foi buscar respostas na
tradição do pensamento ocidental (Bentham, Kant, Schopenhauer, Hegel, etc.) e críticos
dessa tradição (Nietzsche, Weber, Foucault, Sloterdijk), de modo que, utilizando a filosofia
como instrumento, busquei analisar algumas práticas ascéticas existentes em nosso tempo,
algumas raízes dessas, e como essas práticas e “éticas” formam os sujeitos docéis
existentes – ou seja, nós mesmos.
Desse modo, no primeiro capítulo buscarei expor a noção de vontade existente em
Schopenhauer e em Nietzsche, de como essa se apresenta como “essência” do mundo e
como foi apequenada pela tradição do conhecimento ocidental; no segundo capítulo
buscarei o motivo do controle dessa vontade e quais técnicas políticas foram utilizado para
tal – tanto no foco de Weber quanto de Foucualt; seguindo ao terceiro capítulo, buscarei
expor a formação moderna do apequenamento do Homem, enquanto sujeito criado pela
modernidade para a servidão.
Assim, longe de ser um trabalho que começa e finda em si, busquei nesse algumas
respostas para a prática servil que me parece existir nas mínimas ações cotidianas, que
deixa a sensação de adestramento, fraqueza e assujeitamento.
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CAPITULO 1
VONTADE, ASCESE E RACIONALIZAÇÃO
A Vontade para Schopenhauer
Na Idade Moderna, o princípio e fundamento da filosofia era considerada a Razão.
Esta era vista como o elemento que poderia explicar e compreender todos os fenômenos e
ações humanas, sendo através desta que o homem poderia alcançar o controle efetivo da
realidade e da verdade, sendo esta verdade contida dentro do "espírito".
Schopenhauer, opondo-se a essa visão de que a Razão é o elemento fundante da
realidade, pensa a Vontade, o "querer" humano, irracional e cego, como um novo substrato
fundante da totalidade, sendo esta a “essência íntima do mundo” (RODRIGUES, 2008).
Assim, na cosmovisão schopenhaueriana, a Razão é escrava dessa totalidade irracional,
dessa Vontade que gera sofrimento, pois, mesmo que os desejos possam ser satisfeitos,
contra cada desejo satisfeito existem inúmeros outros irrealizados (BARBOZA, 2005).
Foi assim Schopenhauer o primeiro filósofo a construir um sistema em que o
âmago do mundo é irracional, apontando que a Razão não explica assim a totalidade do
real, de modo que a noção de Vontade desenfreada mostra um mundo de angústia e
pessimismo. Uma vez que a idéia racional cartesiana muda de “eu sou” para a vontade
schopenhaureana de “eu quero”, o homem passa a ter sua razão apenas como escrava de
suas vontades; a razão passa a ser apenas um instrumento, perdendo seu sentido de telos
para o mundo (RODRIGUES, 2008). Para Schopenhauer é:
“A certeza distinta de que este mundo, no qual vivemos e exitimos, é,
segundo toda a sua natureza, absolutamente VONTADE e absolutamente
REPRESENTAÇÃO; que esta representação, enquanto tal , já pressupõe uma
forma, a saber, objeto e sujeito, portanto é relativa; e que se perguntarmos o que
resta após a susprenssão dessa forma e de todas a outras a ela suborinadas,
expressas pelo princípio da razão, a resposta é: esse algo outro, como toto genere
diferente da representação, nada pode ser senão a VONTADE, a qual, neste
sentido, é propriamente a COISA-EM-SI. Cada um se encontra a si próprio como
essa Vontade, na qual consiste a essência íntima do mundo, e cada um também
se encontra a si mesmo como sujeito que conhee, cuja representação é o mundo
inteiro, que só tem existência em relação a sua consciência como seu
sustentáculo necessário. Cada um, portanto é o mundo inteiro nessa dupla
acepção, é o microcosmo que encontra as duas partes do mundo completa e
plenamente em si mesmo”. (SCHOPENHAUER, 2006 # 29) (grifos do autor).
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Dessa maneira releva-se que surge diante da filosofia moderna a Vontade Humana,
relativa aos corpos dos homens, contidas dentro de cada um como vontade e represetaçao
do externo. Assim, o espírito racional perde a posição central quando os impulsos cegos da
vontade são os controladores das ações e sentidos das ações ateleogicas dos indivíduos.
Dessa maneira, segundo Cacciola (CACCIOLA, 1988) a noção de verdade tambem se
abala, uma vez que:
“...no pensamento de Schopenhauer que se instala a contradição do
pensamento filosófico comtemporâneo: a busca de verdade e ao mesmo tempo, o
sentido de sua impotência. A negação de um fundamento para o mundo, na
figura de um Deus criador, faz com que a verdade deixe de ocupar o lugar que
sempre foi seu na metafísica clássica. Acrescenta Horkheimer que, para
Schopenhauer , não há nem um condicionado em que a verdade se apóie. E
pergunta: como pode substituir a verdade eterna se o fundamento do mundo é
perverso – a vontade cega? [...] Longe de Deus, criador das verdades eternas ou
do Deus, responsavel por uma harmonia e longe até mesmo da idéia de um
incondicionado, a verdade perde prestígio que sempre lhe fora ontologicamente
conferido... É, pois, diante da ausência de sentido do querer infinito que se
afirma a opção ética pelo niilismo” (CACCIOLA, 1988, pp. 2-5.)
Como nota-se pela análise de Cacciola, Schopenhauer coloca em questão a verdade
e a teleologia da razão, possibilitando assim “os fundamentos da desesperança”.
Observando os trechos citados, a noção de verdade sofre um abalo, uma vez que a
representação dessa não mais é externa ao homem, contida em divindades, mas sim dentro
de si próprio, como subjetividade. Portanto, a vontade é a que causa o absurdo, o
desespero, uma vez que esta não possui em sentido “maior” senão findar-se em si mesmo.
Assim, Schopenhauer, em uma ética niilista, ou seja, buscando suspender o controle
humano pela vontade, negando-a. Para tal suspenção, Schopenhauer aponta dois caminhos
para esta “negação ética da natureza do mundo” (RODRIGUES, 2008): o otimismo prático
na condução da vida pela possibilidade da fruição estética e a prática da ascese como autoabnegação.
Fruição estética seria para Schopenhauer o mecanismo de percepção gerado pela
vontade, de modo que, através da arte, o indivíduo é conduzido ao conhecimento da
natureza do mundo e a ideia que ordena a realidade. Assim toda a esfera estética se remete
ao conhecimento da natureza, seja animal ou vegetal; dessa maneira a arte nos possibilita
justamente o prazer estético, sendo que este prazer é “suscitado pelo puro conhecimento do
objeto, só que, aqui, o interesse é exclusivamente por aquilo que o objeto é em si, e não por
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aquilo que ele pode beneficiar-nos ou prejudicar-nos; está fora dos âmbitos da
representação” (MONGE, 2008).
Ascese é entendida pelo filósofo já como sendo uma "ética metafísica", uma
liberação da Vontade em uma anulação da própria vida. Segundo Barboza (2005) se a
vontade é atendida, imediatamente gera o tédio e se esta demora em ser realizada, gera
angústia, ou seja, a vontade nunca se finda, nunca deixa de causar sofrimento. Renunciamse as pulsões, uma vez que o prazer sempre é efêmero – ou, como diz Schopenhauer (2005)
“é extremamente difícil obter e conservar alguma coisa”. Assim é somente através de uma
conduta de vida regrada voluntariamente é que se pode existir livre de um sofrer.
