1 “SE O MEU CORPO NÃO FOR MEU, DE QUEM SERÁ?” DESVELANDO RELAÇÕES ESSENCIAIS ENTRE EDUCAÇÃO, SEXUALIDADE, PARADIGMAS DE CORPOREIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORAS Sonia Maria Martins de Melo Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Resumo A partir de uma análise crítica do momento atual de nossa sociedade e nela a questão da educação sexual, uma reflexão sobre sexualidade e corporeidade é realizada como subsídio a uma proposta emancipatória de educação sexual que possa perpassar também os currículos de formação de professores e professoras. A partir de um processo de pesquisa fenomenológica realizada junto a dez mulheres educadoras ligadas a um Centro de Ciências da Educação de uma universidade pública, é aprofundada a essência Sou corpo no mundo e sua dimensão fundamental: sou corpo no mundo junto a outros Seres corporificados, percebidos na relação dialógica que constituiu o eixo do processo de pesquisa. Conclui com reflexões sobre eixos pedagógicos fundamentais que podem servir de meta para propostas emancipatórias de formação de professores e professoras. Palavras-chave: Educação Formação de professores. sexual; Corporeidade; Pedagogia; Sexualidade; Vivemos sempre em um ambiente sexualizado, em que os ditos e os interditos sobre a sexualidade perpassam todas as esferas de nossa vida cotidiana. A compreensão e a vivência da sexualidade no Ocidente passam por enormes transformações, inseridas nas transformações pelas quais passam as relações de produção do nosso viver capitalista desumano e excludente, em suas várias rearticulações. Nestes tempos turbulentos, o tema da educação sexual do Ser corpo humano pleno, cidadão, é até fartamente discutido e anunciado, mas, na maioria das vezes, sem desvelar o fundamental: sempre existe uma educação (ou deseducação) sexual acontecendo nos e entre os seres humanos. Seres estes corporificados em sua inserção no mundo, sujeitos encarnados nas relações sociais entre os homens nos vários modos de produção que existiram e no atualmente vigente. E expressando tudo isso, já que mergulhado nessa realidade, um currículo de formação de educadores que não desvela muitas das várias questões fundamentais para subsidiar emancipatoriamente essa formação. Dentre elas, a principal: a relação desse educador com ele mesmo, a partir inclusive do seu entender-se como 2 corpo-ser-sujeito no mundo. E mesmo quando essa relação é desvendada, numa construção própria do mundo ocidental cristão, aparece como se fosse uma relação assexuada, com a negação ou a repressão dos corpos dos educadores. Estamos no terceiro milênio, e a Pedagogia continua a ser vista e vivenciada como se fosse assexuada. Quem deseduca corporalmente, sexualmente, os educadores, por quê e para quê? Quem torna “dóceis seus corpos”, como diria Foucault? Por que o respeito ao seu desenvolvimento pessoal pleno, inteiro, incluído aí o seu direito à vivência plena de sua corporeidade e sexualidade lhes é negado? Por que a base corpórea de uma possível educação emancipatória é tratada como menos importante, ou permanentemente desrespeitada? Qual realmente é o currículo oculto de educação, ou deseducação sexual, de um curso de Pedagogia e das várias licenciaturas neste país? É urgente, nesse momento histórico, buscar a construção uma proposta de educação sexual emancipatória, que dê ênfase à reflexão e ao debate sobre os paradigmas de corporeidade subjacentes às várias expressões pedagógicas no processo de educação sexual sempre existente nas relações sociais. Esta abordagem pode tornar-se um veio temático político-pedagógico fundamental para desalojar certezas, desafiar debates e reflexões. Veio este extremamente necessário inclusive em tempos de AIDS, mas fundamental na busca do desenvolvimento pessoal do educador como um ser sempre corporificado, sexuado, cidadão pleno, possa contribuir cada vez mais com a busca de cidadania para todos. Nesse sentido “a luta pela liberdade é, portanto, a luta por Eros, e a luta por Eros é sempre uma luta política" como também nos diz Bernardi (1985, p.141). Por essa mesma razão também a educação sexual, assim como a saúde sexual, é parte dos direitos humanos básicos e fundamentais, como consta na Declaração de Valência Sobre os Direitos Sexuais (1999), firmada por 2000 participantes, dentre eles inúmeros educadores e educadoras, durante o XIII Congresso Mundial de Sexologia, realizado na Espanha nesse mesmo ano. Declaração essa ratificada no Congresso seguinte, em Hong-Kong, em 1999, com promulgação da Declaração Mundial dos Direitos Sexuais, que hoje percorre o planeta como instrumento de conscientização e apoio aos defensores dos direitos humanos. E nessa perspectiva a educação escolar sistemática, institucional, principalmente em seus currículos de formação de educadores, não pode continuar sendo vivenciada como se fosse 3 "des"corporificada e assexuada, pois "sem dúvida, a repressão sexual e a repressão sócio-política nascem do mesmo tronco e crescem juntas, como tristes irmãs gêmeas", como diz Bernardi (1985, p.141). Há que educar sexualmente, emancipatoriamente, nossos educadores e nossas educadoras. Reafirmamos ser esta também uma questão básica de cidadania. Nessa linha, numa reflexão extremamente pertinente sobre a temática, Nunes (1987) nos coloca questões fundamentais: o que é educação sexual? O que significa realmente educar sexualmente? Quais os instrumentos, meios, fins envolvidos? Quem pode “educar” sexualmente, ensinar o quê? Como fazê-lo? Quem são esses educadores? Educadores sexuais somos todos nós, seres humanos! Então, a quem interessa cada vertente pedagógica de educação sexual? A quem interessa negar os corpos dos educadores, reprimi-los e torná-los dóceis? Ou então expô-los como mercadorias? O autor também auxilia essa reflexão constatando que "(. . .) a riqueza desta dimensão humana e toda a sedimentação de significações, que historicamente se acrescentou sobre a mesma, acabaram engendrando um certo estranhamento do sujeito humano com sua própria sexualidade. Freqüentemente a sexualidade se encontra envolta em um feixe de valores morais, determinados e determinantes de comportamentos, usos e costumes sociais, que dizem respeito a mais de uma pessoa. Daí o seu caráter social explosivo." (p. 13) A partir da afirmação de Nunes, outros questionamentos essenciais surgem, para nortear uma caminhada que se pretenda emancipatória na formação de educadores: como tratar da educação, e nela, da sexualidade do corpo-cidadão na atualidade? Percebemos que vivemos em uma sociedade que mercantiliza o corpo e banaliza o sexo, mesmo que, na aparência, paradoxalmente, contraditoriamente, apresente-se muitas vezes como assexuada, especialmente em seu sistema educacional, em todos os seus níveis e currículos. Nessa realidade, de que maneira profissionais que se preocupam e trabalham com a temática da educação, tais como os sociólogos, filósofos, pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, médicos, etc., individualmente, multidisciplinarmente ou interdisciplinarmente, tratam da questão? S Hoje até amplamente colocada na mídia e nos discursos institucionais e oficiais, o assunto da educação sexual aparece muitas vezes através da apregoada necessidade de planejamento familiar, na maioria das vezes entendido como “controle familiar”, e do combate ao surgimento da AIDS: “só porque o sexo pode 4 trazer essa terrível doença agora temos de falar nele”. Certamente é mais uma abordagem negativa de uma rica dimensão histórica do ser humano. Nesse viés de abordagem surge também a sexualidade como tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais, distribuídos como manuais aos professores deste país, em 1999, pelo Ministério da Educação e Cultura, sem uma reflexão mais aprofundada sobre o tema. Lembra-nos Nunes (1987) ser a sexualidade, e nela incluo a reflexão sobre os paradigmas de corporeidade, "uma questão social, estrutural, histórica. Todos nós enquanto sujeitos constituídos socialmente, estamos submetidos a um processo de enquadramento sexual, que é determinado, em última instância, pelas estruturas sociais”.