Descentralização, integralidade e participação social: diretrizes do SUS para a vigilância sanitária Talita Braga Silveira1 Juliana O de Toledo Nóbrega2 1 Enfermeira. Discente do curso de pós-graduação em Vigilância Sanitária IFAR/ PUC-GO. Farmacêutica-Bioquímica. Departamento de Farmácia – Faculdades LS. DF. Email: [email protected] 2 Resumo A vigilância sanitária atua através de práticas e objetos diversos e suas ações são orientadas pelos mesmos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre as condições de interação da prática de vigilância sanitária com proposições constitucionais do SUS: descentralização, integralidade e participação social. A vigilância sanitária vem se organizando de acordo com o SUS em um processo mais lento e tardio que o percebido nas ações de atenção à saúde. Essa deficiência já foi percebida pelos setores competentes e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) já iniciou discussões e fomenta ações para o fortalecimento e consolidação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). O estudo constatou que são necessárias estratégias para o fortalecimento dos recursos humanos em vigilância sanitária, já que são os agentes responsáveis pela consolidação da vigilância sanitária mais atrelada aos princípios do SUS. Palavras-chave: Vigilância sanitária. Descentralização. Integralidade.Participação social. Descentralization, integral care and social participation: SUS (Brazilian Unified Health System) guidelines for the sanitary surveillance Abstract The sanitary surveillance performs several practices, on different objects and its actions are guided by principles and guidelines of the Unified Health System (SUS). This article proposed a critical reflection on the conditions of interaction of practice for sanitary surveillance with constitutional propositions SUS: decentralization, integral care and social participation. The sanitary surveillance has been organized according to SUS on a slower process and later realized that the actions of health care. This deficiency has been perceived by the relevant sectors and the National Agency of Sanitary Surveillance (ANVISA) has initiated discussions and promotes actions for the strengthening and consolidation of the National System of Sanitary Surveillance (SNVS). The study found that strategies are needed to strengthen human resources in pain surveillance, since they are the agents responsible for the consolidation of sanitary surveillancemore tied to the principles of SUS. Key words:Sanitary surveillance. Descentralization. Integral care. Social participation. 1INTRODUÇÃO A vigilância sanitária (VISA) é assim definida na Lei Orgânica da Saúde: ... Um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: Io controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e IIo controle da prestação de serviços que se relacionam direta e indiretamente com a saúde.(BRASIL, 1990a) O conceito acima expõe a complexidade da VISA. Bens, produtos e serviços de interesse à saúde, portanto, submetidos ao controle e fiscalização sanitária, compõem uma diversa lista de objetos: medicamentos, alimentos e bebidas, cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes, saneantes, meios diagnósticos, equipamentos e materiais médicohospitalares, odontológicos, hemoterápicos e de diagnóstico laboratorial e por imagem, imunobiológicos, sangue e hemoderivados, órgãos, tecidos humanos e veterinários, radioisótopos, radiofármacos e produtos radioativos, produtos fumígeros, derivados ou não do tabaco, produtos com possibilidade de risco à saúde, obtidos por engenharia genética ou por outro procedimento ou submetidos à radiação, e ainda, os serviços de saúde para atenção ambulatorial, de rotina ou de emergência, em regime de internação e os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico. Além da vasta gama de objetos, a VISA detém inúmeras práticas, citadas sucintamente: normatização, autorização de funcionamento de empresas, anuência de importação e exportação de produtos, concessão de registro de produtos, inspeção, fiscalização, autuar e aplicar penalidades, monitoramento de qualidade e efeitos adversos, controle de propagandas, rótulos, bulas e embalagem, entre várias outras (BRASIL, 1999). Assim, a multiplicidade de objetos e práticas, a variabilidade do risco sanitário, dadas a dimensão e a diversidade territorial do país e ainda, a repercussão política e econômica que podem ter as suas ações, são fatores que se somam para a complexidade da VISA (O’ DWYERet al, 2010). A constituição federal de 1988 reconhece em seu artigo 