Nietzsche, Ascese e Vontade de Poder
Friedrich W. Nietzsche, influenciado por Schopenhauer, também pensa tais
conceitos de vontade, declínio da razão e verdade, de fruição estética e ascese, no entanto
os sentidos com os quais aparecem tais conceitos são diferentes do de Schopenhauer e
também com diferentes implicações.
A partir do conceito de Vontade schopenhaueriano, Nietzsche se desdobra em
outras prespectivas da vontade – vontade de verdade, vontade de viver, vontade de poder e
vontade de nada. Todas são Vontades e provindas dos corpos, no entanto o que cada uma
apresenta é uma perspectiva e um sentido, que se confrontam muitas vezes entre si. Assim
necessita-se aqui dizer quais a distinções que cada uma dessas perspectivas apresenta na
obra do autor.
Um dos primeiro caminho que Nietzsche utiliza em sua filosofia é a questão do
diagnóstico da cultura, de modo que, ao seu olhar, esta apresentava em sua época (séc.
XIX) uma contaminação por uma doença, uma “fraqueza”, uma decadência do homem.
Nietzsche busca assim primeiramente o sintoma: O homem matou Deus, mas ainda não
deixou de ser devoto (NIETZSCHE, 2005). Assim, buscando compreender essa questão, o
filósofo parte para o terreno das interpretações, buscando interpretar tambem esse signo
social que é a décadence (VIESENTEINER, 2006).
A primeira questão a ser relevada é a da verdade e da memória e suas relações
intrínsecas com as questões divinas. Se buscar a palavra grega para verdade, alethéia, notase nessa palavra a ideia de verdade, mas um verdade que é relevada sempre por um
daemon, um deus, e portanto nunca esquecida. A questão da memória, de conservar algo
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fixo num mundo em que tudo é devir (faz-se notar a aproximação de Nietzsche com o
pensamento pré-socrático), é relevante para compreender o porquê do surgimento da
Vontade de Verdade, recorrente em nossa cultura.
Em “Sobre a Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”, Nietzsche (1999) levanta
o argumento de que o intelecto é o meio para a preservação do indivíduo, de modo que
esse intelectuo e memória são os disfarces para que o indivíduos mais fracos, através de
representações, evitem “uma luta pela sobrevivência com chifres e presas aguçadas”.
Quando o homem diz possuir uma verdade esquecida, e que um deus irá relevar a ele
atravéz de palavras (modo de pretensa preservação das coisas – como se ao invocar uma
palavra ou designá-la trouxesse a essência das coisas), inicia-se assim o impulso a verdade,
que nada mais é que um impulso de preservação do fraco frente à destruição das guerras e
do devir. Assim o ser racional (no princípio ligado a uma religação com os deuses –
sacerdotes) começa a sua “vingança” contra os guerreiros (senhores nobres).
É notado em “Para Genealogia da Moral” uma extensão dessa discussão, em que
Nietzsche (2005) irá colocar em oposição os dois arquétipos de homem: Os Senhores-de-Si
, ou seja, os guerreiros nobres, aristocráticos, fazedores de guerras como exaltação da vida
em todos seu horrores e belezas que esta possui; e os Sacerdotes , provindo de castas mais
baixas nas sociedades. Uma vez que os sacerdotes eram escravos inicialmente, fracos de
corpo, sem riqueza, a “maneira” como esses ardilosos indivíuos encontraram para a autopreservação frente aos fortes foi a “criação” da razão, do intelecto portador de verdade, foi
a astúcia que os fracos tem que ter para derrotar os mais fortes.
A implicância disso para a história da verdade se dá quando estas verdades se
encontram com a Moral, como os conceitos de “bom” e de “mau”. A verdade pouco tem de
força se não co-existir junto à moral. Assim, ao fazer uma análise etimológica, observa-se
que em muitas línguas algumas transformações conceituais como nobre e aristocrático (no
sentido social) é originado de “bom” (próximo a bem-nascido) (NIETZSCHE, 2005). Por
outro lado, as palavras plebeu, baixo, comum, vulgar [schlicht] tem origem no conceito
“ruim” [schlecht]. Ambos os conceitos não possuíam a visão depreciativa, apenas era uma
oposição entre plebe e nobreza (foi somente na modernidade que tais valores tomaram
outros sentidos).
Outra análise que Nietzsche (2005) realiza é a veracidade ser ligada à nobreza: o
nobre é real, verdadeiro, enquanto o mau, o malus (latim), eram os homens de cabelos
escuros plebeus. Assim observa-se que conceitos de preeminência política sempre resultam
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em preeminência espiritual. Nesse momento é preciso mencionar que valores sacerdotais
começam a derivar-se de valores cavalheiresco-aristocrático, que posteriormente estes
primeiros se desenvolveram em oposição ao segundo.
O Juízo de valores cavalheiresco-aristocráticos tinha (e tem) como pressuposto uma
constituição física poderosa, uma saúde florescente, justamente com o que serve para sua
conservação: guerra, caça, torneios, aventuras, danças – tudo envolvendo atividades
robustas, livres e contentes. Em oposição a esses valores, a valoração sacerdotal tem a
concepção da guerra como algo “mau” no sentido da alma. Isso ocorre devida à impotência
destes perante os guerreiros causando assim um vingativo ódio. A história humana é
herdeira desse ódio tresvalorado dos valores dos nobres. Inicia-se, portanto, a revolta dos
escravos na moral, e que foi perdida do ponto de vista.
Do tronco da árvore da vingança (judaico-sacerdotal), brotou um novo amor, não
como negação a essa vingança e ódio, mas sim como coroação e afirmação desse ódio
herdado. Pregar na cruz Jesus de Nazaré, redentor dos pobres, doentes e impotentes foram
“passos premeditados” da política de vingança judaica. Torna-se assim um paradoxo
crucificar Deus para a salvação da raça humana; a imagem de Cristo na cruz deveria se
igualar assim ao ódio sacerdotal ali existente contra os ideais nobres. Assim venceu a
moral do homem comum, fraco, do rebanho e os senhores-de-si foram abolidos, de
maneira que a marcha desse envenenamento da alma humana caminha então a passos
lentos e refinados até a modernidade.
Retomando ao “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral”, no final do
segundo parágrafo, Nietzsche aponta para o desdobramento moderno desses senhores e
sacerdotes, como é observado no seguinte trecho:
“Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo ficam lado a
lado, um com medo da intuição, o outro escarnecendo da abstração; este último é
tão irracional quanto o primeiro é inartistico. Ambos desejam ter domínio sobre a
vida: este sabendo, através de cuidado prévio, prudência, regularidade, enfrentar
as principais necessidades, aquele, como “herói euforico”, não vendo aquelas
necessidades e tomando somente a vida disfarçada em aparência e em beleza
como real.” (NIETZSCHE, 1999, p.60.)
Como nota-se em tal fragmento, Nietzsche aponta um paralelo entre os senhores
“artísticos” e os homens da abstração, que na antiguidade se apresentavam como
sacerdotes e na época moderna como os homens da ciência. Este ponto é o que começa a
aparecer a retaliação de Nietzsche. Como dito anteriormente, como signo de declínio, é
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exatamente esta questão: depois da queda dos eclesiásticos como possuidores da Verdade –
da veradade de Deus – outros sacerdotes passam a possuir a Verdade: o homem racional
moderno, o Cientista.