(p.14). Mas a temática da educação sexual de seres percebidos como corpos no mundo, em seu sentido mais profundo, não é uma mera questão técnicopedagógica, de incluir este ou aquele aspecto esquecido, subjugado, na discussão e nos currículos. Nem de modificar a realidade pela simples distribuição de manuais. Com isso, as vezes o que se consegue é apenas incluí-la nos tristes e melancólicos modismos cooptadores, que muito servem a quem quer esvaziar uma discussão mais consistente. Buscar a compreensão do significado que professores e professoras dão a sua corporeidade e ao fato dessa corporeidade trazer em si a dimensão inalienável da sexualidade, deve ser preocupação básica, obrigatória, nas reflexões sobre educação. Como essas pessoas, que educam outras pessoas e por elas são educadas, em relação, significam a corporeidade em sua vida pessoal e profissional, principalmente pelo fato real e concreto de serem eles, seus alunos e alunas, e todos nós, seres corporificados, sexuados? Nessa perspectiva emancipatória, a corporeidade é entendida como a propõe Polak (1997, p.25), pautada em Merleau-Ponty: "corporeidade é o modo de ser do homem; é a essência expressa pelo corpo, visto-vidente, e por isso, “senti-sentant”, isto é, que sente e é sentido, é também tocado-tocante, visto no processo de coexistência, num recruzamento, num quiasma.” Já sexualidade é percebida como uma dimensão atribuída somente aos seres humanos, dimensão essa que, segundo Nunes (1996, pp.6-7), incorpora os componentes biológicos e a variação evolutiva da espécie humana, mas busca atingir significações culturais e existenciais muito mais exigentes. Como coloca Vasconcellos, (1971, p.3) "a sexualidade humana é uma descoberta, uma elaboração, uma busca." Para a autora, a sexualidade 5 humana tem "um peso que a estrutura como um existencial, como uma dimensão do ser-no-mundo do homem, posto que não nos referimos a uma sexualidade animal, sem história e sem cultura, mas a sexualidade enquanto imersa na temporalidade, nela recebendo sua revelação existencial, suas formalizações conceituais, sua expressão estética, seu tratamento moral e social." ( p. 3). Com o entendimento das possibilidades de significados emancipatórios dos conceitos corporeidade e sexualidade, fundamentais em qualquer reflexão sobre educação e nela sobre a formação de educadores e educadoras neste país, pode-se questionar também sobre quais os reflexos dessa perspectiva para esses profissionais, frente à sexualidade de seus alunos e alunas corporificados. Como ele educador e ela educadora, percebem e sentem o mundo que está sendo vivido no encontro de pessoas corporificadas, como fundamento de suas existências também na sala de aula? Que consciência e significados dão a seus corpos e ao corpo do outro em suas relações no mundo? Como isso tudo se reflete na questão da função social da escola, da democracia, da cidadania, dos direitos humanos, da alfabetização entendida como leitura do mundo? Tantas são as perguntas... Facilmente se constata que a grande maioria dos currículos de formação de educadores, apesar dos vários discursos teóricos de respeito ao nosso alunado, ainda desconsidera ou enviesa, reprime, numa falsa dicotomia corpo-mente, o desenvolvimento pessoal desse aluno. E isso especialmente no que diz respeito a sua relação com seu corpo e sua sexualidade, ancoradouro de suas percepções e sentimentos e de toda sua formação pessoal. No cotidiano vivo diariamente os reflexos dessa abordagem dicotômica na trajetória de vida de todos nós, professores e professoras e alunos e alunas do curso de Pedagogia. Curso este com grande influência nos vários sistemas escolares brasileiros, principalmente pela sua característica específica de formação de pessoal para o magistério, através de suas várias habilitações. Nessa ótica, há que questionar novamente: existe concretamente uma deseducação sexual da corporeidade dos educadores e educadoras? Se a resposta for afirmativa, há que refletir o por quê e para que. São realmente tornados “dóceis seus corpos”? Quem e o quê parecem mantê-los imersos numa abordagem que dicotomiza corpo e mente? Por que os corpos do professor e da professora parecem ter sido negados ou reprimidos no seu desenvolvimento pessoal, incluído nessa 6 negação o direito de ter uma consciência da plenitude de sua corporeidade, uma vivência não apenas biológica da sexualidade? Por que seus corpos são transformados em mercadoria? Qual a percepção de corporeidade hegemônica nos currículos escolares? Permito-me acrescentar às reflexões citadas o argumento de que, sem uma filosofia que subsidie uma abordagem do corpo como expressão encarnada da existência humana qualquer teoria educacional será desumanizadora, já que necessariamente existe uma visão sobre a corporeidade entrelaçada em qualquer paradigma pedagógico, mesmo que oculta. E " é por isso que a corporeidade deve ser a instância referencial de critérios para a educação, para a política, economia e inclusive para a religião”.