200 a competência do Sistema Único de Saúde (SUS) para executar as ações de VISA. Dessa forma, a vigilância sanitária é regida pelas seguintes diretrizes: descentralização, integralidade e participação social, conforme elencadas na constituição (BRASIL, 1988). Costa (2008a, p. 9) considera que “a VISA permaneceu, no Brasil, por muito tempo esquecida como um componente do sistema de saúde”. Também Maiaet al (2010, p. 690) concluiu em seu trabalho, que há um “isolamento da VISA”, sendo necessário, mudar a sua percepção, de “área que realiza inspeção” para “um agente que pode transformar as práticas de assistência à saúde e... junto com os demais solucionar os problemas do SUS”. Dessa forma, o objetivo desse trabalho é verificar, através de uma revisão bibliográfica, a relação atual da VISA e as diretrizes do SUS – descentralização, integralidade e participação social. 2METODOLOGIA O trabalho em questão trata-se de um artigo de revisão bibliográfica, cujo levantamento foi realizado no período de agosto a novembro de 2011. Para o seu desenvolvimento foram utilizadas estratégias de investigação, sendo que o método utilizado foi a revisão de material bibliográfico e a análise crítica do mesmo. O levantamento bibliográfico foi realizado nos bancos de dados “Scielo” e “Data SUS”e foram utilizadas as seguintes palavras-chave: vigilância sanitária, descentralização, integralidade e participação social. Foram consideradas publicações de 2001 a 2011, exceto para legislações. Foram citadas algumas leis publicadas anteriormente ao período citado por ainda estarem em vigência. Também foi acessada a biblioteca virtual da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e utilizado o livro “Vigilância Sanitária: desvendando o enigma”. 3 DESENVOLVIMENTO 3.1 DESCENTRALIZAÇÃO A descentralização, apontada como uma das diretrizes do SUS, assegurada pela Constituição Federal, tem por definição: “... processo de transferência de responsabilidades de gestão para os municípios, atendendo às determinações constitucionais e legais que embasam o SUS e que definem atribuições comuns e competências específicas à União, estados, Distrito Federal e municípios”. (BRASIL, 2009, p. 116) Simplificando o conceito acima, descentralizar é transferir ao município a responsabilidade pelas ações e serviços de saúde de sua população. Isso porque o município é a instância do poder executivo mais próxima da realidade, tanto em suas característicassocioculturais como na profundidade dos problemas a serem enfrentados. Marangonet al (2010, p. 3588) acrescenta que com a descentralização, a gestão das ações de saúde é compartilhada “tornando-a mais próxima do cidadão, tendo em conta suas necessidades e submetendo-se ao seu controle”. O processo de descentralização das ações de atenção à saúde se dá em um ritmo mais acelerado que o da VISA, seja pelas peculiaridades dessa, ações que permanecem centralizadas no âmbito federal – vigilância de portos, aeroportos e fronteiras, por exemplo, ou pela segmentação, na prática, das ações da VISA e do SUS, percebendo-se um “isolamento da VISA” (COSTA, 2008a, p. 9); ainda que na teoria, a Constituição Federal a reconheça como competência do SUS, regida pelos mesmos princípios e diretrizes (MAIAet al, 2010; MARANGON et al, 2010). A definição do Sistema Nacional de VISA (SNVS) pela lei federal nº 9782/1999 estabeleceu as bases para a descentralização das ações de VISA no âmbito do SUS (BRASIL, 1999). Ela apresenta as competências da União e cria a Agência Nacional de VISA (ANVISA) – responsável pela execução das atividades de competência da esfera federal e também pela coordenação do SNVS. Estão elencadas, em seu artigo segundo, as competências da União: I – definir a política nacional de VISA; II – definir o SNVS; III – normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde; IV – exercer a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras, podendo essa ação ser supletivamente exercida pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios; V – acompanhar e coordenar as ações estaduais, distritais e municipais da vigilância sanitária; VI – prestar cooperação técnica e financeira aos estados, ao Distrito Federal e aos Municípios; VII – atuar em circunstâncias especiais de risco à saúde; VIII – manter sistema de informações em vigilância sanitária, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. (BRASIL, 1999) Publicado em 2007 (BRASIL, 2007), o Plano Diretor de VISA (PDVISA) contempla as diretrizes para a consolidação do SNVS e fortalecimento da integração com o SUS. Nesse documento, a