Nietzsche observa que aquela moral criada na antiguidade, aquela moral que
negava os valores da vida em detrimento a uma auto-preservação, a uma vida regrada, a
uma vida, como Nietzsche (1999) diz no trecho acima, com cuidados prévios, sem perigo,
sem riscos. Para a tradição moral, estar do lado “bom” é ser ascético, ter uma educação dos
impulsos e nunca caminhar no terreno da desmesura.
A obra de Nietzsche que mais dialóga com tal proceder da vida, e que busca
caminhos para uma vida mais “alegre” (gaya) é a “A Gaia Ciência” (2005), ou como seu
proprio nome sugere, a ciência jovial, sem o peso da tradição. Nesta obra, aparece no seu
quinto livro denominado “Nós, os impávidos”, aparece um aforismo (#344) chamado “Em
que medida também nós ainda somos devotos”, que se faz notável relevar o seguinte
fragmento:
“(...) de onde poderá a ciência retirar a sua crença incondicional, a
convicção na qual repousa, de que a verdade é mais importante que qualquer
coisa, também que qualquer concicção? Justamente esta convicção não poderia
surgir, se a verdade e a inverdade continuamente se mostrassem úteis: como é o
caso. Portanto – a crença na ciência, que inegavelmente existe, não pode ter se
originado de semelhante cálculo de utilidade, mas sim apesar de continuamente
lhe ser demonstrado o caráter inútil e perigoso da “vontade de verdade”, da
“verdade a todo custo”. “A todo custo”: oh, nós compreendemos isso muito bem,
depois que oferecemos e abatemos uma crença após a outra nesse altar! – Por
conseguinte, “vontade de verdade” não significa “Não quero me deixar
enganar”, mas – não há alternativa – “Não quero enganar, nem sequer a mim
mesmo”: - e com isso estamos no terreno da moral” (NIETZSCHE, 2005, p.234
-236.)
Então, segundo Nietzsche, toda essa “Vontade de Verdade”, esse não querer se
enganar, é uma sintoma de fraqueza, uma vontade de pisar em solo fixo tradicionamente
existente em nossa cultura desde a tradição filosófica grega, principlamente socráticaplatônica. No entanto, essa “crença metafísica” esconde o principal alvo nietzscheano: A
vontade de Nada, ou o Niilismo.
Para a definição do conceito de vontade de nada é antes necessária a definição do
conceito de vontade de poder, uma vez que um e outro não se encontram separados,
inclusive são os mesmo, porém de perspectiva diferente. Vontade de Poder seria,
influenciado por Schopenhauer, a essência da vida em forma de dominação, de exaltação
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de todas suas belezas e crueldades (como já dito anteriormente, contida nos “homens
intuitivos”) – a vida é um eterno campo de batalhas, segundo Nietzsche (2005). Segundo
Deleuze (1981), o forte (usando o termo nietzscheano), possuidor da vontade de poder, é o
verdadeiro opositor ao fraco, que transforma sua vontade de poder em vontade de nada, por
medo de que a vida pode lhe provocar, ou seja, a vontade de poder torna-se negação.
Porém não como vontade de morrer, mas ao contrário, contraditoriamente nega-se a vida
perigosa para auto-conservação.
É essa negação que se encontra na religião, na metafísica e modernamente na
ciência; de modo que a vontade de verdade seria então uma vontade de nada. O desespero
maior da vida é saber que essa não possui uma finalidade, ela nao é teleológica. Assim, são
criados pela vontade fraca – pela vontade de nada – os ideais ascéticos, ou seja, a ascese
deixa de ser apenas corpórea e passa tambem ao “espírito” dos indivíduos. A busca eterna
pela verdade, pelos conceitos fixos, pelos conceitos ligados sempre ao eixo “bom, belo,
justo” é o exemplo máximo da negação, uma vez que a vida é justamente o contrário disso,
a vida é a injustiça, crueldade e dureza – mas é somente nesta que o homem intuitivo tem a
a compreenção do real e efetivo.
Deleuze (1981) comenta que Nietzsche não nega que o homem intuitivo também
busca conhecer o seu real, porém esse não necessida esconder-se atrás da abstração para
perceber a vida como dureza e ateleológica. Assim, a verdade para este não existe, o que
existe são interpretações dos fenômenos. Um mesmo fenômeno pode ser interpretado pelo
foco do forte e senhor-de-si como pelo fraco que abre mão de seu próprio governo e deixa
seu governo na mão de um deus, ideal ou verdade. Os ideais ascéticos, como diz Deleuze,
são é:
“(...) a vontade de nada, como condição do seu triunfo. Inversamente, a
vontade de nada só tolera a vida fraca, multilada, reactiva: estados vizinhos de
zero. Então, estabelece-se a inquietante aliança. Julgar-se-á a vida de acordo com
valores ditos superiores à vida, condenam-na, conduzem-na ao nada; só
prometem a salvação às formas mais reactivas, às mais fracas e às mais doentes
da vida. Esta aliança do Deus-Nada e do Homem-Reactivo.” (DELEUZE, 1981,
p.25)
Homem reativo, segundo Deleuze, é o mesmo que o homem racional de Nietzsche,
uma vez que este não enfrenta a vida, apenas reage criando ideais, conceitos, verdades e
convicções que possa se esconder atrás.
Nietzsche não discorda de Schopenhauer em relação que o que eleva a vida é arte.
A arte, para Nietzsche, estando sob sugestão da vontade e do poder, é a expressão e
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afirmação da vida, da vontade, do livre fluir dos impulsos do homem (NIETZSCHE,
2007). A arte religa o homem à natureza, mesmo que tal natureza seja cruel e má. O
homem ligado às artes afirma a esta em si-próprio; suas próprias ações são extensões
irracionais estéticas, sendo que seu elemento explicativo do real é a vontade em forma de
intuição.
O homem intuitivo e estéta é a imagem da "jovialidade", a inocência criativa de
uma criança (influência Heraclitiana), do viver intensamente sobre a influência da
destruição e criação proporcionada de sua forte vontade de poder (NIETZSCHE, 1978).
Assim Ascese, que em Schopenhauer apresenta um grau tão sublimador quanto a arte, é em
Nietzsche relativizada e posta como fraca e inferior à arte. Os ascetas rebaixam o corpo a
uma ilusão, assim como a dor, multiplicidade, toda a oposição conceitual de “sujeito” e
“objeto”: recusa-se o Eu, nega-se a si mesmo sua “realidade”. A Ascese é o fruto da Razão,
o fruto do fraco (NIETZSCHE, 2006). A ascese é um negar racional, um negar “científico”
à vontade: a forma moderna de ascese se apresenta na forma de racionalização das ações.
Sobre a racionalização do mundo, dois autores influênciados por Nietzsche são
interessantes para a abordagem, sendo eles Max Weber e Michel Foucault. Ambos, de
maneira diferente, descreveram facetas da ascese e disciplina na educação dos impulsos na
sociedade moderna e contemporânea. Max Weber busca compreender práticas ascéticas
das ações racionais da conduta dos homens modernos e quais suas influencias (ex:
capitalismo, burocracia etc.) (WEBER, 2007). Foucault apresenta uma analítica de como o
poder atua de maneira capilar nas pequenas ações cotidianas que constroem o sujeito, seus
poderes e seus conhecimentos (FOUCAULT, 2002). Ambos, apesar de modos diferentes,
encontram-se na questão de interpretação da “direção de vida” que é encontrada na vida
moderna (ORTEGA, 1999).
