UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARIA ANGÉLICA MENEZES FREIRE O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL VITÓRIA 2010 MARIA ANGÉLICA MENEZES FREIRE O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Dra. Vânia Carvalho de Araújo VITÓRIA 2010 MARIA ANGÉLICA MENEZES FREIRE O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Aprovada em 08 de abril de 2010. COMISSÃO EXAMINADORA Profª Dra. Vânia Carvalho de Araújo UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Orientadora Profª. Dra. Maria Elizabeth Barros de Barros UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO ____________________________________________ Profª. Dra. Ivone Martins de Oliveira UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Profª. Dra. Vera Maria Ramos de Vasconcellos UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO Aos meus pais, Beltice e Hamilton (in memoriam), pela referência de dedicação e resistência perante a vida. Amo vocês. AGRADECIMENTOS Ninguém é nada sozinho. É prazeroso o sentimento de gratidão que me envolve ao perceber que não estou só. Chegou à hora de agradecer. Primeiramente a Deus, pela vida que tenho. Pelas pessoas que estiveram e estão ao meu lado na concretização deste trabalho. É impossível nomear todas, mas a elas dedico minha gratidão. Quero deixar registrado de que vale a pena continuar na busca de contagiar as pessoas, lugares na construção de um mundo melhor a partir das crianças. À minha filha, Michelle, que tem me ensinado com leveza a ter esperança e alegria pela vida. Em nosso convívio diário é a pura manifestação fecunda do amor. A minha querida mãe que, na trajetória de nossas vidas, vem tecendo fios de carinho, ternura, coragem e compromisso perante a vida, sempre me amparando na concretização dos meus sonhos. A meu pai (in memoriam) meu reconhecimento pelo apoio incondicional durante o tempo que estivemos juntos, por sempre mostrar-me, em gestos e palavras, a criança que trazemos dentro de nós. Quero evidenciar que sua vida foi trilhada pela ética, pela fé e pela alegria, acreditando sempre em um mundo melhor e mais justo! A minha irmã, Ângela, e aos irmãos, Helder, Francisco e Hamilton, pelas conversas, carinho e incentivo durante “a viagem” do Mestrado e as alegrias compartilhadas durante nossa(s) infância(s). Às minhas tias Mari e Ri pela doçura e certeza das orações! À minha querida família: avó, tias, tios, primas, primos, sobrinhos e sobrinhas e, especialmente, às crianças que vivem suas infâncias. Às minhas queridas amigas de infância de Aracaju pela presença constante compartilhando comigo, mesmo de longe, os momentos de alegria e inquietude. À Eneida pela certeza da sua torcida e apoio na busca do conhecimento durante todo o processo do Curso de Mestrado e pelas significativas contribuições. À Emília pela amizade e força nesta caminhada e pelos lanches em sua casa para aliviar a ansiedade da escrita. À Marília pelas palavras carinhosas nos telefonemas dividindo comigo dúvidas e também por entender a minha ausência nesse período de estudo. À Mariza, Heloisa, Rosinha, Mônica, Ynah e Carminha pelo carinho de sempre. Ao meu genro querido, Marcelo, pelas instigantes perguntas e provocações sobre a pesquisa. Às professoras e professores do Mestrado pelas ricas discussões pelos meandros da educação minha profunda admiração e respeito. Às professoras Elizabeth Barros e Ivone de Oliveira que participaram da banca de qualificação contribuindo teoricamente para a realização deste trabalho. À professora Vera Maria Ramos de Vasconcellos por ter gentilmente aceitado participar da banca de defesa, com suas criteriosas observações. À turma de Mestrado, em especial, à Rosane e Luana pelas reflexões teóricas e companhia nos momentos de tensão e dúvidas. À Moyara e Marluce pela atenção durante o percurso do curso. Aos funcionários da Secretaria do PPGE, em especial à Ana. À equipe do CMEI “Semeando a Vida”, que colocou a escola e os arquivos à minha disposição, o que muito favoreceu a investigação. À professora Fabíula agradeço de modo destacado por ter permitido que a pesquisa se realizasse em sua sala, possibilitando, dessa forma, a realização do estudo. Às crianças do Pré o meu profundo agradecimento em aceitar-me como pesquisadora e, assim, participar das suas experiências e brincadeiras, contando de si, o que foi essencial e enriquecedor para realização deste estudo. Obrigada pelos beijos e abraços. Vou sentir saudades... À Maria por cuidar da minha casa, fazendo comidinhas e um cafezinho delicioso durante todo o curso. À Alina pela paciente tarefa e relevante trabalho de correção do texto. Ao Frei Angelino por ensinar-me a olhar com humor e serenidade tudo que parece negativo, mostrando-me que, dessa forma, crescemos na parceria com o Divino Pai. Em especial, agradeço à professora Vânia Carvalho de Araújo, minha orientadora, pelas orientações que foram essenciais na concretização e construção desta pesquisa. Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças (MANOEL DE BARROS). RESUMO Este estudo tem como foco compreender como as crianças lidam com as suas relações de gênero no cotidiano da educação infantil. Objetiva analisar os elementos culturais e sociais que mais sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino, identificando como as crianças definem e demarcam a sua condição de gênero nos diferentes tempos e espaços. Para responder a essas questões, analisa as narrativas, as interações diárias com seus pares e com os adultos nas relações estabelecidas cotidianamente. A partir das vozes infantis, procura compreender melhor o jeito de ser da menina e do menino nas experiências vivenciadas. Trata de um estudo elaborado numa perspectiva etnográfica que constata que as crianças vão dando alguns indícios do jeito de ser menina e menino nas relações sociais estabelecidas na sala de aula, nos corredores, no pátio, no refeitório, na fila, no banheiro, enfim, em todos os espaços sociais pelos quais circulam. Nesses espaços, observa como elas estabelecem as relações de gênero e de poder nos modos como se organizam e negociam os conflitos, resistindo a algumas normas e lugares destinados às meninas e aos meninos. Como categoria de análise foram privilegiados: gênero, poder e corpo fundamentados nos estudos de autores como: Foucault, Louro, Bujes, Scott e Sarmento. Palavras-chave: Infância. Criança. Gênero. Corpo. Poder. RÉSUMÉ Cette étude a pour but de faire comprendre comment les enfants font face à leurs relations de genre au quotidien de l’éducation enfantine. Elle veut analyser les éléments culturels et sociaux les plus importants dans la manière d’être des enfants, tout en identifiant comment ils arrivent à définir et marquer leur condition de genre dans le temps et l’espace. Pour mieux repondre à ces questions, l’étude révise également leurs récits et rapports quotidiens avec leurs paires et les adultes. A partir des voix enfantines, on essaie de mieux comprendre la façon d’être enfant dans les expériences vécues. Il s’agit d’une étude élaborée avec une perspective éthnographique qui constate l’éxistence de quelques indices qui temoignent de leur manière d’être dans les relations sociales établies en salle de classe, dans les couloirs de l’école, la cour, le réfectoire, la queue, les toilettes, enfin, dans tous les espaces sociaux qu’ils utilisent. Dans ces espaces, on observe comment ils établissent les relations de genre et de pouvoir existantes dans leurs formes d’organisation et de négociation des conflits, en opposant une vive résistance à quelques normes et lieux qu’on leur a imposés. On a privilégié les catégories d’analyse suivantes: genre, pouvoir et corps, basées sur les études d’auteurs tels que: Foucault, Louro, Bujes, Scott et Sarmento. Mots-clés: Enfance. Enfant. Genre. Corps. Pouvoir. ABSTRACT The present dissertation focuses on understanding how children deal with their gender relations in the upbringing environment. It goals to analyze the most distinguished cultural and social elements related to the ways-of-being boy and girl, identifying how children define and demarcate their condition of gender on different times and spaces. In order to answer those questions, the work analyses narratives and daily interactions of children and parents and adults. From child voices, seeks to better understand the ways-of-being boy and girl, considering the experiences that have been lived. The study is elaborated from an ethnographic perspective that argues that children give away evidences of their own ways-of-being boy and girl on social relationships established in the classroom, the courtyard, the cafeteria, in line, at the bathroom, finally, in all social spaces in which they socialize. Considering those spaces, the dissertation observes how they establish their relations of gender and their relations of power and how they organize and negotiate conflicts, opposing to norms and places differently designated to boys and girls. As categories of analysis were privileged: gender, power and body on the grounds of authors such as: Foucault, Louro, Bujes, Scott and Sarmento. Key-words: Childhood. Child. Gender. Body. Power. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................................13 1.1 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA...............................................................15 1.2 CAMINHOS METODOLÓGICOS.......................................................................21 1.3 FAZER PESQUISA NUMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA............................26 1.4 POR QUE PESQUISAR O COTIDIANO ESCOLAR?........................................29 1.5 CONHECENDO A INSTITUIÇÃO PESQUISADA..............................................30 1.6 QUEM SÃO AS CRIANÇAS?.............................................................................32 1.7 COMO AS CRIANÇAS SE SITUAM NO ESPAÇO ESCOLAR?........................33 1.8 O COTIDIANO DAS CRIANÇAS.......................................................................35 2 O QUE É GÊNERO?...........................................................................................38 2.1 AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA......................................................41 2.2 CAMINHOS PARA PENSAR AS QUESTÕES DE GÊNERO.............................47 2.2.1 Por que menino não pode chorar?..............................................................47 2.2.2 Só para provocar... .......................................................................................48 2.2.3 E a menina brinca de carrinho?...................................................................53 2.2.4 A “sutil” incorporação do consumo: as mochilas das crianças..............57 2.2.5 Como se portam meninas e meninos na aula de Educação Física..........59 3 NOS MEANDROS DO PODER............................................................................66 3.1 AS RELAÇÕES DE PODER..............................................................................68 3.2 E POR FALAR EM PODER...............................................................................69 3.2.1 Situações de conflitos entre as crianças: a relação de poder entre os adultos e crianças..................................................................................................69 3.3 AS NEGOCIAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS....................................................73 3.4 AS CRIANÇAS BURLANDO OS TEMPOS E ESPAÇO.....................................77 3.4.1 Burlando as regras na hora do recreio.......................................................79 4 DESVENDANDO O CORPO ...............................................................................85 4.1 A DINÂMICA E OS SINAIS DOS CORPOS.......................................................85 4.2 CORPO E SEXUALIDADE: um início de reflexão.............................................91 4.3 CENAS DO COTIDIANO...................................................................................94 4.4 AS INTERAÇÕES DAS CRIANÇAS...............................................................105 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................110 6 REFERÊNCIAS...................................................................................................118 APÊNDICE.............................................................................................................129 APÊNDICE - Termo de consentimento..................................................................130 1 INTRODUÇÃO A importância das coisas há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. (MANOEL DE BARROS). Esta pesquisa é fruto de experiências docentes ao longo de minha carreira, que sempre me instigaram no sentido de voltar o olhar para as crianças, compartilhar de suas infâncias, do seu cotidiano e, assim, ouvir seus anseios, desejos, vontades, acompanhar suas aprendizagens, alegrias, dúvidas e com elas aprender cada dia mais do seu universo cultural e social e contribuir para a compreensão e produção de saberes acerca da infância. O momento da pesquisa na escola foi um presente e uma surpresa a cada dia. Viver a experiência do cotidiano na companhia das meninas e dos meninos, poder aprender nesse espaço de convivência e compreender o que pensam, sentem, fazem e como se expressam teve um significado relevante na relação com as crianças. Foi um momento rico em minha vida profissional, como pedagoga, mulher, mãe e cidadã e, principalmente, como alguém que vem trabalhando, experimentando, apostando na visibilidade da criança e de suas infâncias. À medida que o trabalho ia acontecendo minha percepção e o meu olhar foram se ampliando com as leituras, com a pesquisa em campo, nos registros, observando a riqueza da cultura das crianças no seu jeito de ser menina e de ser menino que nos provoca a todo momento tentando nos dizer alguma coisa do seu mundo que nos escapa e fascina. O mestrado foi para mim uma viagem. Em cada parada, eu ia ressignificando a minha bagagem na relação com as crianças, com a sua maneira de ser e de interpretar o mundo. A metáfora da viagem ficou para mim bastante evidenciada no livro “Um corpo estranho” da professora Guacira Louro (2004), quando ela exemplifica a viagem com um deslocamento entre lugares relativamente distantes e, em geral, supõe-se que tal distância se refira ao espaço, eventualmente ao tempo que esclarece, distingue e seleciona as experiências vividas, como também uma forma de revisitar o passado articulando uma relação do tempo histórico já vivido com o tempo contemporâneo. Mas, afirma a autora, talvez se possa pensar, também, numa distância cultural como uma trilha que faz a história, como uma teia de relações que organiza as ideias e transforma as experiências nas fronteiras do espaçotempo. Nesse sentido, como explicita a professora Guacira a metáfora da viagem interessa-me para refletir o movimento entre uma e outra experiência, os percursos, as trajetórias durante a pesquisa na companhia das crianças dando vez e voz a todas elas. O mestrado foi uma viagem de chegadas e partidas contínuas no sentido das transformações, dos novos saberes, da (des)construção de saberes cristalizados no lugar de aprendiz com as crianças em nossos relacionamentos durante a trajetória da pesquisa. Pesquisar na condição relacional com as crianças implica responsabilidade e reflexão política, ética, estética, cultural e histórica decorrente do processo da institucionalização da infância. Assim, buscar a visibilidade das crianças envolve a nossa capacidade de reconhecer o lugar ocupado por elas na construção da cultura e dos processos sociais. Durante a pesquisa, perguntava-me: que lugar é esse que elas ocupam hoje na escola, na família, na rua e em suas relações com seus pares? Na verdade, elas ocupam um lugar ou um não lugar? Sempre me instigou e provocou a relação de poder entre os adultos e as crianças e das crianças com seus pares. Que lugares, jeitos de ser-fazer foram construídos nessa relação? A partir das leituras de Michel Foucault (2003, 2005, 2006, 2008), fui me apropriando dessas práticas sociais estabelecidas, por exemplo, o poder está em todas as partes, o poder também se expressa entre as crianças nas suas resistências, na sua maneira de ser menina e de ser menino, nas suas brincadeiras, suas falas e seus gestos. A escola é um lugar de múltiplos discursos. A minha intenção foi identificar em que medida esses discursos são exercidos nas práticas cotidianas, na sala de aula, no pátio, no refeitório em todas as relações que se fazem presentes no cotidiano que interferem na constituição do jeito de ser menina e de ser menino. Nesse sentido, a pesquisa possibilitou-me analisar quais os elementos culturais e sociais que se sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino, como as crianças expressam a sua identidade de gênero nos diferentes tempos e espaços da Educação Infantil e o modo como lidam com as diferenças de ser menina e de ser menino. Sendo assim, é preciso que se saiba mais sobre esses sujeitos infantis, pensantes e desafiadores que se constroem cotidianamente, daí estudá-los e compreendê-los em suas peculiaridades advindas das culturas e do meio onde estão inseridos. É preciso olhar a criança com que convivemos, de carne e osso, que vem a nós, como nos provoca Friedmann (2005) em suas pesquisas. Na tentativa de me apropriar de alguns conceitos busquei dialogar com alguns teóricos, como Araújo (1996, 2005); Bujes (2003), Faria (2002, 2007, 2008), Finco (2003,2007), Foucault (2003, 2005, 2006, 2008), Quinteiro (2000, 2002, 2004), Louro (1997, 2003), Sarmento (2000, 2003, 2005, 2007), Felipe (2003, 2004, 2005). Em função da minha trajetória profissional, dos estudos realizados, da vivência cotidiana em instituições escolares, senti-me instigada a pesquisar como as crianças lidam com as relações de gênero no cotidiano da educação infantil. Defini, como objetivo geral para este estudo: compreender como as relações de gênero se manifestam entre as crianças no cotidiano da educação infantil. Para isso, relacionei objetivos específicos que ajudaram a estudar o tema: a) analisar os elementos culturais e sociais que mais se sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino no cotidiano da educação infantil. b) identificar como as crianças definem e demarcam a sua condição de gênero nos diferentes tempos e espaços da educação infantil. 1.1 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA A opção pelo tema desta pesquisa é resultado de estudos anteriores por ocasião da realização do Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” – Formação de Especialista em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo, com a pesquisa “Sexualidade, AIDS/DST na escola. Como abordar? Um trabalho educativo com os alunos do ensino fundamental noturno da Escola de 1º Grau Zilda Andrade” que, se, por um lado, significou o encerramento de uma etapa, por outro suscitou novas inquietações para outros estudos de maior profundidade. O interesse pela sexualidade e pela questão de gênero iniciou-se quando comecei a trabalhar como pedagoga no Instituto Espírito-Santense do Bem-Estar do Menor (IESBEM), atualmente denominado Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (IASES), no Programa de Moradia Alternativa, quando integrei a equipe multidisciplinar com a função de pedagoga. O programa tinha como objetivo descentralizar a política de assistência assegurando às crianças e aos adolescentes o direito à brincadeira, à atenção individual, à higiene, à saúde, a frequentar a escola e a ter um ambiente aconchegante, seguro e estimulante por meio do desenvolvimento de um trabalho em parceria com grupos organizados da comunidade em sistema de cogestão.1 Nessa época, acompanhei de perto as incertezas e inseguranças das crianças e dos adolescentes em relação às transformações de seu corpo, de sua sexualidade (muitas delas abusadas sexualmente) e de sua fragilidade de resistir a relações desiguais de poder em relação ao gênero, classe social, etnia e faixa etária.2 As crianças e os adolescentes atendidos pelo instituto traziam em sua história as impossibilidades de estudar, de brincar, de viver a sua infância em virtude do abandono e do lugar social que ocupavam. No IESBEM, fui membro da Comissão de Prevenção AIDS/DST. Lá realizei palestras para os seus funcionários. Na época, foi elaborada uma política de atendimento do órgão, que objetivava capacitar a mencionada comissão, que, posteriormente, teria como proposta provocar o debate com as crianças e com as(os) adolescentes atendidos pelo instituto, com relação aos seus medos, 1 suas inseguranças e à Esse trabalho contou com o apoio do Departamento de Serviço Social da UFES. O referido Programa de Moradia Alternativa tinha como objetivo proporcionar a cidadania às crianças e aos adolescentes desprovidos de família e/ou afastados da família de origem, proporcionando assistência integral e especial, num ambiente semelhante ao de um lar. 2 Segundo Manuel Sarmento (2005, p. 370): “As condições sociais em que vivem as crianças são o principal factor de diversidade dentro do grupo geracional. [...] ao longo da sua infância percorrem diversos subgrupos etários e varia sua capacidade de locomoção, de expressão, de autonomia de movimento e acção etc. [...] Os diferentes espaços estruturais diferenciam profundamente as crianças”. exploração sexual, pois muitas delas(es) conviviam na exclusão social e perversa da sociedade. Nesse período, percebi a precariedade das políticas públicas que eram incapazes de assegurar, de fato, proteção integral à população infanto-juvenil. Ficou evidente o silêncio e o tabu de lidar com questões relacionadas com a sexualidade e com o gênero, que também se confundiam com a história da pobreza, da desigualdade social ora ocultada, ora revelada pela condição de vida das crianças e adolescentes atendidas pelo IESBEM. Em 1998, assumi a direção do Centro Municipal de Educação Infantil Darcy Castello Mendonça, que atende crianças de seis meses a seis anos. Na educação infantil, constatei que a escola precisa promover debates e reflexões acerca da sexualidade humana, que venham desencadear discussões relativas a gênero, política, cultura, poder e cidadania. No contexto da educação infantil, pude perceber práticas instituídas que tentam moldar as formas de ser menina e ser menino, por meio do monitoramento do desenvolvimento da criança, caracterizando o que é normal e desejável. Nesse contexto, a criança, ao contrário do que era considerada no passado, mostra-se como ser que pensa, tem sentimentos, emoções e é participante ativa do mundo, reproduzindo e produzindo cultura. Foi, então, que comecei a me questionar: o que continuaria impedindo e dificultando a discussão de gênero, poder e da sexualidade na escola? Em função desses questionamentos, é que participei do processo de seleção no Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico, da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa: História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais, com o desejo de pesquisar e aprofundar as questões relativas a gênero, sexualidade, corpo, poder, criança e infância no cotidiano da educação infantil. No decorrer da “viagem” do mestrado, fui à busca de estudos e pesquisas que ampliassem as minhas escolhas e que me dessem sustentação teórica para ir construindo as fronteiras do ir e vir dos saberes e reflexões do meu processo de entendimento acerca dessas questões. Busquei cumplicidade com autores que tratam de temas teóricos que pudessem dar embasamento à minha discussão, tais como: Foucault (2003, 2005, 2006, 2008), Louro (1997, 2004, 2005, 2007), Scott (1995) Bujes (2003), Sarmento (2007), Finco (2007), Goellner (2005), Felipe (2004), Eizirik (2004), entre outros. Foucault (2003, 2005, 2006, 2008), em seus estudos, esclarece-nos que a sexualidade se constitui por meio dos discursos que regulam e normatizam as relações sociais e culturais, nas práticas cotidianas historicamente construídas que controlam homens e mulheres. Há também, em suas pesquisas, a preocupação em evidenciar que o poder não só reprime, mas resiste, incita e provoca nos detalhes, o que equivale a dizer que, onde há poder, há resistência, que se produz por meio das relações de poder que não só os adultos têm, mas que são produzidos em todas as relações estabelecidas e que constituem os sujeitos. Nas pesquisas de Louro (1997, 2004, 2005, 2007), observa-se que gênero e sexualidade têm se constituído alvo de seus estudos. A professora afirma que gênero, sexualidade e identidade são uma construção cultural contínua, provisória e relacional. Em seus textos, a autora revela os múltiplos discursos que ocupam a sociedade e que nos provocam a pensar as questões relativas ao corpo, ao gênero, às relações de poder na escola, às feminilidades, às masculinidades e à sexualidade. E evidencia que “somos sujeitos de muitas identidades” e que é no âmbito da cultura e da história que vamos constituindo as nossas identidades sexuais, étnicas e de classe. Bujes (2003), em seu trabalho “Infâncias e maquinarias”, analisou as relações entre infância e poder, utilizando-se das ideias de Foucault, e nos esclarecendo que não há lugar isento de poder. O sujeito infantil é constituído por diversos discursos e diferentes instituições: a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação, e são essas instituições que vão apontar e moldar as formas como os sujeitos, por meio dos discursos internalizados, vão se relacionar com o mundo onde estão inseridos. Sinaliza a autora que a sociedade busca constantemente estratégias e mecanismos como instância privilegiada de controle para fixar certos sentidos por meio dos discursos tomados como “verdadeiros”. Já Scott (1995), em o seu artigo “Gênero uma categoria útil de análise histórica”, evidenciava uma mudança de reflexão entre as formas de interação humana que se processam no âmbito da cultura. Nesse estudo, a autora introduziu uma ênfase no contexto sócio-histórico que influencia as relações sociais numa perspectiva de igualdade e oportunidade entre os sexos. As suas pesquisas vêm contribuir para elucidar as questões relativas sobre as diferenças e desigualdades produzidas nas sociedades. Sarmento e Pinto (1997, 2000, 2003, 2005, 2007), estudiosos da infância e da criança pesquisadores que vêm constituindo suas pesquisas científicas ancoradas na Sociologia da Infância, definem, apropriadamente, que a Sociologia da Infância é um dos mais importantes debates teóricos em curso sobre o desenvolvimento da Sociologia no mundo. Foram os primeiros interlocutores portugueses que se interessaram pelos estudos sociológicos sobre a infância. Os professores têm contribuindo de forma sistemática com suas publicações para as questões relativas à criança, à infância e às culturas infantis. Também Felipe (2001, 2002, 2003, 2004) vem se dedicando, em suas pesquisas, ao estudo do conceito de infância e às relações de gênero e sexualidade na educação infantil com uma relevante produção de trabalhos publicados sobre essa temática. Seus estudos estão ancorados na perspectiva dos Estudos Culturais, Estudos Feministas e nas contribuições de Michel Foucault, no que se refere às relações de poder-saber e ao governo dos corpos. Finco (2007), em sua pesquisa “A Educação dos corpos femininos e masculinos na educação infantil”, reforça a idéia de que os mecanismos sociais estão presentes na educação de meninas e meninos e essas marcas sociais e culturais vão sendo inscritas em seus corpos, por meio de técnicas que disciplinam, regulam, controlam, constituindo, dessa forma, comportamentos, verdades e saberes sobre o ser menina e ser menino. Cipollone (2003) nos oferece pistas a partir de pesquisas realizadas em creches e préescolas italianas sobre a relação de afetividade da professora com a menina e com o menino e também da menina com o menino e nos evidencia que todo comportamento tem algum tipo de afeto. Portanto, a minha intenção é analisar e compreender como as crianças se relacionam e se expressam, nos diversos espaços-tempos da escola, objetivando outras formas de olhar como as crianças manifestam a sua condição de gênero e poder nas relações estabelecidas no cotidiano escolar da educação infantil, nas diferentes formas de ser menina e ser menino. Este trabalho foi organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, foi explicitada na introdução a minha trajetória profissional, destacando o meu olhar nas crianças e suas infâncias e os caminhos metodológicos ancorados numa perspectiva etnográfica em um estudo de caso que foram tecendo os desafios de se fazer pesquisa com as crianças e a partir delas, objetivando dar vez e voz às suas narrativas. A caracterização e a contextualização da instituição pesquisada – Centro Municipal de Educação Infantil Semeando a Vida (nome fictício dado a escola) – efetivou-se a partir da leitura do Projeto Político-Pedagógico, de conversas orais e análises de outros documentos que integram a história da escola. Neste capítulo, esclareço as minhas primeiras impressões, a entrada em campo, o cotidiano das crianças e como elas se situam no espaço escolar. No segundo capítulo, trato das questões de gênero, esclarecendo a relevância do tema atualmente, trazendo alguns teóricos que conceituaram e contribuíram para a discussão do processo sócio-histórico e dos seus efeitos nas relações sociais e institucionais. Evidencio as relações de gênero na escola e as experiências das crianças nas suas relações cotidianas, observando como elas produzem e reproduzem, em suas relações, modos de ser menina e menino. Analiso os elementos culturais que influenciam as interações das crianças no jeito de ser menina e menino e discuto alguns caminhos para pensar as questões de gênero na infância. No terceiro capítulo, procuro desvendar as relações de poder que emergem nas relações cotidianas das crianças e em que medida o poder se torna uma categoria presente nas relações de gênero entre as meninas e meninos. Assim, busquei autores (Foucault, Louro, Bujes e Eizirik) que me sustentassem teoricamente para identificar, nas experiências das crianças, como o poder é exercido e mediado nas tensões e resistências. O quarto capítulo trata das diversas formas e estratégias que são utilizadas no espaço escolar para controlar e conter os corpos das(os) alunas(os), visualizando como as crianças buscam formas de resistir às imposições disciplinares em relação a seus corpos. Nesse capítulo, evidencio cenas do cotidiano, as narrativas e as representações das crianças nas suas interações. 