(Assmann, 1998a, p.61). E foi nesse entendimento, nessa busca, que, na caminhada na construção de minha tese de doutorado, entrevistei dez professoras ligadas a um Curso de Pedagogia de um Centro de Ciências da Educação, buscando compreender qual a percepção que tinham de sua corporeidade. Utilizei o método fenomenológico, com a entrevista fenomenológica como instrumento metodológico.A partir dos encontros realizados, "viagens com cargas ocultas, de desconhecidos vínculos, nas quais "entre o desejo de itinerário há uma lei que nos leva, age invisível e abriga mais que o itinerário e o desejo", como nos diz Cecília Meireles (1997, p.61), foi necessário preservar o anonimato das participantes. Para isto surgem pseudônimos escolhidos dentre a nominata de Deusas da Mitologia Clássica, como homenagem a essas dez maravilhosas mulheres educadoras. Highwater (1992) revela ser o estudo do corpo humano e de sua percepção um importante elemento de simbolismo cultural que tem fortes implicações com a sexualidade. O corpo, para esse autor, é uma metáfora da sociedade porque "todas as crenças e atividades humanas advêm de uma mitologia subjacente - metáforas que dão forma à fantasia e paradigmas que influenciam profundamente nossas atitudes acerca da realidade, acerca do mundo e de nós mesmos: bem e mal, normalidade e anormalidade, fato e ficção, justiça e injustiça, beleza e feiúra, poder e impotência”.(p.18) E as deusas são certamente expressões metafóricas de como a mulher, corporificada, encarnada no mundo, foi vista em determinadas épocas, sendo que muitas dessas visões permeiam ainda hoje o modo de parte da 7 sociedade perceber as mulheres enquanto seres encarnados no mundo, junto a todos os outros seres. Na primeira entrevista, encontro a mulher que, em seus 30 anos de vida, tem como característica a coragem de não desistir, de sempre acreditar nos seus sonhos, de conduzir-se com muita garra através do labirinto que tem sido sua vida, cheia de momentos muito difíceis. Por esta razão, ela é ARIADNE, a deusa que conduz através do labirinto, exemplo de força de vontade e paixão pela vida. A segunda entrevistada, 38 anos, foi por mim chamada de PERSÉFONE, assim como a deusa da fragilidade. Essa deusa é também chamada a Filha, por estar sempre ligada à proteção materna e na busca constante de provar o que os outros esperam dela. Sempre jovem de espírito, Perséfone tenta corajosamente superar essa característica, e certamente está encontrando seus próprios caminhos, mesmo que dolorosamente, através das rupturas necessárias. No terceiro encontro a mulher de 54 anos entrelaça nossos caminhos, ao fazer o relato de sua rica trajetória de vida. Caracteríza-se pela vivência preferencial da função de nutridora de Outros seres, num papel eivado de instinto maternal, dirigido ao bem estar daqueles que a cercam. Por essa razão nominei-a DEMETER, a deusa nutriz. A quarta entrevistada tem 35 anos e muita força de vida. Vivencia-a pelo exercício do domínio da vontade e do seu intelecto sobre o instinto e a natureza. Exerce com paciência e sabedoria o domínio das suas habilidades, assim como a deusa ATENA - deusa da sabedoria, que passou a ser seu pseudônimo. Quinto encontro: entrevistei aquela que chamo hoje de HERA, deusa do compromisso. Em seus 30 anos, vive intensamente, assim como a deusa que lhe empresta o nome, o papel de esposa. Sentir-se-ia incompleta sem o companheiro, e tem prazer em fazer do marido o centro de seu mundo. Busca corajosamente o melhor caminho para ser feliz junto aos seres amados. Na caminhada, a sexta pessoa com quem me encontro é THEMIS, 35 anos, nominada assim por suas características lembrarem a deusa da justiça. Extrai de suas dificuldades a força necessária para buscar justiça para todos. Sétima entrevista. Encontro privilegiado com GAIA, 51 anos. Para ela, sua vida foi marcada profundamente por seu corpo ter sido fundamentalmente gerador de vida, apesar de sua fragilidade. Assim