O Livro sem Texto como Projeto de Design:
Experiências de Leitura
The wordless book how a Project of Design: experiences of reading
Domiciano, Cassia Leticia Carrara; Doutora;
Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
[email protected]
Resumo
Abordamos nesta pesquisa o designer como autor de livros infantis sem texto. O designer conhece o
livro como um todo, indo além da ilustração e passando aos suportes, aos processos de produção, às
outras possibilidades do objeto. Acreditamos ser este profissional capaz de extrair tudo que este tipo
de livro pode oferecer enquanto meio e linguagem para as crianças. Nove livros sem texto feitos por
designer foram lidos por crianças brasileiras e portuguesas. Trazemos aqui conclusões de tal
pesquisa, considerando a análise dos livros selecionados do ponto de vista do design e do ponto de
vista do leitor.
Palavras Chave: design editorial; livro infantil; livro sem texto; pré-livro.
Abstract
We approach in this research the designer as children's wordless book author. Designer knows the
book as a whole, going beyond the illustration and passing to the supports, to the processes of
production, the other possibilities of the object. We believe to be this professional capable to extract
everything that this type of book can eferecer while language for the children. Nine books without
text made by designers had been read by Brazilian and Portuguese children. We bring here
conclusions of the research, considering the analysis of selected books from the point of view of
design and point of view of the reader.
Keywords: editorial design; children´s book; wordless book; prebooks
Introdução
Nos últimos anos tenho estudado os pré-livros e os livros sem texto. Iniciei minha relação com
os projetos para crianças na faculdade de Design. Me apaixonei pelos pré-livros de Bruno Munari
(Munari, 1981). Criei um. Já como docente da mesma Universidade, alguns anos depois, passei a
repetir o mesmo trabalho com meus alunos. Desde 1995, creio que mais de 500 foram feitos. Porém
novas perguntas sempre surgiam e era sentida a necessidade de tornar a experiência mais profunda.
Entre 2006 e 2008 desenvolvi minha pesquisa de doutorado sobre o tema, abordando
principalmente os livros sem texto, onde, além de um aprofundamento teórico, busquei uma
resposta nas crianças, no seu mundo, nas suas formas de ler. Contei com o apoio da Profª Drª
Eduarda Coquet, do Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Portugal.
Em diversos artigos abordei os pré-livros e os livros infantis: como objeto de design, como
experiência didática, como linguagem gráfica. Um pouco da tese também já foi relatada.
Neste artigo enfoquei o papel do designer no desenvolvimento de projetos desta natureza.
Elaborei um texto mais conclusivo, uma forma de tornar a pesquisa em uma contribuição acessível
para quem cria e estuda design, livros e criança.
O designer como autor
Na pesquisa citada (Domiciano, 2008-b), além de delinear os pressupostos teóricos que
nortearam a investigação (em design, literatura, psicologia do desenvolvimento, pedagogia),
realizamos (agora no plural, pois contei com a orientação da professora Eduarda) uma pesquisa de
campo com crianças brasileiras e portuguesas. Também procuramos contactar seus professores e
verificar o papel deles na leitura que as crianças fazem das imagens trazidas nos livros.
Para realizar tal atividade, uma seleção de livros foi feita. O critério número um: livros criados
por designers. Seria a formação do designer um pressuposto importante para a produção de bons
livros sem texto? Afinal, são livros escritos na sua língua, a imagem! O designer também conhece o
livro como um todo, indo além da ilustração e passando aos suportes, aos processos de produção, às
outras possibilidades do objeto. Assim, acreditamos que ele seja capaz de extrair tudo que o livro
pode oferecer enquanto meio e linguagem para as crianças.
Esta foi uma questão já levantada por Bruno Munari (1981), e acreditamos que tal
questionamento foi um dos responsáveis pela busca deste designer por “soluções” gráficas para a
infância1.
Os livros selecionados para a leitura que realizamos aqui no Brasil (agosto de 2007) e em
Portugal (junho de 2007) procuraram representar uma parte da diversidade de bons materiais que os
designers são capazes de produzir.