1.2 CAMINHOS METODOLÓGICOS Definir um caminho a ser seguido para a realização de um estudo não é tarefa fácil para um(a) pesquisador(a). Múltiplos caminhos se delineiam e se entrecruzam no decorrer da elaboração de um projeto para a realização de um estudo. Fui buscar, no cotidiano escolar, reflexões, achados, questionamentos e caminhos. Este estudo tem caráter qualitativo e, por isso mesmo, considerei relevante e adequado à temática pesquisada trabalhar numa perspectiva etnográfica que tem por objetivo observar, pinçar, descrever e interpretar o que acontece em um determinado lugar. Assim, optei por fazer um estudo em uma turma de seis a sete anos. Neste estudo, utilizei, como instrumento de produção de dados, a observação participante, diário de campo, análise de documentos, fotografia (mediante autorização dos pais e das crianças), questões investigativas com as crianças, com o objetivo de captar informações por meio da escuta e do olhar atento e participativo tão necessário ao processo investigativo. Esses instrumentos que foram revelando as culturas infantis por meio da linguagem e de diversas formas de comunicação entre as crianças com seus pares e os adultos que ocupam o espaço da escola. Além disso, utilizei a pesquisa bibliográfica, a entrevista e diário de campo. Para a entrevista, foi adotado um roteiro (APÊNDICE) no sentido de manter o foco nos objetivos do tema. As conversas foram gravadas, transcritas, ouvidas diversas vezes para perceber entonações, sentimentos, sentidos expressos nas vozes das crianças. Para realizar a pesquisa, escolhi um Centro Municipal de Educação Infantil – CMEI Semeando a Vida (nome fictício dado à instituição) – por ser uma escola que atende crianças de um nível socioeconômico desprivilegiado. O primeiro contato com a referida escola foi por via telefônica, com a diretora, para explicar a intenção do trabalho a ser desenvolvido e solicitar sua anuência para a realização da pesquisa. Após o primeiro contato, foi marcado um encontro com a diretora e as pedagogas para que conhecessem o teor da pesquisa. Fiquei extremamente instigada em desenvolver a pesquisa na sala do Pré B da professora F, em função de algumas características da sala: possuir mais meninos do que meninas; contar com a presença de uma menina que se destaca das demais; e, ainda, ser uma turma extremamente provocadora e ativa, segundo o relato da professora. São características importantes na medida em que desvelar as relações de gênero, entre as crianças, se traduziu em uma oportunidade ímpar de vivenciar como lidam com as experiências cotidianas no jeito de ser menina e menino. Os sujeitos da pesquisa estudam numa sala de aula com 23 crianças, oito meninas e quinze meninos, entre seis e sete anos de idade, atendidas por uma única professora. Uma vez por semana, tinha aula de Educação Física e Artes. No horário dessas aulas, a professora fazia o planejamento das atividades a serem desenvolvidas com as crianças. O início da pesquisa se deu com um sentimento de inquietude, apreensão e de desafio por se tratar de uma temática que nos instiga e provoca a todo o momento como um enigma a ser desvendado. Fazer pesquisa com as crianças foi pensar na possibilidade de compreender algo que nos escapa, resiste e questiona. A entrada em campo se deu após a conversa com a professora e com as crianças para saber se elas me aceitavam como pesquisadora na turma. Quando cheguei à sala do Pré B, as crianças estavam sentadas, em círculo, esperando-me e recebi um sonoro “SEJA BEM-VINDA!”. Sentei-me no círculo com as crianças, fui esclarecendo o objetivo da pesquisa e, logo após, perguntei-lhes se me aceitariam como pesquisadora na sala. Responderam-me que sim. Perguntei se elas conheciam a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Várias respostas surgiram. Uma menina respondeu que sim: “Que lá era o lugar de estudar, só que minha mãe estuda na FAESA”. Outra criança falou que a UFES era o lugar de consertar pneu! 3 Uma menina me perguntou o que eu estudo no mestrado? Após esse primeiro momento de conversa, solicitei que as crianças falassem seus nomes e a idade. Também fui indagada sobre minha idade. A produção de dados foi por meio de observações registradas no diário de campo, 3 Supostamente, referindo-se a uma oficina mecânica chamada Faé. entrevistas, análises de documentos e fotografias, com o objetivo de compreender como as crianças vão construindo a visão de si mesmas e do mundo que as cerca por meio das interações estabelecidas no cotidiano escolar. No diário de campo, estão registrados momentos que explicitam que há uma nítida divisão entre o universo feminino e o masculino, quando uma aluna diz: “Tem uma menina que finge, mas falou que quer ser homem. Ela fica igual a um homem, não fica comportada como a gente”. Ao ouvir isso, indaguei qual era o jeito dessa menina. “O jeito, ela briga, molha os outros, é assim”. A fala dessa criança vem reafirmar os modelos esperados pelas atitudes e características das meninas: doces, delicadas, passivas, comportadas e organizadas. Para o menino, a agressividade, a força e a agitação são comportamentos esperados, pois a masculinidade está amparada basicamente na competitividade, força física e coragem. A entrevista com as crianças foi um momento rico da pesquisa, quando elas falaram dos seus desejos, experiências, medos e sonhos. Durante as entrevistas, constatei, mais uma vez, como as crianças têm a capacidade de analisar, interpretar e descrever as suas experiências e interações com seus pares e os adultos, reproduzindo e (re)significando as relações de gênero no jeito de ser menina e ser menino no cotidiano da educação infantil. Entrevistar e ouvir as crianças é buscar, na multiplicidade de linguagens, as suas impressões do mundo que elas vão descrevendo a partir do olhar curioso e inventivo. É, sem dúvida, um momento de exercício de escuta, de encontro, de troca, de pertencimento de quem ouve e é ouvido Foi nessa perspectiva que as crianças foram entrevistadas, abrindo espaço para estabelecer uma relação de escuta com elas, para dizerem o que pensam, imaginam, querem e desejam. Foram entrevistadas 12 crianças, oito meninas e quatro meninos no universo de 23 crianças. A escolha se deu de forma aleatória, a partir do interesse das crianças após eu ter conversado com elas sobre a entrevista, que foi feita na biblioteca da escola, por ser um espaço pouco utilizado pelas crianças do Pré e mais reservado. Inicialmente, explicava que era um bate-papo e que eu iria gravar nossa conversa para depois escutar e passar para o diário de campo. Nesse sentido, procurando decifrar as variadas formas de comunicação das crianças tentei trazer junto com elas as suas reflexões, experiências, sentimentos, vivências, desejos e suas contribuições acerca das culturas infantis. Procurando manter o sigilo dos nomes das crianças, propus a elas que cada uma escolhesse um nome fictício para usar na pesquisa. A escolha dos nomes pelas crianças foi um momento extremamente instigante e provocador para a minha condição de pesquisadora. Reuni as crianças em círculo e expliquei a importância e as implicações dos seus nomes não aparecerem no trabalho que eu estava realizando com elas e eles ali na escola. Todas as crianças concordaram em escolher um nome. A escolha dos nomes foi acontecendo de forma tranquila. Quando chegou a vez de uma menina escolher, ela optou por um nome masculino: “João Pedro”. Algumas crianças riram e repetiram que ela tinha escolhido o nome de menino. Como havia algumas crianças que ainda não tinham escolhido o seu nome, dei continuidade à tarefa de recolha dos nomes. Nesse dia, voltei para casa pensando por que “João Pedro”4 escolheu um nome masculino para ser representada na pesquisa. Para Louro (1997, p. 98), “[...] as representações são formas culturais de referir, mostrar ou nomear um grupo ou um sujeito”. Continuando com o pensamento de Louro, ela afirma, em seus estudos, que as identidades são transitórias, elas vão sendo construídas e é nas relações sociais atravessadas por diversos discursos que o sujeito vai se construindo como masculino e feminino. Na pesquisa de campo, percebi algumas resistências no cotidiano escolar em romper com o que é tido como certo, convencional e esperado. As crianças também, quando chegam à escola, reproduzem discursos e modelos de comportamentos moldados pela cultura, como “coisa de menina” e “coisa de menino”. Na fala de Júlia, fica evidenciada essa divisão do mundo masculino e feminino: “Tem uma menina que finge, mas falou que quer ser homem. Ela fica igual a um homem. Não fica comportada como a gente”. Importa registrar, nessa fala, a complexidade que envolve as relações de gênero no contexto escolar, onde acontecem diversos movimentos de aproximação, rupturas e escolhas. 4 Uma menina escolheu um nome masculino para ser representada na pesquisa, optei, para a melhor compreensão do texto, destacar o nome escolhido: “João Pedro”. Assim, toda vez que me referir a “João Pedro” estou tratando de uma menina. No dia posterior, sentei-me perto da “João Pedro” e perguntei-lhe por que tinha escolhido o nome masculino para ser chamada na pesquisa. Ela não respondeu e sorriu. Então, expliquei-lhe que talvez ficasse confuso. Na hora de falar dela, eu teria que colocar um nome de menino. Indaguei se ela não gostaria de mudar a sua escolha do nome. Ela balançou a cabeça dizendo que sim. Então, perguntei-lhe com qual nome ela gostaria de ser chamada? Ela me respondeu imediatamente: Artur. Diante disso, e, ainda, sob a constante perspectiva de dar vez e voz às crianças, respeitei a escolha desta menina que gostaria de ser representada na pesquisa com o nome de menino: “João Pedro”. Sustentei-me no pensamento de Sarmento (2007, p. 35) quando esclarece que: “[...] a infância não é a idade da não fala: todas as crianças, desde bebês, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) por que se expressam”. E ainda, na esteira da ideia de Vasconcellos (2007, p. 11) procurei assegurar visibilidade às crianças deixando-me levar “[...] pelas mãos e pelas vozes das próprias crianças”. Fiquei instigada em investigar mais um pouco a escolha do nome masculino pela aluna. Procurei saber alguns dados da família, com quem ela morava, se tinha irmãs e irmãos, qual a idade deles. Ela me falou que só tinha irmãos, que apanhava muito deles e que morava com a mãe. O pai tinha morrido, mas não soube me dizer qual o motivo da morte. Essas revelações me provocaram a pensar que “João Pedro” quisesse ter uma identidade masculina para se apropriar do lugar de poder dos irmãos. “João Pedro”, na sala, só se sentava com os meninos e tinha livre acesso a todas as brincadeiras com eles, inclusive disputando com brigas e empurrões, caso fosse necessário em algum estranhamento na sua relação com os meninos. Alguns nomes escolhidos pelas crianças merecem destaque: “Jelique”, “Felipe Massa”, “Brondim”, “Albes”, “Galisson” e “Roter”. 1.3 FAZER PESQUISA NUMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA Procurei, neste trabalho, fazer uma pesquisa que escape de dualidades, da neutralidade, da quantificação e que seja coerente com a emergência de novos paradigmas de ser-fazer ciência. Pude constatar que a etnografia foi se revelando um caminho para desvendar as questões estudadas. Sarmento (2003, p. 153) ensina que: [...] a etnografia visa apreender a vida, tal qual ela é quotidianamente conduzida, simbolizada, interpretada pelos actores sociais nos seus contextos de acção. Ora, a vida é, por definição, plural nas suas manifestações, imprevisível no seu desenvolvimento, expressa não apenas nas palavras mas também nas linguagens dos gestos e das formas, ambígua nos seus significados e múltipla nas direções e sentidos por que se desdobra e percorre. A etnografia5 é uma forma de pesquisar que se originou na Antropologia e objetiva pesquisar, descrever, investigar e interpretar o que as pessoas fazem em determinado ambiente, os resultados de suas interações e seu entendimento do que estão fazendo, ou seja, a cultura6 daquele grupo. A pesquisa etnográfica permite uma observação direta das(os) pesquisadoras(os) com os pesquisados. Nesse espaço socializador, são analisados os valores, sentidos e significados que são produzidos pelos sujeitos que vivenciam e assumem posturas que podem resultar em papéis de acomodação ou resistência. Nesse sentido, Cohn (2005, p. 10) esclarece acerca da etnografia: [...] é um método em que o pesquisador participa ativamente da vida e do mundo social que estuda, compartilhando seus vários momentos, o que ficou conhecido como observador participante [...]. Portanto, usando-se da etnografia, um estudioso das crianças pode observar diretamente o que elas fazem e ouvir delas o que têm a dizer sobre o mundo. A etnografia caracteriza-se, desse modo, como uma metodologia capaz de pesquisar a infância. Entendo ser esse o melhor meio de produzir dados no universo escolar, pois permite a(o) pesquisadora(o) uma observação direta do mundo em que a criança está inserida, participando ativamente de seus afazeres e entendendo quem são essas crianças, o que fazem, o que sabem e o que querem saber. Ela exige que os pesquisadores entrem e sejam aceitos na vida daqueles que estudam e dela participem. Nesse sentido, por assim dizer, a etnografia envolve “tornar-se nativo” (CORSARO, 2005, p. 446). O autor ainda nos alerta que a entrada em campo é crucial para a utilização desse método, uma vez que um dos objetivos centrais, como método interpretativo, é estabelecer o status de membro do grupo e uma perspectiva ou ponto 5 Para um estudo mais aprofundado da etnografia, conferir: Sarmento (2003), Corsaro (2005), Delgado (2005), Müller (2005), André (2006). 6 Segundo Silva (2007, p. 131), “Em 1958, Raymond Williams definiu cultura como o modo de vida global de uma sociedade, como a experiência vivida de qualquer agrupamento humano”. de vista de dentro. O trabalho, numa perspectiva etnográfica, possibilita a construção de uma metodologia que conheça o mundo das crianças a partir da suas falas e olhares. A pesquisa foi realizada no acompanhamento das crianças em seu cotidiano escolar. Segundo Araújo (1996, p. 123): “Compreender as relações travadas num determinado contexto social, sem dúvida, torna-se uma tarefa desafiadora para o pesquisador, principalmente quando o campo investigado sinaliza vários caminhos a serem percorridos”. Sendo assim, o desafio da pesquisa é conseguir decifrar as realidades heterogêneas no cotidiano escolar onde acontecem cenas simultâneas. Assim, entender as especificidades do cotidiano escolar, em uma investigação de cunho etnográfico, é desvendar, como nos sugere André (2006), as quatro dimensões inter-relacionadas: subjetiva abrange a história de cada sujeito; institucional focaliza os aspectos da prática escolar; instrucional focaliza as situações de ensino; e a sociopolítica que se refere ao contexto sociopolítico e cultural amplo. Implica, também, entender o espaço social que a escola ocupa e que a(o) pesquisadora(o) estabelece, tornando o movimento de aproximação e distanciamento do campo a ser investigado um método para melhor apreensão dos significados evidenciados no dinamismo próprio do universo escolar. E, assim, analisar e refletir também sobre o momento histórico, concepções e valores presentes no espaço pesquisado. No dizer de Corsaro (2005, p. 443), “Fazer pesquisa etnográfica com crianças pequenas envolve certos desafios, uma vez que os adultos são percebidos pelas crianças como poderosos e controladores de suas vidas”. A pesquisa com crianças tem sido um grande desafio para os pesquisadores em virtude da dificuldade em reconhecê-las como legítimo objeto de estudo. Nesse sentido, é relevante que o trabalho seja pensado em bases teóricas e que a criança seja reconhecida como protagonista viva da história, e produtora de cultura. Kramer (2005, p. 45) considera que: “No caso da pesquisa com crianças se coloca como fundamental ouvir, os ditos e os não ditos; escutar os silêncios”, a criança com a sua alteridade, na sua condição social de ser histórico, criativo que interage com a história do seu tempo que vai experienciando, modificando e é modificado por ela. Sintetizando as suas contribuições em relação à pesquisa com crianças, Kramer (2005, p. 55), evidencia que é “[...] fundamental analisar os discursos as interlocuções tanto nas entrevistas quanto em outras situações de interação (observação de brincadeiras, conversas, diálogos entre crianças e adultos, experiências culturais no cotidiano)”. A autora (KRAMER, 2005) ainda sugere que é imprescindível ressaltar, no texto da pesquisa, o lugar social do pesquisador (posição de onde fala e escuta), os referenciais teóricos que disciplinam seu olhar, as marcações de idade, gênero, classe social, etnia, as interações, falas ações, diálogos, movimentos; o(s) gênero(s) discursivo(s) produzido(s), os modos de produção. Também André (2006, p. 15) socializa suas reflexões acerca da pesquisa etnográfica, no cotidiano escolar, com seus desafios, movimentos e processos, afirmando: A pesquisa do tipo etnográfica permite documentar o não documentado, isto é, desvelar os encontros e desencontros que permeiam o dia-a-dia da prática escolar, descrever as ações e representações dos seus atores sociais, reconstruir sua linguagem, suas formas de comunicação e os significados que são criados e recriados no cotidiano do seu fazer pedagógico Assim sendo, a mesma autora (2006) evidencia a importância da pesquisa no cotidiano escolar, pois, por meio dela, a(o) pesquisadora(o) irá perceber e revelar a realidade, as relações sociais do dia a dia escolar pela observação, escuta, apoiado no referencial teórico que lhe proporcione compreender as interações, rotinas e relações sociais que caracterizam o cotidiano escolar.7 Para ilustrar melhor, a fotografia tem sido muito utilizada na pesquisa com crianças. Solicitei autorização das famílias e das crianças com o objetivo de esclarecer a intenção e a importância da fotografia como recurso metodológico para apreender as dinâmicas e ações no espaço escolar. Kramer (2002) faz uma reflexão sobre o uso da fotografia como metodologia de pesquisa qualitativa e expõe suas preocupações quanto ao uso de imagens em pesquisas com crianças. A autora esclarece: [...] a fotografia é um constante convite à releitura, a uma forma diversa de ordenar o texto imagético. Pode ser olhada muitas vezes, em diferentes ordens e momentos, pode ter outras interpretações: ela é sempre uma outra foto ali presente, pois uma foto se transforma cada vez que é contemplada, revive a cada olhar (KRAMER, 2002, p. 52). 7 Nos estudos de André (2006), ela explicita que a importância de estudos sobre o cotidiano escolar surgiu na década de 80 com o crescimento dos estudos denominados qualitativos, porém, na década de 90, Mirian Warde (1992) aponta como uma forte evidência nas pesquisas educacionais o interesse pelas questões evidenciadas no cotidiano escolar. Talvez um dos maiores desafios durante a pesquisa com crianças seja compreender e alargar o olhar para as relações estabelecidas nos espaços-tempos por elas ocupados, identificando as negociações, tensões e resistências que se desenvolvem nas interações cotidianas. A fotografia é um excelente recurso para apreender esses processos de construção e desconstrução que vão surgindo de forma mutante entre as crianças e seus pares. A observação, a fotografia e a escuta das vozes infantis, nas relações estabelecidas cotidianamente, trará informações do universo infantil de como as crianças interpretam e leem o mundo na constituição das culturas infantis. 1.4 POR QUE PESQUISAR O COTIDIANO ESCOLAR? A minha intenção, ao pesquisar o cotidiano escolar, utilizando a pesquisa numa perspectiva etnográfica, não foi só produzir dados e sim compreender como as crianças manifestam a relação de gênero no espaço e no tempo escolar (na sala de aula, na hora do lanche, no recreio, na entrada e na saída) procurando identificar em que medida o poder se torna uma categoria presente nas relações de gênero entre as crianças, que se configuram em suas experiências, entendendo a criança como ser histórico, participativo, inserido num tempo e num espaço, que é determinado pelo momento histórico vivido. Nessa perspectiva, compreender os discursos “politicamente corretos” de respeito às diferenças de raça, idade, sexo, classe social e orientação sexual, instigou-me a alargar o olhar, no cotidiano escolar, entendendo que as crianças possam exercer seus direitos e deveres com igualdade de oportunidade, pois elas são autoras e produtoras da cultura que transforma esse espaço ocupado por elas na sua vida cotidiana, que perpassa ações, interações, rotinas e relações sociais. As relações sociais estabelecidas na instituição escolar, no seu dia a dia, são dinâmicas e carregadas de valores que circulam nas falas de todos que compõem seu universo. Desse modo, a importância de ouvir os discursos que circulam na escola é que vai revelar se as práticas utilizadas na instituição estão reproduzindo a estrutura de poder e dominação presente em nossa sociedade. Interessei-me, portanto, em analisar em que medida as relações de gênero se evidenciam como uma relação de poder entre as crianças nos diversos tempos e espaços por elas vivenciados. Segundo André (2006, p. 13): Estudos voltados ao cotidiano escolar são fundamentais para se compreender como a escola desempenha o seu papel socializador, na veiculação seja dos conteúdos curriculares, seja das crenças e dos valores que perpassam as ações, interações, rotinas e relações sociais que caracterizam o cotidiano escolar. E nesse movimento de tensões das relações socais no cotidiano escolar que a (o) pesquisadora(o) vai compreendendo os valores e significados dos mecanismos de poder exercidos nesse espaço, evidenciados pelas crianças na rotina institucional. 1.5 CONHECENDO A INSTITUIÇÃO PESQUISADA Foto 1 – O CMEI pesquisado O Centro Municipal de Educação Infantil “Semeando a Vida” (Foto 1) funciona em dois turnos, com capacidade de atendimento a 523 alunas(os), divididos em 12 salas de aula em cada turno. A área total do estabelecimento é de 1824m e 1471m de área construída, as salas de aula contam com metragens que variam entre 40,5m a 44,2m com capacidade de atender 25 alunos. O estabelecimento conta com salas distribuídas em dois pavimentos: uma sala de direção, uma sala das pedagogas, uma sala de professores, uma secretaria escolar, um solário (espaço anexo as salas), uma sala de vídeo, um lactário, uma biblioteca, uma cozinha, dois refeitórios, uma lavanderia, um pátio coberto, dois pátios descobertos, um depósito para alimentos, dois banheiros de meninas, dois banheiros de meninos, um banheiro misto para as crianças, uma guarita para vigia e três depósitos de materiais didáticos. 8 Em março de 1988, após um movimento popular da comunidade do bairro do Romão foi entregue a unidade de pré-escola. Esse local era considerado, por algumas pessoas da comunidade, como inadequado para instalação de uma unidade de pré-escola em virtude da existência de pedras que poderiam rolar do morro, porém com o movimento liderado por Dona Carmosina, Seu Pernambuco e Dona Neuza Silva Castro, a comunidade conseguiu conquistar esse espaço para atender às crianças do bairro. Inicialmente houve muitas dificuldades para a implantação da unidade. Em virtude de ser considerado um lugar perigoso, ninguém quis assumir a coordenação. Foi feito um trabalho de conscientização com as famílias para que matriculassem seus filhos na unidade do Romão, pois havia uma resistência por parte das famílias, por tratar-se de um local inseguro. A instituição começou a funcionar de forma muito precária, sem funcionários e sem qualquer material pedagógico, em um terreno cedido pela Escola Municipal de Ensino Fundamental “Irmã Jacinta”, da rede estadual. Segundo consta no Projeto PolíticoPedagógico do atual CMEI Semeando a Vida, a situação era tão precária que a coordenadora levava as roupas utilizadas para serem lavadas em sua residência. O número de crianças atendidas na época era de 80, com 20 crianças em cada sala. A faixa etária assistida era de três a seis anos. O trabalho árduo do início foi se frutificando e, em pouco tempo, a unidade já contava com uma lista de espera para atender às crianças da comunidade. Com a elaboração do Projeto Político-Pedagógico, foi feito um diagnóstico da comunidade escolar que acolhe a diversos bairros que se localizam em seu entorno, como: Romão, Ilha de Santa Maria, Cruzamento, Forte de São João, Centro, Jucutuquara e Bento Ferreira. O diagnóstico objetivava fazer uma caracterização socioeconômica e cultural da comunidade atendida pela instituição. A proposta pedagógica do CMEI Semeando a Vida está amparada nos pressupostos teóricos de Vygostsk, Bakthin, Kramer, Sarmento, Pinto, Freinet e Wallon. Consta, no 8 As informações dos itens “Contextualização da instituição pesquisada” e “Conhecendo a instituição pesquisada” foram retiradas do Projeto Político-Pedagógico da instituição pesquisada. Projeto Político-Pedagógico, que o compromisso assumido por uma educação de qualidade objetiva melhorar o trabalho pedagógico, priorizando a criança em sua história, cultura, pensar e agir. A função do educador evidenciada no documento que norteia os objetivos a serem alcançados na instituição se traduz em: um educador(a) comprometido(a), mobilizador(a), reflexivo(a), facilitador(a) e mediador(a) acerca da educação de criança, infância e das culturas infantis. A criança é considerada como um ser histórico, ator social e produtor de cultura que constrói e reconstrói as suas experiências e conhecimentos. A inclusão social é uma meta a ser alcançada com o objetivo de garantir o desenvolvimento humano, social, político e cultural, com vistas à construção, de fato, de uma sociedade mais justa e igualitária. 1.6 QUEM SÃO AS CRIANÇAS? A turma constituía-se de crianças bastante ativas, que vivem e tecem a sua história. Havia uma convivência intensa das relações estabelecidas que se traduziam em conversas, brigas, gestos, medos e conflitos por brinquedos, até sentar-se na cadeira já ocupada. Geralmente essas ações eram mediadas pela professora. Fui observando que a criança, ao estabelecer essas trocas, vai internalizando e experimentando no espaço escolar as relações sociais quando ela percebe que pode escolher e ser escolhida. Havia um grupo de meninas Júlia, Maria Clara, Indiomara e Patrícia que sempre se sentavam juntas e exerciam certo poder entre as outras crianças. Os meninos Brondim, Thiago, Marcelo, Felipe Massa e Roter também se agrupavam por afinidades. Outro grupo era formado pelos meninos Jelique, Albes e Gabriel. Há ainda meninas e meninos sentados juntos: Thais, Yasmin e Tiago. Existia um movimento também de se agrupar meninas e meninos. No grupo dos meninos, sempre “João Pedro” sentava junto e participava das atividades em companhia deles, não só na sala de aula como também no pátio, brincando de bola, pique-esconde, carregando os meninos numa prancha de plástico, enfim ela participava ativamente das brincadeiras propostas pelos meninos e também, caso precisasse, ela os enfrentava nas “lutinhas” para obter um brinquedo ou defender um colega. Observei que as crianças comentavam sobre o comportamento de “João Pedro”, afirmando, muitas vezes que ela parecia um homem. Um dia, a professora se aproximou de mim e perguntou: Você já notou que a “João Pedro” só fica com os meninos? Nessa fala da professora, pude notar que os processos socioculturais no interior da escola que envolvem relações de gênero que foram historicamente construídos ainda permanecem delimitando os lugares a serem ocupadas pelas meninas e meninos e que o “natural” seria a menina ficar e se sentar com as meninas, porém “João Pedro” burlava os padrões impostos pelo mundo social, assumindo ficar na companhia dos meninos. 