como a deusa-mãe, ser corpo-ninho de sua amada prole deu-lhe a força necessária para buscar seu caminho tantas vezes 8 adiado. Coragem no enfrentamento da dor física e na superação de problemas ditos insolúveis, eis as suas fortes marcas No oitavo encontro convivo prazerosamente com AFRODITE, 40 anos. Assim como a deusa que lhe empresta o nome, tem o poder de transformar-se sozinha, não se deixa vitimizar. Busca o prazer de viver, a beleza no cotidiano.Quando termina um projeto, logo surge outra possibilidade que a fascina e é exemplo de determinação e força feminina. Nona entrevista: minha vida entrelaça-se com a de HÉSTIA, 67 anos, assim chamada por me fazer lembrar da deusa da integridade. Altruísta e amorosa, plena de vontade de viver, com dignidade enfrenta suas perdas, extraindo delas a sabedoria necessária para continuar a jornada. Espírito moderado, mas alegre, concentra-se em sua experiência interior. Aprende olhando para seu íntimo e sentindo intuitivamente o que está se passando, sentindo que a vida simplesmente continua, como diz o poeta Quintana. ARTEMIS, deusa da aventura, cruza meu caminho personificada na décima entrevistada, 58 anos. Procura seus objetivos em terrenos de sua própria escolha. Nunca é metade de um par, por ser independente dos homens. Mostra a força de um espírito feminino independente. Com o mundo vivido revisitado pelo processo vivido, no processo vivido, a partir da intencionalidade do Outro, cada professora entrevistada ressignifica-se no mundo, como Ser corporificado junto a outros seres encarnados no mundo. Esse Outro é figura fundamental na construção da subjetividade do Ser, pois coloca Merleau-Ponty, (1996, p. 474), descrevendo com grande sensibilidade essa fundamental relação intersubjetiva: '' é justamente meu corpo que percebe o corpo do outro, e ele encontra ali como um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo." Nessa caminhada certamente modificou-se, ampliou-se, atualizou-se, a consciência de todas as educadoras envolvidas, percebendo-se cada vez mais como Seres-corpos no mundo, junto a outros Seres. Mas tenho que recorrer a Drummond (1998, p.187) para expressar o sentimento de compromisso que fica registrado a partir da relação estabelecida no processo, frente a mostração dessas lindas pessoas, pois diz o poeta: "Chega mais 9 perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível, que lhe deres: trouxeste a chave?" Onde está realmente a chave para as essências e dimensões de cada uma das deusas no que tange a sua percepção de corporeidade? Talvez tenhamos que relembrar o que nos diz Merleau-Ponty (1991) nessa linda passagem do prefácio de sua obra Signo: “Toda a descrição de nossa paisagem e de nossas linhas no universo, a do nosso monólogo interior, estaria por refazer”.(p.14). Sendo a visão das essências um ato de conhecimento direto, sem intermediários, que nos põe "em presença", com as entrevistas realizadas e analisadas segundo a metodologia proposta, emergiu o quadro vivo de essências e dimensões. Quadro esse que "não diz respeito a um mero conteúdo conceitual, mas à significação de uma essência existencial, que como tal deve ser descrita”.(Rezende, 1990, p.17). Como diria o poeta Drummond (1998, p.12): "eis que se revela o Ser na transparência do invólucro perfeito”. Do quadro de essências e dimensões que surgiu nos encontros registro a seguir a primeira e fundamental essência que brotou das falas: a consciência de si como ser corporificado, o entendimento que somos corpos no mundo... Sou corpo no mundo. Confirmando que "é pelo corpo que o Homem vê seus limites e tece o discurso cromático de seus desejos", como diria Sérgio (1999, p.139), quando entrevistei as professoras, a questão central foi o significado da corporeidade em suas trajetórias de vida: todas elas, em suas respostas, sem exceção, discorreram sobre suas vidas, e não apenas sobre seu corpo biológico ou sobre manifestações isoladas de sua corporeidade. "Estou nua, e mergulho na água da minha imaginação", pareciam dizer a si mesmas, parafraseando Álvaro de Campos. Significativamente, só conseguiram tratar da temática corporeidade falando de si mesmas como pessoas inteiras, como Seres corporificados no mundo que concretamente são, plenas de todas as características