Utilizando tais teorias como ferramenta, buscarei tentar compreender quais são os
mecanismos racionais utilizados e contidos na suspensão da vontade, em forma de ascese e
disciplinarização dos impulsos na sociedade moderna.
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CAPÍTULO 2
WEBER E FOCAULT: FORMAS DE DIREÇÃO DE VIDA E TECNOLOGIAS DE GOVERNO
Na sociedade moderna, para Ortega (1999), com o advento do capitalismo hodierno
e com o Estado como formas de poder totalizantes e individualizantes, surgem duas
práticas que regulam e policiam os indivíduos comuns: o trabalho como direção ou
sentido-de-vida e a disciplina como bio-poder, ambos como uma regulamentação da
racionalidade ascética.
O primeiro eixo deste capitulo é a apresentação do pensamento sobre o capitalismo
moderno e contemporâneo e seu racionalismo ascético pensado por Max Weber (1864 1920), assim suas implicações para questões da ascese e razão estudada em tal trabalho. Já
o segundo eixo deste capitulo é caracterizado pela visão de Michel Foucault (1922 – 1984)
sobre sujeito na modernidade e seu novo modelo de Estado, cujas bases estão nas práticas
disciplinares que suprem os impulsos e vontades dos sujeitos e transformam asceticamente
em produção de poder e saber sobre o Homem, porém num âmbito micro-político.
Ambos os autores, Weber e Foucault, apesar de muita disparidade em seus
pensamentos, estes se encontram próximos na questão das formas como os sujeitos agem
depois do advento do racionalismo moderno: um voltado pra questão do trabalho e ações
dos indivíduos e o outro voltado a constituição do sujeito, porém ambos com a questão da
ascese e vontade intimamente presente em suas visões-de-mundo.
Max Weber e o Racionalismo Ascético
Weber (2006), em sua obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”,
busca compreender quais os motivos dos paises mais ricos de sua época (passagem do
século XIX para o XX) serem os de religião protestante, mais especificamente a moral
puritana. A partir de tal questão, Weber busca compreender esta em seu momento de
nascimento, a passagem da cultura monástica medieval para a secular da Idade Moderna.
O período transitório do Medievo para a Idade Moderna foi para Weber, assim
como para Nietzsche (2005), o momento da “Morte de Deus”, ou nos termos do primeiro,
o momento do desencantamento do mundo. Com o levantar da modernidade, vários fatores
(as teses de Lutero contra a tradição católica, grandes conquistas da Europa na América,
surgimento do pensamento filosófico racionalista de Descartes) contribuíram para que a
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tradição religiosa católica entrasse em declínio. O Catolicismo, que até então era a grande
religião professora da palavra de Deus, encontra-se numa situação adversa, ou seja, o
surgimento de uma nova lógica (que possibilitou os fatores antes mencionados) que,
mesmo sendo sua herdeira, veio a destruir este por dentro: o racionalismo ascético
(WEBER, 2006).
Este novo substrato social, tão ascético quanto a ascese religiosa, foi o que para
Weber (2006) possibilitou o surgimento do capitalismo tal qual se encontra hoje, e o que
para Foucault (2005) possibilitou o surgimento dos saberes modernos, disciplinas e o
Estado de dominação normativa.
Weber, fazendo uma análise semelhante à nietzscheana genelealogia, busca
compreender este “eixo” de ações da cultura moderna – a educação dos impulsos, o
trabalho capitalista e a moral religiosa puritana – assim, seu trabalho busca não
explicações, mas entender o subsolo das ações e o que estas significam. É na moral cristã
puritana que ele irá encontrar alguns signos que lhe trarão uma compreensão do trabalho
disciplinado capitalista.
Segundo Weber, o capitalista puritano, tipo ideal de indivíduo de maior inserção no
capitalismo racionalista, apresenta uma qualidade ética diferente da tradicional, mas para a
compreensão deste releva-se o seguinte trecho:
“(...) evidentemente não nos importa aquilo que era ensinado teórica e
oficialmente nos compêndios por assim dizer éticos da época – por mais que
tivessem significação prática por conta da influência da disciplina eclesiástica,
da cura de almas e da pregação – mas antes algo totalmente diverso: rastrear
aqueles estímulos psicológicos criados pela fé religiosa e pela prática de um
viver religioso que davam a direção da conduta de vida e mantinham o
indivíduo ligado nela.” (WEBER, 2006, p.89.)
Como se pode notar, Weber busca os sentidos, a direção de vida que a religião – o
Protestantismo Puritano no caso – propicia, e não somente seus aspectos dogmáticos. Ou
como Foucault (2007), busca-se analisar quais as práticas de subjetivação os indivíduos
efetivam.
A vertente puritana criada a partir do Luteranismo, denominada Calvinismo, em
que aparecia a tese da predestinação, em que Deus já haveria escolhido os fiéis que
entrariam no Reino do Céu, e os que não fossem escolhidos pelo menos teriam que labutar
em vida para se mostrar dedicado a Deus, fora o primeiro grande golpe religioso, até
mesmo mais que Lutero, para que houvesse o desencantamento do mundo. Na tradição dos
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Católicos, a magia não fora eliminada da piedade, uma vez que tinha à sua “disposição a
graça sacramental de sua Igreja como meio de compensar a própria insuficiência”
(WEBER, 2006, p.106). O padre era semelhante a um mágico que podia operar os milagres
da transubstanciação e oferecer o perdão, como sendo imediato de Deus na terra.
Em compensação, o Deus calvinista exigia de seus fiéis uma santificação pelas
obras na terra, regradas a toda hora e a cada ação uma vez que apenas em vida é que se
poderia mostrar a honradez perante Ele. Assim o Calvinismo possui fim transcendente e
altamente racionalizado (todas as ações possuem um sentido voltado a um fim) e seu
percurso intra-mundano é somente com objetivo de aumentar a glória de Deus (WEBER,
2006). Este destino inescapável e imutável, sem um imediato perdão na terra é a causa de
tanta tensão, retidão e mesura nos passos ascéticos dos calvinistas.
Tal ascese é encontrada nas ações puritanas dos calvinistas como uma herança da
direção de vida monástica existente na Idade Média. Como dito anteriormente, ascese é o
controle e educação austera das paixões e dos impulsos buscando a purificação da alma
com o fim de alcançar Deus ou a Verdade. Em monastério, o oficio religioso e a ascese
eram praticados de maneira extra-mundana, ou seja, era na adoração divina através de
práticas metódicas de privação da alimentação, fala, sexualidade e outros prazeres do
mundo. Com a reforma protestante, a prática religiosa deixa de ser exercida unicamente em
monastérios e passa a ser exercida, como salvação da alma e glorificação de Deus através
também de privações de prazeres, mas principalmente através do trabalho com fim em si.
O corpo ocioso, para o protestantismo puritano (principalmente o Calvinismo) é o
desperdício do sagrado tempo que Deus, portanto o trabalho se apresenta como uma
vocação divina a tais religiões. Dessa maneira, o lucro não passa a ser pecado como visto
pelo Catolicismo, desde que este não seja esbanjado com prazeres mundanos, mas sim
guardado, uma vez que tal tesouro é um fruto de um trabalho divino. A ascese desse modo,
intra-mundana, é o trabalho com finalidade em si próprio. O sofrer pelo trabalho tem o
sentido de purificação da alma. Dessa maneira Weber (2006) observa como um conceito
(remetendo-se aos ideais ascéticos de Nietzsche) se transforma em trabalho, tendo a ética
protestante como uma das possíveis bases para a existência do capitalismo moderno.