descentralização das ações de VISA é apontada como, além de princípio norteador, estratégia de fortalecimento. Definir as relações e responsabilidades sanitárias das três esferas de governo, estabelecendo formas de articulação e execução das ações de maneira integrada e consoante com os princípios do SUS, é uma das diretrizes do PDVISA. Atualmente, o Pacto pela saúde, constitui a estratégia para a racionalização das ações e serviços no SUS, centrada no compromisso político entre gestores. Apesardas novas normatizações em vigilância sanitária nos últimos quinze anos aproximadamente, muitas dessas enfatizando a descentralização das suas ações, muitas dificuldades são encontradas pelos municípios nesse processo, como pode ser visto no resumo de alguns estudos no Quadro 1a seguir. Quadro 1 – Principais dificuldades encontradas no processo de descentralização das ações de Visa por estudo. PIOVESANet al (2005) GARIBOTTIet al (2006) MARANGONet al (2010) Falta de clareza das atribuições por esfera de governo; Ações de VISA não são prioridades na gestão municipal; Infraestrutura deficiente; Falta de infraestrutura; Falta de recursos humanos suficientes e capacitados; Falta de articulação da VISA com outros setores da secretaria de saúde e intersetorial municipal; Maioria dos trabalhadores sem formação específica; Distanciamento da ANVISA e falta de canais ágeis de comunicação e resolução de demandas entre os diferentes níveis do sistema; Deficiente funcionamento da estrutura no nível estadual, incapaz de cumprir seu papel de cooperação técnica e financeira aos municípios; Falta de autonomia no uso de recursos financeiros. Falta de planejamento das ações e de comunicação entre as esferas de gestão; Deficiências de infraestrutura quanto a instalações, equipamentos, recursos materiais e financeiros; Insuficiência de recursos humanos, em número e capacitação. Falta de articulação técnica e político-administrativa com a VISA estadual. Tornar as ações de VISA mais efetivas através do maior conhecimento de sua população, propiciado pela proximidade dos gestores dessa é uma das justificativas para a descentralização. Entretanto, estudo desenvolvido em oito municípios do Estado da Paraíba (PIOVESANet al, 2005) constatou a deficiente articulação entre o trabalho das vigilâncias pesquisadas e o espaço sobre o qual atuam. Nesse estudo, 100% dos entrevistados disseram não utilizar dados epidemiológicos para orientar as ações da VISA; 37,5% confirmou o uso de cadastro atualizado de estabelecimentos sujeitos à VISA e apenas 12,5% confirmou o planejamento das ações de VISA vinculado à realidade sanitária. Outros estudos também identificaram o desconhecimento das prioridades dos seus próprios territórios, segundo Piovesan, esse desconhecimento “potencializa a desvinculação entre prioridades locais e metas pactuadas, ignorando que, no campo da vigilância sanitária, os fatores de risco, as relações sociais e as políticas desenham os territórios e, em consequência disso, a efetividade dos serviços” (PIOVESANet al, 2005, p. 84). Recursos humanos insuficientes e capacitação deficiente na área de vigilância sanitária são apontados como dificultadores para o processo de descentralização. Costa (2008b) aponta em seu trabalho especificações que distinguem o trabalhador da VISA dos outros trabalhadores da saúde: - demanda crescente por informação e conhecimento científico atualizado, oriundos de diversas áreas de saberes; - complexidade das competências (diversidade de objetos e práticas); - conflitos entre interesses da saúde e econômicos; insuficiências nos desenvolvimentos teóricos/ conceituais (ausência de seus conteúdos em grades curriculares de graduações em saúde).Apesar da especificidade desse trabalhador, os estudos apontam para falta de formação específica e capacitação insuficiente. Em estudo desenvolvido em oito municípios do Estado da Paraíba (PIOVESANet al, 2005), todos os entrevistados demonstraram não ter conhecimento integral do papel da VISA, 62,5% desconheciam as atribuições legais da própria VISA municipal e 87,5% desconheciam a capacidade operacional diante das atribuições legais. Garibottiet al (2006)afirma que: “é fundamental para o desenvolvimento e fortalecimento dos serviços o investimento na formação profissional, na capacitação técnica e na apropriação de novas tecnologias, sob pena das ações de vigilância se transformarem num verdadeiro faz-de-conta e da perpetuação de serviços inoperantes e/ou sem efetividade diante do setor regulado, detentor de poder econômico e tecnológico, e das prementes necessidades de