1.7 COMO AS CRIANÇAS SE SITUAM NO ESPAÇO ESCOLAR? A escola é um lugar que se torna um espaço de possibilidade de criação de laços afetivos, que se materializam pela utilização dos seus praticantes. Assim, docentes e discentes dão vida e fazem desse lugar um espaço de vivência e convivência. Que espaços são utilizados pelas crianças, como elas circulam, como os utilizam, o que fazem sozinhas, com outras crianças e com adultos? A sala de aula, os corredores, o pátio, o refeitório, o banheiro são espaços onde as crianças constroem seus cotidianos escolares. São nesses locais que se pode perceber como estabelecem relações de gênero, de poder, suas artes de ser-fazer e os modos como se organizam e negociam dando sentido a cada espaço ocupado. No primeiro dia em que fui à sala de aula iniciar a pesquisa, observei as formas de organização do espaço, as regras estabelecidas, as relações entre as crianças e a professora. A cada dia ia me inteirando dos movimentos, das manifestações, das relações de gênero, da autonomia que ali acontecia, no exercício de aproximação e distanciamento necessário ao lugar de quem está pesquisando. Aos poucos, fui percebendo as relações entre as crianças que muitas vezes eram afetuosas e, em outros momentos, conflituosas, o que produzia um movimento intenso dentro da sala de aula, apesar da organização estabelecida pela professora nesse espaço. Observo que, em duas mesas, estão sentados meninas com meninos, porém, nas outras duas, são: uma só de meninas e a outra de só de meninos. Fico me perguntando como esse espaço é constituído. Será que as crianças se sentam livremente? Percebo que as meninas e os meninos disputam lugar. Nesse primeiro dia de observação, na sucessão dos acontecimentos, quando as crianças foram se deslocar para o jantar, observei que a fila foi formada separadamente: uma fila de meninas e outra de meninos. No entanto, a professora pediu que fosse por ordem decrescente. Foi possível perceber que essa prática é instituída na escola sem que as crianças sejam ouvidas sobre tal critério de formação em fila. Louro (1997) esclarece que a escola delimita espaços, separa e institui o que cada um pode fazer, informa o lugar dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. As crianças lidam com esses critérios de organização, quase sempre, sem questionar. No entanto, algumas crianças resistem, quando entram em conflito com colegas, por um lugar na fila (na frente, obviamente). Bujes (2002) em seus estudos, afirma que é por meio das práticas escolares que se torna fácil identificar como o poder atravessa o corpo infantil, instituindo lugares previsíveis que tentam moldar, controlar e domesticar os corpos das meninas e dos meninos. Percebi que essa prática indicava a naturalização da fila separada no cotidiano da sala. No refeitório, as crianças se sentaram juntas, meninas ao lado dos meninos. Porém, observei que há sempre uma disputa de lugar. As crianças procuram se sentar perto daquelas com quem frequentemente se sentam na sala e conversam sobre diversos assuntos. Quando acabam de lanchar, levam os copos até a bancada da cozinha e correm para formar a fila e disputar o lugar na frente. Na volta do refeitório para a sala, um menino se aproxima da professora e pergunta se a fila é dos maiores para os menores e ela responde que é de quem chegar primeiro. O menino sai correndo para ser o primeiro da fila. Observei que a professora, nesse momento, não delimita a forma da fila, porém a fila permanece separada: meninas de um lado e meninos do outro. Louro (1998) afirma que o poder disciplinar se constitui por meio das práticas instituídas no cotidiano do universo escolar. Vou percebendo que a fila separada já se tornou naturalizada nos diversos momentos da rotina da escola: sair para o lanche, para o jantar, para aula de Educação Física etc. Continuando a minha pesquisa em campo, ao chegar na sala do Pré, percebi que a organização da sala estava diferente. Algumas crianças estavam em outras companhias. A professora separou “João Pedro” dos meninos e colocou Indiomara com meninos. O grupo mudou bastante em relação aos agrupamentos das crianças. A professora se aproxima e comenta comigo que resolveu mudar alguns grupinhos. A professora, nesse momento, deixa claro que é ela que organiza o espaço. Ela pode “usurpar” o direito da criança em escolher o seu lugar e, mediante a lógica da escola, delimita os espaços e separa as meninas e meninos (LOURO,1997). O que dá para perceber, na atitude da professora, é que a tolerância e o reconhecimento dos lugares a serem ocupados pelas crianças no cotidiano escolar dependem das transgressões e das inventividades que são criadas nas suas relações com seus pares. 1.8 O COTIDIANO DAS CRIANÇAS A entrada na sala acontecia às 13h. A professora esperava, na porta da sala, as crianças e seus familiares. As crianças entravam na sala e colocavam as mochilas penduradas e iam sentar-se nas mesas, geralmente agrupando-se com as(os) colegas com quem mais se identificavam e ficavam conversando. Após o término da entrada, a professora chamava as crianças para se sentarem na rodinha. Aí acontecia uma oração, uma história era lida e também ocorriam conversas variadas. Tal rotina é justificada em função de que era preciso esperar a hora de as crianças receberem o primeiro lanche, por volta das 13h30min. Geralmente, era servido um achocolatado, bolo, suco, biscoito e frutas. Observei que a professora na entrada, frequentemente, conta história, canta e conversa com as crianças sentadas na rodinha. Após esse momento, ela solicita que as crianças se sentem. Há um grupo de meninas que estão sempre juntas: Júlia, Patrícia, Maria Clara e Indiomara. Os meninos também se agrupam: Marcelo, Brondim, Thiago, Felipe Massa e “João Pedro”. É importante ressaltar que “João Pedro” não era rejeitada no grupo dos meninos. Mas, também, observei que ela não era escolhida pelas meninas para participar de brincadeiras tidas como de “menina”(desfilar, brincar de panelinha e dançar). Percebi que “João Pedro” algumas vezes se sentava na companhia de meninas que também eram rejeitadas em algumas brincadeiras, por serem negras e mestiças. Quando indaguei por que não chamavam as outras meninas para sentarem juntas, uma menina respondeu: Elas não conversam, são caladas; em uma atitude que revela claramente o preconceito e discriminação. Observo que os subgrupos são formados por afinidade e, muitas vezes, são subgrupos bastante fechados, só de meninas e só de meninos. Essas composições feitas pelas crianças revelam que o olhar da professora em relação a esses arranjos é de absoluta neutralidade, normalmente sem nenhuma interferência, talvez por não perceber o conflito que ali se delineava. Pesquisar, a partir do cotidiano, contribui para que as interações vividas nesse espaço sejam compreendidas. Elas vão se ampliando a partir da metodologia utilizada nas imprevisibilidades que acontecem no dia a dia da educação infantil. A sala (Foto 2) é composta por cinco mesas hexagonais coloridas, estantes em que são guardados os brinquedos (bonecas, jogos de encaixe, panelinhas, livros etc.) um armário para a professora guardar seus pertences e o material didático que é usado com as crianças (as atividades, lápis de cor, chamex, tesoura, cola, etc). Foto 2 - A sala de aula As crianças são curiosas e atentas a tudo que acontece no interior da sala de aula. Nos primeiros dias, fiquei observando sentada em um canto e percebia que elas tinham curiosidade em saber o que eu estava fazendo ali. De vez em quando, olhavam em minha direção, quando, finalmente, algumas crianças se aproximavam e perguntaram: “Você está estudando ou escrevendo sobre a gente?” (MARCELO); “Você está escrevendo meu nome?” (FELIPE MASSA); “Você está escrevendo sobre a gente? O que você escreveu? (JÚLIA) Algumas crianças ficavam curiosas para saber o que eu escrevia no diário de campo. Demonstravam interesses semelhantes em relação ao que eu estava registrando. Explico que são algumas observações do movimento da sala. Duas meninas, Júlia e Maria Clara, se aproximam e pedem meu telefone. Fui percebendo que, aos poucos, eu ia me inteirando do espaço a ser pesquisado por meio do diálogo estabelecido com as crianças e observando os diferentes fenômenos sociais e culturais que ali aconteciam. 2 O QUE É GÊNERO? A questão de gênero, hoje, é um tema de debate extremamente relevante, pois, quando falamos de gênero, estamos considerando a dimensão sócio-histórica e cultural da relação da mulher e do homem nas manifestações de poder entre eles. Os estudos de Saffioti (2007) indicam que o primeiro teórico a falar sobre o conceito de gênero foi Robert Stoller, em 1968. Entretanto, o conceito de Stoller não teve o devido reconhecimento na época. Quem trouxe uma nova reflexão a respeito de gênero foi Gayle Robert, em1975, com o artigo “Mulher” que apontava uma nova perspectiva nos estudos sobre gênero. Saffioti (2007) traz uma importante contribuição, quando explicita que, embora não tenha elaborado o conceito de gênero, Simone de Beauvoir, em sua famosa frase: “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”, negando o essencialismo biológico, traz os fundamentos do conceito de gênero. Segundo Saffiotti, a escritora francesa foi a precursora do conceito de gênero. Nesse sentido, o conceito de gênero emergiu a partir de movimentos sociais feministas – que objetivavam refletir sobre a complexidade dos processos de interação do sujeito com a organização social, da relação entre os sexos, em um determinado contexto sócio-histórico e sobre seus efeitos influenciam nas relações sociais e institucionais. No Brasil, no final dos anos 1980, um artigo de Joan Scott propõe uma mudança de reflexão entre as formas de interação humana que se processam no âmbito da cultura. A feminista inglesa Joan Scott em 1980, conceituou gênero como categoria de análise, numa tentativa de se livrar do determinismo biológico presente nos termos sexo e diferença sexual, que determinavam como categorias fixas, a fêmea e o macho, introduzindo uma ênfase no contexto sócio-histórico que influencia nas relações sociais. Sobre essa questão, Scott (1995, p. 86) afirma: O gênero pode ser compreendido como um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e como um primeiro modo de dar significado às relações de poder ou ainda gênero é um campo primário no interior do qual ou por meio do qual o poder é articulado. O conceito de gênero, na visão de Scott (1995), provoca-nos pensar na desigualdade política e social entre mulheres e homens, como uma construção cultural que vem sendo elaborada ao longo dos séculos, como uma máquina de produzir desigualdade dos papéis masculinos e femininos. Como o gênero é uma construção social e cultural, é possível desconstruir essas diferenças e desigualdades produzidas nas diferentes sociedades. A mulher, em sua caminhada histórica, é inegavelmente vítima de opressão e da desigualdade social. A exclusão que atinge a mulher se dá pelas vias do trabalho, da classe, da cultura, da etnia, da idade, da raça e do gênero. Nesse sentido, Konder (1986, p. 9) evidencia: [...] os preconceitos contra as mulheres vêm de longe; e circulam nos mais diversos níveis da ideologia dominante. Estão confortavelmente instalados nos provérbios populares, na moral tradicional, em antigos costumes, na letra dos sambas; mas também passeiam com desenvoltura pelas obras dos filósofos e dos grandes escritores. Em contrapartida, o movimento de mulheres, e particularmente o feminismo, iniciou-se questionando a desigualdade e discriminação de gênero, invisível pela própria história da humanidade. Silva (2007, p. 91) esclarece: “O feminismo vinha mostrando, com força cada vez maior, que as linhas de poder da sociedade estão estruturadas não apenas no capitalismo, mas também pelo patriarcado”. Assim, o movimento feminista ajudou a revelar como se processaram as desigualdades historicamente construídas, dividindo homens e mulheres. 9 Logo, gênero deve ser entendido como um conjunto de características históricas, sociais e culturais que diferenciam mulheres e homens, determinadas pelas relações humanas, considerando como essas relações são interpretadas e representadas socialmente. Conceito este que evidenciou a opressão vivida pelas mulheres e levou as feministas a tentarem explicar as diferenças culturais e sociais entre mulheres e homens. Assim explica Alvarez (apud CAMACHO, 1997, p. 14): Gênero tem sido o conceito mais utilizado para analisar as relações entre a 9 No Brasil o movimento feminista inicia-se com a luta pelo voto feminino como o primeiro passo a ser alcançado. Nesse sentido, as mulheres brasileiras ao reivindicarem o direito ao voto, a igualdade de salário, a proteção contra os abusos no ambiente de trabalho, contribuíram enormemente para as discussões das questões sociais das questões da mulher em frente à opressão e desigualdades vividas por elas ao longo da história. Os anos 60, 70 e 80 foram uma época muita rica no desenvolvimento do movimento feminista e da sociedade civil. Os movimentos sociais se organizaram, os sindicatos se fortaleceram e as aspirações por uma sociedade mais justa e igualitária ganharam forma na reivindicação de direitos, deixando suas marcas no cenário político nacional. É pelo ingresso da mulher no mercado de trabalho e do movimento feminista que surgem as primeiras vozes em relação ao direito de que seus filhos sejam amparados pelo Poder Público, em relação ao direito à creche e pré-escolas. subordinação das mulheres e as transformações sociais e políticas. Gênero denota o significado político, social e histórico, referido a um determinado sexo. Alguém nasce macho ou fêmea; alguém é 'feito' homem ou mulher. E o processo de 'fazer' homem ou mulher é histórica e culturalmente variável, podendo, portanto, ser potencialmente alterado através da luta política e das políticas públicas. Entretanto, a maneira como interesses de gênero são definidos e articulados no interior das instituições políticas dá pistas para o entendimento das relações entre 'mulher' e 'política'. O estudo de gênero implica, necessariamente, a importância de se examinar o lugar ocupado pelas mulheres e pelos homens, pelas meninas e pelos meninos, em diferentes campos teóricos, pois a sociedade trata desigualmente esses sujeitos, atribuindo e constituindo processos de hierarquização conforme as posições que ocupem ou ousem ocupar, que são interpretadas segundo as construções de gênero que diversas sociedades vão determinando e que vão se tornando “naturais” nos discursos da família, da escola, da mídia e das demais instituições que elegem e atribuem significados, símbolos e diferenças entre a mulher (feminilidade) e o homem (masculinidade). Segundo Louro (1997), a partir do conceito de gênero, com o seu caráter relacional, é relevante que se pense de forma plural em relação à mulher e ao homem e que as concepções de gênero diferem no interior de uma dada sociedade, quando se levam em conta os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem e que vão sendo estabelecidos nas relações sociais. Portanto, significa dizer que gênero é aquilo que é socialmente construído ao longo da história humana. Nos últimos anos, pesquisas vêm sendo elaboradas e tem nos ajudado a compreender a construção de gênero na infância, como os trabalhos de Felipe (2000, 2004), Meyer (2004), Camargo (1999), Sabat (2004), Costa (2004), Finco (2003), Sayão (2003), Aud (2003) e Louro (1999). 2.1 AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA Super-homem (a canção) Um dia, vivi a ilusão De que ser homem bastaria, Que o mundo masculino Tudo me daria, Do que eu quisesse ser, Que nada, minha porção mulher, Que até então se resguardara, È a porção melhor Que trago em mim agora, É a que me faz viver [...] (GILBERTO GIL) As palavras de Gil provocam-me a pensar nos discursos construídos em relação ao homem e à mulher e que me trazem a possibilidade de discutir a (des)construção de algo que, por muito tempo, foi produzido e que pode ser pensado com outro olhar em relação à desigualdade e discriminação entre mulheres e homens. Que discursos foram esses que persistem e ainda são utilizados nos diversos espaços sociais ocupados, como escola, família, igreja, mídia etc.? A escola é um local onde as relações de gênero estão presentes inevitavelmente e que as relações de poder perpassam o seu cotidiano. Gênero deve ser entendido como um conjunto de características históricas, sociais e culturais, determinadas pelas relações humanas, que diferenciam homens e mulheres e que denotam relação de hierarquização e dominação de um sobre o outro. Os estudos de Beauvoir (1949), Stoller (1968), Scott (1975), Louro (1997), Felipe (2000, 2002), Finco (2007), Saffioti (2007), Sayão (2003) e Viana (2008) têm contribuindo para aprofundar a necessidade de desfazer a superioridade masculina sobre a feminina, destacando a importância da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Desse modo, os espaços ocupados pelas meninas e meninos na educação infantil, sem dúvida, deveriam garantir a importância de igualdade e oportunidade para elas e para eles. Segundo Viana (2008, p. 14), A urgência de se trabalhar as representações culturais que circulam na escola tem a ver com o reconhecimento de sua responsabilidade pela produção e reprodução de referências e conhecimentos que reiteram discursos que justificam as desigualdades, seja por meio do preconceito ou do silêncio. Assim, para pesquisar a relação de gênero, é necessário um olhar crítico em relação às desigualdades, aos arranjos sociais, aos símbolos culturalmente disponíveis sobre o processo de socialização das crianças e suas subjetividades. Faria (2006) enfatiza que a superação da desigualdade com certeza passa pela educação desde a primeiríssima infância, em espaços coletivos na esfera pública, convivendo com as diferenças. Destarte, as pesquisas na educação infantil têm a responsabilidade de tornar visível o lugar da infância na construção da realidade social. 10 Dubet (2008) destaca a importância das interações face a face e dos vínculos afetivos estabelecidos com os alunos, a maneira como as(os) professoras(es) percebem as crianças, observando do que elas gostam, o que elas desejam, enfim, ouvindo as demandas que estão presentes no cotidiano. A importância de se estabelecer discussões e estudos acerca dos conceitos de gênero, corpo e sexualidade na formação docente torna-se relevante para que as relações estabelecidas no âmbito escolar proporcionem às crianças atividades e experiências interativas que desconstruam posturas, estereótipos, preconceitos, discriminações por sexo e gênero, proporcionando-lhes, assim, a oportunidade de conquistar muitos espaços sociais que ainda hoje lhes são negados. Para Dubet (2008, p. 14), é importante refletir sobre o modelo educativo escolar, sobre o lugar que ele atribui às alunas e aos alunos explicitando: “Devemos, portanto, buscar ao mesmo tempo a igualdade das oportunidades na escola e desconfiar de suas conseqüências, pois ela, por sua vez, pode desenvolver grandes desigualdades sociais”. A escola, entre outros espaços (família, religião, mídia, cinema, livros etc.), contém elementos de reprodução e legitimação de estruturas impostas por forças ideológicas que vão se constituindo por meio das relações sociais e das influências culturais que atravessam o dia a dia escolar. 10 A pesquisa publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio TeixeiraINEP (2001) explicita a presença dominante de mulheres na educação infantil, em torno de 98,1%. Essa questão merece atenção por tratar-se de um lugar social que lida com a construção, desconstrução, discriminação, desigualdade e do preconceito. É, portanto, de vital importância o entendimento do conceito de gênero por parte das mulheres que trabalham na pré-escola. A escola, as(os) professoras(es) não podem ser meros transmissores de informação e sim produtores de culturas que promovam um olhar crítico aos discursos dominantes, em relação às desigualdades sociais. Torna-se relevante, no contexto escolar, desconstruir essa hierarquia de valores identificada com o masculino que, muitas vezes, desvaloriza as funções e capacidades femininas, concordando com Alvarenga (2007, p. 44), quando afirma que [...] a reflexão sobre as relações de gênero na escola requer, sobretudo, uma análise de como a educação escolar pode constituir-se em um instrumento de legitimação ou contestação da discriminação de gênero. À medida que a escola se abre para discutir e debater as questões relativas à discriminação da mulher e se coloca em posição de resistência a qualquer forma de opressão, estará não apenas contribuindo para a formação emancipadora das pessoas envolvidas nesses processos, mas também ajudando a soltar antigas amarras estruturais e/ou sociais que mantêm a opressão sexista. Para o entendimento da complexidade do mundo das relações sociais e da infância, é relevante que a escola parta da ideia da infância como uma construção cultural e, nessa perspectiva, a infância deve se reconhecida em sua heterogeneidade, buscando superar a visão homogênea de infância. A infância hoje é vivida pelas crianças na diversidade dos grupos sociais em seus diversos meios: é a criança amparada que tem os seus direitos assegurados, porém a criança que vive nas ruas com sofrimento e desprezo pelos órgãos públicos e sua família, mesmo nessa condição adversa essa criança não deixa de viver sua infância, sonhando, brincando e desejando. Nesse sentido, ela não está deixando de ser criança e sim procurando novas formas de viver sua infância com todas as distinções de pertencer a diferentes classes sociais, diferentes espaços geográficos, com culturas distintas que originam um jeito de ser menina e ser menino. Segundo Sarmento (2007, p. 38) “[...] as crianças são o grupo geracional mais afectado pela pobreza pelas desigualdades sociais e pelas carências das políticas públicas”. Durante a pesquisa em campo, percebi que, muitas vezes, as crianças, resistem a essa ordem social estabelecida recriando situações de sobrevivência a esse mundo desigual e excludente, com brincadeiras que (re)significam as informações do mundo adulto e, junto aos seus pares, produzem culturas que vão imprimindo marcas em suas infâncias. O que pretendo destacar nessa afirmação é que as investigações e pesquisas que tomam as crianças como foco principal de análise deveriam, de fato, ter o objetivo de (re)conhecê-las, oferecendo possibilidades para que elas possam ocupar esses espaços sociais que lhes são negados. Segundo Finco (2007, p. 91), há, ainda, uma carência de pesquisas que relacionem gênero e infância no que se refere à faixa etária de zero a seis anos, o que se traduz na dificuldade de bibliografia em relação ao tema. De acordo com a autora, as relações de gênero estabelecidas pelas crianças, na mais tenra idade, vêm sendo pouco exploradas nas pesquisas educacionais. 11 Felipe (2000) também nos alerta para a escassez de estudos que tentam dar conta da construção de identidades de gênero e identidades sexuais na infância. Por essas razões, discutir algumas práticas históricas, no âmbito da educação infantil, trará uma interlocução com diversos campos de estudos, que alargará a visão da categoria gênero em relação ao ser menina e ao ser menino na sua dimensão cultural e social na instituição escolar. Partindo dessa perspectiva, busquei observar o que as crianças expressam e fazem quando estão entre elas num ambiente coletivo, que pode ser constituído por meninas com meninas ou meninos com meninos. Na afirmação de Costa (apud SAYÃO, 2003, p. 82): Enfatizar o caráter relacional do gênero é dizer que os estudos sobre sujeitos concretos (homens e mulheres/homens ou mulheres) devem considerar as percepções sobre masculino e feminino como dependentes, ao mesmo tempo que constitutivas das relações sociais. É dizer também que gênero possibilita estudar as categorizações cujos referentes falam de distinção sexual, mesmo onde os sujeitos não estão presentes. O papel da educação é desestabilizar representações hegemônicas e compreender como significativas transformações vêm acontecendo em relação aos conceitos de gênero e ao lugar da criança no contexto sócio-histórico e cultural. Assim, investiguei, na pesquisa em campo, as manifestações corporais das crianças, 11 Conferir trabalhos: Arlete Costa. Cenas de meninas e meninos no cotidiano institucional da educação infantil: um estudo sobre as relações de gênero. UFSC. Carlos Castilho Wolff. Como é ser menino e menina na escola: um estudo de caso sobre as relações de gênero no espaço. UFSC, 2006. Márcia Buss Simão. Infância, corpo e educação na produção científica brasileira (19972003). UFSC, 2007. Deborah Thomé Sayão. Pequenos homens, pequenas mulheres? Algumas questões para pensar as relações entre gênero e infância. UFSC, 2003. Daniela Finco. Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação infantil. UNICAMP, 2003. Márcia Gobbi. Lápis vermelho é de mulherzinha: desenho infantil, relações de gênero e educação infantil.UNICAMP, 1997. bem como as relações de gênero no espaço e tempo escolar, observando quais são os possíveis reflexos dessa experiência nas suas relações cotidianas. É relevante compreender como as crianças incorporam, produzem e reproduzem, em suas relações, modos de ser menina e ser menino que trazem consequências para a sua convivência com o grupo. Utilizando o conceito de gênero (SCOOT, 1980) como um elemento constitutivo das relações entre os sexos e também como uma forma primária de dar significado às relações de poder, ao iniciar a pesquisa em campo, fiquei me perguntando: quais são as relações de poder exercidas nesses espaços de convivência no cotidiano da educação infantil? Qual tem sido o papel dos adultos acerca dessas questões no cotidiano escolar? Será que as(os) professoras(es) continuam reproduzindo modos de ser e de se comportar de maneira diferenciada e desigual para meninas e meninos? Embora essas questões me instiguem e provoquem, não darei conta de responder a elas e aprofundá-las nesse estudo, mas, em contrapartida, analisarei algumas situações observadas. Para aprofundar as discussões das questões de gênero e poder, destaquei minha escolha pelos conceitos foucaltianos, com a intenção de analisar as diversas práticas e discursos sobre a sexualidade, corpo, gênero e poder, que emergiam no/do cotidiano das crianças. A escola tem sido, ao longo da sua existência, o lugar das diferenças culturais e sociais onde são (re)produzidas diferentes linguagens carregadas de símbolos e práticas, que sinalizam e inculcam valores, regras e ideologias. Minha intenção foi analisar os elementos culturais que influenciam as experiências das crianças no jeito de ser menina e menino no espaço escolar, focando o olhar em relação às crianças como seres ativos e atores na construção de suas identidades e subjetividades. Nesse contexto, alerta-nos Louro (1999, p. 27), que “[...] as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento [...]. As identidades estão sempre se constituído, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação”. Durante a pesquisa, analisei, ainda, como as crianças exploram o ambiente, como se relacionam com seus pares, com os objetos, inventando papéis sociais nas representações de gênero e (re)significações das práticas no/do cotidiano, por meio das trocas estabelecidas nas interações, constituindo-se sujeitos e autores das suas experiências e culturas infantis e, assim, produzindo, criando e modificando os conhecimentos do mundo adulto, que vão transformando as normas, regras e valores instituídos e preconizados no jeito de ser menina e ser menino na rotina e organização escolar. No processo de pesquisa extrai observações e entrevistas que explicitaram mediações que me permitiram compreender essas especificidades das culturas infantis. A criança não apenas absorve a cultura do seu grupo, mas, também, (re)significa, recria e a transforma. É nessa relação de troca com o outro, que ela atribui significados e estabelece a capacidade de conhecer e apreender por meio da sua interação na escola e na família. A cultura escolar, muitas vezes, tem a pretensão de direcionar o seu olhar como se todas(os) fossem iguais, sem considerar que aquela criança que aprende, pergunta e instiga é menina ou menino. A criança precisa vivenciar, nos espaços por ela ocupados, experiências culturais enriquecedoras que provoquem nela o desejo de ousar, de ser criativa, habilidosa e ativa, pois é nesse processo dinâmico que ela vai desenvolver a sua capacidade afetiva, autoestima, raciocínio e linguagem. Nesse sentido, Sarmento (2002, p. 4) afirma: “A linguagem constitui a base da especificidade das culturas infantis”. O universo infantil é socialmente construído tanto pelas crianças como pelos adultos. Outro fator preponderante na constituição das culturas infantis é a mídia televisiva. Por meio dela, as crianças compartilham os mesmos desejos, a forma de se vestir, os brinquedos, enfim, uma série de artefatos culturais promovidos e exibidos diariamente pela televisão, que propaga os valores de uma sociedade de consumo que tem a mercadoria como um elemento central. As crianças não estão neutras nesse processo de globalização, pois a indústria tem produzido maciçamente para o universo infantil, explorando a fantasia e o desejo das crianças. Araújo (1996, p. 77) afirma: “O marketing publicitário cria modelos de uma criança feliz, bonita e inteligente utilizando roupas, brinquedos e objetos como referencial de uma vida plena de felicidades e realizações”. Desse modo, a mídia difunde costumes e formas de vida de diversos grupos sociais e cria novas necessidades que sem dúvida darão sustentação à produção mercadológica que propaga a ideologia da sociedade de consumo. Dufour (2005, p. 123) traz uma grande contribuição em relação à exposição das crianças à mídia televisiva quando comenta: A mais preciosa transmissão geracional do ser humano é o discurso e essa exposição maciça a imagem televisiva pode causar efeitos irreversíveis [...] o tempo a mais para televisão é tempo a menos para a família [...] a televisão efetivamente roubou o lugar educador, dos pais em relação aos filhos [...]