12 z BAURU, domingo, 23 de março de 2014 ESPECIAL Como educar os nativos digitais? Geração de pais sem tempo para interagir e de filhos viciados em jogos e equipamentos eletrônicos rompe elo com estímulos do aprendizado NÉLSON GONÇALVES J oão e Maria trabalham fora e, por isso, acordam ainda antes do sol se mostrar para preparar o filho Francisco, de 2 anos. Os pais precisam deixar o pequeno na creche a tempo de, cada um, começar mais um dia de trabalho às 7 horas em ponto. Ao final do dia, cabe à mãe sair correndo para pegar a linha de ônibus coletivo a tempo de alcançar o filho antes da creche fechar. O pai, operador de máquinas, só chega em casa por volta das 20 horas. Durante o preparo do jantar para a família, Francisco requer atenção da mãe. Sem energia pelo dia estafante, Maria recorre aos joguinhos do telefone celular para “entreter o menino”, enquanto está atenta ao fogão. Cansados, os pais não demoram a sucumbir ao sono, mesmo com a manha de Francisco. Faltariam tempo e energia para dar colo. E como na manhã seguinte o roteiro se repete, acumulam-se no filho carência por afeto e brincar com os pais. nesta página). Esse processo, lamenta Marisa, inclui o uso de equipamentos portáteis, de telefones celulares a computadores, como fuga e distanciamento familiar. “Não é difícil encontrar pais que dão deliberadamente o telefone celular para o filho como forma de alívio ou de saída sem qualquer remorso para não ter mais o filho pedindo atenção”, aborda. z José Henrique Mariano, 7, gosta de joguinhos no computador, mas desenvolveu prazer por cantar samba raiz [ GESTÃO DO TEMPO A doutora em psicologia adverte que os pais precisam refletir sobre a forma como estão lidando com o tempo dedicado aos filhos. “Sem a presença dos pais não há mediação alguma logo no início do processo educacional, desde o nascimento inclusive. Para alguns teóricos, essa mediação de afeto e de oferecimento de experiências deve acontecer ainda durante a gestação. Os pais precisam repensar o tempo e a forma e ferramentas utilizadas quando ficam com as crianças”, sugere. Sem a presença humanizada entre pais e filhos, essas famílias tendem a manifestar outros conflitos. Um deles é a tendência de compensação emocional – que vai desde o atendimento de pedidos de presentes fora dos limites do já apertado orçamento em casa, da prática de não impor regras ou não saber dizer ‘não’ por uma dose de pena, até a perda de referência na manutenção de limites de comportamento. Na opinião da especialista em gestão de pessoas e comportamento humano, Alexandra Fabri, o erro da compensação pela falta de tempo, nas classes mais pobres, também se manifesta entre as famílias com melhor condição financeira sobre a forma de “compra ou indenização pelo déficit de atenção e dedicação”. Neste caso, além da deficiência de afeto pela não vivência de fato com os pais, esses filhos crescem sob o manto da falsa proteção pela falsa compensação em razão da culpa. Marisa Meira põe o dedo na origem dessa ferida social. “Ter filhos tem de ser uma escolha consciente que também envolve abdicar de tempo para se dedicar à criança desde a gestação. Os pais que geram filhos sem essa compreensão vão sofrer com essas atribuições. É uma doação por amor”, aborda. Habilidade x capacidade [ Saída é limitar o tempo de uso com eletrônicos e gerar estímulos para variadas formas de contato com cultura e informação Este roteiro é, infelizmente, um dos possíveis na rotina de trabalhadores. Nos finais de semana, o “tempo” de convivência também é fragmentado. Entre as classes mais humildes, o dia de descanso é recortado por afazeres domésticos. Entre as classes mais abastadas, o tablet e os sofisticados jogos eletrônicos tomam o lugar do contato entre pais e filhos. O fato é que, em muitos dos lares, a tecnologia virou forma de aprofundar o isolamento. Para a psicóloga Marisa Eugênia Melilo Meira, doutora em psicologia escolar e docente do Departamento de Psicologia da Unesp Bauru, a