Metodologias e análises
Usamos 9 livros sem texto na pesquisa realizada. Destes, 5 foram abordados de forma mais
intensa. Eles foram lidos por grupos de crianças de 3 a 6 anos (pré-escolares). Foram envolvidas
crianças de duas escolas no Brasil e duas em Portugal. Uma escola pública e uma particular em cada
país. Em cada escola, grupos de 5 crianças foram formados por idade, indo dos 3 aos 6 anos. Quatro
grupos de 5 crianças por escola, 80 crianças ao todo. Os encontros aconteceram fora das salas de
aula, foram filmados e minuciosamente observados.
Uma constatação imediata: as crianças lêem! Lêem imagens e verbalizam-nas numa produção
de texto. Cada criança, inserida em seu grupo de 5 pequenos com a mesma idade, leu os 5 livros de
maneira individual e depois, com as outras 4 crianças do grupo, realizou uma leitura coletiva,
construindo uma única história. Segue um comentário sobre estes 5 livros principais.
Oh!
Alguns livros atraíram as crianças logo num primeiro olhar. Foi o caso de “Oh!”, de Josse
Goffin, um ilustrador belga, nascido em Bruxelas. Estudou Comunicação Visual na “L’école de la
Cambre”, onde atua como professor.
“Oh!” Foi publicado pela primeira vez em 1991 e posteriormente editado em vários países. Foi
premiado com o Grand Prix Graphique na feira de Bologna, em 1993.
As páginas duplas, limpas pelo seu fundo branco, e as figuras centralizadas do livro prendem o
olhar em cada página e ganham vida ao se transformarem em uma nova imagem em página tripla.
Esse formato permite um jogo de “esconde-esconde” com seus personagens, o que atrai o pequeno
leitor, além de levá-lo a formas, animais e objetos que se relacionam entre si de maneira inusitada,
sendo este o fator de estranhamento, criatividade e diversão do livro.
A narrativa está presente pela continuidade gráfica, onde um dos elementos da página sempre
se repete na seguinte. Assim, não há uma história pré-estabelecida, podendo gerar muitas narrativas,
ou simplesmente descrições. As ilustrações possuem um traço realista, mas com sentido cheio de
fantasia.
O livro apresenta um projeto bem concebido, planejado e executado. Não é novo (a técnica
pode ser vista em diversos livros ao longo do século XX), mas inova pela junção de formato e
ilustrações bem criativas. Esse formato também cria uma variação no processo comum de leitura.
O livro levou as crianças observadas na pesquisa a uma leitura cheia de prazer e ludicidade. A
presença de “disparates”, onde figuras sem sentido eram encontradas a cada página, transformou o
livro num jogo de adivinhas e numa porta aberta para a criação. Outro ponto interessante de tal
produção foi que ela estimulou a leitura em grupos, numa busca de companhia para a brincadeira.
Figuras 1e 2: capa e contracapa do livro Oh!
Figura 3: página dupla do livro Oh!
Figura 4: página tripla do livro Oh!
The Red Book
Outro livro bastante interessante foi o “The Red Book”. É um livro de imagens criado pela
designer americana Barbara Lehman, nascida em Chicago e residente em Nova York. Cursou
Communication Design no Pratt Institute, no Brooklyn. Trabalha como designer, já tendo ilustrado
muitos livros para crianças. Este livro foi premiado em 2005 com a Caldecott Medal Honor Book.
A autora conta no site da editora Houghton Mifflin (www.houghtonmifflinbooks.com) como
inspirou-se para criar o livro. Em Nova York, olhava para o horizonte do alto de um prédio e
pensava o quanto gostaria de criar uma história que incorporasse perspectivas singulares e aventuras
fantásticas em lugares distantes. Somou a isso sua fascinação por mapas. O resultado: um livro
sobre um livro!
A história inicia-se pela visão de um longínquo grupo de arranha-céus fronteados pelo mar
(Nova York?). Aos poucos somam-se personagens, sendo que o principal é o próprio livro
vermelho.
O desenrolar da narrativa traz elementos de fantasia e metalinguagem: o livro vermelho
possibilita a duas crianças de raças e lugares visivelmente diferentes conhecerem-se e encontraremse. Há o elemento maravilhoso, aquilo que é inexplicável e que fará o leitor indagar-se, refletir,
pensar, tentar encontrar uma solução que na verdade não existe. Magia, imaginação. Este é o
processo encantador do livro. E o livro-personagem, vermelho, mágico, está na mão da criança que
o lê, convidando-a a sonhar. Uma criança brasileira de 5 anos participante da nossa pesquisa de
campo “naturalmente” concluiu que o livro é um portal entre dois mundos.