. As propagandas sedutoras, novelas e filmes têm estimulado nas crianças o desejo de cada vez mais cedo experimentar alguns papéis tidos como hegemônicos no mundo adulto. A escola e a família também definem e prescrevem valores que influenciam no jeito de ser menina e ser menino desde a mais tenra idade, quando colocam à disposição livros, brinquedos e brincadeiras diferentes para as meninas e meninos, esperando atitudes diferenciadas das crianças, no jeito de ser menina e menino. E as crianças devem aceitar esses rótulos que a sociedade, ao longo da história, vem procurando moldar: as suas escolhas nas roupas, brinquedos, nas tarefas escolares e no seu jeito de ser menina e ser menino. 2.2 CAMINHOS PARA PENSAR AS QUESTÕES DE GÊNERO 2.2.1 Por que menino não pode chorar? “Não chore, você é macho” (PROFESSORA). Em nossa sociedade, o comportamento do menino é marcado pela coragem e valentia. Observei, em uma situação na sala de aula, que dois meninos se aproximam do armário da professora para colocar os lápis de cor. A porta bate na cabeça de um dos meninos e ele começa a chorar. Então a professora se aproxima e diz: “Não chore, você é macho. Sua mãe em casa cruza a faca e não vai inchar!”. Na fala da professora, fica evidenciado como a masculinidade do menino vai sendo constituída por meio de práticas educativas “generificadas”. Ao homem não é dado o direito de chorar, pois socialmente é esperado que o menino tenha um comportamento corajoso, viril, ágil, diferente da menina que chora, que é tida como emocionalmente frágil e dengosa. Na pesquisa, observei que há comportamento tido como “natural” para as meninas e que é condenável para os meninos nomeadamente “machos”, que em nada podem se parecer com o mundo das meninas. Para exemplificar como essas aprendizagens vão se solidificando no cotidiano escolar, trago a afirmação de Louro (1997, p. 67) que analisa como a escola vai “fabricando” o lugar da menina e do menino: “O que fica evidente, sem dúvida, é que a escola é atravessada pelos gêneros; é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino”. É por meio das regras instituídas que a menina e o menino vão aprendendo os sentidos e as diferenças em relação à expectativa esperada à sua feminilidade e masculinidade, ou seja, vão identificando o que é culturalmente apropriado para o comportamento feminino e masculino. A escola reproduz as concepções de gênero que circulam na sociedade (LOURO, 1997). Assim, as crianças vão se apropriando de tais discursos e vão internalizando condutas em relação a determinadas brincadeiras, que são distintamente evidenciadas para a menina e para o menino. No entanto, pude perceber, durante a pesquisa, que as crianças tentam romper e (re)significar comportamentos naturalizados como femininos e masculinos. 2.2.2 Só para provocar... O menino grita bem alto: “Quem vai querer lápis rosa?” (BRONDIM). Brondim grita bem alto: “Quem vai querer lápis rosa?”. As meninas respondem no sonoro: EU!!!. É importante observar que as preferências por cores, modos de vestir, brinquedos vão reproduzindo determinados comportamentos que são diferenciados para as meninas e meninos. Nesses pequenos gestos no cotidiano da educação infantil, percebe-se a diferença, em relação às escolhas das cores e desejos, que justificam o lugar da menina e o do menino, as crianças aprendem desde cedo a reconhecer como a cor rosa é destinada ao universo feminino. Concordo com Finco, (2007, p. 100), quando afirma ser “[...] possível perceber como os brinquedos são dispositivos que participam da construção de identidades infantis, produzindo e reproduzindo determinados comportamentos que demarcam uma fronteira entre os sexos”. É relevante perceber que há uma construção cultural em relação à cultura escolar que procura constantemente instituir e normatizar os comportamentos da menina e do menino. E as crianças aprendem a corresponder às expectativas quanto às características mais aceitas para o feminino e o masculino. Logo a seguir, a professora solicita que as crianças guardem o material, pois chegou a hora do recreio. Ela pede que alguns meninos peguem a caixa com os pinos para levar ao pátio. Fica evidente que, na atitude da professora, os meninos são mais fortes do que as meninas, ou seja, ela institui o lugar de os meninos usarem a força para levar a caixa de brinquedos para o recreio. Observo que as meninas aceitam naturalmente que os meninos carreguem as caixas com os pinos e correm para a fila. Porém, percebo que “João Pedro” ajuda os meninos nessa tarefa. A professora interfere diante da disposição da aluna em ajudar os meninos, dizendo-lhe que havia pedido aos meninos. Ao chegar ao pátio, as meninas e os meninos disputam quem pega mais peças, inclusive escolhendo por cor. Tiago fala alto: ”Professora, as meninas estão pegando mais peças do que nós”. Fica evidente, na fala de Tiago, que as meninas disputaram o brinquedo e levaram vantagem e ele tem dificuldade em aceitar que as meninas tenham vantagem, já que, nas práticas culturais, os homens sempre são tidos como mais fortes e isso implica sempre levar vantagem! Daólio (apud FINCO, 2007, p.113) exemplifica as vivências no âmbito familiar em que, desde a mais tenra idade, fica evidenciado o lugar da menina e do menino: Sobre um menino, mesmo antes de nascer, já recai toda uma expectativa de segurança e altivez de um macho que vai dar seqüência à linhagem. Na porta do quarto da maternidade, os pais penduram uma chuteirinha e uma camisa da equipe de futebol para a qual torcem. Pouco tempo depois, dão-lhe uma bola e estimulam-no aos primeiros chutes. Um pouco mais tarde, esse menino começa a brincar na rua (futebol, pipa, subir em árvores, carrinho de rolimã, skate, bolinha de gude, bicicleta, taco etc.), porque, segundo as mães, se ficar em casa vai atrapalhar (p.102). Em torno de uma menina, quando nasce, paira toda uma névoa de delicadeza e cuidados. Basta observar as formas diferenciadas de se carregar meninos e meninas, e as maneiras de os pais vestirem uns e outros. As meninas ganham de presentes, em vez de bola, bonecas e utensílios de casa em miniatura. Além disso, são estimuladas, o tempo todo, agir com delicadeza e bons modos, a não se sujar, não suar. Portanto, devem ficar em casa, a fim de ser preservadas das brincadeiras “de menino” e ajudar as mães nos trabalhos domésticos, que lhes serão úteis futuramente quando se tornarem esposas e mães (p.103). Foto 3 – A disputa pelos brinquedos Percebe-se que existe desde cedo uma expectativa quanto ao desempenho do menino forte, competitivo e da menina meiga e dócil. Na família, os adultos educam as crianças demarcando as diferenças dos universos femininos e masculinos. A célebre frase da eminente filósofa Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher” evidencia a cultura ocidental hegemônica que diferencia e define os lugares das mulheres e dos homens nas relações sociais e culturais. Dessa forma, podemos afirmar que as relações de gênero, como as demais relações sociais, são permeadas por relações de poder, o poder no sentido foucaultiano, que envolve todas as relações sociais, que resiste, incita, provoca e negocia. Por meio das observações em campo, foi possível verificar que se cria uma divisão nas brincadeiras das crianças, quando a professora comenta: “Hoje eles estão como gostam”, referindo-se aos meninos jogando futebol. Nesse comentário, percebe-se que a bola e o futebol é uma brincadeira destinada aos meninos. A escola vai atribuindo ao corpo e ao gênero modos de ser menina e menino com brincadeiras diferenciadas, e as crianças, muitas vezes, acabam internalizando essas práticas que sobressaem no cotidiano escolar que se configuram de um determinado modo e não de outro. Refletir sobre os sentidos atribuídos às práticas corporais no recreio leva a entender como, na instituição escolar, se espera que determinados comportamentos específicos de meninas e meninos, que são construídos ao longo do processo sócio-histórico se tornem “naturais”. Na família também se estabelece divisão nas brincadeiras que a criança vai absorvendo. Essas regras sociais que lhe são transmitidas as crianças e que elas vão tentando resistir como uma forma de dizer o que querem fazer e experimentar. A seguir, algumas falas das crianças que exemplificam bem essa divisão nas brincadeiras das meninas e meninos: Na minha rua tem uma menina que joga futebol com homem. A mãe dela não deixa, a mãe dela fica trabalhando e ela jogando, ela fica jogando, aí a mãe dela vê ela jogando com os meninos, aí a mãe dela bate nela (YASMIN). O menino gosta muito de jogar bola, a menina não gosta. Os meninos batem muito nas meninas as meninas não gostam, aí a gente num, num também não gosta que bate só na gente não! Aí eles batem muito nas garotas, eles jogam futebol e a gente não gosta (INDIOMARA). A importância dessas afirmações na fala de Yasmin e Indiomara é que encontramos uma correspondência com as falas de muitos adultos, na mídia e na cultura escolar, afirmando que futebol é “coisa de menino” e que brincar de boneca e gostar da cor rosa é exclusivamente do universo da menina. Os discursos das crianças esclarecem que é na relação social que o gênero vai se constituindo e vai revelando como as crianças vão internalizando valores, crenças e regras do mundo sociocultural. Embora brincar de boneca seja considerada uma atividade somente das meninas, as crianças vão tentando desmistificar nas interações com seus pares alguns valores conservadores, como futebol é coisa de “menino” e boneca é coisa de “menina”. Assim, vão produzindo as culturas infantis, opinando e subvertendo os padrões sociais construídos historicamente. Entretanto, nem sempre as crianças reproduzem o que os adultos pensam. Muitas vezes, elas (re)significam o que lhes é imposto, quando expressam algumas falas como ocorreu quando, provocando, perguntei: Menino pode brincar de boneca? Júlia: Claro que pode, pode ser o pai, com certeza! Felipe: Não. Pesquisadora: Por que não pode? Felipe: Porque ele é menino... Felipe: O menino pode [falando baixinho]. O menino pode brincar só um pouquinho de boneca. Maria Clara: Os 'menino' também pode brincar, porque, um dia, estava brincando e Brondim veio brincar com a gente de boneca, a gente brinca tudo certinho, só tem vezes que eles ficam olhando. Quando foi perguntado, em relação a menina brincar de carrinho e o menino brincar de boneca, foi significativo perceber como a boneca e o carrinho são artefatos culturais que demarcam e definem o gênero no universo infantil. A mídia, a família e a escola têm uma parcela de contribuição em relação a essas construções que é determinada pela cultura, o “jeito” da menina e do menino. Segundo Sayão (2003, p. 72), [...] o gênero não é um produto acabado ao nascimento. Ele extrapola as identidades que vão sendo experimentadas/sentidas pelos sujeitos, porque as instituições sociais (o Estado, a família, a creche, a escola) também expressam relações de gênero que podem entrar em conflito ou contradição com as subjetividades. Nas falas das crianças, percebi que elas estão “tentando” mudar o olhar em relação a essas diferenças socialmente construídas. Todavia, as crianças aprendem desde cedo o que é certo e o que é errado no jeito de ser menina e ser menino e, assim, vão favorecendo a manutenção desses padrões fixos de comportamento. A escola ao invés de desmistificar essas construções sexistas, muitas vezes confirma-as no discurso cotidiano, não problematizando com as crianças a possibilidade de mudança de postura em relação às crenças e valores de uma sociedade que está mais preocupada em determinar valores e atributos sobre o ser feminino e masculino. A seguir, as falas das crianças em relação ao menino brincar de boneca: Stefanny: Não, porque ele é homem. Felipe Massa: Não...Pode. Júlia: Claro que pode, pode ser o pai com certeza! “João Pedro”: Pode. Indiomara: [balança a cabeça dizendo que não]. Porque há diferença. Menino gosta de carrinho e menina de boneca aí a boneca ela gosta muito, gosta de brincar, a gente brinca muito aqui na escola! A seguir, ela fala afirmativamente: Indiomara: Pode! Como pai, como um monte de coisa, como colega. Juliana: Que ele quiser! Só se ele quiser brincar, né? [riso]. Juliana: Ele brinca de... pai ou filho! Domingo, minha mãe comprou um boneco pra ele e uma boneca pra minha irmã que tava fazendo aniversário. Meu irmão fez no outro domingo e minha irmã no outro domingo! Aí, minha mãe comprou uma bonecona pra mim que nem da minha irmã! Aí minha mãe comprou uma boneca prá ela, uma pra mim, um boneco pra Brondim e um carrinho! Patrícia: Só menina! Porque boneca é uma coisa, foi uma coisa que foi inventada para a menina não 'pru' menino! Patrícia: [silêncio] ... Lá em casa, eu já brinquei, só que ele ERA O PAI! Patrícia: É, sempre é o pai ou o irmão! Igual ao meu primo que estuda aqui, sempre que eu vou brincar com ele, ele sempre é o pai ou irmão! Brondim: NÃO! Indiomara, Juliana e Patrícia afirmam que o menino pode brincar de boneca, porém na condição de assumir a função masculina como pai, irmão e filho. Fica evidente como esses valores são internalizados pelas crianças e fica muito difícil desconstruir o que é produzido pela cultura dominante. 2.2.3 E a menina brinca de carrinho? As falas abaixo descritas expressam que a visão que circula no universo das meninas e no dos meninos é diferenciada e que merecia ser problematizada sobre as convenções sociais em relação aos brinquedos de menina e menino que trazem consequências nas suas interações cotidianas. Felipe e Guzzo (2004, p. 32) sinalizam que: “[...] nem sempre as professoras se sentem capazes e encorajadas a desenvolver atividades relacionadas às questões de gênero com as turmas em que atuam, especialmente quando se trata de crianças pequenas”. Partindo dessa perspectiva, é relevante ressaltar que há lacunas na formação das(os) professoras(es) em relação à formação docente na discussão de conceitos de gênero, feminilidade e masculinidade, o que iria proporcionar às crianças experiências mais compartilhadas e menos divididas. Thiago: Não. Só de boneca. De boneca e de panelinha. Felipe: [fica em silêncio e depois fala] Pode um pouquinho também [Felipe sorri!] Stefanny: Não. Por que ela é moça. Felipe Massa: Pode. Júlia: PODE. “João Pedro”: Não... [silêncio] Porque é de homem. Indiomara: Não! Porque a menina brinca de boneca, de monte de... de filho, de...ballet... de um monte de coisa. Juliana: Só carrinho DE MULHER, NÉ? O 'di' mulher é ROSA, ROSA, AMARELO, VERMELHO, VERDE, AZUL, AZUL CLARO, É... COR DE ABÓBORA.... Yasmin: Não! PORQUE ELA NÃO É HOMEM! Maria Clara: Não. Patrícia: Não. Brondim: [silêncio] ... Pode! “João Pedro”, BRINCA! Analisando as narrativas, percebi que algumas crianças reproduzem os padrões fixos em relação ao brinquedo da menina e do menino, quando afirmam que a menina não pode brincar de carrinho: Thiago: “Não. Só de boneca”. Em sua fala, além de negar o espaço para a menina na brincadeira, ele é enfático em afirmar que elas só brincam: de boneca e de panelinha. Thais também diz: “Não, porque ela é moça”. “João Pedro” nega e confirma: “Não, porque é de homem”. É importante perceber, na fala de “João Pedro”, como a cultura socialmente construída adentra à vida das crianças e reforça determinadas brincadeiras para o sexo feminino e masculino. “João Pedro” só brinca com os meninos e, no entanto, reproduz em sua fala as expectativas dos adultos em relação a escolha do brinquedos tidos como femininos e masculinos. Yasmin também expõe sua opinião dizendo: “Não! Porque ela não é homem!” (em tom afirmativo e alto). É interessante a interpretação de Finco (2007, p. 114), quando ela enfatiza: É necessário ressaltar aqui que as preferências não são meras características oriundas da biologia do corpo, são construções sociais e históricas. Os brinquedos que são oferecidos para as crianças estão carregados de expectativas, de simbologias e de intenções. Foto 4 – Momentos de brincadeiras Ao analisar as falas das crianças, observei que elas vão tentando buscar formas de negociação para os padrões preestabelecidos. Nas brincadeiras, elas vão fazendo escolhas que nem sempre estão de acordo com os comportamentos que são esperados para a menina e para o menino, como mostram as respostas a seguir, em relação à menina brincar de carrinho: Felipe Massa: Pode. Afirmando que a menina pode brincar de carrinho. Júlia: PODE. Juliana: Só carrinho DE MULHER, NÉ? O 'di' mulher é ROSA, ROSA, AMARELO, VERMELHO, VERDE, AZUL, AZUL CLARO, É... COR DE ABÓBORA... Ela diz que pode, mas só se o carrinho for de mulher e ainda justifica com as cores tidas como de 'mulher'. Brondim: [silêncio] ...Pode! “JOÃO PEDRO”, BRINCA! Justificando: se “João Pedro” brinca, as meninas também deveriam brincar. No decorrer da pesquisa, fui percebendo os interesses das crianças, como elas vão estabelecendo processos de significações para além daquilo que é vivido no universo escolar e vão construindo sua subjetividade em relação ao que é ser menina e ser menino. Desse modo, é possível afirmar que as crianças, por meio de diferentes artefatos culturais, vão se apropriando dos significados atribuídos à menina e ao menino nas relações sociais. Então, pelas suas brincadeiras de faz de conta, ela vai representando alguns papéis do mundo adulto, numa perspectiva diferenciada do olhar “adultocêntrico”, ora rompendo, ora reproduzindo regras e modelos impostos pela família, escola, mídia etc. É interessante a interpretação de Louro (1997, p. 28), quando se posiciona da seguinte forma: Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos e femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e estar no mundo. Assim, a criança vai se apropriando desses discursos e vai inventando diferentes jeitos de ser menina e ser menino nas relações estabelecidas com seus pares nas brincadeiras e descobertas. Observando uma situação vivenciada por duas meninas no pátio, percebo como as práticas culturais e sociais destinadas ao universo feminino aparecem no cotidiano escolar: duas meninas passeiam no pátio com a mochila nas costas e brincam com uma boneca parecida com a Barbie. Brincam de mãe e filha e comentam: Júlia: 'Mamãe, me dá polenta'. Maria Clara: 'Vai vestir roupa e vai pentear o cabelo'. Aproximo-me e pergunto o que é que a mãe faz? Júlia: Bota pra dormir, faz mamadeira, dá janta e leva pra escola. Os artefatos culturais aparecem no pátio onde as meninas (re)significam o jeito de ser menina brincando de mãe, filha e mulher. As meninas reproduzem de forma evidente a divisão de papéis imposta pela sociedade: é a mulher que educa, cuida dos filhos. Na escola, esse comportamento é reforçado pelo tipo de brinquedos e brincadeiras que são oferecidos às meninas e meninos. Nas entrevistas, observei que as crianças reproduzem, em alguns momentos, essa divisão de papéis, mas, também, reelaboram e recriam outras formas de viver a relação de gênero no contexto escolar, brincando de futebol, de pega-pega, garrafa envenenada entre outros. Durante a pesquisa, registrei algumas falas e ações das crianças que demonstram como algumas regras culturais são partilhadas socialmente e evidenciam como as crianças vão descobrindo as diferenças impostas pela sociedade, pela mídia, na forma de vestir, de pensar e estar no mundo: Marcelo chega bem perto de Gabriel e diz que o uniforme dele é de mulher, pois não tem manga, e chama Brondim para que ele confirme. Brondim diz que não, porém não explica o porquê. Patrícia expõe a sua opinião em relação à diferença da roupa: o menino também usa short e menina não usa, ele não usa short assim, ele usa calça, o que aqui menina não usa é cueca! Menina não usa! Brondim: A menina bota saia e o menino não bota, usa blusa de florzinha assim, bota xuxinha, bota brinco, bota cordão. Nesse registro do diário de campo, implica destacar que, no imaginário infantil, fica naturalizado o modo de vestir das meninas e dos meninos, que elas vão apreendendo nas suas experiências que são evidenciadas pelo contexto social e cultural nas relações escolares, nas relações de pares e nas relações familiares. Assim, nas falas das crianças, há uma incorporação do preconceito, da dominação do discurso dos adultos e da mídia em relação aos detalhes da roupa, o que é mais conveniente ou não para cada sexo. É relevante considerar essas expectativas tidas como “naturais” nas falas das crianças quando explicitam que blusa sem manga é só mulher que pode usar. Elas externam suas concepções nas suas interações com seus pares, por meio de um diálogo que vem carregado por modelos e padrões que elas vivenciam desde cedo. Essas normas são estabelecidas socialmente em relação à construção da sua condição de se vestir como menina e como menino. Sarmento e Pinto (1998, p. 22) afirmam: “As culturas infantis não nascem no universo simbólico exclusivo da infância, este universo não é fechado- pelo contrário, é mais do que qualquer outro, extremamente permeável - nem lhes é alheia a reflexividade global”. Nesse sentido, observei que, nesse processo de apropriação e reconhecimento da cultura do adulto, fica difícil a criança não absorver esses discursos carregados de estereótipos na forma de ser e estar no mundo. 2.2.4 A “sutil” incorporação do consumo: as mochilas das crianças Foto 5 – As mochilas das meninas As mochilas das meninas são rosa, com alguns detalhes em azul, com desenhos da Barbie, Eliane (apresentadora), Hello Kitty e gatinho (Foto 5). A dos meninos: Scoobydoo, Super-homem, Hot-Wheels (Ferrari). Ter uma mochila com motivos e figuras de Super-homem, Barbie, personagens de desenhos veiculados pela televisão, torna-se um ideal a ser perseguido pelas crianças. Obter um objeto que é divulgado pela mídia implica ter poder nas relações sociais e significa também pertencer ou ser excluído do grupo em que vivem. As propagandas são apresentadas em horários nobres na mídia televisiva, com o intuito de despertar o desejo não só dos adultos, mas, também, das crianças que geralmente estão assistindo na companhia da família. As imagens com cores brilhantes e cenários bem cuidados têm o objetivo de despertar no espectador a vontade de adquirir aquele produto como forma de pertencer a determinado grupo de acordo com as suas escolhas de consumo. A mídia informa, também, por meio das cores, o que é mais adequado para o universo feminino e masculino e como o produto deve ser usado e consumido. Argumentando no mesmo sentido, Rael (2005, p. 160) enfatiza: Uma novela de televisão, uma propaganda, um desenho animado podem ser vistos como produtores e veiculadores de representações que sugerem determinados comportamentos e identidades sociais, e que, de algum modo, acabam por regular nossas vidas. Os diversos artefatos culturais que são frutos de construções sociais e históricas estão em permanente elaboração em diversos lugares de informação: a escola, a mídia, o cinema, as revistas, os documentários, os outdoors, os brinquedos, que são denominados de pedagogia cultural que se expressam em diversos locais sociais (STEINBERG, 1997). Chego à sala e escuto a professora falar que hoje não vai “ter pátio”. Fico observando o movimento das crianças, como elas vão se agrupando no tempo-espaço da sala de aula. Após a fala da professora, as crianças, imediatamente, começam a se organizar. As meninas, Patrícia, Júlia, Maria Clara, Indiomara e Yasmin, improvisam um salão de beleza. Juliana e Thais não conseguem participar da brincadeira do salão, pegam uma boneca e vão brincar afastadas. Os meninos, Brondim, Marcelo e Roter, brincam de carrinho e pinos. Logo a professora percebe que, na sala, o espaço fica pequeno para as brincadeiras e resolve descer para um espaço coberto ao lado do pátio. As meninas continuam brincando de salão de beleza. Patrícia é a maquiadora e a cabeleira e começa a maquiar Júlia, que corre até o banheiro para se olhar no espelho, e volta e fala: “Patrícia, eu amei! Quero bem colorido!” Patrícia fala que o preço da maquiagem é R$5,00 reais. Patrícia grita: “Próximo”. Porém Júlia ainda pede para que ela passe mais um batom e retorna ao banheiro para se olhar e fala: “Você arrasou!! Adorei a maquiagem!!! Você vai ganhar um carro, uma casa e 10 milhões de reais” e sai em direção ao palco e começa a desfilar. Então, Patrícia grita: “Ainda não é hora de desfilar” e fala bem alto: “Próximo”. As crianças estão sentadas no chão em fila. Patrícia começa a maquiar Maria Clara, Júlia ajuda a passar batom e Maria Clara pede que Patrícia pinte seu olho com sombra. Patrícia, novamente grita: “Próximo”. Yasmin se senta para ser maquiada. A última da fila é Juliana (criança negra). Quando ela se senta na cadeira, Patrícia sai correndo para o pátio, pois o espaço foi liberado. Eu lhe pergunto: “E a Juliana você não vai maquiá-la?” Patrícia diz: “Lá no pátio”. Porém Patrícia, ao chegar ao pátio, vai brincar de pique-esconde com Júlia, Maria Clara e Yasmin. Júlia se aproxima de Juliana e lhe pede para segurar sua bolsa de maquiagem. Eu pergunto a Juliana se ela quer que eu segure a bolsa para que ela possa brincar com as meninas, ela responde que não. Segurando a bolsa, parece fazer parte do grupo. É interessante notar que ela “tenta” compreender a atitude da colega e busca meios de elaborar um novo sentido para se sentir parte do grupo. No dizer de Cavalleiro (2006, p. 69): “O silêncio sobre a questão étnica parece atingir a todos, adultos e crianças, profissionais da escola e familiares”. No cotidiano escolar, a criança vai vivenciando experiências que vão se confirmando nas escolhas diferenciadas entre elas. As crianças negras constantemente recebiam tratamento diferente das demais nas escolhas para participarem das brincadeiras, como também na demonstração de afeto entre elas. 2.2.5 Como se portam meninas e meninos na aula de educação física O professor de educação física tem dificuldade em organizar as crianças. Elas correm no pátio de um lado a outro. Brondim mexe na caixa de material do professor. O professor distribui folha de jornal às crianças e pede que elas façam bolinhas pequenas, a seguir entrega a Patrícia uma bola de soprar na cor rosa. Patrícia pergunta ao professor se ela pode escolher quem vai ser o próximo para receber a bola de soprar. Patrícia começa a chamar as meninas e os meninos com quem ela se relaciona mais de perto, ou seja, faz parte do seu grupo: Maria Clara, Indiomara etc. Thiago, Felipe Massa e Marcelo pedem para ser chamados. No entanto, é a Juliana que é chamada, em virtude de estar segurando a “poderosa” bolsa de maquiagem da Júlia (nesse instante a Juliana parece estar revestida de “poder” e fazendo parte do grupo por estar segurando a bolsa), porém Patrícia orienta quem Juliana deve escolher: Júlia, depois Yasmin e depois Thais. Ao mesmo tempo Marcelo tenta coagir YASMIN para que ela o escolha e a ameaça de lhe bater, caso ela não o escolha. O professor percebe e intervém. Diz que ela tem livre escolha. Observo que as meninas foram escolhidas antes dos meninos. O professor elogia a organização das meninas e continua entregando as bolas de soprar, as de cor rosa para as meninas e as de cor azul para os meninos (fica nítido o quanto é forte a relação da cor para demarcar o lugar da menina e do menino na cultura da escola). Como se observa, as atividades são divididas de acordo com a cor: rosa para as meninas e azul para os meninos. Assim, a criança vai percebendo um mundo social dividido e, dessa forma, ela se coloca “naturalmente” nesse lugar. Outra cena que destaco na observação das crianças na sala aula: Indiomara questiona com a Patrícia que, na lousa está escrito no cabeçalho “Aluno”. Então Patrícia explica que quando tem “O” é menino e “A” é menina. Indiomara não se convence e solicita à professora para escrever também “Aluna” na lousa. Observo que Indiomara está reivindicando espaço, lugar. Essa “naturalidade” de escrever na lousa só “aluno” evidencia a cultura extremamente masculina que vem sendo construída ao longo dos processos sociais e históricos na escola. Essa afirmação encontra suporte nas palavras de Louro (1997, p. 60) quando ressalta que “Através de muitas instituições e práticas, essas concepções foram e são aprendidas e interiorizadas; tornam-se quase “naturais” (ainda que sejam “fatos culturais”). A escola é parte importante nesse processo”. Indiomara reage tentando desconstruir essa “lógica” de os meninos usufruírem de um determinado lugar que se coloca como referência na cultura escolar. Posso afirmar que a escola é um local onde as relações de gênero estão presentes e que ele se constitui num contexto múltiplo e contraditório de atitudes e ações em que a instituição escolar se inscreve, fabricando sujeitos, produzindo identidades. Enfim, como nos alertam Cruz e Carvalho (2006) em suas pesquisas, as crianças, no contexto escolar, lidam com modos de viver as relações de gênero que lhes são dadas e que recriam na sua singularidade. Em parte vão reproduzindo, em parte vão transformando no movimento de mão dupla, de construção e desconstrução de uma sociedade dividida. Muitos são os mecanismos utilizados pelas crianças nas brincadeiras para evidenciar os papéis sociais: Júlia, no fundo da sala, brinca de casinha e de fazer comidinha e fala que vai jantar sozinha. De repente olha para trás e fala com Juliana e “João Pedro”: “Empregada, ô empregada, oô duas empregadas!!!”