O HOMEM E SUA CORPOREIDADE NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA Este é apenas um ‘aceno’ no sentido de evolução do pensar a corporeidade, por meio de filósofos de diferentes épocas. Essa problemática, em geral, não foi suficientemente pensada pelos filósofos até o século passado. Antes dessa seria impensável uma ontologia (natureza comum a todos os seres) do corpo como encontramos em pensadores mais modernos. Surgindo da tradição platônico-aristotélica, a metafísica fez do Ser o seu objeto fundamental. O pensamento sobre o ser, considerado como Ideia, realidade transcendente, imutável e eterna, excluiu como não-ser o concreto, o transitório e o finito. Assim, natureza, coisas, homens e produtos de sua atividade nunca eram pensados em sua concretude, mas, sim, como participantes de uma realidade transcendente. Dentro dessa perspectiva, muitas dimensões do real não foram suficientemente pensadas ou foram mesmo esquecidas. Entre essas, Bornheim cita “a vida, a história”, enfim “os planos da realidade mais marcadamente presos na finitude”. Somente ao longo da história do pensamento ocidental é que a problematização do homem ganhou seu sentido autêntico. Dentro da visão transcendente, que envolveu o pensamento metafísico ao longo de sua evolução, a problemática da corporeidade reduziu-se essencialmente à união entre o corpo e a alma e à relação entre o sensível e o inteligível. A atividade sensível do homem foi considerada apenas em relação à problemática do conhecimento, consistindo forma inferior deste, segundo uma tradição de pensamento que privilegiava, sobretudo, o pensamento abstrato. As temáticas relacionadas à corporeidade eram, assim, enfocadas dentro de sistemas filosóficos coerentemente construídos, nos quais a ideia de ser e a transcendência tinham a primazia. Desse modo, nesse tipo de pensamento que privilegiou o logos em detrimento da physis, a problemática do homem e sua corporeidade foi pensada, até o período de crise da metafísica, em um plano ideal, transcendente, distante da realidade concreta em que o homem vive com seu corpo. Na história do pensamento filosófico, a problemática do homem e do seu mundo oscilou sempre entre dois polos: o corpo e a alma, o conhecimento sensível e o conhecimento inteligível, o mundo da matéria e o mundo do espírito, a vida terrena e a vida ultraterrena. A cisão entre esses mundos surgiu quando o pensamento filosófico, na Antiguidade Grega, atingiu sua maturidade, isto é, quando o homem deixou de preocupar-se primordialmente com o universo físico para problematizar sua própria realidade. Com Sócrates (séc. V a.C.) o homem com suas qualidades, seus anseios, seus valores e suas crenças tornou-se alvo de questionamentos filosóficos. Sócrates proclama a razão do homem, para transcender às condições exteriores e encontrar o verdadeiro sentido das coisas, orientando sua ação moral. Platão (séc. V e IV a.C.) na trilha de Pitágoras e, sobretudo, de Parmênides, instaura no pensamento filosófico uma profunda ruptura entre o mundo sensível e o mundo inteligível. De um lado, o mundo concreto, finito e transitório; de outro o mundo ideal, eterno e imutável. O mundo concreto torna-se mera aparência, cópia imperfeita do mundo inteligível. Os acontecimentos humanos perdem sua consistência de ser, pois tornam-se puro vir-a-ser, aspirando a realizar a perfeição das ideias, paradigmas para os quais tenderia toda a cultura humana. A sua ideia de natureza humana carrega em si a cisão desses dois mundos, separando o corpo da alma. O corpo, com suas inclinações e paixões, contamina a pureza da alma racional, impedindo-a de contemplar as ideias perfeitas e eternas. O corpo tornase assim, a prisão da alma, um obstáculo à realização do ideal de Bem e Verdade a que ela aspira. Em seus últimos escritos, entretanto, Platão já não atribui um papel tão negativo ao corpo, admitindo que o exercício possa ser benéfico para a alma, proporcionando o equilíbrio entre seus elementos o corajoso e o filosófico. Em Aristóteles (séc. IV a.C.) os objetos concretos e os conceitos universais não constituem mundos separados como no pensamento platônico, mas, sim uma ‘continuidade ininterrupta’. A forma, a ideia universal, não constitui um mundo à parte, mas está presente nos seres concretos, em estreita união com a matéria. Na constituição da natureza humana, a alma está presente como a forma, e o corpo, como a matéria. A alma é a forma do corpo, a causa final de sua conformação orgânica e o princípio do seu movimento, constituindo-se em sua força diretriz e motora. Aristóteles reconhece o papel do corpo e dos sentidos no conhecimento, e o corpo não é considerado, como em Platão, o cárcere da alma. Não obstante, para ele, o homem é, sobretudo, um ser pensante e político, que deve dirigir sua vida pela razão. A educação moral é o objetivo prioritário de seu plano educativo. A educação dos impulsos pelo exercício é importante para a aquisição de virtudes, cuja formação é assegurada quando as disposições naturais orientam-se em direção ao Bem, isto é, tornam-se um hábito, constituindo uma segunda natureza. Vendo o homem como um ser essencialmente contemplativo, Aristóteles, do mesmo modo que Platão manifesta um grande menosprezo pelo trabalho, principalmente pelo trabalho físico, que envolve o homem em sua corporeidade, por ser atividade ligada à matéria e pelo seu aspecto servil, constituindo-se em uma negação da própria natureza humana. O caráter eminentemente metafísico do pensamento da Antiguidade Grega, que vê na forma a verdadeira realidade das coisas e na busca de verdades universais e eternas a única meta do conhecimento, não possibilitou pensar as relações do homem com seu corpo em sua concreticidade. GONÇALVES, Maria Augusta. Sentir, pensar, agir. Corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994. p.40-44.