saúde da população.” (GARIBOTTI et al, 2006, p. 1046) Ainda sobre recursos humanos, Lucchese apud Souza e Stein reitera que: “a falta de equipe mínima é um dos grandes entraves ao avanço do processo de descentralização, tornando-se prioritária a admissão de profissionais por concurso público, para evitar a alta rotatividade e problemas de legitimidade no exercício da função da fiscalização sanitária, que exige fé pública.” (SOUZA; STEIN, 2008, p. 2233) Em estudo sobre a descentralização das ações de VISA em um estado brasileiro, concluiu-se que o processo “esteve permeado por certo caráter burocrático, caracterizado mais pelo repasse de responsabilidades do que por incentivo e suporte à autonomia municipal” (MARANGONet al, 2010, p. 3598). Nesse mesmo estudo, os autores afirmam quehouve um reconhecimento da necessidade de apoio contínuo aos municípios, no entanto, ocorreu “de forma pouco sistematizada, mais por caráter emergencial do que em caráter programático” (MARANGONet al, 2010, p. 3596). Piovesanet al (2005)em seu estudo encontrou vários problemas de gestão nos municípios analisados: 75% dos entrevistados negou apoio administrativo e operacional e coordenação efetiva da VISA estadual, apenas 12,5% afirmou articulação técnica e todos os municípios negaram articulação político-administrativa com a VISA estadual. Como instância coordenadora,a VISA estadual tem a responsabilidade de promover e realizar avaliações das estratégias utilizadas no processo de descentralização. Marangonet al (2010) aponta a importância da supervisão/ avaliação pelo estado: “Avaliar os diversos aspectos afeitos à descentralização da VISA torna-se uma exigência no processo, sobretudo quanto à existência, suficiência e legalidade (investidura no cargo), formação e qualificação das equipes; incorporação, pelos municípios, das ações para as quais foram tecnicamente preparados; cumprimento dos pré-requisitos para o funcionamento dos serviços; aplicação de recursos na própria VISA; qualidade e efetividade do serviço prestado à população, entre outros itens.” (MARANGONet al, 2010, p. 3597) Os estudos citados no quadro 1 apontaram, por unanimidade, a deficiente infraestrutura dos serviços de VISA. Edificações inadequadas, falta de recursos e equipamentos são alguns dos problemas elencados. (PIOVESANet al, 2005; GARIBOTTI et al, 2006; MARANGON et al, 2010). Apesar das dificuldades apontadas, um estudo exploratório sobre a descentralização em estados e municípios brasileiros (CECOVISA-NESCON, 2006b), identificou um crescimento dos serviços de VISA.De acordo com pesquisas realizadas em 2000 e 2006, de 67.9% para 93,8% dos municípios, respectivamente. Nesse mesmo estudo foram elencados fatores que podem contribuir para o processo de descentralização das ações de VISA, segundo coordenadores dos serviços estaduais e municipais: pessoal capacitado, número adequado de fiscais, recursos materiais suficientes, recursos financeiros suficientes, apoio técnico por parte das esferas estadual e federal, articulação com outros órgãos ou setores, autonomia administrativa; transferência de responsabilidade por parte das esferas de governo e capacidade de articulação política. 3.2 INTEGRALIDADE “É um princípio fundamental do SUS. Garante ao usuário uma atenção que abrange as ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, com garantia de acesso a todos os níveis de complexidade do sistema de saúde. A integralidade também pressupõe a atenção focada no indivíduo, na família e na comunidade (inserção social) e não num recorte de ações ou enfermidades”. (BRASIL, 2009, p. 192) A integralidade pode refletir diferentes perspectivas: a primeira refere-se às práticas dos profissionais de saúde, abrangendo as dimensões biológica, psicológica e social; a segunda refere-se à organização dos serviços de saúde que integram ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde, compondo níveis de prevenção primária, secundária e terciária e garantindo a continuidade da atenção nos diferentes níveis de complexidade, e o terceiro aplica-se às respostas governamentais aos problemas de saúde, com a articulação de um conjunto de políticas públicas que incidam sobre as condições de vida, determinantes da saúde e dos riscos de adoecimento, mediante ação intersetorial. (BRASIL, 2007; GARIBOTTIet al, 2006; PAIM; SILVA, 2010) Ao relembrarmos o conceito de vigilância sanitária, “conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde” (BRASIL, 1990a), facilmente percebemos como ela está intrincada em todos os níveis de atenção à saúde e vai além dessa área, requerendo