. A seguir, transcrevo um trecho dos registro do diário de campo (27-10- 2008): Pesquisadora: Por que você está chamando as empregadas? Júlia: Para fazer tudo que eu mandar!!! De repente ela se dirige a “João Pedro” e fala para ela sair da piscina. Pesquisadora: O que é que “João Pedro” é agora? Júlia: Agora ela é filha. Depois ela é empregada com Juliana. Júlia me mostra um potinho e diz que ali tem molho de tomate para colocar em cima da batata. “João Pedro” chega com uma bandeja e fala: Tome, mãe. Juliana diz: O neném acordou, assumindo o lugar, neste momento, de empregada. Júlia se levanta e sai da brincadeira e vai para a mesa. “João Pedro”, nesse momento, assume o lugar em que a Júlia estava sentada. Pesquisadora: “João Pedro”, o que você está fazendo? “João Pedro”: Lavando os pratos! [assumindo de novo o lugar de empregada]. De repente, Júlia retorna e fala alto dando ordens para “João Pedro” e Juliana, mandando as duas limparem tudo. Júlia se aproxima de Juliana e fala: Você é um anjo! Pesquisadora: Por que ela é um anjo? Júlia: Por que ela me ajuda, arruma tudo e toma conta do bebê! Com “João Pedro” a Júlia chama de porca e diz: Olha ela quebrou a xícara! E continua: Seu pai vai chegar da Amazona, você vai se ‘fuder’!!! E, no mesmo instante, dirige-se a Juliana e diz: Filha... você é um anjo!!! Pesquisadora: Ela é sua filha? Júlia: É minha filha, ué! Pesquisadora: Ela não era empregada? Júlia: Eu chamo ela de empregada, porque ela me ajuda a cuidar do neném, arruma a casa. A outra filha [referindo-se a “João Pedro”] é o ‘capeta’. Outro dia, ela pegou o neném e jogou no chão. Essa é boazinha [referindo-se a Juliana], pega o nenê com cuidado. Júlia: Vou fazer um chá. Logo após, oferece-me na bandeja com uma xícara. Entro na brincadeira e falo que o chá está uma delícia! Júlia: Obrigada! Nesse registro do diário de campo, fica evidente que Júlia vai buscando, no seu imaginário, uma forma própria de (re)significar a cultura do adulto, imitando, inventando brincadeira, fantasiando e atribuindo os diversos lugares para as outras meninas (lugar de filha, empregada). Assumindo, também, práticas sociais que inculcam regras, papéis sociais, ou seja, papéis adequados para aquela situação vivida. As crianças, em suas brincadeiras, vão aprendendo entre elas, por meio das trocas estabelecidas, vão percebendo as relações sociais vivenciadas no cotidiano das suas experiências no contexto familiar, escolar, da rua, enfim, em diversos espaços por elas vivenciados. O espaço da educação infantil traz possibilidade de a criança evidenciar as suas experiências que certamente vão contribuir no dia a dia para a construção das suas identidades a partir da ludicidade, fantasias e imaginações. Segundo Sayão (2003, p. 81): Ser pai, mãe, filho, cozinheira ou médico faz parte do peso de poder que algumas crianças têm em determinado grupo. Algumas jamais serão pais ou mães, sempre serão filhos ou filhas. É necessário observar as relações de poder que se evidenciam no curso de uma brincadeira e lidar com elas de maneira que seja possível mostrar que há outras formas de ser pai, mãe, filho, médico. Há médicas, cozinheiros... e no faz de conta todos(as) podemos ser qualquer coisa. A análise de Sayão nos demonstra como a criança, em suas brincadeiras, vai elaborando e recriando a cultura, o que está exemplificado nos diferentes papéis assumidos (empregada, mãe e filha). Na brincadeira do faz de conta, as negociações, as tensões e o poder se revelam. Também Foucault (2006) estudou essas práticas divisoras de uns que exercem o poder sobre os outros por meio da comunicação. Júlia ocupa o lugar que institui os papéis a serem assumidos ao estabelecer interações com seus pares. Essa observação, no campo pesquisado, aponta as condições simbólicas do lugar da filha, da mãe, da empregada e expressa como os arranjos sociais foram “negociados”, pois, nesse momento, o poder exercido por Júlia, tem o consentimento das outras crianças quando aceitam os papéis instituídos. A capacidade das crianças de interpretar o mundo em suas práticas cotidianas e que vão materializando, em seus encontros, as fronteiras do mundo do adulto com o mundo infantil. Por vezes, em suas brincadeiras, vão tentando atribuir sentido ao mundo em que vivem, reproduzindo, interpretando, transformando e negociando lugares, espaços que são formas e estratégias encontradas para lidar com a complexidade das práticas sociais e culturais que lhes são impostas. Chego à sala de aula e observo que as crianças estão sentadas em círculo para fazer uma atividade de colagem e de procurar letra em revista. Percebo que algumas delas estão rindo e mostrando uma revista. Aproximo-me para ver melhor. É uma revista da Avon que, na capa, tem uma mulher de lingerie vermelha. A professora também percebe e pergunta, conforme anotação no diário de campo (04-10-2008): Professora: Tiago, o que você está mostrando a Marcelo? Tiago responde: A moça da revista é gostosa e bonita! Professora: Por que ela é gostosa? Tiago responde: Por que ela é bonita. As crianças iam folheando a revista e, à medida que viam algo interessante, iam mostrando. “João Pedro” mostra a Felipe Massa a figura de uma modelo dizendo que é sua namorada, depois mostra também a Thiago. Professora: “João Pedro”, por que você mostrou a revista a Thiago? Ela põe a mão no rosto e não responde. Albes fala: É por causa da bunda dela! Não há dúvida de que as crianças incorporam a linguagem dos adultos para (re)significar um comportamento evidenciado no cotidiano pela mídia, quando mostra mulheres seminuas nas propagandas com significados eróticos. Essas mulheres expostas são chamadas de “gostosas” pela fala do adulto. As crianças (meninas e meninos) vão internalizando como “verdade” esse modelo estético veiculado pelos meios de comunicação, reiterando o discurso do corpo magro, esculpido, musculoso, bronzeado e sensual. Essas imagens vão produzindo e reproduzindo uma identidade corporal que vai povoando o imaginário infantil da beleza como algo a ser admirado, desejado, ou seja, o corpo aparece como um valor a ser perseguido e a mídia, a publicidade, por meio de revistas, programas de televisão, novela têm tido uma papel fundamental, incentivando todas as camadas sociais e faixas etárias a assimilarem que o corpo “precisa está em forma” para ser exibido em propagandas, programas de TV, outdoor etc. E, assim, vai fabricando desejos que são sustentados pela lógica do consumo que oferece, insistentemente, soluções e ideias que vão se multiplicando e seduzindo também as crianças em seu cotidiano e nas suas relações. Nesse passo, as crianças vão interpretando, analisando, percebendo esses contextos e vão formando uma ideia acerca desses discursos e imagens transmitidos pela mídia. Enquanto os meninos mostravam as fotos das mulheres de lingerie, Júlia olhava atentamente a página que continha propaganda de batons, lápis e brilhos. As meninas, desde cedo, aprendem que a feminilidade se sustenta nos gestos dóceis, nos enfeites, nas roupas e em determinados comportamentos que são convenientes para o sexo feminino. As crianças estão sentadas, conversando. Eu me aproximo e percebo que Indiomara trouxe uma bolsa na cor prata. Dentro continha: um cartão de crédito, celular caneta e baton (Diário de campo, 5-10-2008). É pertinente observar que as crianças trazem os mais diversos artefatos culturais para sala de aula, como uma forma de (re)significar o mundo adulto e também identificar os objetos que são destinados às mulheres e verificar como esses produtos são frequentemente veiculados pela mídia. Assim, de certa forma, inicia-se um processo de idealização e identificação pela criança de possuir esses artefatos e, dessa forma, elas vão construindo e aprendendo “formas adequadas” de viver sua feminilidade e masculinidade que são socialmente esperadas. Segundo Sabat (2004), esse processo não é realizado de uma vez por todas e sim de forma contínua e repetitiva. O episódio a seguir mostra como as crianças verbalizam posturas aprendidas em relação à afetividade e gestos com seus pares: Brondim se aproxima e me pede para tirar uma foto dele e de Felipe. Tirei uma foto dos dois bem juntinhos. Logo após, Brondim pede para ver e mostrar aos colegas. Ao mostrar, eles disseram: “Ah! Vocês são namorados?” (MARCELO) “João Pedro” pergunta: “Vocês casaram?” (DIÁRIO DE CAMPO, 05-10- 2008). É relevante destacar como as crianças se apropriam dos discursos em relação ao corpo e à sexualidade, que vêm sendo construídos no decorrer das suas experiências. Em suas pesquisas sobre o corpo masculino e feminino na educação infantil, Finco (2007, p. 94) destaca que, na cultura escolar: “Todos os processos de escolarização sempre estiveram preocupados em vigiar, controlar, modelar, corrigir e construir os corpos [...]. No campo da educação, não apenas se separa mente e corpo; mais do que isso, há uma desconfiança do corpo”. As crianças absorvem as diversas formas de intervenção sobre o corpo, o que é consentido, como elas podem e devem se expressar. Os meninos não se beijam e, quando se abraçam, fazem sempre de maneira rápida e com certa rispidez. Enfim, pude perceber que, na educação infantil, é visível a preocupação em relação ao comportamento da menina e do menino em se tratando das suas relações afetivas. Para o menino, a expectativa é que ele seja esperto, corajoso, viril e até mesmo agressivo; e não dócil e afetuoso. Esse exemplo elucida como os discursos se produzem na cultura sobre as feminilidades e masculinidades que as crianças vão internalizando sobre os modos e jeito de ser homem e mulher. Na sociedade, os meninos não são estimulados a desenvolver seu lado afetivo, pois há uma vigilância e contenção do corpo em relação à afetividade masculina desde a mais tenra idade. Com referência às meninas, desde pequenas são estimuladas a desenvolver seu lado afetivo. Espera-se que elas sejam dóceis, meigas e carinhosas, e essas manifestações não são controladas ou inibidas quando as meninas se abraçam e se beijam. Quanto aos meninos, há sempre uma vigilância maior quando dois meninos se tocam fazendo carícias, pois não é um comportamento esperado pela família e nem pelo contexto escolar. Assim, discutir as relações de gênero no âmbito escolar é pensar de forma plural nas desigualdades culturalmente construídas em relação aos marcadores sociais, como raça, classe social, como também nas relações de poder que estão imbricadas nas dinâmicas sociais constitutivas nas relações de gênero. No capítulo seguinte, analiso como o poder funciona e age nas relações cotidianas das crianças com seus pares e os adultos. 3 NOS MEANDROS DO PODER Os estudos de Foucault (2003, 2006, 2007, 2008) têm como objeto analisar as formas de conhecimento e técnicas de poder que servem para disciplinar e treinar os seres humanos. É por esse foco que Foucault analisa as instituições, como a escola, a prisão e os hospitais, incitando-nos a perceber como a disciplina exercida nesses espaços organiza o tempo cada vez mais produtivo, rápido e eficiente. Na escola, a disciplina ocorre por meio da vigilância, normalização, recompensa ou punição: “Quem não acabar a tarefa não vai para o recreio” ou “Quem já acabou pode desenhar”. Esses discursos constituem o cotidiano na educação infantil, deixando claro que as punições e recompensas existem na medida em que as crianças cumprem ou não o que foi solicitado. A escola age tentando moldar, classificar e separar as crianças nos diversos espaços ocupados por elas: na sala de aula, no refeitório, no pátio, na fila. Contudo Foucault (2006) nos alerta que o poder não é apenas coercitivo e negativo, mas produtivo e positivo, ou seja, o poder não apenas nega, impede, coibe, mas também faz, produz e incita. Nesse sentido, em seus estudos, preocupou-se em centrar as suas discussões em como o poder funciona e age, pois, sendo o poder uma relação entre os dominados e dominantes que se cruzam nas práticas cotidianas abrindo possibilidade de resistência em muitos pontos de forma circular, é nessa tensão que as relações vão se exercendo. Assim, mulheres e homens, meninas e meninos se fazem nas relações estabelecidas que vão constituindo as suas identidades e subjetividades nas práticas escolares, na família e nos diversos lugares ocupados na sua relação com o outro. Foucault (2006), a partir de seus estudos, desafiou-nos a examinar a compreensão das nossas práticas e de nossos próprios atos de poder e seus efeitos nas relações que estabelecemos, pois o poder é sempre plural e relacional, acontece sempre nas práticas sociais historicamente construídas com discursos que dominam e controlam os sujeitos e as instituições. Jardine (apud FOUCAULT, 2007, p. 8) revela uma expressão do filósofo que exemplifica como o poder acontece no cotidiano: “Somos completamente formados pelo sistema do conhecimento e poder no seio do qual nascemos e somos criados – mesmos as nossas percepções do que está em nosso redor são influenciadas por isto”. Em seus estudos, Foucault (2008) pretendia esclarecer as características das relações de poder, que funcionam como uma rede de dispositivos, de mecanismos da qual ninguém escapa, que se exerce a partir de inúmeros pontos. Na introdução do livro de Foucault (2008), “Microfísica do poder”, Machado afirma que o poder emerge a partir das relações, das práticas, ou seja, como uma máquina social, funcionando como uma maquinaria que se dissemina por toda a estrutura social. Eizirik e Comerlato (2004) nos provocam também a olhar e ouvir a escola, compreendendo as multiplicidades de discursos em relação à ordem, ao poder, ao instituído e como os sentidos desses discursos vão adentrando nas relações estabelecidas nesse espaço. Segundo as citadas autoras: “[...] o poder, na sua positividade, relaciona-se à produção de um saber, com a possibilidade de transformação ou adestramento. Neste sentido, o poder é um modo de ação sobre sujeitos livres, em que há sempre a possibilidade virtual de resistência” (p.18). Onde há poder, há resistência já nos afirmava Foucault (2006), em seus estudos. Nesse sentido, a instituição escolar é uma rede de poderes que é atravessada por diferentes práticas e discursos que tentam moldar os sujeitos que ali estão em uma correlação de forças e tensão nos jogos de poder e saber. É nesse “caldo fervente” (EIZIRIK, 2004) que a escola enfrenta e lida com as contradições e ambiguidades em seu interior, que nos incitam a novas possibilidades de compreender essas redes de poder que conduzem os indivíduos em seus assujeitamentos ou resistências. Eizirik e Comerlato, ao discutirem a influência do poder na instituição escolar, afirmam que é nesse espaço de liberdade e rebeldia dos sujeitos que se traduz um dos mais inquietantes problemas que a escola enfrenta. Nesse segmento da sociedade se efetiva também a possibilidade da singularidade, da construção de sujeitos capazes de pensar sua prática e revolucioná-la. Bujes (2003), em seu trabalho “Infâncias e maquinarias”, analisou as relações entre infância e poder, utilizando-se das ideias de Foucault, esclarecendo-nos que não há lugar isento de poder e mostrando como o sujeito infantil é constituído por diversos discursos e diferentes instituições: a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação. Enfatiza que essas instituições é que vão apontar e moldar as formas de como os sujeitos, por meio dos discursos internalizados, vão se relacionar com o mundo onde estão inseridos. Sinaliza a autora que a sociedade busca constantemente estratégias e mecanismos como instância privilegiada de controle para fixar certos sentidos por meio dos discursos tomados como “verdadeiros”. 3.1 AS RELAÇÕES DE PODER GILMAR, NÃO TE FALEI PARA NÃO DEIXAR NINGUÉM ENTRAR AQUI (JÚLIA, no pátio). QUEM TERMINOU TEM QUE FICAR ESPERANDO O COLEGA SENTADO E NÃO PODE LEVANTAR (PROFESSORA, no refeitório). Certas palavras Certas palavras não podem ser ditas Em qualquer lugar e hora qualquer Estritamente reservadas Para companheiros de confiança Devem ser sacralmente pronunciadas Em tom muito especial lá Lá onde a polícia dos adultos nem alcança Entretanto são palavras simples Definem partes do corpo, movimentos, atos do viver que só os grandes se permitem e a nós é defendida por sentença dos séculos E tudo é proibido. Então falamos. (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 1997) Busco, na poesia de Drummond, evidenciar o poder, a proibição, historicamente dirigidos às diversas manifestações das crianças, em seus discursos, no que se refere ao seu corpo e suas descobertas, evidenciando, dessa forma, o que é e o que não é permitido falar. O filósofo francês Michel Foucault (2006, p. 9) explicita a formação discursiva e seus desdobramentos afirmando: Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais familiar e a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Ele ilustra o fato de as pessoas falarem de seus desejos, das suas histórias e de seus discursos, indefinidamente. Dispõe, desse modo, que as relações de poder são as relações entre discursos com suas diferentes verdades, ou seja, a luta pelo poder de dizer. O objeto de investigação do citado autor está centrado nas práticas sociais, nas experiências e nas relações que o produzem, num determinado tempo e lugar. O pensamento de Foucault (2008, p. 75) explicita que o poder está em todas as partes, que circula e age nos diversos pontos das práticas cotidianas, quando afirma: “Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”. Nesse sentido, a minha intenção, durante a pesquisa, foi identificar em que medida esse poder é exercido nas práticas cotidianas estabelecendo o que é interdito e o que é permitido nas relações estabelecidas pelas crianças e seus pares. 3.2 E POR FALAR EM PODER... 3.2.1 Situações de conflitos entre as crianças: a relação de poder entre os adultos e crianças Todo mundo vai se maquiar sozinha (JÚLIA). Então, eu não vou brincar. Você sabe que eu não posso me maquiar, eu sou crente (PATRÍCIA). Olhe para mim! Senão eu vou pegar no seu rosto e fazer você olhar prá mim (PROFESSORA 12 SUBSTITUTA na sala de aula). Conforme registro no diário de campo, pude observar durante a pesquisa, algumas situações de conflitos e estranhamento entre as crianças é como essa questão é 12 A Professora da sala pesquisada ausentou-se por aproximadamente 30 dias, por motivo de saúde. As crianças sentiram muito sua falta e ficaram muito agitadas nesse período em que estavam acompanhadas por uma professora substituta. mediada pela professora: No refeitório, as crianças ficam em fila esperando ser servidas. Nesse momento, há uma disputa de lugar. Algumas crianças tentam passar na frente das outras. Observei que as meninas disputam espaço com os meninos, algumas conseguem, porém os meninos resistem, empurrando as meninas para fora da fila. Nesse momento, há choro, xingamento e empurrões, que, algumas vezes, são mediados pela professora. O refeitório possui três fileiras de mesas compridas com cadeiras. Observo que sempre há discussões para decidir quem vai sentar na ponta. Geralmente são os meninos que disputam esse lugar. Costa (2004, p. 121) fez uma interessante discussão sobre a disputa na mesa do lugar da ponta, em nossa cultura, quando observou também em sua pesquisa esse comportamento em campo e fez as seguintes reflexões: No refeitório também existe um lugar que é alvo de disputas nas relações de poder. É a cadeira da ponta. As crianças têm um verdadeiro fascínio pela ponta [...]. A cada turma que entra é uma nova disputa que surge [...] A criança que senta na cadeira da ponta fica estrategicamente bem posicionada, podendo ver o rosto de todas as outras da mesa [...]. Por que é tão importante para algumas crianças sentar na cadeira da ponta? Que significações são construídas em relação à ponta? Nas famílias, quem geralmente senta na ponta? O chefe? O pai? Aquele que paga a conta? E no caso das famílias lideradas por mulheres, é a mãe? Foto 6 – Conflito na fila A disputa do lugar na fila no refeitório, o movimento de resistência por parte das crianças para ocupar esse lugar. Foto 7 - A disputa entre os meninos pelo lugar a ser ocupado Essas disputas de poder por objetos e lugares são frutos das práticas e discursos que, ao longo da história, as famílias e a instituição escolar foram produzindo. São comportamentos e condutas hierárquicas. O homem sempre se senta, na cabeceira da mesa, pelo fato de ele ser o provedor, apesar de a família ter mudado a sua configuração (Foto 7). Como bem lembra Costa (2004) em sua reflexão é imprescindível problematizar as relações de poder na educação infantil, considerando como essas relações vão se configurando no jeito de ser menina e menino. No retorno do jantar para a sala de aula, Thiago bate no Albes com socos e empurrões. Precisei intervir, pois a professora não estava na sala. Separei os dois e perguntei qual o motivo da briga? Thiago não responde e Albes diz: “EU SÓ ENCOSTEI NELE”. Tenho observado que a violência nesse espaço e na vida dessas crianças está naturalizada. Quando a professora retorna, comento o ocorrido em função da minha interferência. A professora solicita ao Thiago que peça desculpas ao colega. Ele resiste. Então, ela ameaça levá-lo para conversar com a pedagoga; ele aceita e dá um abraço e pede desculpa. A relação de poder estabelecida pela professora, ao exigir que o Thiago peça desculpa a Albes, vem imediatamente acompanhada com uma reação de resistência por parte do Thiago. No entanto, a professora, nesse conflito, insiste no poder disciplinar que é investido no corpo, procurando torná-lo dócil, evidenciando algumas regras de conduta: pedir desculpa e abraçar o colega. A seguir, outra cena entre as crianças observada durante a pesquisa na aula de artes: Marcelo empurra Tiago sem motivo. A professora pergunta: “Por que você fez isso?”. Marcelo responde: “Eu estava só brincando”. Dirige-se ao colega e pergunta: “Não tava só brincando?”. Ele balança a cabeça que sim! O interessante de ser observado é que, ao ser perguntado sobre o seu comportamento, Marcelo responde que não estava “brigando” e sim “brincando”; e, imediatamente, pede a professora para “parar de encher o saco”, tentando dar um outro sentido à sua “brincadeira”. A seguir, o desdobramento do diálogo da professora e do aluno: Marcelo se volta para a professora e diz: “PARA DE ENCHER O SACO”, gritando alto. Imediatamente, a professora interpela Thiago e pede que ele chame a pedagoga para conversar (observo que os conflitos em sala de aula são sempre mediados também pela pedagoga). Então, Marcelo fala: “EU NÃO QUERO FAZER ESSA MERDA”, referindo-se à tarefa. A professora, então, diz: “AH! É MERDA, ENTÃO ME DÁ A ATIVIDADE E SAIA DA SALA”. Nesse episódio, fica evidenciado como o poder disciplinar se exerce nas relações estabelecidas no cotidiano da escola. A professora questiona a atitude do aluno e ele tenta lhe explicar que não há nada de “errado” no seu comportamento. Empurrar o colega, às vezes, significa uma “brincadeira” que é compreendida e incorporada na relação entre as crianças. Chamar a pedagoga para mediar a situação é uma forma de a professora mostrar ao aluno que o poder é também exercido por outras pessoas que fazem parte do contexto escolar. Nesse sentido, na educação infantil, vão se estabelecendo modos de normalizar as atitudes das crianças, disciplinando seus corpos por meio da vigilância permanente. Para Dornelles (2005, p. 54), “[...] esse sujeito infantil é produto e efeito da disciplina, com sua subjetividade fabricada pela docilidade e utilidade inscritas em seu corpo”. As crianças “tentam” resistir às normas estabelecidas, utilizando, algumas vezes, comportamento mais agressivo, numa tentativa de mostrar uma outra forma de se relacionar com seus pares. No pátio, as crianças criam estratégias de controle e poder sobre os espaços ocupados, permitindo ou não que o colega participe da brincadeira. A seguir, a cena observada: Algumas meninas pedem a um menino que não deixe ninguém se aproximar do lugar em que elas estão brincando. De repente, um menino se aproxima e fica olhando de perto. Uma menina grita: “GILMAR, NÃO TE FALEI PARA NÃO DEIXAR NINGUÉM ENTRAR AQUI!”. Na brincadeira, as crianças vão vivenciando regras de convivências, de controle dos espaços conquistados e, nessa interação, elas vão exercendo o poder de como quer brincar e em que lugar quer brincar. Continuo observando o pátio, meninas e meninos estão brincando juntos. A professora de longe grita: “THIAGO VOCÊ VAI MACHUCAR SUA COLEGA!”. Júlia responde: “Tia, a gente tá brincando!”. O que parecia uma violência para a professora, para Júlia é um comportamento aceitável naquele momento da brincadeira. A relação das crianças é construída mediando o confronto e a negociação e, dessa forma, nos lugares em que as crianças transitam e vão se relacionando, é que elas vão se constituindo como sujeitos, a partir das suas interações, combinações, desejos e tensões. 3.3 AS NEGOCIAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS Só quem pode pintar é quem já acabou a tarefa. (PATRÍCIA). A professora distribui uma tarefa. Observo que tanto as meninas como os meninos se levantam para copiar o dever do outro. À medida que vão fazendo, vão conversando sobre assuntos diversos: onde moram, pedem opinião sobre o que desenhar e a cor que vai usar. Patrícia avisa que acabou a tarefa. E ela é imediatamente disputada por Indiomara e Marcelo, porém ela se senta e começa a colorir a sua atividade. Tiago se aproxima para pegar o lápis de cor, ela nega e diz: “Só quem pode pintar é quem já acabou a tarefa”. A professora, percebendo a disputa das crianças, fala: “Quem não acabar o dever não vai para o recreio”. Foucault (2006) evidencia que o poder penetra na vida cotidiana dos sujeitos, que vão construindo formas de falar e agir por meio das práticas e relações estabelecidas que procuram regular os corpos. Nesse sentido, observa-se que não só os adultos, mas também as crianças criam estratégias de poder em suas relações. A fala da professora, nesse momento, também assume a tarefa de determinar os lugares que os alunos vão ocupar caso não cumpram o que foi determinado. Ela exerce o poder do adulto sobre a criança, controlando a disciplina na sala de aula. A seguir, uma cena observada na sala de aula: Ao lado, Indiomara e Júlia estão disputando o copinho para colocar as sobras das pontas de lápis. Há uma resistência e inconformismo de Indiomara em aceitar que só a Júlia possa usar o copinho para depositar as sobras das pontas de lápis. As duas remexiam o copinho de um lado para outro. É interessante a interpretação de Foucault (2006, p. 105), quando evidencia que onde há poder há resistência. Para entender como essas relações de poder e de saber atravessam os tempos e os espaços na educação infantil, é relevante recorrer às suas ideias quando afirma: Temos que admitir que o poder produz saber [...]; que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder (1995, p. 30). Para esse autor, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdades e saber. O poder está em todas as partes, uma pessoa está atravessada por relações de poder. O poder não está localizado num único ponto e sim disperso em toda a sociedade, agindo de forma circular. Desse modo, seguindo a referência de Foucault (2008, p. 183), o poder se exercita a partir de muitos pontos e em várias direções. Nesse sentido, o citado autor esclarece: O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca esta localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder , são sempre centro de transmissão. Assim, Foucault (2008) esclarece as técnicas específicas de conhecimento e poder por meio das sociedades ocidentais. Ele nos ajuda a compreender acerca das transformações históricas das instituições na sociedade entre elas: as escolas, as prisões e os hospitais. Por sua vez, Jardine (apud FOUCAULT, 2007, p. 15) afirma: “A minha principal preocupação será a de localizar as formas de poder, os canais que assume, bem como os discursos que permeia de modo a alcançar os mais ínfimos modos de comportamentos individuais”. Foucault, em seus estudos, identificou o quanto é relevante tomarmos conhecimento dos atos de poder que governam nossas expectativas em relação às crianças que transitam no espaço escolar. Ele afirmou que as ideias, os entendimentos e a posse do poder variam de sociedade para sociedade, de cultura para cultura. Em seu livro “Vigiar e Punir”, Foucault (2003) traz uma importante contribuição quando relata os modelos de poder nas várias sociedades e a forma como esse se relaciona com as pessoas. E o poder disciplinar, na escola, desvia, amplia ou limita as manifestações corporais das crianças? Torna mais fácil ou mais difícil as experiências de ser menina e ser menino no cotidiano escolar? A seguir, uma cena observada durante o recreio quando percebo a relação de poder entre duas meninas: Patrícia está chorando, aproximo-me e pergunto por que ela está chorando. Ela responde que Júlia não quer brincar com ela. Pergunto qual o motivo. Ela fala que desenhou no caderno de Júlia e ela não gostou (DIÁRIO DE CAMPO, 21-10-2008). Nesse episódio, fica evidenciado que a amizade entre as crianças é estabelecida quando uma agrada a outra. O jogo de poder torna-se evidente, quando as crianças precisam que a outra aprove a sua atitude, dando-lhe um lugar de pertencimento no grupo. Patrícia, pelo choro, evidencia que foi excluída de brincar com a Júlia e se coloca no lugar de “vítima”. Esse registro mostra que as crianças tendem a se relacionar com os pares que lhes agradam e tentam se distanciar daquelas que desagradam. Segundo Foucault (2008), o poder está em todas as partes, em todas as relações, num movimento contínuo, ou seja, entre meninas e meninas, meninos e meninos e entre meninas e meninos. Nesse registro, o poder assume o papel de punição, excluindo aquela ou aquele que desagrada, assumindo a forma disciplinar de controlar as ações das crianças e, desse modo, os lugares vão sendo instituídos no cotidiano escolar de ruptura ou aproximação. Durante o recreio, observei uma situação em que a relação de poder é estabelecida, quando uma criança determina quem vai brincar e qual vai ser a brincadeira. Nesse momento, foi possível perceber como as crianças, com seus pares, criam estratégias para enfatizar seus sentimentos: o que pode ser feito, o que é aceito, colocando em evidência o seu poder, regulando o lugar a ser ocupado nas brincadeiras. Assim, as crianças, em suas relações sociais, vão criando seus próprios significados e mecanismos de ação e expressando certa dose de exercício de poder: Pesquisadora: Maria Clara, porque você está chorando, o que houve? Maria Clara: Patrícia não quer brincar comigo. Patrícia escuta, aproxima-se e diz: Eu deixo, tia, eu não quero é brincar com a Júlia, porque ela é metidinha, ela acha, porque vem sem uniforme, só ela é que é bonita. Não é ela só que é bonita! Eu não vou deixar ela brincar com a minha brincadeira. Pesquisadora: E qual é a sua brincadeira? Patrícia: É a que eu estou brincando com Brondim. Pesquisadora: Olho e vejo uma caixa de letrinhas coloridas! (DIÁRIO DE CAMPO, 5-10-2008). Nessa observação, fica evidente que Patrícia está investida de poder, pois foi ela que instituiu a brincadeira. Então, nesse momento é ela quem manda e diz com quem ela quer brincar. As crianças vão incorporando no seu cotidiano práticas vivenciadas na escola em relação aos lugares instituídos e demarcados pelos adultos, na rotina escolar. Nesse sentido, é possível afirmar que toda atividade humana está ligada ao vivido, a memória. E, assim, as crianças vão repetindo as normas de conduta já elaboradas dando outras formas a partir das suas experiências. A seguir, um diálogo que exemplifica como as relações vão se estabelecendo a partir das subjetividades de cada criança na hora do pátio: Na hora do recreio Brondim se aproxima e eu lhe pergunto por que brigou com o Thiago. Brondim responde: Ah! Tia, ele queria bater no Marcelo. Pesquisadora: E o Marcelo não se defendeu? Brondim: Ah! O Marcelo é fraquinho!!! O Thiago só gosta de bater em que é fraquinho; nos fortes ele não bate. Pesquisadora: E quem é forte? Brondim: Na sala? Eu e Wellison (ele é grandão!!!) (DIÁRIO DE CAMPO, 19-11-2008). Foto 8 - As tensões na sala de aula As crianças, por vezes, evidenciam, em suas brincadeiras e nas situações de conflito, como o poder é exercido no espaço escolar e nas suas relações estabelecidas com seus pares, representando papéis conforme as posições que assumem com alguns colegas e não com outros, quando expressam: “Ah! o Marcelo é fraquinho!!! O Thiago só gosta de bater em que é fraquinho; nos fortes ele não bate”. Segundo Louro (1998, p. 43) é: “No interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem o seu exercício, são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades”. A fala de Brondim denuncia a estrutura de poder que transita no cotidiano, por via dos discursos, o mais forte é aquele que sempre vence, que impede, que nega. E a criança vai vivenciando esses discursos como “verdades”, enfrentando o outro nas suas experiências e tensões cotidianas. 