O livro apresenta um estilo de imagem convencional e a autora-ilustradora trabalha com
realismo, principalmente nos objetos e ambientes. São valorizadas as perspectivas, que se
apresentam muito variadas, imprimindo uma interessante dinâmica às imagens. Também os
enquadramentos escolhidos são, em muitas das ilustrações, fotográficos. O recurso de zoom é
frequente e cria também ritmo e movimento.
As imagens apresentadas em The Red Book funcionam primeiramente como uma narração,
onde a ilustração conta a história. Fica-nos claro que os livros sem texto – na sua maioria –
apresentam essa função, uma vez que não contam com o texto para fazê-lo. Neste caso, há um claro
e linear desenrolar de fatos, somados à magia das ambiguidades presentes nas interpretações
possíveis. O texto visual também descreve, com detalhados elementos típicos das cidades grandes e
movimentadas: altos prédios, torres, postes, fios; e também das calmas praias: coqueiros, pequenas
casas. Também a função metalinguística (Camargo, 1998) pode ser identificada, uma vez que o
próprio livro passa de objeto portador da história a livro-personagem da história. Livro real e livro
ilustrado contracenam, além dos momentos em que o livro ilustra-se dentro do próprio livropersonagem.
O projeto gráfico do livro desempenha aqui um importante papel, caracterizando o livro-objeto
também como livro-personagem, a começar pelo formato, quadrado, e pela cor totalmente vermelha
da capa. Isso leva à identificação do livro real com o ilustrado.
Figuras 5 e 6: páginas do livro The Red Book.
Figuras 7 e 8: páginas do livro The Red Book.
Figuras 9 e 10: páginas do livro The Red Book.
O Balãozinho Vermelho
O livro é de Iela Mari, italiana, nascida em 1932. Estudou em Milão, na Academia Beaux-Arts
de Brera. Tornou-se mais tarde professora da Escola de Desenho de Milão. Enquanto o seu marido,
Enzo Mari, desenhista reconhecido, consagrava-se na criação de jogos, de brinquedos, objetos e
móveis, Iela dedicava-se a experimentar formas e cores em álbuns infantis. Buscou em seus livros
inovação gráfica para a época, com formas apuradas e estilizadas, além da economia de meios e
cores.
O Livro “O Balãozinho Vermelho” é o primeiro de Iela. Foi primeiramente publicado na Itália
em 1967, ano em que foi desenhado. Depois foi editado em vários países. Foi inovador para a
época.
O livro é uma experimentação plástica e gráfica. Plástica porque seu elemento principal,
inicialmente um balão vermelho, passa por um processo de transformação, gerando rimas plásticas,
e relações pelas formas e pela cor. Elementos secundários, incluindo um personagem humano,
fazem parte da história, mas a “falta de cor” os mantém em um segundo plano. A personagem
principal metamorfoseia-se pelas páginas e transforma-se sucessivamente em balão, maçã,
borboleta, flor e guarda-chuva. A cor vermelha que lhe é atribuída, além do impacto visual que
possui, traz uma carga emocional grande e também contribui para a identificação de alguns dos
elementos da transformação citados. É experimentação gráfica justamente pela produção a duas
cores do miolo do livro, vermelho e preto. A autora procurou uma economia na produção. Hoje, a
diminuição dos custos do processo de reprodução praticamente baniu da literatura infantil
experiências que aliassem criação e baixo custo, sendo esta ausência um elemento de estranheza e
encanto, ao mesmo tempo, para as crianças do século XXI.
Essa foi a experiência que tivemos na observação: num primeiro momento houve um
desinteresse por parte das crianças, que fixavam sua leitura na figura vermelha e reclamavam da
falta de cores. Queriam pintar o livro... Porém, quando era notado que os traços em preto escondiam
bichinhos diversos, havia surpresa e posterior interesse. E ninguém mais achava necessário
acrescentar outras cores à produção. Não podemos nos esquecer de destacar o elemento fantasioso
do livro, onde tal transformação se dá num nível imaginativo, sendo este um ponto positivo para a
obra e para as crianças.