No entanto, o trabalho que surgiu em tal ética religiosa, não se limitou apenas ao
trabalho produtivo, mas também influenciou e deu arcabouço, como Weber escreve, a
racionalista tradição científica e filosófica Iluminista, como se refere na seguinte
passagem:
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“Então para os “últimos homens” desse desenvolvimento cultural, bem
poderiam tornar-se verdade as palavras: ´Especialistas sem espírito, gozadores
sem coração: esse nada imagina ter chegado a um grau de humanização nunca
antes alcançado´”( WEBER, 2006, p.166)
Em tal trecho é interessante notar o próximo diálogo que Weber tem com Nietzsche
(2005), em sua terceira dissertação de “Para a Genealogia da Moral”, em que a sentença
“(...) o homem preferirá ainda o querer o nada a nada querer”(p.149), aponta para a mesma
direção: os ideais ascéticos existem, assim, tanto no trabalho produtivo quanto neste citado
trabalho intelectual de especialistas - neste caso referindo-se aos cientistas positivistas e
iluministas. Ambos acreditavam que com as leis da razão sendo exercidas, podería-se
conhecer e controlar a totalidade do mundo através da categorização, ou seja, do controle
do reale através de conceito e Ideais.
Monge, trabalhador capitalista e o cientista especialista – ambos apresentam um
mesmo diagnóstico: todos se submetem a racionalidade ascética. O monge nega a vida
estando recluso nos monastérios, buscando através das práticas ascéticas a glorificação de
Deus; o trabalhador capitalista asceta, que exerce seu trabalho não apenas como adoração a
Deus (como inicialmente era com os protestantes), mas sim como direção de vida, ou seja,
uma vida sem sentidos encontra-se cheia no trabalho com um fim em si próprio; e ultimo
homem, o cientista , que acredita ter negado Deus, mas em certa medida ainda está preso à
procura de uma Verdade que somente a Razão pode explicar. Tais Verdades só existem nas
relações intra-pessoais e perspectivamente. O que esses homens fazem é colocar uma idéia
ou ideal, um conceito, no lugar dos efetivos prazeres do real.
Foucault e o Indivíduo Moderno
Foucault afirma ser Kant o filósofo que no século XVIII inaugura um nova maneira
de pensar na medida em que as questões apontavam para a atualidade. Ao escrever “O que
é o Esclarecimento”, em 1974, Kant estaria marcando o aparecimento de um novo
questionamento, ou seja, o presente como acontecimento e problematização filosófica.
Seguindo-se a leitura da realidade realizada por Kant sobre a “Aufklärung”, surge
posteriormente as questões sobre pelo sentido da Revolução, em que esta basearia-se na
busca pela existencia de um signo de progresso constante para o homem.
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A partir de então, funda-se duas tradições críticas em que se dividiu a filosofia
moderna – “o que é o “Esclarecimento?” e “o que é a Revolução?”. Relativo a primeira
tradição , propõe-se questões sobre a possibilidade e condições sobre o conhecimento
verdadeiro, evidenciando-se depois do século XIX como Analítica da Verdade. Na outra
tradição, em que os questionamentos sobre o Esclarecimento e sentido da Revolução são os
elementos fundantes, estão as formulações sobre interrogações sobre o campo atual das
experiências possíveis, constituindo-se então numa Ontologia do Presente.
Influenciado pela segunda tradição, Foucault quando escreve tem diante de si o
direcionamento e escolhas sobre seu próprio tempo, problematizando sua atualidade
levando-o a outras formações históricas, para analisar assim rupturas que permitiram a
constituição do presente, tal como ele se dá. Nessa atualidade que Foucuault analisa
aparece o sujeito moderno, ou seja, produto de uma tecnologia que o constitui enquanto
objeto de saber e resultado das relações de poder, caracterizado pela docilidade e utilidade
que o ajustam para seu processo de constituição.
Na obra “Vigiar e Punir” (2008), este sujeito moderno vai sendo delineado como
um produto da disciplina, ou seja, segundo Foucault (2008) , esta é o que fabrica o
indivíduo. Os mecanismo disciplinares funcionam de maneira de individualização
“descendente”, entendido como individualização que ocorre sobre todos que recebem
afetação das relações de poder (que se tornam mais anônimas e funcionais), sendo assim
chamada pois se caracteriza pela observação, fiscalização, medidas comaprativas e
normalização de desvios destinadas aos homens comuns. Com a disciplina não se
individualiza a partir da concentração de poder que distingue seu possuidor dos demais
homens, mas produz-se a individualidade junto a estratos ocupados pelo homem comum,
observado e constituído em sua contíngencia de criança, doente, de louco, de delinqüente
ou do que resta de tais contingências no adulto são, normal e legalista.
Assim, a troca do eixo da individualização ocorre quando o indivíduo deixa de ser
formado por mecanismos histórico-rituais (existente no Regime Feudal, em que a distinção
por ritauis, discursos e representações era o que constituia o sujeito) e passa a ser produido
por mecanismos científicos-disciplinares, fazendo assim com que a individualidade do
homem memorável seja substituida pela individualidade do homem calculável. Desse
modo, a principal realização da época disciplinar são as instituições prisionais - tendo a
Prisão como principal instituição, porém tendo os Hospitais, Escolas, Fabricas, Casa etc.
como instituições normativas, desenvolvidas a partir do mecanismo Panóptico.
21
Bentham (2008), autor de O Panóptico; ou a Casa de Inspeções, objetivava em sua
obra uma reforma moral, uma preservação da saude, uma industria revigorda e funcional, a
instrução e educação difundida, os encargos públicos aliviados e a economia assentada a
partir de uma estrutura arquitetônica que pudesse ter o poder da mente sobre a mente,
portanto, esse mecanismo de poder seria designado como Panóptico. Sua função seria a de
vigilância do sujeito para que este, sob esse “olho do poder”, produzisse mais do que se
estivesse fora de tal situação.
Assim o Panóptico, este dispositivo polivalente da vigilancia das concentrações
humanas, tende a imitar Deus, uma vez que seus poderes criam uma atmosfera “onividente,
onipresente e oniciente, contendo vigilancia e invibilidade, (...) uma instância em que é
mesmo preciso reconhecer um Deus artificial” (Miller, 2008).
Desse modo, retoma-se ao tema nietzscheano da Morte de Deus, e mais ainda em
seu aforismo XXX : “em que medida ainda somos devotos” em que discute a substituição
de Deus pela Ciência, por seus mecanismos e suas implicações para a vida dos homens
comuns. Foucault (2007) pensa sobre o panóptico como docilizador do corpo, de modo que
é a objetivação mais apurada em relação à tecnologia política do corpo. Penso que é
necessario a criação de tal docilidade , para a construção da ascese moderna no que diz
respeito a moral, saúde, regramento, controle dos impulsos, e o principal mecanismo de
formação da ascese é o Panóptico. É essa tecnologia arquitetônica existente em qualquer
instituição cotidiana que faz “do corpo do indivíduo seu principal ponto de aplicação, que
possibilitará a constituição desse indivíduo-objeto dócil e útil” (Fonseca, 2007), portanto ,
um corpo livre de impulsos e vontades, um corpo regrado apenas para o governo-do-outro.