geração de nativos digitais está enterrando o primeiro e essencial elo de formação dos filhos, a mediação desde o nascimento, pelos pais, para os estímulos do aprendizado (leia sobre mediação e estímulos Como os pais podem gerar estímulos? O homem nasce em condições de se tornar humano. Mas isso só se dará através da cultura. E a constituição da educação da psicologia histórico cultural depende da apropriação pelo ser das mais diferentes formas da produção das relações humanas. É o que a teoria de Lev Vygostky separa ao definir que nascemos ‘hominizados’ (biológicos) e passamos a ser ‘humanizados’. Mas a doutora Marisa Meira ressalta que isso só acontece com ‘mediações’. Assim, o desenvolvimento da criança depende dos pais gerarem os ‘estímulos’ desde o primeiro choro no nascimento, quiçá até a partir do embrião. “E isso só acontece em ambiente coletivo e não em isolamento social. É onde o pensar, a memória, a atenção, o afeto, vão se constituindo. Mas a criança precisa do adulto nessa mediação. Os pais devem gerar estímulos desde o nascimento”, diz. A doutora da Unesp enfatiza que os pais devem estimular os sentidos, um a um, de seus filhos. “Essas culturas precisam ser apresentadas à criança pelos amigos, pela família e pela escola. Mas tudo começa pelos pais. Na sociedade moderna, a escola tem ficado com esse papel”, acrescenta. A escola, prossegue Marisa Meira, deve entrar em ação na fase de desenvolver o saber pela ciência. “Mas é fundamental os estímulos antes da escola, porque isso prepara o filho para o aprendizado escolar. Para a criança a palavra mesa exige o aprendizado, a compreensão, por múltiplas linguagens. E para chegar a essa etapa de conhecimento, a criança precisa da mediação dos pais para a atribuição desse sentido. É uma preparação”. Um exemplo de como as mediações e estímulos se manifestam é o show de talentos do Colégio São Francisco, no Jardim Bela Vista, do último final do ano. José Henrique Lucas Mariano, 7 anos, subiu ao palco para interpretar uma letra repleta de personagens históricos e culturais do universo do Carnaval brasileiro. A homenagem ao carnavalesco Joãosinho Trinta foi apresentada com desenvoltura por Zezinho. Não é somente simbólico meninos, como ele, ainda estarem contando com a oportunidade de experimentar sentidos e conteúdos além dos eletrônicos. Na escola, no último trabalho de “coisas adquiridas dos pais”, Zezinho levou uma coleção de futebol de botão que enlouqueceu a molecada. O “domínio” dos eletrônicos pela geração de nativos digitais acontece por desconhecimento dos pais sobre o processo de desenvolvimento de seus filhos. Há a falsa noção de que eles são hábeis. É, como lança o cientista e articulista do JC, Alberto Consolaro, em suas palestras, a confusão entre conhecimento e sabedoria. A palavra ‘saber’, do grego, tem a mesma origem de ‘sabor’. Daí a necessidade dos pais estarem “plugados” no gosto pelo desenvolvimento humano e não pelo sentido raso de habilidades eletrônicas. Para exemplificar como esse equívoco pode se manifestar na vida dessas crianças, a doutora Marisa Meira cita: “Não por acaso algumas crianças falam mais cedo que outras, andam mais cedo que outras e usam até o plural na fala. Essas, que tiveram estímulos adequados desde cedo sob a mediação dos pais, se desenvolvem mais. Na vida adulta, as crianças da absoluta interação digital podem manifestar outros problemas, como dificuldade em decidir, insegurança, dificuldade em conviver com frustrações etc.”. No caso do excessivo uso de ferramentas tecnológicas pelos filhos, a alternativa é impor regras. “Para evitar os nativos digitais é preciso que os pais assumam a essência do papel de mediação para diferentes estímulos do conhecimento e que limitem, desde cedo, o uso de equipamentos pelas crianças”, orienta Marisa. E um dado pouco observado: essas regras, ajustadas no tempo, devem perdurar até por volta dos 16 anos. ”O adolescente não é capaz de desenvolver pensamento abstrato lógico”.