Com uma massa vermelha em transformação, o espaço branco da página dupla e as finas
linhas pretas, constrói-se toda a linguagem gráfica da ilustração e do projeto gráfico. Formas
orgânicas (folhas com uma bonita plasticidade, a flor, a borboleta, pequenos animais a traço, a
caracterização das nuvens…) e geométricas (o balão como círculo perfeito, a chuva em linhas
paralelas, o a simetria do guarda- chuva…) interagem sem conflitos, sem rigidez.
As figuras são simples e estilizadas. Esta é uma das marcas da autora verificada em vários de
seus trabalhos. Vale aqui abrir parênteses: Iela Mari trabalhou com Enzo Mari em várias outras
obras similares. Enzo realizou um trabalho importante em diversas áreas do design e foi parceiro de
Bruno Munari nos Estúdios Danese, de Milão. Consta em uma de suas biografias (em
www.namenderkunst.com/e/enzo-mari, consultada em junho de 2008), que Enzo Mari também
demonstrou forte interesse pelas teorias da percepção (os estudos da Gestalt interessaram muitos
designer dos anos 60 e 70). Pois a valorização do contraste, presente tanto nos textos de Munari,
como nas teorias da psicologia da forma, marcam a obra de Iela Mari, incluindo o livro em análise.
Além do contraste, sua preocupação com a ocupação do espaço (conceito de campo visual) e a idéia
de movimento também reforçam esta possível influência. Fechamos os parênteses.
Figura 11: Capa do livro O Balãozinho Vermelho
Figura 12: Página dupla do livro O Balãozinho Vermelho
Figura 13: Página dupla do livro O Balãozinho Vermelho
Astronino
Na época da produção, os autores Cristiane Oliveira e Flávio Bernardes de Paula eram alunos
do curso de Programação Visual da Unesp, Bauru (hoje o curso chama-se Design Gráfico).
Atualmente eles são designers gráficos profissionais. O livro foi realizado em um trabalho da
disciplina Produção Gráfica, ministrada por nós. Criaram-no a partir de estudos em torno de vários
assuntos, como a criança, literatura, design de livros e produção gráfica.
O livro tem uma narrativa linear e uma história que explora o fantástico. As ilustrações
apresentam um grau relativo de estilização, com elementos pouco definidos, bem orgânicos e
formas inusitadas. Essa ambigüidade nos elementos possibilita muitas outras pequenas leituras
paralelas.
As técnicas utilizadas nas imagens são mistas, passando pelo desenho à traço, pela colorização
digital e pelas colagens. Essa última técnica é literal no protótipo. O personagem astronauta é
fotográfico, encontrando-se em várias posições diferentes, em preto e branco. O projeto é simples e
o livro tem um formato pequeno.
A leitura deste livro gerou histórias realmente inusitadas, mediante estímulo e em grupo,
inclusive por parte de crianças de 3 anos. Verificamos que o estímulo à criação e leitura faz toda a
diferença.
Figuras 14 e 15: capa e página dupla do livro Astronino
Livro Geométrico
Na época da produção, o autor Delfino da Silva Raymundo era aluno do último ano do curso
já citado no item anterior. Criou e executou o protótipo do livro em 2000.
O resultado aqui apresentado enquadra-se na proposta de livro ilegível de Bruno Munari.
Pode, inclusive, responder à pergunta feita pelo designer em seu livro “Das Coisas Nascem Coisas”
(1981): pode um livro comunicar, tátil e visualmente, independentemente das palavras?
A princípio, não há história ou personagens. Apenas imagens compostas por formas e cores
básicas (quadrados, retângulos, triângulos e círculos). As formas e as cores ditam um enredo de
relações plásticas. Já as dobras, os elementos vazados e a experimentação tátil que o livro traz
permite interação. Esses elementos integrados constroem a narratividade da obra. Há a cada página
uma nova possibilidade de configuração.
O nível imaginativo da criança é sempre muito grande. Assim, muitas figuras podem ser
inventadas. Podem-se ver janelas, tijolos, portas, pipas, pássaros e barcos, personificar cada forma e
assim por diante.