3.4 AS CRIANÇAS BURLANDO OS TEMPOS E ESPAÇOS O dinamismo das interações estabelecidas pelas crianças faz com que elas percebam que podem subverter as normas e regras estabelecidas pelos adultos nos espaços por elas ocupados, conforme registro no diário de campo (22-10-2008): As crianças estão fazendo atividade na sala. Indiomara se aproxima da professora e lhe pede para ir ao banheiro. Imediatamente, Patrícia e “João Pedro” também solicitam à professora e ela lhe diz para esperar Indiomara voltar. Porém “João Pedro” percebe que a professora está envolvida nas tarefas da sala e se dirige à porta da sala, antes, ela olha em minha direção e sai. A professora não percebe que “João Pedro” saiu da sala. Quando ela voltou, aproximei-me e perguntei: Pesquisadora: Você foi ao banheiro? “João Pedro” sorri e balança a cabeça num gesto afirmativo. Pesquisadora: Você pediu à professora? “João Pedro” fica em silêncio e apenas sorri. O episódio nos permite notar que as crianças vão explorando os espaços e as situações. Elas sabem que nem sempre a vigilância e o controle por parte dos adultos vão impedi-las de burlar e realizar os seus desejos pessoais, como ir ao banheiro, beber água ou sair da sala para dar uma “voltinha” na escola. A “fuga” é uma forma de expor que ela pode transgredir o que não é permitido, resistindo às regras que lhes são impostas no universo da escola. Outro fato que aconteceu no retorno do recreio exemplifica bem a resistência das crianças em relação às recomendações feitas pelos adultos. “João Pedro”, Felipe Massa e Thiago saem da sala com uma bola e ficam jogando no corredor. Logo de imediato, a professora não percebe. Da porta da sala tiro uma foto, porém a brincadeira continua até a professora chamá-los para a sala. Há uma resistência por parte dela e deles, então, a professora pega a bola e acaba com a brincadeira. É interessante a interpretação de Sarmento (2006) em uma entrevista, quando enfatiza: [...] Cada criança vive no interior de um sistema simbólico que administra o espaço social. Quer dizer, quando nasce a criança vai entrar um num mundo em que lhe é permitido fazer certas coisas e outras são interditadas, onde é conduzida a comportar-se e a pensar de determinados modos e onde outros modos de pensar ou de se comportar são reprimidos [...]. A criança, por menor que seja, percebe os limites impostos pelos adultos e vai entendendo que, muitas vezes, não pode sair fazendo tudo que deseja e pensa; mas pode burlar algumas regras instituídas. O mundo social e cultural da criança é povoado por muitas pessoas e se faz por meio de trocas intensas que vão constituindo sentidos e significados das suas experiências. A criança amplia seu campo de exploração dos espaços e vai reproduzindo gestos e ações e, assim vai (re)inventando modelos do mundo adulto, interpretando papéis e funções da sua vivência no/do cotidiano. 3.4.1 Burlando as regras na hora do recreio... Explorando os espaços físicos da escola e as relações estabelecidas entre as crianças na hora do recreio, observei que, no pátio do CMEI Semeando a Vida, não tem brinquedos para as crianças maiores. A professora geralmente solicita aos meninos que levem a caixa de pinos para o recreio. Ao chegar ao pátio, há sempre uma disputa para ver quem pega mais pinos. As meninas disputam o espaço com os meninos e, quando não conseguem, pedem ajuda à professora ou vão procurar outra brincadeira. No pátio, em um espaço reservado para o berçário, tem alguns brinquedos, porém a norma estabelecida pela escola é que as crianças maiores não podem brincar com esses brinquedos. Todavia, as crianças do Pré transgridem a norma estabelecida que especifica que não podem brincar com os brinquedos guardados no canto do pátio que são destinados às crianças do berçário. Percebo que as crianças vão construindo estratégias de poder para conseguir o que querem e desejam. Fica evidente que as professoras do Pré fazem de conta que não estão vendo as transgressões das crianças como uma forma de compreender que aquele espaço (o pátio) deveria ser utilizado sem normas autoritárias e que as crianças estavam criando alternativas para brincarem naquele local sem brinquedos (DIÁRIO DE CAMPO, 16-10-2008). No espaço maior do pátio, não havia brinquedos. No canto reservado para o berçário, havia alguns brinquedos, e as crianças maiores subvertiam a ordem e pegavam para brincar. Durante as brincadeiras no pátio, geralmente tinha uma menina que determinava a maneira do brincar. A seguir, um diálogo entre as crianças exemplificando a relação de poder estabelecida entre elas: Júlia: Todo mundo vai se maquiar sozinha! Patrícia: Então, eu não vou brincar. Você sabe que eu não posso me maquiar, eu sou crente! A seguir Júlia retira da bolsa: sombra, brilho, baton de cores variadas e começa a se maquiar. Júlia: Estou borrocada? Maria Clara: Que legal! Você aprendeu a passar baton! Júlia se aproxima e me pede para passar sombra nela da cor rosa. Patrícia inconformada como a brincadeira que ficou acertada, tenta convencer a Maria Clara, Marcelo, Felipe e “João Pedro” a brincarem com ela. Então Maria Clara conversa com a Júlia tentando convencê-la: Você sabe que crente não se pinta. Você é da igreja? Júlia não responde! Patrícia, a todo o momento ameaça Maria Clara dizendo que não vai mais brincar com ela. Logo após, Patrícia percebe que Júlia está pintando Juliana e ela chama Júlia de mentirosa, pois o trato inicial da brincadeira foi cada uma se pintar sozinha. Patrícia chora (DIÁRIO DE CAMPO, 6-11-2008). Nessa observação, é possível afirmar que as crianças vão incorporando em seu cotidiano algumas formas de controle e também de resistências em relação ao poder por elas estabelecidas. Na educação infantil, as crianças aprendem a obedecer a regras e normas na convivência diária, definindo papéis, lugares e comportamentos. É o “poder disciplinar” para o qual Foucault (2003) nos chama a atenção como uma técnica das práticas cotidianas exercidas entre os sujeitos, como uma forma de tornálos dóceis e obedientes. Em relação ao poder que circula e controla as manifestações infantis, pude perceber, durante o recreio, uma cena em que Patrícia disputava um brinquedo uma máquina fotográfica que era de Elisa, porém Patrícia não consegue convencer que ela lhe empreste, então Júlia interfere dizendo: Por que que ela fez isso com você, pois, tudo que eu quero ela me empresta. Júlia vai ao encontro de Elisa e fala que não gostou do que ela fez. Imediatamente, Elisa empresta a máquina a Patrícia. Percebo que Júlia exerce um lugar de poder no grupo, resolvendo conflitos na sala, no recreio, no refeitório e nos demais espaços ocupados na escola. Os registros seguintes exemplificam como Júlia tenta impor seu poder sobre as demais colegas: Patrícia, Júlia, Indiomara estão brincando de pique-alto e de repente começam a discutir. Júlia tenta propor uma nova forma de brincar. Patrícia e Indiomara não aceitam. Patrícia chora e Indiomara fala: A Júlia sempre que resolver as coisas como ela quer. Júlia responde: Patrícia quer sempre ser rainha de tudo! Patrícia: Eu quero ser rainha das minhas coisas!!! (DIÁRIO DE CAMPO, 19-11-2008). Nessa cena, percebi a resistência da Patrícia e de Indiomara em acatar o que Júlia propõe. Foucault (2008) esclarece que o poder se exerce em rede, passa pelos indivíduos, não é um fenômeno de dominação de um indivíduo sobre os outros; é algo que circula. Faço essa colocação no intuito de reconhecer que as crianças exercem o poder na direção supramencionada, vão se organizando e estabelecendo mecanismo de aceitação e resistência. É possível perceber também, na cena a seguir, como Júlia “organiza” a brincadeira, evidenciando algumas falas do mundo adulto ao exercer o disciplinamento dos corpos: “Vão sentar e fiquem caladas”. Novamente Foucault (2003, p. 117) esclarece a mecânica do poder quando afirma: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. As crianças, no cotidiano escolar, vão experimentando o disciplinamento e o adestramento dos seus corpos, quando elas são tolhidas para não correrem, ficarem caladas, sentadas por muito tempo e, assim, elas vão incorporando em suas brincadeiras o que os adultos esperam delas. Na tentativa em refletir como as crianças vivenciam e estabelecem estratégias de poder em suas brincadeiras, exemplifico com mais uma cena observada: Júlia, Indiomara, Maria Clara e Juliana estão brincando de maquiagem e se preparam para desfilar. Júlia ordena que só duas vão desfilar, ela e Indiomara, as outras vão assistir. Patrícia ajeita os cabelos de Indiomara. Júlia e Indiomara enrolam a blusa para a barriga ficar aparecendo. Júlia orienta como deve ser o desfile. E fala: Ensaia aí, ensaia aí... Patrícia se aproxima com duas meninas do outro Pré. Imediatamente Júlia fala: Elas não vão brincar, elas vão ser o público. Júlia orienta: Vão sentar e fiquem caladas. Uma menina não entende e fica em pé. Júlia diz: Eu estou precisando de um remédio, estou perdendo a paciência! Patrícia apresenta o desfile chamando Indiomara e Júlia. Indiomara desfila rebolando! Patrícia pede: Palmas, Palmas... Patrícia pede: Agora a dança do Creu! Júlia e Indiomara começam imediatamente a dançar balançando a bunda e fazendo gestos sensuais. Brondim se aproxima e fica olhando, depois comenta: Vocês são umas doidonas!!! (DIÁRIO DE CAMPO, 9-9-2008). Nessa cena, observei como as meninas têm internalizado as representações erotizadas do corpo por meio das músicas veiculadas pela mídia. Felipe (2005, p. 54) alerta que “[...] corpos masculinos e femininos não têm sido percebidos e valorizados da mesma forma”. Para a mídia, o corpo feminino virou um produto de consumo, diariamente exibido nas propagandas, outdoors, novelas, filmes e revistas O corpo da mulher é visibilizado de forma a defini-lo como sensual e erótico. Analisando a fala de Brondim, percebe-se que, apesar do apelo midiático ao corpo, ele desaprova o comportamento das meninas, pois, talvez por questões culturais e religiosas em seu entorno (escola, família, igreja), ele ainda reconheça como “comportamento de menina” a passividade, o recato. Ao voltar do recreio, observo, na sala de aula, que Indiomara e Yasmin estão disputando uma cadeira. Então me aproximo e mostro uma cadeira vazia. Yasmin responde: “Essa cadeira é do Thiago eu não posso sentar aí, senão ela me bate e me empurra”. Percebo que as meninas têm receio em disputar alguma situação com o Thiago, em função do seu modo agressivo de empurrar e bater. Logo depois, Felipe Massa se senta na “cadeira” do Thiago, então, ele chega, dá um murro no Felipe Massa e continua batendo, até que a professora se aproxima e interfere solicitando que Thiago peça desculpa ao colega e lhe dê um abraço. Thiago coloca as mãos nos ouvidos sem querer ouvir a professora. Na atitude do Thiago, é possível perceber que ele tenta resistir à solicitação e imposição da professora. O disciplinamento sobre as crianças na educação infantil, muitas vezes, privilegia a contenção dos corpos como normal, como “natural”, exigindo das crianças atitudes que não querem e não desejam realizar. É nessa tensão que os adultos e crianças vão experienciando ensinamentos e aprendendo juntos o lugar que ocupam. Nesse sentido, concordo com Meireles (2008, p. 60), quando afirma: Se a relação adulto-criança é marcada por uma tensão permanente que diz respeito à zona de constantes negociações, ensinamentos, aprendizados e nela se produzem tanto os sujeitos infantis quanto os adultos, é nas relações estabelecidas entre os adultos e as crianças no contexto escolar que se produzem também os sujeitos professor e alunos. No cotidiano da educação infantil, há inúmeras experiências, de afetos e tensões entre as crianças e os adultos que vão constituindo as diversas linguagens corporais, sociais e culturais, que irão legitimar e ampliar as novas formas de expressões e capacidade de compreensão das diferenças, que, por sua vez exigem tanto do adulto como da criança a sua percepção em relação ao outro do que quer, do que sabe, do que imagina, do que necessita, do que deseja e do que espera (LARROSA, 2006). É importante destacar a afirmação de Foucault (2006, p. 105) “[...] onde há poder há resistência”. Assim, as crianças, ao criarem formas de transgressão e resistência às práticas educativas, anunciam possibilidades de novas formas de autonomia. No espaço escolar, visualizamos a disciplina, as normas, o enquadramento, exigindo da criança o silêncio, a obediência e a quietude, produzindo efeitos sobre o corpo e a mente. Na educação infantil, é que começamos a separar os sujeitos, classificando-os e ou hierarquizando-os. Louro (1997, p. 58) argumenta: “A escola delimita espaços. Servindo-os de símbolos e códigos; ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer. Ela separa e institui. Informa o ‘lugar’ dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas”. Isso aponta o quanto o processo de socialização das crianças por meio da instituição escolar, família, mídia televisão, cinema, livros, propaganda e brinquedos, vai produzir discursos e significados que implicam relações de poder. Como pesquisadora, por meio dos conceitos foucaultianos, busquei compreender como, nas relações sociais, as crianças aprendem e constroem seus saberes infantis e (re)significam esses saberes e poderes em suas relações cotidianas. Durante a pesquisa em campo, constatei que é na relação com o outro que ela constitui seus valores sociais. Nesse sentido, é pela da interação que a criança vai internalizando crenças, valores e modos de comportamentos, que são adquiridos na relação estabelecida com seus pares, na família e nas instituições que ela frequenta. Assim, é importante pensar como esses mecanismos sociais normatizam, disciplinam, regulam o ser menina e o ser menino. Na visão de Louro, as(os) pesquisadoras(os) devem estar atentas(os) às práticas escolares cristalizadas que acontecem como “naturais” no cotidiano, esclarecendo que : Nosso olhar deve se voltar especialmente para as práticas cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar do que é tomado como “natural” (Louro, 1997, p. 63). É indispensável enxergar como se articulam os conceitos de saber e poder que atravessam o dia a dia da instituição escolar. Como são fabricadas formas de ser menina e ser menino. Portanto, as identidades são sempre construídas; elas não são dadas ou acabadas num determinado momento (LOURO, 1997). Essas marcas vão se constituindo por meio das diversas experiências do ser humano no desenrolar da sua história. Na pesquisa em campo, constatei que a escola é um espaço cultural de poder com significados sociais e históricos que procura dá sentido aos modos de ser menina e menino que me possibilitou analisar a construção do sujeito feminino (menina) e masculino (menino) no âmbito escolar. Como as crianças constituem as formas de viver a feminilidade e a masculinidade? Quais os mecanismos utilizados nos diversos espaços e tempos da escola? 4 DESVENDANDO O CORPO 4.1 A DINÂMICA E OS SINAIS DOS CORPOS O que é que faço eu sou maluquinho, tô cheio de mulher, cada um pega um pouquinho. Não quero perder ninguém (FELIPE). A Lagarta e Alice olharam-se por alguns tempo em silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o narguilé da boca e dirigiu-se a Alice com uma voz lânguida e sonolenta. ‘Quem é você?’, disse a Lagarta. Não era um começo de conversa muito estimulante. Alice respondeu um pouco tímida: ‘Eu... eu... no momento não sei, minha senhora... pelo menos sei quem eu era quando me levantei hoje de manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde então’ (CARROLL, apud BUJES, 2002, p. 155). A estrutura social do mundo capitalista tem favorecido um controle cada vez maior dos tempos espaços na escola. Há variadas estratégias que são utilizadas no espaço escolar com o intuito de conter, controlar os corpos das(os) alunas(os). Essas práticas podem nos indicar como a criança lida com seu corpo e manifesta sua sexualidade nos diferentes tempos e espaços da escola. Nesse sentido, Guacira Louro (2007, p. 1) enfatiza: Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e espaço de uma forma particular. Mãos, olhos e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente desatentos ou desajeitados para outras tantas. No universo escolar, são utilizadas diversas formas de poder para conter os corpos que nela transitam. O brincar é limitado a um tempo e espaço, quando e onde as crianças procuram romper o cerco destinado a controlar e vigiar os seus corpos. As crianças buscam de todas as formas de resistir às imposições e as estratégias disciplinares exercidas em relação a seus corpos. Para Foucault (2008, p. 146), quando o poder é usado sobre nosso corpo, “[...] emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo sobre o poder”. Esse processo de docilização é iniciado e, constantemente, produzido pelas principais instituições: a família, a igreja, a escola. É no corpo que se instituem as marcas, os estereótipos, e é nele que se investem principalmente as disciplinas para que ele seja docilizado e higienizado. Assim, Foucault (2003, p. 119) afirma: Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder [...]. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe [...]. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. Na obra de Foucault, “Vigiar e punir” (2003), ficam visíveis as estratégias e técnicas para escolarizar e domesticar o corpo humano. O filósofo descreve como o corpo humano entra numa maquinaria de poder e que a finalidade das disciplinas é a fabricação de corpos submissos e exercitados, “corpos dóceis”. Interpretando o pensamento de Foucault, a professora Meyer (2003, p. 34) esclarece: A ciência do século XIX que classifica e analisa o corpo no seu detalhe que vai legitimar uma educação do corpo para torná-lo útil e produtivo. [...] o corpo neste momento era visto como um corpo que não pode nem desperdiçar forças, nem exercitar-se além do desejado – o corpo produtivo. O capitalismo investe no corpo máquina, que produz. “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”, assevera Foucault (2003, p. 119). Nessa perspectiva, o corpo precisa ser domesticado e controlado. Segundo Foucault (2003, p. 118), “[...] é dócil o corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Era preciso governar os corpos, a emergência do capitalismo no corpo disciplinado, manipulado, modelado e treinado para atender aos seus interesses, produzindo o máximo possível da sua força produtiva. Também Bujes (2002, p. 42) esclarece que, nas práticas escolares, se torna fácil identificar como o “[...] poder disciplinar atravessa o corpo infantil através de um interesse crescente pelo monitoramento do desenvolvimento da criança”, numa disciplina que exige um lugar previsível, num tempo previsível, fazendo coisas previsíveis. A mesma autora assevera: “A infância, segundo esse entendimento, passa a ser um campo privilegiado de intervenção social, de controle e regulação, de exercício de poder e de saber” (p. 42). As marcas da escolarização, nos corpos infantis, têm sido evidenciadas nas estratégias e práticas pedagógicas que tentam vigiar, controlar, modelar e corrigir os corpos das meninas e dos meninos que transitam pelo universo escolar infantil. Bujes (2002, p. 34) ainda recorre às ideias de Foucault e reforça que era preciso adestrar o corpo, “[...] tirando o máximo de suas forças, garantindo sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”. E continua a autora: “É o momento da instituição das disciplinas como procedimento de poder que visa a obtenção de corpos dóceis e úteis” (p. 34). Um corpo disciplinado, dócil, mantém uma mente disciplinada, dócil, fácil de ser conduzida. Para Foucault, o exercício do poder cria saber e o saber acarreta efeitos de poder. Nesse sentido, o poder, segundo o filósofo, opera por meio de discursos, especialmente os que veiculam e produzem verdade. As diferentes culturas vêm inscrevendo as novas formas de representação dos corpos (belos, em formas, sem defeitos) e nesse contexto social e histórico, os indivíduos vêm se apropriando do corpo como uma representação de sua identidade. Nessa perspectiva, recorro a Le Goff (1994, p. 8), quando afirma: Os homens – no masculino e no feminino, na infância, na juventude, na maturidade e na velhice, do nascimento até a morte – não vivem apenas no meio dos objectos e dos pensamentos de todos os dias, vivem com seu corpo, por meio de seu corpo. Este objecto de estudo da anatomia, da fisiologia, da biologia, transformou-se também em objecto da história. As representações colectivas do corpo, esse suporte de saúde, da doença, do exercício físico, da sexualidade são diferentes, conforme as sociedades e as épocas. A história do corpo só assume todo o seu significado ao nível do quotidiano. O corpo é o veículo pelo qual o individuo se expressa. Segundo Rodrigues (1975, p. 47), “Estudar a apropriação social do corpo é estrategicamente importante para os cientistas sociais uma vez que ele é sem dúvida, o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais normal patrimônio que o homem possui”. Argumentando no mesmo sentido, Goellner (2005) enfatiza que o corpo não é apenas um corpo, é também o seu entorno, não passa despercebido, é rigidamente determinado pelas prescrições sociais do que cabe à mulher (menina) e do que cabe ao homem (menino) e, assim, é constantemente transformado e reconstruído por diversas culturas. O corpo é uma construção à qual são atribuídas diferentes marcas culturais, em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, políticas e históricas. Concordo com Goellner (2005, p. 29), quando diz: “Não são, portanto as semelhanças biológicas que o definem, mas, fundamentalmente, os significados culturais e sociais que a ele se atribuem”. As interações entre crianças e adultos acontecem por intermédio de seus corpos que estão situados em um contexto sóciohistórico-cultural, que vai determinando e exigindo formas, gestos, expressões que vão domesticando e influenciando cotidianamente o jeito de ser de cada um. O corpo está em plena metamorfose. O indivíduo contemporâneo lida com a cultura, com seus códigos morais que criam sobre os corpos os discursos. É por meio da socialização que a criança vai internalizando crenças, valores e modos de comportamentos, que são adquiridos na relação estabelecida com seus pares, na família, nas instituições que ela frequenta e nos diversos espaços vivenciados (internet, televisão, propaganda, cinema, revista etc.). Essas diversas linguagens implicam relação de poder, pois investem no corpo sinalizando diversas formas de controle, por exemplo: no jeito de vestir, de se comportar, de andar. Rosa (apud SANTOS, 2004, p. 19), ao se reportar ao corpo esclarece: É nesta intersecção, entre aquilo que nos é dado [...] como herança biológica e o que nos é dado como herança cultural, que construímos as representações que constituem o acesso aos nossos corpos. Já não é mais só biologia [...], não é mais só cultura [...]: o corpo que se produz aqui é resultado desta interação; um corpo singular que não se reproduz [...] e, como híbrido, precisa sempre dos dois. Biologia e cultura se hibridizam e constituem um corpo humano. É esta trama que nos constitui. Assim, o corpo é uma produção histórica que estabelece diversas formas de relação de poder. O corpo é significado pela cultura e é, consequentemente, por ela alterado, por meio dos hábitos, códigos, rituais e uma linguagem socialmente situada, que diz sobre o que falar e sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder. O corpo é, portanto, uma construção sobre o qual são conferidas diferentes marcas, a partir de múltiplos discursos. O corpo e a linguagem estão em constante desenvolvimento e aprendizagem. O ser humano, ao longo da história, vai construindo conhecimentos por meio do seu corpo, na convivência, na relação cotidiana que estabelece com o outro. Esse outro pode ser múltiplos artefatos, como a mídia, filmes, internet, revistas, músicas. E também pode se encontrar nos espaços de trocas sociais, como a escola, família e amigos, que fazem parte da cultura que vai internalizando modelos e modos de ser homem e ser mulher e ser menina e ser menino. Nesse contexto, Andrade (2004) nos ajuda a pensar o corpo como um construto social e cultural e, como tal, ele é alvo de diferentes e múltiplos discursos. A literatura que tem examinado essa questão ressalta que o corpo está em plena metamorfose e o indivíduo, ao mudá-lo, busca transformar sua relação com o mundo, segundo o que as especificidades culturais de cada sociedade valoriza em certos comportamentos, em detrimentos de outros. Essa afirmação encontra suporte em Sant'Anna (2000, p. 237) que afirma que o conhecimento do corpo, “[...] é por excelência histórico, relacionado aos receios e sonhos de cada época, cultura e grupo social”. Nesse passo, Sant'Anna se refere à exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo e como ele vem se transformando, se comunicando e se reconstruindo a partir dos significados atribuídos pelos códigos de cada cultura, que vão se constituindo das expectativas corporais socialmente esperadas em relação às meninas e meninos nos diversos lugares por eles ocupados. Nas palavras de Foucault (2008, p. 146), “[...] o domínio e a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a exaltação do belo corpo”. É a cultura da malhação do corpo belo, sarado, lipoaspirado. Cada vez mais pessoas buscam o corpo idealizado. Nesse sentido, o corpo é marcado pela cultura. Recebe referências transitórias e assim ele vai se alterando com a passagem do tempo e adquirindo novos códigos e linguagens. Essa afirmação encontra suporte nas palavras Louro (1999, p. 15), quando exemplifica o quanto os corpos são significados pela cultura, assinalando: “De acordo com as mais diversas imposições culturais, nós os construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais, dos grupos a que pertencemos”. O corpo vai aprendendo na história e carregando as marcas que foram produzidas nas práticas cotidianas que não são fixas; são representações temporárias, efêmeras que vão se incorporando e deixando marcas nos diferentes tempos e espaços. Goellner avalia que, mesmo sendo transitórias, as referências elas “[...] não perdem seu poder de excluir, inferiorizar e ocultar determinados corpos em detrimentos de outros” (2005, p. 33). Nesse mesmo contexto, Goellner (2005, p. 33) evidencia: “Não é sem razão que o corpo jovem produtivo, saudável e belo é um ideal perseguido por um número infinito de mulheres e homens do nosso tempo cujos investimentos individuais demandam energia, dinheiro e responsabilidade”. A prevalecer nessa ótica de análise, trata-se de refletir as complexidades de diferentes construções históricas que são atribuídas ao corpo da mulher (menina) e ao homem (menino) em diferentes sociedades onde o corpo é produzido e (re)significado pelas redes de poder. Um longo aprendizado vai colocando as meninas e os meninos nos lugares que a instituição escolar incorpora em seu cotidiano, penetrando no jeito de ser menina e ser menino, apontando formas adequadas para as crianças ocuparem que são proibidas ou permitidas. A escola desempenha com muita propriedade esse lugar de disciplinar os corpos por um aprendizado eficaz, continuado e sutil. É interessante a interpretação de Louro (1997, p. 61), quando enfatiza: Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se parte de seus corpos. Ali se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. Todos os sentidos são treinados, fazendo com que cada um e cada uma conheça os sons, os cheiros e os sabores “bons” e decentes e rejeite os indecentes; aprenda o que, a quem e como tocar (ou, na maior parte das vezes, não tocar); fazendo com que tenha algumas habilidades e não outras [...]