Em relação ao biopoder, que pra Foucault (2006), em “A Vontade de Saber” , parte
da análise do indivíduo moderno como objeto e passa a analisar o indivíduo moderno como
sujeito, assim utilizando da genealogia do sujeito moderno para fazer um justaposição das
tecnologias de constituir o indivíduo como objeto dócil e útil às tecnologias que
permitiram sua constituição como sujeito inserido em um momento histórico específico.
Dessa maneira, tanto tecnologia de objetivação quanto de subjetivação constituem a
identidade do indivíduo moderno, assim inicia-se o Biopoder, ou seja, o poder político
assume a tarefa de gerir a vida (Foucault, 2006).
Foucault relaciona-se intrinsecamente com a sexualidade ou o sexo em discurso e o
controle estratégico da vida, pode se observar o seguinte trecho:
22
“De um lado, faz parte da disciplina do corpo: adestramento,
intensificação e distribuição de forças, ajustamento e economia das energias. Do
outro, o sexo pertence à regulação das populações, nos dois registros; dá lugar a
vigilânvias infinitesimais, e controles constantes, a ordenações espaciais de
extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todos um
micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a
estimativas estatísticas, a que visam todo o corpo social ou grupos tomados
intervenções globalmente.” (FOUCAULT, 2006, p 158)
Como nota-se, o biopoder destina-se ao aperfeiçomento do mecanismo de
vigilância, ou seja, o seu fundamental interesse é relativo ao controle do indivíduo, de
maneira que mesmo não sendo um poder “negativo”, que reprime, é um poder da vida, mas
ainda assim (e talvez mais) estando no âmbito político governo-do-outro. Esse poder, antes
de reprimir, incita a dizer as verdades sobre o sexo (como forma de controle). Essa ânsia
pela verdade, ainda mais com o sexo como centro, aproxima-se à discução biologica e
legalista do sexo como forma normativa.
Ao meu ver, uma vez que todo homem comum foge a regra da normalidade, o
regramento e a educação dos impulsos existe no momento da vontade de se “arrebanhar”,
de ser normal. A busca pela normalidade passa a ser, lembrando de certa maneira Weber,
um sentido de vida, como aparato da disciplina pra ter um corpo ascéticamente dócil e
regrado.
Apontando possíveis caminhos para a superação do assujeitmanento moderno do
homem, Foucault busca na antiguidade greco-romana formas de constituições do sujeito,
com fim de confrontar com o sujeito moderno, podendo assim ter novas margens de estudo
sobre este.
Entre os gregos, segundo Foucault (2006), a principal maneira da constituição
sujeito é encontrada no seguinte segmento:
“(...) a maneira pela qual se deve construir a si mesmo como sujeito
moral, agindo em referência aos elementos prescritos que constituem o código.
Dado um código de ação, e para um determinado tipo de ações (que se pode
definir por seu grau de conformidade ou de divergência em relação a esse
código), existem diferentes maneira de „se conduzir‟”. (FOUCAULT, 2006,
p.27)
Como observa-se, a moral e a ética do sujeito é o jeito que os gregos tinham como
subjetivação – uma moral-de-si. Em relação ao uso dos prazeres, em que virtude e vício
não se anulavam, mas sim necessitava o sujeito saber como iria usar, aponta, também
23
como Nietzsche, a característica de ser Senhor-de-si. A conduta de vida regrada e a ascese
(autoconhecimento, controle, de aperfeiçoamento e transformação) podem ser práticas
fluentes, porém a perspectiva passa a ser outra; na constituição do sujeito moral, o sujeito
vê a si próprio como parte de uma Estética da Existência, ou seja, como Senhor-de-si, ele
cria sua própria vida como uma obra de arte que tem fim em si mesma.
24
CAPÍTULO 3
IDEAL ASCÉTICO E A FORMAÇÃO DO APEQUENAMENTO DO ANIMAL-HOMEM
Ao término do aforismo #359 de A Gaia Ciência – A vingança contra o espírito e
outros motivos secretos da moral, Nietzsche (2005) denomina como “pedagógico” o
instinto de auto-preservação dos animais-homens diante do medo da morte – do Grande
Nada –, buscando, assim, solidão, silêncio, a sabedoria, ou, em outra designação, a
negação da vida. Está é a vingança “fraca”, nega-se à vida regrando-á, buscando-se
conceitos, tornando tais conceitos e abstrações em práticas mundanas, sendo que por medo
do nada, busca-se o nada, a negação da vida.
Assim, tais ascétas tornam-se inimigos do espírito, em que a sujeição destes a um
governo-de-outro os torna apequenados animais de rebanho. Como tais, não se deixam-se
seduzir pela vida e nem desviar do caminho em busca de uma Verdade e, para tal, um rigor
com si é necessário – um adestramento e enfraquecimento através de um caminho para
servidão: surgem na modernidade os discursos que educam para o enfraquecimento do
espírito.
Sobre tais discursos, Foucault (1999) argumenta da seguinte maneira:
“Para Nietzsche, não se tratava de saber o que eram em si mesmos o bem
e o mal, mas quem era designado, ou antes, quem falava, quando para designarse a si próprio se dizia Agathós, e Déilos para designar os outros. Pois é aí,
naquele que mantém o discurso e mais profundamente detém a palavra, que a
linguagem inteira se reúne.” (FOUCAULT, 1999, p.421).
Tais discursos que inicialmente estiveram ligados à aristocracia (no sentido de
excelência, areté), passaram com a rebelião escrava da moral aos animais de rebanho
(como já mencionado no capítulo 1), de modo que, tanto o discurso quanto a palavra
passaram a tais sujeitos, desde a tradição socrático-plantônica até o pensamento moderno
(seja na filosofia como na ciência).
Escondidos atrás de discursos e conceitos, estão as práticas antropotécnicas de
formação dos indivíduos, situadas dentro das lógicas do Humanismo (cristianismo,
renacentismo, racionalismo, marxismo etc.), que, segundo a visão de Peter Sloterdijk
(2000), são técnicas políticas de docilização dos sujeitos. Do mesmo jeito que “a disciplina
define cada uma das relações que o corpo deve ter com o objeto que manipula”
25
(FOUCAULT, 2008, p.130) (como mencionado no capítulo 2), o discurso do humanismo –
enquanto formador da moral, normas e técnicas políticas – define as relações que os
sujeitos devem ter com o espírito. No entanto, relevo que tanto disciplina quanto discurso
não se dissociam, uma vez que ambos são o mesmo dentro da mesma lógica de exercício
de poder e saber, buscando a modelagem de sujeitos (FONSECA, 2003, p.41).
Dessa maneira, o Humanismo, mesmo sendo diferente em cada época, apresenta-se
como unidade enquanto agregamento de várias teorias que se posicionam na
Unilateralidade Político-Moral, ou seja, segundo a interpretação de Viesenteiner (2006) de
Nietzsche, caracteriza-se por:
“uma dinâmica decadencial presente no mundo desde um dos germes da
cultura ocidental, vale dizer, da cultura judaico-cristã, bem como no
prolongamento a partir dos movimentos sócio-políticos da modernidade, que faz
com que uma perspectivase absolutize indo para além do jogo de conflitos do
qual emergiu e pretendendo ser válida para sempre e para todos – posição
radicalmente oposta, como se verá, à Grande Política”. (VIESENTEINER, 2008,
p.21)
Desse modo, tal Unilateralidade Político-Moral, possui o niilismo como principal
lógica, expressando-se politicamente por meio de uma estratégia de aniquilação das
diferenças – dos pathos de distância – apoiados num pseudo-humanismo apoiado nos
conceitos de igualdade a todos.