ação conjunta com vários ramos e campos da sociedade. Intimamente ligado ao conceito de integralidade está a definição de intersetorialidade: “A intersetorialidade é uma estratégia política complexa, cujo resultado na gestão de uma cidade é a superação da fragmentação das políticas nas várias áreas onde são executadas. Tem como desafio articular diferentes setores na resolução de problemas no cotidiano da gestão e torna-se estratégia para a garantia do direito à saúde, já que saúde é produção resultante de múltiplas políticas sociais de promoção de qualidade de vida. [...] Permite considerar o cidadão na sua totalidade, nas suas necessidades individuais e coletivas, demonstrando que ações resolutivas em saúde requerem necessariamente parcerias com outros setores como educação, trabalho e emprego, habitação, cultura, segurança, alimentação e outros. Intersetorialidade remete também ao conceito/ ideia de rede, cuja prática requer articulação, vinculações, ações complementares, relações horizontais entre parceiros e interdependência de serviços para garantir a integralidade das ações.” (BRASIL, 2007, p. 193) Nesse sentido, a vigilância sanitária tem na promoção da saúde uma ferramenta essencial par alcançar seus objetivos, já que o seu conceito “denota sua abrangência e sua natureza essencialmente preventiva” (DALLARI, 2008, p. 47). Entende-se assim a promoção da saúde como “uma estratégia de articulação, na qual se confere visibilidade aos fatores/ situações de risco [...] objetivando estabelecer mecanismos para reduzir as situações de vulnerabilidade...” (O’DWYERet al, 2010, p. 468). Nesse momento faz-se a interseção da vigilância sanitária com a Estratégia Saúde da Família (ESF), como locus privilegiado para a promoção da saúde e para a concretização da integralidade. Lucchese apud O’Dwyer et al afirma que “há uma grande espaço, precariamente explorado, para a ação educativa no âmbito da vigilância sanitária”. O desafio da Visa é “garantir que ações educativas cheguem à população e que os recursos de proteção à saúde sejam utilizados na prática de todos os profissionais da saúde” (O’DWYERet al, 2010, p.477). Assim, dada a proximidade da ESF coma população, esse espaço deve ser utilizado para a identificação de situações de risco ou agravos de importância para a vigilância sanitária, tais como: condições de coleta e destinação do lixo; condições de esgotamento sanitário; identificar a presença de vetores e roedores; identificar áreas sujeitas a inundações e/ou desabamentos; identificar irregularidades na produção, no comércio ou consumo de alimentos; identificar a existência de serviços clandestinos de saúde e a qualidade dos serviços prestados em hospitais, clínicas e drogarias da região; identificar a existência de empresas (mesmo domiciliares) com ambientes de trabalho insalubres; conhecer onde foram adquiridos os medicamentos consumidos pelos moradores, se o seu uso está sendo feito conforme prescrição médica e a ocorrência de reações indesejáveis após o seu uso; conhecer as condições de armazenamento, conservação e utilização de produtos de higiene e limpeza da casa e intoxicações associadas ao seu uso; entre várias outras (CECOVISA-NESCON, 2006a). Costa (2008b) apresenta as concepções do que chama de “nova vigilância”, já considerando a ampliação da vigilância sanitária, baseada nas práticas de promoção da saúde e ações de natureza preventiva. O sujeito da ação é ampliado, ultrapassa o fiscal para incorporar a equipe de vigilância sanitária, com representantes das distintas instâncias do SNVS e da população organizada. O objeto de ação é ampliado e contextualizado, de produtos e serviços (medicamento, cosmético, alimento, etc.) para “riscos, danos, necessidades sanitárias e determinantes do processo saúde-doença-cuidado-qualidade de vida” (COSTA, 2008b, p.87). Os meios de trabalho incorporam tecnologias variadas com o objetivo de monitorar, tanto a qualidade de produtos e serviços, quanto os efeitos do seu uso na saúde individual e coletiva, e ainda, incluem tecnologias de comunicação social. Assim, complementa-se a fiscalização do cumprimento de normas, expressa pela inspeção ou “blitz”, meio de trabalho típico da “vigilância sanitária tradicional” e essencial à proteção e defesa da saúde. E, finalmente, as formas de organização dos processos de trabalho ultrapassam o gerenciamento por áreas, em função das diversas categorias de produtos e serviços e atendimentos à demanda espontânea do setor produtivo (registro de produtos e licenças de estabelecimento e atendimento a denúncias e emergências