. No entanto, as crianças não são passivas a esses disciplinamentos dos seus corpos, em virtude do acesso que elas hoje possuem, com os veículos de comunicação, que vêm contribuindo para que elas questionem as relações de gênero no espaço escolar e que envolvem relações muitas vezes desiguais de poder. Nesse sentido, percebi que tanto as meninas quanto os meninos reagem, recusam ou aceitam essas formas de feminilidade e masculinidade que a instituição escolar disponibiliza, estabelece e reafirma como sendo a certa ou errada. Há uma vigilância em torno da feminilidade e da masculinidade infantil por parte da equipe escolar. A escola acaba reforçando essa divisão em atitudes rotineiras, como fila separada, a preocupação com uma aluna que só brinca com meninos, o aluno que fica constantemente com as meninas e, assim, as crianças vão aprendendo que seus mundos devem ser separados e se acostumam com referências estabelecidas pela escola, pela família, constatando que determinados gestos, comportamentos e falas são mais adequados para meninas e ou para meninos. A menina é ensinada a ter seu corpo resguardado na forma de sentar na sala de aula, nas brincadeiras e nas interações com o sexo masculino; aos meninos não há esses cuidados em relação à exposição do seu corpo. A ele são permitidas diversas “ousadias” nesses espaços ocupados no contexto escolar. Assim, as crianças vão internalizando funções diferentes aos seus corpos infantis e vão aprendendo identificar diferentes formas de ser menina e ser menino nas suas relações com seus pares e com os adultos. Foucault (2003, p. 117) nos evidência a mecânica de poder dedicada ao corpo: “[...] ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”; esse poder que se situa no corpo social penetrando no cotidiano escolar que se reflete nos brinquedos que são oferecidos tanto para as meninas como os meninos, pois o brinquedo é um elemento cultural carregado de estereotipias em relação à única forma de feminilidade e masculinidade inscrita na cultura escolar que vai deixando marcas nas identidades infantis que estão se constituindo nesse espaço, dando significados ao jeito de ser menina e ser menino. 4.2 CORPO E SEXUALIDADE: um início de reflexão A sexualidade humana é um constructo cultural, tanto quanto os hábitos alimentares e corporais. Nascemos machos e fêmeas e a sociedade nos faz homens e mulheres (MOTT, 1994, p. 6). Oh! Mulher vem me pentear e maquiar! Eu quero me maquiar, pois o meu namorado vem me buscar aqui na escola (JÚLIA). Foucault, em sua obra “História da sexualidade I”, investiga como se consolidou nos últimos três séculos, a noção sobre sexualidade existente nas sociedades ocidentais. A originalidade do autor é refletir a sexualidade num olhar até então não visibilizado, como um dispositivo histórico de poder. O autor esclarece: Todo relação é por conseguinte, uma relação de força e, portanto, uma relação de poder. Por essa razão, o poder não se estabelece apenas de cima para baixo, mas vem de todos os lados, é onipresente, induzindo continuamente estados de poder localizados e instáveis (FOUCAULT, 2006, p. 103). Foucault entende a sexualidade como um dispositivo de poder, o qual não se concentra em um único ponto da sociedade, mas está presente, de forma circular, em todas as relações entre homens e mulheres, meninos e meninas, professoras(es) e alunas(os). Assim, é fundamental compreender o que significa o termo dispositivo para Foucault (1986, p. 57): Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo que, em determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. O que Foucault esclarece é que os dispositivos podem ser de natureza política, de natureza estratégica, de natureza sexual, religiosa etc. E que essas redes de dispositivos de poder perpassam todas as relações como práticas ou relações de poder. O século XVII, segundo Foucault, seria o início de uma época de repressão própria das sociedades chamadas burguesas. A sexualidade humana, por meio da história, manifestou-se por culturas e períodos de abertura sexual intercalado por períodos de proibição. Na visão de Foucault (1988, p. 126): A história da sexualidade, se quisermos centrá-la nos mecanismos de repressão, supõe duas rupturas. Uma no decorrer do século XVII: nascimento das grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo, contenção e pudores imperativos da linguagem; a outra é no século XX; menos ruptura, aliás, do que inflexão da curva: é o momento em que os mecanismos da repressão teriam começado a afrouxar, passar-se-ia das interdições sexuais imperiosas a uma relativa tolerância a propósito das relações pré-nupciais ou extra-matrimoniais; a desqualificação dos perversos teria sido atenuada e, sua condenação pela lei, eliminada em parte; ter-se-iam eliminado em grande parte, os tabus que pesavam sobre a sexualidade das crianças. Foucault descreveu muitos modos por meio dos quais o regime ocidental foi construído historicamente em frente às questões de poder e sexualidade. Para o autor, a sexualidade é uma construção histórica e social, faz parte dos mecanismos de dominação do sujeito e dos grupos, através das relações de saber-poder. Assim, a sexualidade humana tem uma história que é construída pelas diferentes culturas e relações sociais, que pode se expressar de muitas formas. Isso significa que a sexualidade está sempre aberta a novas significações. Os temas sexualidade e gênero têm sido pouco pesquisados na educação infantil, mas estão presentes no cotidiano mesmo que às vezes inviabilizados e ignorados. Segundo Sayão (2007), a produção acadêmica carece de estudos nessa área. Nessa perspectiva, é relevante a discussão da categoria gênero na educação infantil, pois é também nesse espaço social que são evidenciados e construídos os valores e expectativas da sociedade em relação ao ser menina e ser menino. O que alguns estudos têm buscado problematizar é como essas expectativas e diferenças têm sido produzidas e influenciado ao longo da história as construções sociais e culturais nos diversos espaços ocupados pelas crianças, que também educam e produzem conhecimentos. Segundo Louro (1998, p. 87): “São múltiplas as práticas sociais, as instituições e os discursos que cercam os sujeitos, produzindo e reproduzindo identidades, produzindo e reproduzindo diferenças, distinções e desigualdades”. Assim, as crianças vão se expressando, se comunicando em suas experiências e nelas se reconhecendo como meninas e meninos e aprendendo sobre si mesmas e sobre suas relações com o meio em que está inserida. 4.3 CENAS DO COTIDIANO... Quando eu crescer adoraria ser modelo! Pesquisadora: Por que você acha bacana ser modelo? Ah! De ser modelo? Porque desfila na passarela, tirando foto, sai na capa de revista, noticiário, nos jornais. A modelo JÚLIAAAA é a estrela do País! Quando eu crescer, eu vou ser modelo! (JÚLIA). Após o jantar, as crianças retornam para a sala. Júlia, imediatamente, abre sua bolsa, passa brilho mais uma vez nos lábios! Percebo que há uma preocupação com a aparência da menina. Segundo Neckel (apud FELIPE, 2005, p. 55): Se observarmos as propagandas de brinquedos dirigidas às meninas, veremos que elas investem de forma importante na idéia de cultivo a beleza como algo inerente ao feminino [...]. Outros itens se somam aos brinquedos, tais como produtos de maquiagem, roupas e calçados, perfume etc, na tentativa de reafirmar a beleza e a vaidade como algo natural. A cultura do culto ao corpo bonito e belo, a cor do baton, a roupa e a boneca têm penetrado de forma violenta no cotidiano das crianças e não é raro observar que as meninas ficam extremamente instigadas em adquirir esses produtos que estão na mídia. Esses desejos são percebidos nas falas e nas diversas interações das meninas nos espaços e lugares por elas vivenciados. Destaca-se uma cena, no diário de campo (22-10-2008) exemplifica o que se acabou de argumentar: Júlia abre sua “poderosa” bolsa de maquiar e entrega alguns batons para Maria Clara e se senta cruza as pernas e fala: “Oh! Mulher vem me pentear e maquiar!”. Imediatamente se forma um grupinho; Indiomara, Maria Clara, Patrícia uma vai passando baton na outra. Gabriel se aproxima e fica olhando em silêncio. Júlia fala outra vez: “Eu quero me maquiar, pois, meu o meu namorado vem me buscar aqui na escola!”. Nessa cena, observa-se que Júlia está se utilizando da maquiagem para se sentir bonita e apreciada pelo “namorado”. Constantemente, assistimos a propagandas que erotizam as crianças provocando certo ar de sedução, principalmente com as meninas. Dessa forma, as meninas aprendem desde cedo, com esses discursos, que certos comportamentos são adequados, quando se referem aos atributos que a sociedade, a mídia, a internet vem construindo como “certos” para as representações de gênero e sexualidade. E, assim, as crianças vão assumindo atitudes e posições que são tecidas nas experiências vivenciadas que são submetidas pelo discurso mediático e nos lugares em que elas transitam. Aprendem que a beleza exterior é algo a ser conquistado. O desejo de ser modelo é um ideal a ser perseguido por muitas meninas nessa cultura globalizada, que funciona como um valor de pertencimento ao mundo midiático das revistas, jornais e noticiário, como tão bem explicitou Júlia em sua fala: “Quando eu crescer, adoraria ser modelo! Ah! Ser modelo, porque desfila na passarela tirando foto sai na capa de revista, noticiário, nos jornais. A modelo JÚLIAAAA é a estrela do país. Quando eu crescer vou ser modelo!”. Nessa fala, Júlia revela o seu desejo de ser vista, desejada e ter poder. Em um determinado momento da pesquisa em campo, conversando com essa mesma menina, ela expressou: “Eu fico com inveja que a menina tem um sapato que eu não tenho! Eu quero trocar e aí a menina fala: ‘Chegue prá lá!” A mídia televisiva incita e provoca constantemente o desejo nas crianças de consumir brinquedos, roupas e calçados que são veiculados em diversos horários na TV de forma maciça. A reflexão que aqui se coloca trata de desvelar um aspecto importante de ser analisado: como as crianças se utilizam desses discursos da mídia para desejar e cobiçar objetos que são valorizados pelo consumo e que expressam novos modos de se constituírem como sujeitos e de serem reconhecidos pelos seus pares. Bruschi (2003, p. 92) contribui analisando o consumo e afirmando: “[...] a identidade se tornou aplanada e trivializada em termos de estilo, aparência e consumo onde cada um é definido pela sua imagem, bens e estilo de vida”. Em outra situação, observo que Indiomara veio novamente sem uniforme. Desta vez, em função do dia chuvoso, ela está de calça cumprida rosa, blusa rosa e com acessórios rosa: chapéu e sandália. A professora se aproxima e comenta comigo: “Ela nunca vem de uniforme e sempre vem de saia curta”. Percebo que Indiomara vem sempre produzida e com algo que chama a atenção não só das meninas e dos meninos como também da professora. É relevante destacar como a professora analisa a forma de a aluna se vestir, chamando a atenção do modo “ousado” de a aluna vir para a escola. Nos diferentes espaços sociais, inclusive na escola, a menina é cobrada para ter um comportamento de recato, quietude, como uma prática naturalizada no jeito de ser menina. Observando a sala, percebo que as crianças estão agitadas. Thiago fica mexendo nas atividades das meninas, tentando riscar. Elas reclamam com a professora. O barulho aumenta e a professora grita: “Eu não vou pedir silêncio ao Pré mais uma vez!” A turma se acalma! Após a tarefa, a professora solicita que as crianças guardem os materiais, pois está na hora do recreio. A professora se dirige às crianças dizendo que elas podem escolher um brinquedo para levar para o pátio. Elas escolhem uma caixa de pinos. No pátio, as duas salas do Pré se encontram. Na turma do Pré A, as crianças ficam mais soltas, e as do Pré B ficam sempre envolvidas com os pinos de montar. A professora diz que sempre pede que as crianças tragam os pinos com a intenção de que elas se ocupem e não fiquem correndo na hora do recreio. Ela me fala que tem muito medo de que as crianças se machuquem. Será uma forma de controle dos corpos? No espaço do pátio, não há brinquedos para as crianças maiores. Em um pequeno local destinado para às crianças do Berçário, há um escorregador e alguns brinquedos de plástico que imitam uma gangorra. As meninas e os meninos do Pré B entram nesse espaço e pegam os brinquedos da turma do Berçário e começam improvisar: algumas peças viram pranchas de surf (influência da novela Três Irmãs),13 carros e bancos. Nesse espaço, vários grupos são formados: meninas com meninas, meninos com meninos e meninas com meninos. A professora do Pré se aproxima e me fala novamente que sempre leva brinquedo para a hora do pátio, porque tem muito medo de as crianças se machucarem. Percebe-se que as crianças do Pré ficam mais sentadas em função do brinquedo que a professora traz com o objetivo de deixar as crianças mais calmas. Segundo Foucault (2003), o poder disciplinar fabrica corpos submissos e dóceis. Nesse momento, é também visível que muitas crianças procuram transgredir as determinações brincando com seus pares de outras maneiras: correndo, inventando papéis e objetos (carros, pranchas e barcos). Fica claro que as crianças, desde pequenas, procuram transgredir algumas determinações revelando a sua energia, expressividade e inventividades e, assim, junto com seus pares, vão produzindo e reproduzindo cultura nos espaços e tempos por elas habitados. O corpo vem, ao longo dos tempos, preservando diferentes modos de qualidades socialmente valorizados: corpo belo, corpo bem tratado, corpo musculoso, corpo malhado. As crianças não são indiferentes a essas representações vinculadas ao corpo pela mídia, nos outdoors, TVs, cinemas que mostram os corpos com músculos trabalhados, com mulheres e homens evidenciando a necessidade de se sentirem desejados ao se mostrar ao outro. Tais imagens são minuciosamente escolhidas e 13 Novela apresentada pela Rede Globo, às 19h, muito mencionada pelas crianças no período da pesquisa em campo. acompanhadas de comentários que são veiculados pelas propagandas: quem é a boa? Quem é a melhor? Quem é a n.º 1? Esses questionamentos são expressos no duplo sentido, mostrando um corpo de biquíni, com roupas sensuais erotizando ao máximo as propagandas. A publicidade exalta esses modelos de “corpos perfeitos” e, que no imaginário infantil, as crianças vão se identificando com os modelos apresentados e com os discursos veiculados pela mídia no cotidiano e, assim, vão rapidamente externando e naturalizando as “boas” características femininas e masculinas para os corpos. Goldenberg (2002, p. 16) afirma: A preocupação com o corpo, a beleza e a preservação da juventude não é um fenômeno recente. Contra a velhice o homem sempre lutou e o elixir da imortalidade é uma fantasia que, hoje, mais do que nunca, é vendida em terapias genéticas, tratamentos dermatológicos, cirurgias plásticas, reposições hormonais, vitaminas. Assim as crianças vão reproduzindo cultura, conforme registrei no diário de campo (2210-2008): Uma menina se aproxima da professora e fala que um menino da sala do outro Pré disse que as meninas são gostosas. O que uma criança está querendo dizer quando chama as meninas de gostosas? De fato, nos últimos anos, a cultura do corpo-correio, corpo-recado, corpo-outdoor (ROSA, 2004) vem se produzindo e incitando diariamente os indivíduos a consumirem produtos de beleza que prometem a felicidade da “boa forma” aos seus corpos. O corpo virou o objeto de consumo da vez, com os produtos, academias, plásticas e remédios que transformam os corpos, dando-lhes beleza física a partir de determinadas práticas que são interiorizadas por aqueles que apelam por sacrifícios para adquirir um “belo corpo” como ponto de partida para sua identidade. Após o pátio, as crianças se dirigem ao refeitório. Na fila, acontece de tudo: empurrões, brincadeiras, brigas, músicas etc. Observo que Júlia não janta e sempre tem alguma criança que lhe faz companhia. Hoje é Thais, (criança negra), que sempre é excluída das brincadeiras. É uma forma que ela encontra de se sentir aceita no grupo. Depois do jantar, as crianças vão para a sala de vídeo. A professora coloca um DVD que a Júlia trouxe. Ela pergunta o que tem na fita? Júlia responde: “É uma fita que aparece ’O Bilau’ do boneco”. A professora imediatamente se aproxima de mim e diz: “Angélica, você me salva que tem mais experiência”, percebo a dificuldade dela em lidar com questões do corpo e da sexualidade. O DVD conta a história de um sapo que coloca música de rock e dança. Logo Felipe Massa se levanta e dança fazendo gestos de quem estava tocando guitarra. A professora intervém e fala: “GENTE, VOCÊS NÃO ESTÃO ASSISTINDO O DVD?” Os meninos começam a cantar uma música de funk que está passando no clip: esqueletos se rebolando insinuando cenas de sedução. Felipe Massa e Brondim começam a dançar balançando a bunda, a professora fica incomodada e retira o DVD. Os meninos reclamam e ela fala: “Gente, eu passei o DVD para os meninos, agora eu vou passar para as meninas!”. O DVD é o da Xuxa. Os meninos ainda desejavam vivenciar as músicas e fantasias da fita. Fica claro o mecanismo de controle dos corpos, quando a professora retira, de repente, o DVD de música funk e coloca o da Xuxa. Desse modo, pode-se entender o comportamento ‘generificado’, ou seja, a escolha dos DVDs diferenciados para meninas e meninos. As crianças organizam a dança das cadeiras (Júlia, Brondim, Felipe Massa, Thiago e Indiomara), as meninas e os meninos dançam balançando a bunda. Portanto, a mídia incita comportamentos e as crianças imitam sem saber o significado dessas expressões corporais. De repente, a professora desliga o DVD e fala: “Todo mundo para a sala, pois vocês não estão assistindo o DVD”. Marcelo reclama: “Poxa, professora, só as meninas que podem dançar, a gente tava brincando de cabo de guerra”. Percebe-se que faltou capacidade imaginativa da professora para enriquecer a atividade proposta para o grupo, que seria importante ser compreendida e mediada por ela naquele momento. Por meio da brincadeira, a criança internaliza a cultura e recria alguns papéis do mundo adulto. As crianças estão sentadas fazendo atividade, Indiomara se aproxima da professora e fala que Brondim disse que é para ela não esquentar a perereca. A professora diz a Brondim que não é para ele dizer essas coisas. A atitude da professora em não problematizar a fala do aluno, tentando transferir a responsabilidade para a criança, em relação à exposição da sua fala, contribui certamente para o silêncio, que, dessa forma, vai regulando os gestos, os modos e a comunicação. Segundo Weeks (2007, p. 40) “[...] a sexualidade é, na verdade, “uma construção social”, uma invenção histórica, a qual, naturalmente, tem base nas possibilidades do corpo: o sentido e o peso que lhe atribuímos são, entretanto, modelados em situações sociais concretas”. Desse modo, pensando nas crianças, essas experiências e construções culturais é que a vão dotando de valor e importância, à medida que são vivenciadas por elas. A fala da(o) professora(o) é muito importante nesse contexto, pois ocupa um lugar preponderante na mediação das relações das crianças com a cultura e suas descobertas. O episódio a seguir, observado na sala de aula, exemplifica a relação das crianças com a música: Indiomara se aproxima e me pergunta se conheço a música do creu? Brondim se levanta e começa a dançar, balançando o corpo para frente e para trás. As crianças veem e ficam agitadas. Marcelo, Brondim e Felipe se deitam no chão e se remexem, fazendo movimentos alternados para cima e para baixo. Pesquisadora: Chego perto e pergunto: O que vocês estão fazendo? Felipe responde: Creu! P: O que é creu? Felipe diz: Creu é creu!!! E faz o movimento com o corpo para frente e para trás. Patrícia : Tia, Creu é uma música! Pesquisadora: Insisto e pergunto Brondim o que é Creu? Ele encosta seu corpo na parede e faz movimentos para frente e para trás e fica sorrindo. Marcelo, Felipe, Felipe Massa e Wellison fazem o mesmo movimento: ficam se esfregando na parede e sorrindo. Pesquisa: Aonde vocês ouvem a música do creu? Marcelo responde: Toda noite passa um carro tocando a música do Creu, lá no cruzamento. Pesquisadora: Aonde é o cruzamento? Marcelo: É bem ali na pedra (DIÁRIO DE CAMPO, 16-10-2008). O envolvimento de crianças com a música começa muito cedo ou até mesmo antes de nascer, na fase intrauterina. Hoje, cada vez mais, assiste-se às crianças cantando e dançando ao som de música com letras altamente erotizadas e preconceituosas, por exemplo: “Um tapinha não dói”, a dança da garrafa e a dança do creu. As meninas e os meninos dançam e repetem gestos carregados de erotismo. Muitas vezes, elas não têm conhecimento e clareza daquilo que estão cantando e imitando. A naturalização da erotização na cultura, por meio da música, com forte apelo sexual, tem adentrado no universo infantil de forma preocupante e assustadora. A criança influenciada por esses artefatos culturais, vai internalizando valores, modelos e preconceitos do mundo adulto que ficam evidenciados em determinadas condutas, no jeito de ser menina e menino. Para Sarmento (2004, p. 2), “O imaginário infantil constitui uma das mais estudadas características das formas específicas de relação das crianças com o mundo”. Assim, as crianças não são receptoras passivas das produções culturais dos adultos, da mídia e da escola; elas vão se comunicando e estabelecendo regras, rituais, pactos e segredos por meio do que observam, vivenciam e ouvem. Foto 9 - Os segredos e pactos estabelecidos Uma tarde, depois de eu ter observado as crianças nos diversos espaços e tempos da escola, escuto Felipe e Brondim sorrindo e cantando a música: “Eu puxo seu cabelo, faço que você gosta, tô tapa na bundinha, vou de frente, vou de costa” (DIÁRIO DE CAMPO, 20-10-2008). As crianças, desde cedo, vão reproduzindo os valores, as discriminações, em relação à mulher como um objeto sexual, deixando transparecer a erotização precoce estimulada pela mídia. Isso suscita uma indagação: será que a criança, em contato e exposta a esses valores transmitidos pela publicidade, acaba por influenciar o processo da sua subjetividade de uma sociedade que vê o corpo como algo a ser explorado, como uma forma de poder e de força? Weeks (2007, p. 46), em seu artigo “Corpo e sexualidade”, provoca a discussão em relação às intricadas formas de poder que sobressaem na nas relações afetivas e sexuais. E, assim, questiona: “Por que a dominação masculina é tão endêmica na cultura? Por que a sexualidade feminina é vista tão freqüentemente como subsidiária da sexualidade do homem? Quais são as forças culturais que modelam nossos significados culturais?”. Nesse sentido, as crianças vão se apropriando desses elementos culturais expostos pela TV, mídia, filmes, brinquedos e internet, que exercem, de forma significativa, as representações da sexualidade e de gênero em seus discursos e vão constituindo e ensinando o jeito ser mulher e ser homem e, conseqüentemente, o jeito de ser menina e de ser menino. Concordo com Silva (2007, p. 134), quando enfatiza: “A cultura é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder”. Assim, a criança, desde cedo, vai aprendendo, por meio da cultura a que é submetida diariamente, esse “jogo de poder” e vai estabelecendo processos de significações, recriando o seu mundo e produzindo cultura: Após brincarem no recreio e retornarem para a sala, as crianças faziam atividade proposta pela professora, quando, de repente, Júlia mostra um dinheiro de papel dizendo que é de verdade. Thiago se aproxima, segura seu pênis e diz: “Aqui, ô é que é de verdade!” Júlia chama a professora e ela diz para ele não fazer isso e ir sentar-se (DIÁRIO DE CAMPO, 11-12-2008). A escola, muitas vezes, prefere silenciar e proibir essas manifestações e linguagens cotidianas das crianças, em vez de interpretar e problematizar a capacidade delas de (re)inventar a cultura em suas experiências. As crianças não são passivas a todas essas manifestações que são produzidas socialmente que vão incitando sua curiosidade, sua imaginação, sua fantasia. Esse diálogo revela como a infância está sendo constituída a partir dos artefatos culturais, como a música que é veiculada na TV, nos rádios, CDs e nos espaços públicos que as crianças frequentam. Nessa observação do diário de campo, fica evidenciado que, quando Júlia chama a professora, ela quer revelar o lugar do adulto naquele momento e espera que a professora tenha uma atitude em relação ao gesto do colega. Nesse sentido, Júlia espera que a professora não seja uma mera observadora, porém a professora não problematiza a situação e assume a postura de conter o corpo, evidenciando ao aluno como uma atitude inadequada, a sua atitude e determinando que ele fique sentado. O comportamento da professora nos permite perceber o poder que ela investe por meio de uma marcação fixa aos modelos, regras já existentes, estabelecendo o que é “certo” ou “errado”. Nesse sentido, Foucault (1998, p. 117) afirma que a organização do tempo e dos espaços das instituições modernas, dentre elas a escola, produzem o esquadrinhamento dos corpos por meio das regras de comportamento, das punições e recompensas é “[...] ao corpo que se manipula, se modela se treina, que obedece , responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”. A criança em seu processo de socialização, vai internalizando valores, crenças, normas sociais que vão contribuir para o processo de formação social, corporal e cultural que são transmitidos por ela, por meio da fala, dos gestos e das brincadeiras. Em sua pesquisa sobre gênero e infância, Wolff (2006, p. 18) ressalta: “Na voz das crianças podemos notar que, desde pequenas, elas já se acostumam a ‘classificar’ determinados hábitos, comportamentos gestos, falas e atitudes como sendo adequados e próprios para homens e mulheres”. Nesse sentido, nós, pesquisadoras(es), temos que nos desafiar cotidianamente a reiterar a importância de, cada vez mais, aprender a ouvir as crianças nas suas diferentes infâncias e culturas. As crianças vão construindo suas identidades nas experiências com o ambiente físico e social e, assim, vão captando e elaborando formas de ser menina e menino nas relações sociais. Louro (1997, p. 27), ao abordar esse assunto em suas pesquisas, assinala que “[...] as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento”. A criança vai construindo sua identidade mediante suas relações, na escola, na família, na rua, com seus pares, nas brincadeiras. A identidade é dinâmica, transitória e vai sendo construída de diferentes formas nas diversas culturas e representações infantis. Outra cena observada na pesquisa de campo foi a música como um artefato cultural que favorece ao menino uma visão empobrecida das relações estabelecidas entre o homem e a mulher que são carregadas de preconceitos: Felipe se aproxima e começa a cantar: “O que é que faço, eu sou maluquinho, tô cheio de mulher, cada um pega um pouquinho. Não quero perder ninguém”. Pergunto aonde ele ouviu essa música? Felipe responde: “Tiago, amigo de Brondim que me ensinou!” (DIÁRIO DE CAMPO, 22-11-2008). Aos meninos é ensinado desde cedo que o homem deve ser o “pegador”, atribuindo a condição de ser macho aquele que tem várias namoradas, que é machista, moleque e esperto. Os meninos aprendem entre si algumas atribuições sexistas que são naturalizadas por grande parte dos adultos com quem eles convivem. Na educação infantil, embora o ambiente esteja a cargo basicamente de mulheres, percebem-se algumas atitudes que são carregadas de significados que reforçam, muitas vezes, habilidades e competências diferenciadas por sexo e gênero. Tanto as meninas quanto os meninos vão interpretando esses comportamentos como atribuições femininas e masculinas, que muitas vezes são justificadas pelas diferenças biológicas. A pesquisa de Finco (2007, p. 102), aponta: Meninos e meninas desenvolvem seus comportamentos e potencialidades no sentido de corresponder às expectativas quanto às características mais desejáveis para o masculino e o feminino. Muitas vezes a escola orienta e reforça diferentes habilidades nos meninos e nas meninas, de forma sutil, transmitindo expectativas quanto ao tipo de desempenho intelectual mais adequado para cada