As cores mantêm-se as mesmas por todo o livro (vermelho, azul, amarelo e o branco do
papel). São dadas por papéis diversos, não são cores impressas, o que cria uma textura própria para
o livro. Frente e verso das páginas (frente colorida, verso branco), apresentam assim texturas
diferentes, ou seja, há no suporte uma outra fonte de leitura, tátil, também explorada pelos recortes,
pontas, vazados e dobras presentes. Formas e cores constroem-se pelo recorte. Esta é a técnica, não
de ilustração, mas de configuração das imagens. E como a configuração muda, a criança é co-autora
da ilustração! Co-autora do livro, também pela ausência do texto.
Figura 16: capa do livro Geométrico
Figuras 17 e 18: mesma página do livro Geométrico em duas configurações diferentes
A importância da autoria do designer
A importância em analisar detalhadamente os livros envolvidos na pesquisa centra-se na
possibilidade que tal analise traz de percebermos como a formação do designer permite a este a
construção de livros que integram imagem, narrativa visual e elementos de produção gráfica. Fica
claro o papel de uma visão ampla sobre o projeto do livro como um todo, onde conteúdo e
materialidade completam-se em uma solução. Uma visão de projeto, uma visão do design.
O resultado da seleção de livros feitos por designers foi, portanto, muito positivo para a
pesquisa. A investigação no campo veio a confirmar isso.
Além destes 5 livros apresentados e lidos pelos pequenos grupos, ainda trabalhamos, inclusive
analisando-os, com outros 4 excelentes títulos, todos eles criados e projetados por designers. Com
este segundo bloco de livros, observamos a leitura coletiva de diversas turmas de alunos em sala de
aula, também no Brasil e Portugal, já com a presença de seus professores. Destes 4 livros, 3 foram
editados: Mouse Around, Looking Down e Zoom. O quarto livro é um protótipo: Pedaços de cabeça
de criança.
Considerações
A pesquisa teórica que realizamos, mais a observação das crianças em grupos e em sala de
aula, nos levam a tecer algumas considerações.
No processo de análise dos livros selecionados, verificamos as diversas formas de “falar” pela
imagem, quer por sua constituição plástica, quer pela sequência de cenas, quer pela materialidade
do livro.
Em termos de imagens, enquanto tivemos o realismo das perspectivas do The Red Book,
deparamo-nos também com a imagem fluída, concisa e pouco colorida do Balãozinho Vermelho,
passamos pelas montagens fotográficas de Astronino e chegamos à total abstração do Livro
Geométrico. Se pensarmos em narrativa, vamos do detalhismo da aventura do ratinho de Mouse
Around, até a aparente desconexão das cenas de Pedaços de Cabeça de Criança e à ausência
narrativa do Livro Geométrico. Ou ainda nos deparamos com outras formas de relação do leitor com
as páginas, como as transformações das personagens de Oh! e as manipulações possíveis no Livro
Geométrico. Também questionamos nossa forma de perceber e ver em Looking Down ou Zoom e de
entender relações de tempo e de espaço no The Red Book.
Depois de analisar os livros, perguntamos: como será a relação das crianças com cada obra?
Será uniforme, será indecifrável? Haverá um livro preferido, haverá uma voz unânime?
Muita reflexão foi necessária antes de julgar a experiência passada junto às crianças de escolas
portuguesas e brasileiras. A investigação junto ao público infantil não se realiza sem envolvimento.
Revivemos muitas vezes essas experiências ao ver dezenas de vezes cada grupo de crianças através
das filmagens realizadas. Como quantificar, ou mesmo qualificar, um sorriso, uma gargalhada, uma
expressão de surpresa, uma birra, um olhar?
Comparamos ainda crianças de dois países. Dispusemo-nos a verificar se, em um contexto
com elementos comuns (uma escola pública e uma escola privada dentro de uma cidade urbanizada
e desenvolvida), mas inseridas em uma realidade geográfica e cultural diferente, as crianças
apresentariam diferenças marcantes na leitura dos livros ou seria o livro sem texto uma leitura de
possível “universalização”. Não sabemos se esta ousada dúvida tem uma resposta generalizada, mas
algumas pistas puderam ser encontradas.