da natureza humana, incluídos aí, certamente, os seus sentimentos. Seus relatos aconteceram sempre eivados desses sentimentos, pois como coloca Heller (1982, p.17) "sentir significa estar implicado em algo”.E nada mais 10 verdadeiro, mais humano, do que estarmos implicados em nossa própria vida. Sempre que se busca compreender algo, compreende-se reagindo-se afetivamente, sentindo-se, concentrando-se e tratando de compreender o que sente, como diz Gurméndez. (1994, p.181). Todas as entrevistadas mostraram que, na percepção que têm de seus corpos, como afirma Olivier (1998a) "(...) está explícito não apenas o corpóreo, ou seja, meu corpo enquanto objeto de reflexão, com fronteiras bem definidas pela epiderme, mas principalmente a corporeidade, o corpo sujeito que age no mundo e que, nesta inter-relação, estende-se para ele, perde suas fronteiras anatomicamente definidas e torna-se marcado pelos símbolos de suas vivências, torna-se presença (...)”.(p.3). A dicotomia corpo-mente, apesar de denunciada com muita força nas expressões do mundo vivido das professoras, principalmente nas vivências relacionais mais significativas, não surge como elemento fundante em sua maneira concreta de Ser no mundo. As expressões de corporeidade vividas e relatadas por elas aparecem como fortes indicadores do emergir da consciência da sua existência como seres-corpos-sexuados no mundo. Isso apesar do dualismo redutor corpoalma existente como modelo cultural hegemônico ainda hoje, tão criticado por vários estudiosos dos processos históricos das relações sociais entre os seres humanos. E como bem registra Assman (1998a, p.3), cada corpo humano deve ser visto como corporeidade e como "permanência que se constrói no emaranhado das relações sócio-históricas e que trazem em si a marca da individualidade - não termina nos limites que a anatomia e a fisiologia lhe impõem”. Para as professoras entrevistadas o corpo vivido é realmente o meio geral de Ser e ter um mundo. Para elas, assim como para Maciel (1997, p.19), "o corpo é o lugar mesmo dessa 'intenção de significar' e o 'fazer ver', não enquanto equipamento psicofísico ou conjunto anatômico", mas enquanto 'nó das significações vivas'.”Com e pelo seu corpo o Ser sente a si mesmo, ao Outro e ao mundo”. Senão vejamos como nos fala Ariadne ao iniciar sua reflexão sobre o significado da corporeidade na trajetória de sua vida: "acho que pensar o significado do meu corpo me leva na verdade a pensar realmente quem eu sou”. Atena também inicia sua mostração com a afirmação: "sobre o significado que dou a minha corporeidade busco lembrar quem sou”.Percebe-se como sujeito em situação, que 11 se realiza sua ipseidade "sendo efetivamente corpo e entrando, através desse corpo, no mundo”. Compreende ser o sujeito concreto que é inseparável "deste corpo-aqui e deste mundo aqui”.(Merleau-Ponty, 1996, p.547). Reconhece-se como corpo cognoscente. Perséfone é categórica em usar a questão do corpo como o efetuador de sua síntese de seu engajamento no mundo, de seu estar no mundo, e, acompanhando as idéias de Maciel (1997, p.19), percebe que esse corpo não expressa a fixação do passado, mas projeta em torno do presente um duplo horizonte de passado e futuro, e recebe uma orientação histórica: "primeiro quero colocar algumas informações básicas sobre mim (...) Desta última cidade pequena onde moramos é que tenho mais presentes as memórias de minha infância. E nessas memórias é que começo a pensar o significado da corporeidade para mim”.Afirma Perséfone, com sua fala, a justeza da expressão de Merleau-Ponty, quando diz "o mundo está inteiro dentro de mim e eu estou inteiro fora de mim”.(1996, p.546). Percebe Perséfone que não está diante do seu corpo, está no seu corpo, é seu corpo. Assim ocorre também com Demeter: "na minha infância vivi fases distintas na percepção do meu corpo (...)”