Pensa-se aqui o termo “pseudo-humanismo” uma vez que sua intenção final, é a da
moral fraca, ou seja, do “processo decadencial da autoconservação da vida”
(VIESENTEINER, 2008). Com tal discurso de uma política unilateral no que se refere
tradicionalmente aos Ideais Ascéticos pensados ao campo político-moral – ideais tais como
Liberdade, Igualdade, Razão,Progresso etc. – , tem como exigência e imperativo o uso da
Verdade a todo custo, mesmo por que é somente através de tais conceitos que se chega ao
Absoluto.
A ciência moderna, inserida (e criadora também) nessa unilateralidade políticomoral, desdobra-se de inúmeros modos, de modo que procure, pense, estipule,
esquadrinhe, exija o conhecimento sobre o Homem, buscando assim o indivíduo enquanto
ser Absoluto, produtor de uma Verdade cientificamente comprovada. No entanto, como
ataca Nietzsche em sua obra Aurora (2004), nunca busca-se o absoluto sem se buscar
Deus, portanto, a ciência moderna não se baseia em nada além do que uma série de
crenças; ou como Nietzsche pensa, no fragmento #344 “Em que medida também ainda
26
somos devotos” de
A Gaia Ciência, que a Ciência possui uma crença metafísica
incondicional de que a Verdade é mais importante que qualquer outra coisa. Porém, como
posteriomente Nietzsche aponta no mesmo fragmento citado, a Vontade de Verdade nada
mais é que Vontade de Nada, portanto, a Ciência moderna e seus ideais, nada são além de
niilismos com Ideais Ascéticos. Ligados a tais campos do conhecimento ciêntífico,
encontram-se alguns Ideais Fundamentais – que agora faz-se urgência em debruçar – para
a Formação do sujeito moderno Homem: Razão, Humanidade e Liberdade.
Para Sloterdijk (1999), o sujeito moderno não é outra coisa senão uma ficção criada
com o objtivo de utilização do humano pelo próprio humano, ou seja, é um sujeito formado
através de discursos antropotécnicos, com uma finalidade racional de educar indivíduos
para objetivos políticos de dominação. Como então que esses discursos de Razão,
Humanidade e Liberdade formam um indivíduo? A partir de tal questão, é importante
buscar na tradição filosófica moderna os pensadores que idealizaram tal Homem.
Kant, em seu texto de 1784, em resposta a pergunta “O que é Esclarecimento?”
pensa sendo o Esclarecimento a “saída do homem da condição de menoridade autoimposta” (KANT, 2007, p.95), de modo que seja uma condição moral para alcançar a
maioridade; e somente não é alcançada por comodismo, oportunismo medo ou preguiça do
próprio indivíduo. Ainda, Kant expõe que “o esclarecimento requer nada além do que
liberdade – e o mais puro de tudo isso é a liberdade de fazer uso público da razão em
qualquer assunto” (2007, p.96). O que entende-se então por Liberdade em tal texto
kantiano? Segundo Larossa (2009), a liberdade se apresenta como maioridade, como
emancipação, como autonomia, como propriedade do sujeito que se libertou de todo tipo
de submissão e se converteu em causa ou dono de si e mesmo de seu destino.
Dessa maneira, apresenta-se assim o texto como a liberdade estando no próprio
sujeito – não dependendo de nada exterior – que se apoia sobre si próprio dando a si
mesmo a sua própria lei e fundamento. E como argumenta Larossa (2009), “a liberdade,
além disso, aparece como algo que se realiza na história, de maneira que a história do
sujeito pode tramar-se ou articular-se ou contar-se como uma história da liberdade”
(LARROSA, 2009, p.70), assim, o homem chegar a maioridade é ter a condição moral –
bom uso da Razão – para tornar-se Livre e dono de sua História.
Esta articulação conceitual de História e Liberdade aparecem na tradição filosófica
(p. ex. Kant, Hegel, Husserl) de modo que natureza e espírito se mesclam, de maneira
teleológica, em que a História é “a manifestação do Espírito no tempo e a natureza é o
27
desenvolvimento no espaço” (HEGEL, 2008, p.67) de modo que a própria História é
Razão; e Liberdade seria a essência do espírito dessa Razão, o sentido, a vontade da
História (HEGEL, 2008, p.23-29).
Formado em tais discursos ascéticos, o Homem, como sujeito da liberdade,
encontra-se numa crise: idealiza-se que a Humanidade (enquanto sentido “espiritual)
caminha com uma mesma História rumo à Liberdade; porém, por justamente Ideal criado,
nunca aproximará da realidade efetiva, de modo que o sujeito moderno entre em colapso
com sua própria criação ascética.
Esse papel educador do Humanismo , que, como pensa Foucault (1999), promove
um estranhamento de nós com nós mesmos em relação à nossa identidade de Homem
enquanto sujeito moderno, podemos ser educados justamente em dispositivos de poderes
que nos tornam subservientes, mansos, fracos; e com discursos e ideais (ambos morais)
que nos parecem convincentemente mágicos e engrandecedores. Assim, contra o
Humanismo, Nietzsche, pensa uma lógica de “educar” para além do discurso da fraqueza,
para além de uma educação das teorias, para além da formação do sujeito enquanto ideal;
mas sim uma educação-outra, que antes da educação-do-outro, busca-se uma educação-desi como modo de assenhorar-mo-nos.
Para Nietzsche, o Humanismo limita o sujeito com os preconceitos de bem e mal
que fudam as ações do sujeito moral. Segundo Nietzsche (2004), no fragmento #9
“Conceito da Moralidade do Costume”, de Aurora:
“Em coisas nas quais nenhuma tradição manda, não existe moralidade: e
quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da
moralidade. O Homem livre é não-moral, porque em tudo quer depender de si,
não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, “mau”
significa o mesmo que “individual”, “livre”, “arbitrário”, “inusitado”, “inaudito”,
“imprevisível”. Sempre conforme o padrão desses estados originais: se uma ação
é realizada não porque a tradição ordena, mas por outros motivos (a utilidade
individual, por exemplo), mesmo por aqueles que então fundaram a tradição, ela
é considerada imoral e assim tida mesmo por seu ator: pois não foi realizada
obediência a tradição”(NIETZSCHE, 2004, p.18, #9).
Como observa-se em tal crítica à moralidade, Nietzsche pensa que cada modo de
pensar individual provoca horror, de modo que o Humanismo enquanto Unitaleralidade
Político-Moral, não adimite a Diferença, Vontade do Indivíduo (sempre submetido ao
Coletivo “democrático”, “socialista”, “comunista”, etc.), a Supremacia-de-Si ou qualquer
outra vontade de poder manifestada pelo sujeito volitivo. Opondo-se a essa formação
28
moral do sujeito moral “eu devo”, submetido às leis e a imperativos propostos pelo Bom
uso da Razão, Nietzsche busca em Píndaro (LAROSSA, 2009, p.41) um imperativo-outro
como ética de si – expresso como: Como se chega a ser o que é.