Crianças Brasileiras e portuguesas
Conhecemos as crianças através de questionários preenchidos pelos pais e, posteriormente, de
forma pessoal, tanto em grupos quanto no ambiente da sala de aula.
Os dois grupos de crianças viviam em países distantes, sendo que um deles localiza-se no
chamado “primeiro mundo”, Portugal, um país com uma cultura milenar e rica, mas que hoje sofre
influência dos demais países europeus, em níveis comercial, econômico, e também cultural. O outro
grupo vive no Brasil, país emergente. Conta com uma matriz cultural diversificada, mas com forte
influência portuguesa.
Esses contextos nos parecem diversos, o que nos faria pensar em resultados também diversos.
Mas não foi isso que notamos, nem nos questionários, nem no convívio com as crianças. Em termos
de respostas, nota-se muito mais características comuns entre as crianças brasileiras de portuguesas
do que diferenças, perceptíveis apenas em alguns detalhes, palavras e referências. A força da
globalização, os canais de televisão comuns, a exposição aos apelos comerciais quase idênticos (são
as mesmas Barbies, Hot Wells, Power Ranges, filmes Disney, Nike, Coca-cola...), bem como acesso
às tecnologias devem ter seu papel nisso, visível nesse micro-mundo analisado. Também nossa
língua portuguesa expõe estes dois públicos a muitos pontos comuns, incluindo-se aí a literatura.
As crianças, observadas e filmadas, eram diferentes entre si e nunca seres uniformes. O que se
notou foram pontos de desenvolvimento comuns, mas não podemos nos esquecer que elas
encontravam-se no mesmo ambiente escolar, desenvolvendo atividades de aprendizagem comuns e
que viviam nas mesmas cidades, muitas delas nos mesmos bairros, além dos fatores de classe.
Buscando alguma forma de agrupamentos, encontramos: crianças mais extrovertidas, líderes em
potencial, que influenciavam os demais; as mais tímidas, caladas, mas - notava-se - não menos
interessadas; as que queriam se sobressair pelo humor; algumas visivelmente melhores dotadas para
falar e expressar-se, outras para chegar a conclusões mais complexas. Uma pequena minoria
apresentou algum desvio de comportamento (agitação ou timidez excessivos, disfuncionais),
independente de características sociais ou culturais.
No que poderíamos chamar de conclusões mais “inteligentes”, uma criança de 5 anos da
escola pública brasileira, conforme já relatamos, chamou o The Red Book de “portal”, ou seja, um
meio de viagem para outros mundos, desvendando todo o “segredo” do livro, segredo este que
deixou muitas crianças em situação de estranhamento, tanto no Brasil quanto em Portugal, das
menores às maiores. Não notamos, assim, discrepâncias quanto à apreensão dos livros, sendo a
classe social ou o país de origem fator para uma postura mais ou menos inteligente.
As crianças e os livros
Quanto ao interesse das crianças pelos livros sem texto, tivemos uma excelente experiência,
com exceção de casos pontuais: crianças interessadas, dispostas a criar, a narrar, a manipular os
livros.
Também notamos uma diferença na demonstração de interesse pelos livros entre a primeira e a
segunda etapa das observações nos grupos, primeiro livre e individual, depois dirigida e envolvendo
as 5 crianças do grupo. Em praticamente todas as turmas, tanto no Brasil como em Portugal, alguns
livros que não despertaram tanta atenção na observação individual, acabaram por gerar, na
observação em grupo, narrativas muito interessantes e criativas. Sem exceção, citamos os livros
Astronino e The Red Book. O livro O Balãozinho Vermelho gerou algo parecido, porém com menor
evidência.
O livro Oh! despertou uma reação bem comum em quase todas as turmas: as crianças não
queriam vê-lo sozinhas, mesmo na observação dita “individual”. Cochichos, sussurros, risinhos...
havia uma necessidade de partilha, o que evidenciou que este livro estimula o jogo, a brincadeira.
Havia sempre uma reação em conjunto. Atraiu as crianças de todas as idades.
Reações menos padronizadas causou o Livro Geométrio, sendo a observação deste bem
particular. Havia sempre um estranhamento inicial, uma “timidez”. Posteriormente, muitas crianças
se encantavam com este livro, dos mais pequeninos aos maiores.