sexo, manipulando sanções e recompensas sempre que tais expectativas sejam ou não satisfeitas. Assim, as crianças controlam seu comportamento pelos limites impostos pela escola, vivenciando o que é permitido e o que é proibido, porém, muitas vezes, elas burlam essas regras, de acordo com seus desejos, necessidades e, dessa forma, vão exercendo sua imaginação e fantasia. No pátio, na hora do recreio, Júlia me chama e pede que eu tire uma foto sua. Percebo que Júlia está fazendo de conta que está grávida. Pesquisadora: Júlia, você está grávida? Júlia: Sim, estou! O safado de alguém me largou e ficou com outra. Eu vou ficar com minhas filhas (DIÁRIO DE CAMPO, 05-10-2008). Júlia continua me pedindo para tirar várias fotos e faz muitas poses. De repente Júlia me fala que o neném vai nascer! Indiomara me chama para ver o parto. Júlia se deita em um escorregador do berçário que é improvisado como uma cama. Indiomara faz o parto com ajuda de Maria Clara e Juliana. Júlia coloca a blusa que estava fazendo de conta que era o bebê e põe nos braços como se tivesse amamentando. Thiago chega perto e puxa dos braços de Júlia a camisa e sai correndo. Júlia sai correndo atrás e depois de um tempo Thiago joga a camisa no chão. Júlia coloca a camisa de novo na barriga e fica grávida novamente e diz: Não tem problema eu tenho meu filho mês que vem! (DIÁRIO DE CAMPO, 5-10-2008). Foto 10 – (Re) significando o mundo adulto 4.4 AS INTERAÇÕES DAS CRIANÇAS Sou a Barbie girl. Se você quer ser meu namorado, fique ligado, preste atenção na minha posição é diferente, sou muito inteligente. Ande Barbie, Ande Barbie... Já vou... Já vou... (JÚLIA, cantando a música de Kelly Key) No recreio, fiquei observando um diálogo entre duas meninas: Patrícia se aproxima de Júlia e pergunta: Júlia, você gostou da Barbie que lhe dei? Júlia balança a cabeça dizendo que sim. Pesquisadora: Você gosta da Barbie? Júlia: Eu nunca tive uma Barbie, a Patrícia me deu uma que parece a Barbie. A boneca que Patrícia deu a Júlia imita a Barbie. Tem diversos acessórios: bota, chapéu, anel e bolsa. De vem em quando, Júlia tira a boneca da caixa e fala que vai arrumar a filha para ir ao baile. Dirijo-me a Patrícia, Indiomara e Júlia e pergunto novamente: Vocês gostam da Barbie por quê? Então Júlia começa a cantar: “Sou a Barbie girl. Se você quer ser meu namorado, fique ligado, preste atenção na minha posição é diferente, sou muito inteligente. Ande Barbie, Ande Barbie... Já vou... Já vou... Pesquisadora: E a Barbie tem namorado? Júlia: Não, é a música de Kelly Key. Indiomara diz: Eu gosto da Barbie e da Polly. A minha Polly no DVD é de funk!!! Tem Polly também com carro de corrida, Polly vai ao shopping e também navio da Polly (DIÁRIO DE CAMPO, 27-10-2008). Na fala da Indiomara, percebe-se que não basta ter só um modelo de boneca, é necessário ter todas as variedades e modelos possíveis. O constante apelo da mídia e as propagandas maciças na TV instigam a criança a desejar ter sempre mais, ou seja, os modelos recém-lançados nas lojas de brinquedos (mesmo que não sejam “de verdade”, originais). As crianças viraram consumidoras para o mercado, como nos alerta STEINBERG (apud FELIPE, 2005, p. 55) chamando a atenção para o fato de as “[...] crianças terem sido descobertas como consumidoras em potencial a partir da década de 50 do século XX, com o surgimento de novas tecnologias produzidas após a Segunda Guerra Mundial”.14 Hoje as crianças ocupam um lugar de destaque como consumidoras em praticamente quase todas as campanhas publicitárias e também como anunciantes em propagandas para o mundo infantil. Muitas delas expõem as crianças em poses sensuais nos outdoors, revistas, TV, músicas e jornais. Foto 11 - Partilhando experiências 14 Mary Del Piore (2007), na apresentação de seu livro Histórias das crianças no Brasil, destaca como o comércio e a indústria de produtos infantis vem aumentando progressivamente sua participação na economia do país. Nos estudos de Finco (2007) evidencia-se como os brinquedos possuem uma ação carregada de significados, expectativas que vão influenciar na corporeidade das meninas e dos meninos. Geralmente as bonecas são magras, loiras, brancas e usam roupas e acessórios do mundo adulto. Assim, as crianças vivem um processo de adultização precoce, ao desejar consumir objetos e produtos do mundo adulto que vão se tornando uma fonte de identidade para as crianças consumidoras de tais objetos. Muitos espaços das escolas de educação infantil são decorados com esses artefatos (bonecas, brinquedos e jogos) e esses objetos passam a fazer parte do universo da criança como “gosto infantil”, uniformizando todas as crianças em relação às suas escolhas. Cunha (2007, p. 141) identifica: As produções culturais, sejam elas quais forem, programam nosso olhar sobre o mundo, definem e hierarquizam o que é bom, bonito, mal, feio e isto implica em estabelecer diferenças, territorialidade, força de poder, inclusões e exclusões sociais, de quem pertence e quem não faz parte daquela esfera sociocultural. Essas imagens invadem a vida das crianças por diversos lugares por elas ocupados por exemplo, a escola, sua casa, a TV, o cinema e as propagandas veiculadas pela mídia que vão impondo um olhar consumidor pela cultura midiática, daí resultando a necessidade de se levar em conta a heterogeneidade dos mundos sociais e culturais das crianças. Quinteiro (2002, p. 22), nos instiga sobre os saberes constituídos sobre a infância e a criança e faz relevantes questionamentos a respeito das culturas infantis, quando pergunta: [...] Afinal o que sabemos sobre as culturas infantis? O que conhecemos sobre os modos de vida das crianças indígenas, negras, brancas? O que sabemos das crianças que freqüentam a escola pública? Como aprendem? O que aprendem? O que sentem? O que pensam? Os estudos realizados pela Sociologia da Infância também contribuem para a necessidade de conhecer melhor as crianças a partir delas mesmas, do que gostam, do que fazem, do que dizem, do que pensam em todos os espaços que transitam. Sabe-se que, entre diferentes culturas, existem relações de poder e dominação, que devem ser analisadas, nas ações educativas do espaço escolar, que, por muitas vezes, tendem a ser preconceituosas em relação à orientação sexual e gênero. Desse modo, é relevante pesquisar as experiências das crianças com seus pares nos diversos espaços que elas transitam, (re)significando essas vivências dos fenômenos sociais em suas emoções, desejos e ações. Diante disso, Vasconcellos (2007, p. 8) afirma: As crianças contemporâneas estão em contato – de forma direta ou não – com várias realidades e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e social. Vivem e interagem intensamente com outras crianças, partilhando experiências, quase sempre em situações mediadas por adultos, mas fazem-no de forma singular, ressignificando a cultura que lhes é apresentada, apropriando-se, reproduzindo e reinventando o mundo, dando sentido à riqueza que a língua portuguesa nos confere com o étimo da palavra latina “criança” (“creantia”): irmã de criatura, criadora, inovadora, possibilidade constante de reinvenção da vida. O estudo da infância requer um novo olhar na criança, que passa a ser compreendida como ator social, que pensa e concebe o mundo à sua volta, que produz cultura e a (re)significa para mundo que a cerca. Concordo com Quinteiro (2002) que enfatiza que investigar a infância, portanto, requer do pesquisador conhecimento da história e da condição social da criança, pois significativas transformações políticas, sociais, culturais e econômicas vêm ocorrendo e são indispensáveis para a construção desse novo olhar das Ciências Sociais em relação à infância. Durante a pesquisa, fui observando como as crianças vão construindo suas relações sociais por meio das linguagens e significados culturais que elas vão aprendendo com as outras crianças e com os adultos com os quais elas convivem no cotidiano da escola, na rua e nos diversos artefatos culturais que fazem parte do seu dia a dia, que contribuem para a construção das suas brincadeiras e expressões. Nesse sentido, as crianças vão se apropriando da cultura que vai emergindo nas manifestações e falas do mundo adulto e infantil. As mensagens produzidas pela publicidade estão fazendo parte cada vez mais do universo infantil e, dessa forma, vão influenciando o jeito de ser das crianças. Ao observar as crianças no cotidiano escolar, fui percebendo como elas vão produzindo e estabelecendo relações que expressam suas culturas, suas falas, seus sentimentos e, assim, vão emitindo impressões ativas sobre o mundo e vão conquistando seu lugar de sujeito de direito que tem vez e voz na realidade em que se encontra estabelecida. Ao abordar esse assunto, Jobim e Souza (2008, p. 24) fala da importância de a criança ser reconhecida como sujeito, quando afirma: “Sendo sujeito, a criança não pode permanecer sem voz”, pois é, por meio das suas dimensões relacionais que ela exprime suas culturas pelo diálogo com o outro e, desse modo, vai se tornando ator social e cultural. As crianças do CMEI estão inseridas num contexto social irremediavelmente marcado pela violência, daí as suas expressões, músicas e linguagens retratarem cada vez mais os conflitos sociais a que elas são submetidas diariamente. Todavia, as crianças têm a capacidade de (re)inventar o seu mundo, nas condições da mais dura adversidade, no momento em que tudo falta para sua sobrevivência. Para Sarmento (2004, p. 4): “As culturas da infância transportam as marcas dos tempos, exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade”. A criança, então, tem a capacidade de recriar o mundo, não importando sua condição social, pois é o contexto social e cultural que irá possibilitar que elas se relacionem com as outras crianças e com os adultos na significação do mundo, produzindo cultura. Nesse sentido, as crianças vão se apropriando desses elementos culturais expostos pela TV, mídia, filmes, brinquedos e internet, que exercem, de forma significativa, as representações de sexualidade e de gênero em seus discursos e vão constituindo e ensinando o jeito ser mulher e ser homem, e consequentemente, o jeito de ser menina e de ser menino. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A viagem chega ao fim ou ao começo? Durante a pesquisa, perguntava-me aonde iria chegar com as experiências vividas com as crianças que me fascinavam, desafiavam. Ao mesmo tempo, diante dos meus olhares, vivi inquietações, aprendizados e desafios diários. Pensava que fazer pesquisa é movimento, são encontros, desencontros e um desarranjar de certezas. Como bem explicita Louro (2004, p. 13) sobre a metáfora da viagem “[...] o que importa é o andar e não o chegar”. A autora nos instiga a refletir sobre as travessias, deslocamentos e escolhas que fazemos em nossas “viagens”. Assim, escolhi as crianças para atravessar as fronteiras, percursos, experimentar surpresas e transgressões das-nas-com suas infâncias. Portanto, aprendi com elas e comigo que pesquisar é uma viagem contínua, inacabada que aponta alguns caminhos, pistas, estratégias, rotas, percursos com chegadas e partidas sem fim, inconclusas e contínuas. Este trabalho teve como foco compreender como as crianças lidam com as suas relações de gênero no cotidiano da educação infantil. Para isso, relacionei alguns objetivos que ajudaram a estudar a temática, analisando os elementos culturais e sociais que mais sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino no cotidiano da educação infantil, identificando como as crianças definem e demarcam a sua condição de gênero nos diferentes tempos e espaços do CMEI e também observando como as trocas culturais são estabelecidas entre as crianças. Para responder a essas questões, analisei as falas das crianças nas entrevistas, nas narrativas, nas interações diárias com seus pares e com os adultos nas relações estabelecidas cotidianamente. As narrativas das crianças esclarecem que é na relação social que o gênero vai se constituindo. Em seus diálogos, elas vão evidenciando alguns valores sociais e culturais que circulam no contexto de suas vidas e que elas vão produzindo e (re)produzindo nos seus modos de se expressar, de sentir, olhar, brincar e viver. Na fala de uma criança, fica muito presente como ela reproduz discursos e modelos de comportamentos moldados e naturalizados pela cultura, quando ela diz: “Tem uma menina que finge mais falou que quer ser homem. Ela fica igual a um homem. Não fica comportada como a gente”. Nessa fala, fica demonstrado o jeito de ser menina e de ser menino no espaço escolar. Esse “jeito” de ser menina e menino fica definido e demarcado desde muito cedo do modelo esperado para as meninas e meninos, nas suas formas de ser-fazer-querer em diversas instâncias, como a escola, a família e a mídia. A sociedade espera que as meninas sejam meigas e quietas, e os meninos agitados e largados (impulsivos e levados).15 De tal modo, a criança, um sujeito concreto que se constitui histórica e socialmente por meio das suas interações com o meio social, vai revelando e interpretando o mundo que a cerca nas suas experiências com o outro e vai indicando e atribuindo significados às suas maneiras de ser-fazer. Ao entrevistar as crianças, ficaram evidenciados, em suas falas, os lugares que vão sendo construídos socialmente para as meninas e meninos, quando se expressaram em relação às práticas sociais vivenciadas por elas: “Ser criança é estudar, trabalhar, ajudar a mãe em casa, ajudar a mãe limpar a casa, ajudar a mãe a lavar as vasilhas. Ajudar a mãe é lavar a roupa, ajudar a mãe ´drobra` a roupa e a ajudar a mãe a cuidar dos nenéns” (JULIANA). “Um dia, eu tava lá em casa, aí meu pai nem falou nada, aí eu fui lá e varri a casa, arrumei as duas camas, da minha mãe e a minha e arrumei o sofá e fiz tudo!” (MARIA CLARA). “A menina bota saia e o menino não bota, a menina tem cabelo grande, por ‘causo’ o menino não tem cabelo grande e usa blusa de florzinha assim, bota xuxinha, bota brinco, bota cordão” (BRONDIM). “Vocês são umas doidonas” (BRONDIM). Menino referindo-se às meninas dançando a dança do Creu. Constatei que as crianças vão dando algumas pistas desse lugar e jeito de ser menina e menino nas relações sociais estabelecidas na sala de aula, nos corredores, no pátio, no refeitório, na fila, no banheiro, em todos os espaços sociais pelos quais circulam. Nesses espaços, fui percebendo como elas estabeleciam as relações de gênero e de poder nos modos como se organizavam e negociavam os conflitos, resistindo a algumas normas e lugares destinados às meninas e aos meninos. 15 Rego (1995, p. 58) afirma que: “O desenvolvimento está intimamente relacionado ao contexto sócio-cultural em que a pessoa se insere e se processa de forma dinâmica (e dialética) através de rupturas e desequilíbrios provocadores de contínuas reorganizações por parte do indivíduo”. Um dos aspectos inicialmente observados na pesquisa é que a escola também institui lugares para as meninas e para os meninos, quando a professora diz: “Não chore, você é macho”. Observei que há comportamento considerado como “natural” para os meninos, pois, nas construções sociais e culturais, o comportamento do menino é marcado pela coragem e valentia, a ele não é dado o direito de chorar e ser emocionalmente frágil e dengoso, comportamento esse tido como “natural” para as meninas. Assim, a escola vai “fabricando” o lugar da menina e do menino, como evidencia Louro (1997) em sua pesquisa. As crianças vão reproduzindo essas práticas culturais e sociais em que estabelecem divisão nas brincadeiras, quando afirmam: “O menino gosta muito de jogar bola, a menina não gosta. Os meninos batem muito nas meninas as meninas não gostam, aí a gente num, também não gosta que bate só na gente, não! Aí eles batem muito nas garotas, eles jogam futebol e a gente não gosta!” (INDIOMARA). Na pesquisa em campo, observei como as crianças incorporam comportamentos, atitudes que produzem e reproduzem em suas relações, modos de ser menina e ser menino que trazem consequências para a sua convivência com o grupo, quando explicitam, por exemplo, em relação ao menino brincar de boneca: “Porque boneca é uma coisa que foi inventada para a menina não 'pru' menino!”, ou, então, admitem, mas na condição de o menino assumir o lugar de pai, irmão, filho e colega dizendo: “Claro que pode, pode ser pai com certeza”. Todavia, percebi, durante a pesquisa, que as crianças estão tentando mudar o olhar e suas atitudes em relação a essas diferenças construídas socialmente, quando verbalizam: “Os 'menino' também pode brincar, porque um dia, estava brincando e Brondim veio brincar com a gente de boneca, a gente brinca tudo certinho, só tem vezes que eles ficam olhando”. O universo infantil é socialmente construído tanto pelas crianças como pelos adultos. Na família, na escola, na mídia, as crianças são estimuladas, desde cedo, a demarcar e separar, em suas brincadeiras, as diferenças do universo feminino e masculino, quando elas evidenciam isso dizendo: “Porque há diferença, menino gosta de carrinho e menina de boneca, Aí a boneca ela gosta muito, gosta de brincar, a gente brinca muito aqui, na escola!” (INDIOMARA). Assim, por meio das observações em campo, foi possível verificar que se cria uma divisão nas brincadeiras das crianças quando a professora comenta: “Hoje eles estão como gostam”, referindo-se aos meninos jogando futebol. Nesse comentário, percebese que a bola e o futebol são brincadeiras destinadas aos meninos. A escola vai atribuindo ao corpo e ao gênero modos de ser menina e menino com brincadeiras diferenciadas, e as crianças, muitas vezes, acabam internalizando essas práticas que sobressaem no cotidiano escolar que se configuram de um determinado modo e não de outro. Essas aprendizagens em relação ao gênero, internalizadas na infância, vão se desdobrando nas relações estabelecidas pelas crianças durante suas vidas e ora são reproduzidas, ora elas são transformadas e recriadas num contínuo processo de reinvenção. À medida que ia observando as relações estabelecidas, percebi que é na brincadeira que a criança vai representando e se apropriando das experiências que são significativas para ela e assim vai demonstrando nas suas interações. As meninas, geralmente, gostavam de brincar de salão de beleza, desfile, dança e representar a mãe nas tarefas diárias, como: cuidar das crianças, lavar as roupas, fazer comida etc. A questão com a beleza ficou muito evidente as meninas diariamente passavam baton e glos. Os meninos brincavam com jogos de encaixe, “lutinha”, carrinhos e também representavam a violência que eles vivenciavam no contexto de suas vidas, montando armas com as peças de encaixe. Nos múltiplos espaços observados, percebi que a criança vai absorvendo as regras sociais que lhes são transmitidas, porém ela também produz cultura nas relações estabelecidas com seus pares, com os adultos, com os objetos e com o ambiente. Foi possível identificar, ao analisar as falas das crianças, que elas vão tentando buscar formas de negociações aos padrões preestabelecidos. Em algumas brincadeiras, admite-se que meninas e meninos brinquem juntos, como corda, pula-pula, piqueesconde, pique-alto, pique-gelo, pique-parede, pique-estátua, garrafa envenenada, voley. Quanto ao futebol, também foi evidenciado por algumas crianças que a menina pode jogar bola e futebol. Dessa forma, as crianças vão rompendo com a separação e a diferenciação em relação ao futebol ser considerado um esporte do universo masculino e, assim, elas vão quebrando fronteiras ao lidar com modos de viver as relações de gênero nos espaços por elas vivenciados, de acordo com o momento e o tipo de relação estabelecida. Com referência às questões de gênero, observei que ainda persistem práticas conservadoras no discurso, quando a professora substituta se aproxima e diz: “Tenho dúvida em relação ao sexo dessa menina”, referindo-se a uma menina que constantemente brinca com os meninos e, também, quando escreve na lousa se reportando unicamente ao menino (“aluno”). Desse modo, a escola vai atribuindo crenças e valores de uma sociedade que está preocupada em determinar atributos e não adotar práticas que rompam com essas amarras construídas culturalmente de sempre se referir às meninas e aos meninos como “alunos”, fixando o masculino plural para se reportar às alunas e aos alunos. Durante a pesquisa, observei em que medida o poder é exercido nas práticas cotidianas na sala de aula, no pátio, no refeitório entre as crianças. Em uma situação de conflito entre meninos a fala de um deles foi muito significativa, quando se referiu a um colega: “Ah! O Marcelo é fraquinho!!! O Thiago só gosta de bater em que é fraquinho; nos fortes ele não bate”. Nesse registro, fica evidente o que Foucault (2006) esclarece a respeito das disputas entre os sujeitos: o poder está em todas as partes, em todas as relações, num movimento contínuo. A organização da fila é também um espaço de disputa do lugar principalmente da frente. Nesse momento, as meninas e os meninos se enfrentam com empurrões, xingamentos, brigas e choro. A fila é separada: fila de meninas e fila dos meninos. Essa prática de dividir as crianças é naturalizada nos diversos ambientes que são ocupados por elas. Há uma fala bastante significativa, em relação ao que acontece nesse momento: “A gente tá descendo ali na fila de mão dada menina com menina e vem lá e corta, quase quebra o braço da gente! A gente quando era de outra sala, num tem outra professora, era menino com menina de mão dada! Quando a gente dava a mão, era melhor, quando a gente tava na outra sala eles eram melhores, não eram assim, agora vai mudando de sala vai ficando assim: É... cortando, não deixando dar a mão, machucando e não era assim! Quando a gente era menor, a gente dava a mão, a gente brincava, pulava, agora é assim!” (MARIA CLARA). Já no refeitório, há sempre a disputa pelo lugar da ponta na mesa do lanche, que é geralmente cobiçado pelos meninos. No CMEI pesquisado, percebi que há regras e normas para tornar as crianças disciplinadas e dóceis. Isso que foi se tornando evidente nos discursos dos adultos e das crianças. Segundo a premissa foucaultiana, o poder está centrado nas práticas sociais e nas experiências que são produzidas num determinado tempo e lugar. Nesse sentido, o tempo e o espaço na rotina da escola ficavam evidenciados nas discursividades: “Só quem pode pintar é quem já acabou a tarefa” (PATRÍCIA) e “Quem terminou tem que ficar esperando o colega sentado e não pode levantar” (PROFESSORA). Considerando essa realidade, posso afirmar que, na escola, são utilizadas diversas formas de conter o corpo. Observei que as crianças tentam resistir às imposições disciplinares em relação aos seus corpos, porém essas práticas de controle exercidas no cotidiano evidenciam que elas às vezes incorporam gestos e expressões do mundo adulto, quando, em suas brincadeiras, determinam: “Vão sentar e fiquem caladas”. Essa fala mostra que, apesar das resistências por parte das crianças em não aceitar algumas normas e regras, isso não significa que elas tenham conseguido escapar das práticas sociais e culturais historicamente construídas. No universo da educação infantil, há uma forte relação com as práticas que circulam na sociedade da criança “quieta”, “dócil” e “comportada”. Assim, foi possível perceber, nas manifestações das crianças, por meio das brincadeiras, jogos, falas que o menino é considerado como mais violento e mais forte quando as meninas se referem às brigas em relação ao bater no colega e expressam: “Bem, as meninas são mais calmas, os meninos, nossa! Não dá para agüentar os meninos não gente! Eu não aguento, alguns batem, alguns xingam! As meninas não”. Nessa fala, há um discurso de fragilidade por parte das meninas, embora elas, muitas vezes, tentassem romper enfrentando os meninos como uma forma de ocupar esse espaço socialmente atribuído ao menino “de ser mais agitado e forte”. Constatei, também, que tanto as meninas quanto os meninos resistiam em se adequar a algumas regras e normas da sala, o que me possibilitou compreender como elas vão explorando os espaços e as situações. Ficou evidente que elas e eles sabem que nem sempre a vigilância e o controle por parte dos adultos vão impedi-los de burlar e realizar os seus desejos pessoais, como ir ao banheiro, beber água ou sair da sala para dar uma “voltinha” na escola. A “fuga” é uma forma de expor que a criança pode transgredir o que não é permitido, resistindo às regras que lhes são impostas no universo escolar. Portanto, a compreensão da criança e infância como possibilidade de apropriação, transformação e produção das culturas infantis é papel fundamental do educador/pesquisador. A análise e a autorreflexão da prática cotidiana, por meio de um olhar e escuta atentos às vozes infantis, tiveram como objetivo dar visibilidade às crianças e suas infâncias. Instigada pelas leituras da Sociologia da Infância durante o trabalho de pesquisa fui levada a refletir sobre as infâncias que vêm sendo produzidas. Assim, nessa perspectiva, busquei investigar não sobre as crianças e sim com as crianças e a partir delas. Assim, a partir das vozes infantis, pude conhecer (compreender) melhor o jeito de ser da menina e do menino nas experiências vivenciadas com elas durante todo o processo da pesquisa em campo, quando elas e eles explicitaram o que gostam, o que pensam e o que fazem nos diversos espaços em que transitavam. Na pesquisa, ficou evidente como as crianças vão construindo suas relações sociais por meio das linguagens e significados culturais que elas vão aprendendo com as outras crianças e com os adultos com quem elas convivem, no cotidiano da escola, na rua e nos diversos artefatos culturais que fazem parte do seu dia a dia e que contribuem para a construção das suas brincadeiras e expressões. Nesse sentido, as crianças vão se apropriando da cultura que vai emergindo nas manifestações e falas do mundo adulto e infantil. Diante disso, constatei que as culturas infantis, em cada tempo, em cada lugar, obedecem a algumas exigências sociais, o que tem conseqüência na constituição de novas sociabilidades entre as crianças e nos modos como elas interpretam o mundo que as cerca. Todavia, as crianças têm se revelado ativas, competentes e com uma instigante capacidade de observação e análise das suas experiências nos diferentes espaços sociais. Penso que esta pesquisa pode instigar e provocar novos estudos e reflexões sobre as relações de gênero na infância, buscando desconstruir “verdades” cristalizadas no âmbito escolar, objetivando desvendar estereotipias e preconceitos em relação ao jeito de ser da menina e do menino no espaço da educação infantil. Finalizo com um fragmento de Clarice Lispector que expressa, neste momento, o meu sentimento em relação ao texto aqui apresentado com partidas e chegadas sem fim, mas com a certeza de ter suscitado alguns caminhos e percursos a serem desvendados no universo da menina e do menino: Tudo acaba mas o que te escrevo continua O que é bom muito bom O melhor ainda não foi escrito O melhor está nas entrelinhas. Foto 12 – A pesquisadora com meninas e meninos 6 REFERÊNCIAS ALAMBERT, Zuleika. Feminismo: o ponto de vista marxista. São Paulo: Nobel, 1986. ALVARENGA, Elda. Relações de gênero nos cotidianos escolares: a escolarização na manutenção da opressão sexista. Contagem: Santa Clara, 2007. ANDRADE, Carlos Drummond de. A senha do mundo. Rio de Janeiro: Record, 1997. ANDRADE, Sandra dos Santos. Mídia, corpo e educação: a ditadura do corpo perfeito: corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 2004. ARAÚJO, Vânia Carvalho. Criança: do reino da necessidade ao reino da liberdade. 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APÊNDICE APÊNDICE - Termo de consentimento UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO II. Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos pais/responsáveis das crianças/sujeitos da turma Pré B, do Centro Municipal de Educação Infantil Semeando a Vida, o projeto de pesquisa “O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL” de autoria da mestranda Maria Angélica Menezes Freire, como recomendação para a realização do Mestrado em Educação do Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. O objetivo da pesquisa é compreender como as relações de gênero se manifestam entre as crianças e também analisar os elementos culturais e sociais que sobressaem no jeito de ser menina e ser menino, no cotidiano da educação infantil. Desse modo, a pesquisa será realizada na sala de aula por meio da observação participante entrevistas, fotografias e registros em diário de campo. Para garantir o tratamento ético dos dados, o nome da escola será mantido em sigilo, serão utilizados nomes fictícios para as crianças (escolhidos por elas) e as fotografias/registros serão efetuados sem comprometimento da ação educativa, preservando, sobretudo, a integridade do grupo. Os dados – resultados da pesquisa serão apresentados na dissertação e poderão ser utilizados para publicação. Por isso, solicitamos sua autorização, por meio da assinatura deste termo de consentimento. Eu,...................................................., responsável pelo aluno(a) .............................., do PRÉ – B, autorizo sua participação no projeto de pesquisa “O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL”, de autoria da mestranda Maria Angélica Menezes Freire - PPGE/UFES, concordando com os procedimentos acima apresentados. Assinatura: ..................................................................... RG: ....................................