No breve aforismo #270 de A Gaia Ciência (2005, p.185) – “O que diz sua
consciência? – „Torne-se aquilo que você é‟” – Nietzsche, reavaliando os valores morais,
busca uma afirmação de si e suas condições de possibilidades para formar a si mesmo. Para
tanto, segundo Larossa interpretando tais colocações nietzscheanas, “para chegar a ser o
que se é, tem que ser artista de si mesmo” (LAROSSA, 2009, p.65). Porém, de que
maneira se conquista tal estética da existência?
Nietzsche, sob a epígrafe “Como se chega a ser o que é” aponta algumas
possibilidades e questões-outras para tal questão posta acima. Inicialmente, é necessário
relevar que o “chegar a ser o que se é” não está próximo da lógica identitária do
autoconhecimento (existente por exemplo no pensamento de Sócrates-Platão), mas da
lógica desidentificadora da invenção” (LAROSSA, 2009, p.57; ligeiramente modificado).
Desse modo, como um devir, a educação-de-si seja uma aventura que não está normalizada
por heteronomias (instituições, por exemplo), mas sim pela experimentação de si enquanto
senhor de seus próprios passos; mesmo que isso leve a combater a dor e o que nos dá
esperança – como Nietzsche pensa em seu aforismo #268 de A Gaia Ciência : “O que
torna heróico? – Ir ao encontro, simultaneamente, da sua dor suprema e da sua esperança
suprema” (2005, p.185).
E qual seria pra Nietzsche o exemplo – ou a metáfora – do herói? Penso que tal
pergunta possa ser respondida com seu personagem-símbolo Zaratustra. O Homem
moderno – sujeito da ascese e moral do trabalho (WEBER, 2006), da ascese enquanto
prática moral fundidos às práticas disciplinares e educativa dos impulsos de corpos dóceis
(FOUCAULT, 2008) – encontra-se , segundo Heidegger analizando Nietzsche (2008,
p.91), em um:
“(...) instante histórico em que o homem se prepara para entrar na total
dominação. Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do
mundo tal como esta primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e a
pensa através de toda sua amplitude metafísica. A pergunta é: o homem enquanto
homem, em sua constituição de essência até hoje vigente, está preparado para
assumir a dominação da Terra? Se não, o que então precisa acontecer com o
homem atual, de modo que ele se “submeta” à Terra e assim cumpra a palavra de
uma velho testamento? Não será preciso conduzir o homem atual para além de si
mesmo, para poder corresponder a esta missão? Se assim é, então, o “além-dohomem”(Über-Mensch), pensado corretamente, pode não ser o produto de uma
29
fantasia desenfreada e degenerada, turbilhonando no vazio” (HEIDEGGER,
2008, p.91-92 ligeiramente modificado).
Desse modo, Nietzsche em sua obra Assim Falou Zaratustra (2005), apresenta o
que seria seu além-do-homem, seu homem intuitivo – que, mesmo sendo irracional, deseja
ter domínio sobre a vida (NIETZSCHE, 1999). Zaratustra, personagem-símbolo do alémdo-homem, apresenta-se como afirmação da vontade de poder, de modo que siga uma
afirmação do devir e do múltiplo. Propositalmente, Zaratustra apresenta uma tensão em sua
“busca a ser o que se é” entre o último-homem e o super-ultra(passagem)-homem (termo
heideggeriano – HEIDEGGER, 2008), de modo em que ao mesmo tempo em que
Zaratustra é ultimo-homem como vir-a-ser (ausência temporal do tempo euclidiano) e ao
mesmo tempo o além-do-homem. Ele é a experiência e o educador-de-si-mesmo enquanto
“chegar a ser o que se é” – o que é diferente do que se espera, como na noção clássica de
bildung.
O Livro Assim Falou Zaratustra, traz o subtitulo “Um livro para todos e para
nimguém”, de modo a significar que tal livro é: para todos enquanto homens atuais,
viventes da modernidade; e para niguém de modo que quando se lança ao desafio de
“tornar-se aquilo que se é”, apenas o propositor pode responder e/ou buscar a resposta de
tal questão. Essa estética da existência do “chegar a ser o que é” como educação-de-si
aproxima-se então da final “ética” nietzscheana do Eterno-Retorno-do-Mesmo, de modo
que, a tudo o sujeito acionar, deve-se lançar-se na seguinte questão: eu faria isso, de modo
que, se tal ação volta-se a se repetir por toda eternidade, não me causaria arrependimento?
O que eu fizer, será feito por vontade livre ou apenas permeada por um ideal ascético? Para
tornar-me Senhor-de-si, quais mestres devo abandonar? Devo antes basear minhas ações
no outro ou no eu?
Tais questões, longe de responder como seria uma educação-de-si, mostra antes
alguns aspectos de como não se apequenar frente a ações que os sujeitos fazem guiados por
“mestres da verdade”, com possíveis ideais e de tantas maneiras ascéticas. Desse modo,
para tornar-mos heróicos , devemos “tormar as velas do destino” (COLLIGERE, 2003)
para chegar-mos a sermos o que é – o que é para si, efetivo e nobre – mesmo que vamos de
frente a que seja o que mais tememos e que nos dá esperança, seja ela Deus, Filosofia ou
Ciência.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não como convição, mas como possibilidade e experimentação, a superação de
uma Educação dos Impulsos – que na história da educação ou história da adestramento dos
sujeitos sempre se fez efetiva junto às instituições de conhecimento (religião, filosofia e
ciência), formando assim um sujeito que nada mais é que um sistema hierarquizado de
saberes-poderes; e que sua “verdade” não é outra coisa senão uma “invenção que esqueceu
que o é” ” (LARROSSA, 2009, p.19) – poderia ser pensada a partir de uma educação dos
sentidos.
A educação dos impulsos, penso eu, assemelha-se a uma educação dos sentidos,
seja em sua dureza da aquisição ou no rigor que a primeira possui. No entando, enquanto a
primeira está ligada à fraqueza – uma vez que deriva de uma prática ascética e realizada a
partir das instituições (seja religiosa, acadêmica ou jurídica); a educação dos sentidos
possibilita uma efetivação da vontade liberada, de modo que a experiência de “tornar-se o
que se é” seja o imperativo de si com si-mesmo.
Ao aguçar os sentidos, entra-se no campo de uma educação não científica e
acadêmica, mas talvez próxima mais da educação enquanto arte, ou intuitiva. Óbvio que
esta escarnecerá de abstrações e lógicas – além de outros tributos que foram pela história
selecionados como sendo o ápice da capacidade humana, no entanto o que se busca em
uma educação dos sentidos é para-além-do-humano –, entretanto efetivará um sujeito que
não seja um animal de rebanho, mas sim Senhor-de-si, dominador dos demais, que seja
afirmativo de sua vontade de poder e de seu desejo de dominar.
Em suma, busco, pensando em tal trabalho, possibilidades e respostas para minha
própria vida enquanto sujeito que busca educar-se. A Filosofia serve, como diz Foucault,
para ser “diagnóstico do presente”, portanto é com esta ferramenta, que, mesmo sendo
ascética, utilizei para medir minhas ações, valorá-las e buscar possibilidades para educarme livre de mestres e buscar “chegar a ser o que se é” para mim mesmo, mesmo que para
tanto eu tenha que destruir coisas nas quais deposito minhas esperança e meus medos ao
mesmo tempo.
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REFERÊNCIAS
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Ascese e educação dos impulsos na contemporaneidade