.Parece dizer-me que as antigas experiências do passado são por ela percebidas não como reprodução ou imagem, mas exatamente como foram vivenciadas e hoje as ressignifica, pois ao falar de sua corporeidade está falando de si como corpo imerso no mundo. Corpo este onde reside a originalidade da experiência perceptiva, segundo Maciel (1997, p.92), já que "é no conceito de corpo que reside o enigma de ver e ser visto, do sentir e ter sentido”.Enigma esse de ver e ser visto que também esteve presente na vida de Artemis: "Sobre o conhecimento do meu corpo, por exemplo, na minha casa só havia aqueles espelhinhos de parede, onde só víamos o rosto”. Vivenciam as professoras na mostração do encontro dialógico o que coloca Merleau-Ponty (1996, p.547) sobre ser a reflexão em relação à essência da subjetividade um encontro ligado à essência do corpo e à essência do mundo, pois "a minha existência como subjetividade é uma e a mesma que minha existência como corpo e com a existência do mundo e, porque finalmente o sujeito que sou, concretamente tomado, é inseparável deste corpo-aqui e deste mundo aqui”.O Ser corpo é compreendido, nessa abordagem, como uma totalidade dialética, que supera concretamente o dualismo cartesiano do ser espiritual e corporal como 12 substâncias distintas. "O Eu é um Eu encarnado, vivendo em um corpo vivo”.(Gonçalves, 1997, p.101). Nesse emergir da consciência de si como Ser corporificado - sou corpo no mundo - como a primeira essência da jornada dialógica vivenciada entre a pesquisadora e as professoras entrevistadas, a busca de um aprofundamento de sua compreensão se dirige então para uma dimensão constituinte da trama da tessitura essencial: a dimensão do reencontro com o Eu, que brota quando as professoras estão revendo significados de corporeidade em suas trajetórias de vida. Assim como Merleau-Ponty (1999, p.200), nossas professoras percebem que compreender é experimentar o acordo entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre e intenção e a efetuação e que o nosso corpo é nosso ancoradouro em um mundo. De suas falas emerge vividamente essa percepção, propiciando o reencontro com o EU, já que a corporeidade é realmente percebida como fonte do Ser no mundo, com expressões marcantes no mundo vivido por elas. "Se o corpo pode simbolizar a existência é porque a realiza e porque é sua atualidade", diz Merleau-Ponty (1996, p.227). Como exemplo ouçamos Hera, realizando seu reencontro consigo mesma enquanto Ser situado, engajado e encarnado no mundo ao falar de sua história viva, de seu mundo significado desde sua infância. Percebe que seu corpo "é movimento em direção ao mundo, ponto de apoio de meu corpo”.(Merleau-Ponty, 1996, p.469). Reflete Hera: "perceber qual foi o significado da corporeidade na construção da minha vida? Nossa, pensar sobre isso vai mexer com tanta coisa! Afirma fazer pouco tempo que ela realmente enxerga a si mesma no espelho, pois o que havia na sua infância era pequeno”, aquele espelhinho lá do banheiro, onde só se via o rosto, me ver totalmente acho que faz pouco tempo." Essas memórias e muitas mais que fazem parte da jornada investigativa levam-me a perguntar, parafraseando Gaiarsa (1984, p.34), "se meu corpo não for meu, de quem será?" De quem está sendo o corpo de nossas professoras? Parecem as memórias das professoras apontar para a afirmação de Sérgio (1999, p.129) quando diz ser a consciência, mais do que um frágil espelho ou um reflexo servil, uma rede de intenções significativas muitas vezes claras, outras vezes vividas mais do que conhecidas. 13 Percebo então que, ao desvelarem a si mesmas que habitam o mundo como seres corporificados, reencontram-se as professoras. Parafraseando Sérgio (1999) vejo que se percebem como Seres mundanizados num mundo humanizado. Têm consciência de si como feitas da mesma carne do mundo, assumem-se como consciência encarnada, e, por essa mesma razão, temporal. Realizam essa percepção num mundo unido indissoluvelmente com suas subjetividades. Subjetividades essas entrelaçadas com a natureza que penetra até o fundo de suas vidas, expressando-se em comportamentos que, também imersos e emergindo dessa mesma natureza, depositam-se nela, segundo Merleau-Ponty (1996), sob a forma de um mundo cultural: “não tenho apenas um mundo físico, não vivo somente no ambiente da terra, do ar e da água, tenho em torno de mim estradas, plantações, povoados, ruas, igrejas, utensílios, uma sineta, uma colher, um cachimbo. Cada um desses objetos traz implicitamente a marca da ação humana a qual ele serve”.