Quanto à ausência do texto verbal, esta só foi efetivamente notada entre as crianças de 5 e 6
anos, principalmente as mais velhas, tanto no Brasil quanto em Portugal. Percebemos que as
crianças mais velhas, quando em início do processo de alfabetização, acabam por valorizar a
linguagem verbal, o que consideramos normal e positivo. Daí a importância do trabalho com livros
sem texto também nesta fase, para que se mantenha na mente infantil a existência de outras formas
de expressão, que não precisarão ser extintas ou esquecidas quando as crianças aprenderem a ler e a
escrever.
Há quem pense que o hábito da leitura se faz apenas mediante o texto verbal. Podemos agora
discordar desta postura. Vimos crianças a ler imagens e a usar de várias formas de linguagem para
expressar essa leitura, ou melhor, as múltiplas leituras decorrentes do contato com o texto visual:
narrativas verbais, gestos, sons, brincadeiras, expressão gráfica, jogos simbólicos.
As crianças não deixaram de ver esses objetos como livros por não terem texto. Eram, ao fim
da atividade, livros “legíveis” e “úteis”, além de diferentes, engraçados, divertidos, mágicos, legais,
adoráveis, especiais (emprestamos alguns termos usados por elas).
Os educadores brasileiros e portugueses e seus alunos
Além da atividade de campo tida como principal, tivemos a oportunidade de desenvolver uma
segunda atividade junto aos professores das crianças, o que nos permitiu: ter um importante contato
com os docentes dos pré-escolares e verificar como trabalhavam com livros sem texto; ver as
reações das crianças dos grupos menores em seus ambientes habituais; verificar livros sem texto a
serem “lidos” por um grupo maior de crianças.
Todas as docentes, brasileiras e portuguesas, foram entrevistadas. Elas já haviam trabalhado
com livros sem texto e conheciam suas vantagens. Mesmo diante da boa receptividade que
apresentavam aos livros sem texto, esses livros eram pouco usados nos dois contextos. As
professoras eram, em sua grande maioria, experientes e pareceu-nos que, quanto mais tempo tinham
de carreira (houve exceção), menor interesse demonstravam em adquirir novas experiências com
um texto não convencional (visual). Essa postura era mais acentuada entre as professoras
portuguesas.
De qualquer forma, nos ficou evidente, diante das animadas “leituras” realizadas em sala de
aula, que tais livros poderiam ser melhor utilizados em contexto escolar, podendo adaptar-se em
situações diferentes e objetivos diversos: desenvolvimento perceptual, criação verbal de narrativas,
desenvolvimento da criatividade, contato com diversas formas de representação gráfica, estimulo à
outras produções artísticas, etc.
Para os designers
Cremos ser este trabalho de interesse para o designer, uma vez que este profissional deve verse como alguém que não projeta simplesmente objetos e informações, mas produz bens culturais e,
como tal, deve a cada projeto mergulhar em mundos diversos para extrair, de diferentes contextos e
áreas do conhecimento, informações, referências, imagens, palavras, sensações, formas, cores,
enfim, conteúdo. Este é o ponto que difere o projeto de design da criação corriqueira, técnica e
mecanizada – ou melhor, informatizada.
Se o usuário do produto de design é a criança, podemos agora perceber com mais propriedade
que o designer tem, antes de projetar, mundos a descobrir, jogos para jogar, a brincadeira. Por outro
lado, tem também responsabilidades para com esse público, em não apenas servir a sistemas e
padrões pré-estabelecidos e perpetuados, mas participar da construção de novos conceitos, novas
formas de pensar, novas maneiras de desenvolver os potenciais presentes na infância através do
mundo material e imagético que as crianças acedem.
Notas
1
Parte do trabalho de Munari para crianças é descrita em Munari, 1981: os livros ilegíveis e os prélivros. Porém hoje o legado deste designer tem sido amplamente divulgado, gerando novas
bibliografias e exposições. Há livros ilustrados cheios de experimentações e ainda os “Mais é
Menos” (jogo de 1970. Pranchas de acetato ilustradas que se sobrepõe para construir sempre uma
nova história). Parte da obra do autor é gerida pela Associazione Bruno Munari, Itália e tem sido
divulgada pelo MUBA (Museo dei Bambini - Milão).
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