(p.465-466). Algumas propostas pedagógicas a partir desses corpos no espelho... Melo (2001) afirma que, para que esses corpos de nossos professores e professoras não sejam mais negados, e que possa neles aflorar a dimensão da corporeidade sempre sexuada como marca de humanidade, temos que buscar subsídios a uma proposta de educação sexual emancipatória que possa auxiliar no desenvolvimento individual e coletivo de professores e professoras, alunos e alunas, através da inserção consciente no processo educacional da corporeidade do ser humano como foco educativo fundamental. Entendendo corporeidade como "a unidade expressiva da existência”, (Olivier, 1998a, p.2) que brota das relações dialéticas entre corpo, o que se convencionou chamar de alma, e o mundo onde ambos se manifestam, concordamos com Assmann (1995) de que "a corporeidade não é fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco irradiante primeiro e principal”.(p.106) Para Assmann (1995), são duas as questões básicas, reaparecendo constantemente no debate sobre educação: a capacitação de profissionais eficientes e a formação de seres humanos solidários. Ora, como pode o educador ser capaz e solidário se não possui consciência de si mesmo como um ser humano inteiro? Se a percepção de seu corpo não tem sido aquela que resulta da experiência originária do corpo consigo mesmo, que é fundante na relação homem-mundo? Esse autor é 14 contundente em sua afirmação: “já é hora de ter a ousadia de afirmar que o éticopolítico e as noções solidárias precisam ser definidos a partir da corporeidade. O mesmo é válido acerca da aprendizagem (englobando neste conceito tanto a dimensão instrucional-aprendizagem de conteúdos-quanto o aprender aprender, incluidos aí o criativiver e a fraternura)”.(p.108) Assmann retorna mais tarde ao tema (1998 ), afirmando ser "preciso pensar a educação a partir dos nexos corporais entre seres humanos concretos, ou seja, colocando em foco a corporeidade viva, na qual necessidades e desejos formam uma unidade."(p.34) Relembrando Fernandez (1990), percebo realizar-se toda a aprendizagem necessariamente pelo e no corpo, nele ficando registrada. Entendemos que o estudo das teorias sobre o corpo e a corporeidade deve urgentemente inserir-se como parte de todo e qualquer currículo pedagógico que se pretenda realmente educativo na direção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e igualitária. Para isto, a sexualidade não pode ser mais vista como algo isolado, que pode ser deixado fora do espaço escolar.Os corpos são as pessoas, pessoas estas sempre sexuadas também como professores e professoras. Concordo com Assmann (1998) quando afirma que deve ser "a corporeidade entendida como simultânea ênfase na corporeidade individual e nos nexos corporais da inserção na amplitude social, como referência unificadora para levar a sério, de forma conjunta, as necessidades e os desejos humanos”.(p.209), Neste entendimento é possível, para esse mesmo autor, fazer-se “uma releitura de toda a história da ética sob o ângulo do direito dos corpos, e das relações de nosso corpo com o mundo”.( p.209). Certamente essa abordagem deve ser estendida também aos professores e professoras, seres humanos percebidos e percebendo-se então, finalmente, como seres corporificados, sempre sexuados e não mais como corpos negados. Corpos esses que, entendidos como estruturas vivas, plenas de sexualidade, possam ter a liberdade de escolha de seus caminhos, auxiliando seus alunos e alunas para que também livremente possam fazer suas escolhas. REFERÊNCIAS ANDRADE, C.D. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 1998. 15 ASSMANN, H. Paradigmas educacionais e corporeidade. Piracicaba: UNIMEP, 1995. _____________ Metáforas novas para reencantar a educação. Epistemologia e didática. Piracicaba: UNIMEP, 1998. BERNARDI, M. A deseducação sexual. São Paulo: Summus, 1985. Declaración de Valencia sobre los derechos sexuales. Valencia:WAS/13 World Congress of Sexology, 1997. GAIARSA, J.A. O espelho mágico. Um fenômeno social chamado corpo e alma. São Paulo: Summus Editorial,1984. GONÇALVES, M. A S. Sentir, pensar, agir. Corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1997. HELLER, A. Teoria de los Sentimientos. Barcelona: Fontamara, 1982. HIGHWATER, J. Mito e sexualidade. São Paulo: Saraiva,1992. MACIEL, S. M. Corpo invisível. 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