sanitárias). Na “nova vigilância” é adotado o planejamento estratégico, com foco em integração setorial e ações intersetoriais orientadas por políticas públicas saudáveis. A ANVISA e outros órgãos afins, através do PDVISA, expressam a necessidade de consolidação e fortalecimento do SNVS, sendo a VISA no contexto da atenção integral à saúde um dos eixos desse documento. É afirmada a necessidade de articulação permanente das ações de VISA nas distintas esferas do governo e destas com as ações de saúde desenvolvidas no âmbito do SUS. “O avanço para a integralidade na atenção deverá estar expresso prioritariamente na estrutura e na organização dos serviços, nos instrumentos de planejamento e gestão adotados nos três níveis de governo, nos processos de trabalho e qualificação dos trabalhadores de saúde e no estímulo ao desenvolvimento de políticas intersetoriais. Essas diretrizes devem gerar as condições necessárias para a inserção da Vigilância Sanitária nos distintos níveis de complexidade da atenção à saúde do SUS” (BRASIL, 2007, p. 39) Em pesquisa sobre a integração da VISA e a assistência à saúde da mulher, concluiuse que “nas falas [dos entrevistados] transparece o isolamento da vigilância sanitária”, (MAIAet al, 2010, p. 690) o que pode ser exemplificado pela cópia de alguns trechos das entrevistas: “Existe [integração] assim, emergencial [...] mas não é um programa. São coisas pontuais que a gente procura atender.” “Eu não percebo esse link. Eu nunca fui chamado para participar de uma discussão que fechasse essas duas ou que criasse uma proximidade maior entre essas duas esferas.”. Resultado semelhante também foi verificado no estudo “Ações de Vigilância Sanitária na atenção básica”(CECOVISA-NESCON, 2006a), que identificou que 87,1% dos coordenadores da ESF entrevistados mencionou que ocorriam articulações com a VISA por meio do envio de demandas. Esses resultados apontam para a fragmentação da saúde, representada por relações que se dão apenas por interações pontuais, sem propiciar a troca de saberes. (MAIAet al, 2010). 3.3PARTICIPAÇÃO SOCIAL A participação da comunidade na saúde, preceito constitucional, pode ser definida como: “Uma das maneiras de se efetivar a democracia, por meio da inclusão de novos sujeitos sociais nos processos de gestão do SUS como participantes ativos nos debates, formulações e fiscalização das políticas desenvolvidas pela saúde pública brasileira, conferindo-lhe legitimidade e transparência. Com previsão constitucional e legal, a participação popular confere, à gestão do SUS, realismo, transparência, comprometimento coletivo e efetividade de resultados. Está diretamente relacionada ao grau de consciência política e de organização da própria sociedade civil. O SUS deve identificar o usuário como membro de uma comunidade, com direitos e deveres, e não como recebedor passivo de benefícios do Estado.” (BRASIL, 2009, p. 237) Alguns autores, como destacado no PDVISA, defendem diferenças entre os termos controle e participação social. Controle social é definido como “a forma e os mecanismos com os quais a sociedade organizada fiscaliza e controla o poder público em relação às suas ações e gastos financeiros”. Por sua vez, a participação social tem um conceito mais abrangente, “considerada como um exercício pleno da cidadania e de direito, [...] na qual a lógica não se restringe apenas à fiscalização, mas amplia sua contribuição à política pública que o governo vem estabelecendo em suas ações de Estado” (BRASIL, 2007, p. 47). Por sua maior abrangência, adotaremos nesse estudo o termo participação social. A lei federal nº 8142 de 1990 (BRASIL, 1990b) regulamentou a participação da comunidade na gestão do SUS ao definir suas instâncias de participação social – os conselhos e as conferências de saúde. Os conselhos de saúde tem caráter permanente e deliberativo e devem atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde da esfera correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. As conferências de saúde acontecem a cada quatro anos para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde em cada esfera de governo. Essa lei estabelece que a representação dos usuários deve ser paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos, correspondendo, assim, a 50% dos representantes. Considerando que a VISA deve intervir sobre os riscos à saúde da população, sejam eles decorrentes do meio ambiente ou do processo de produção, comercialização e consumos de bens, assim como da prestação de serviços sanitários, torna-se fundamental a comunicação com a sociedade no sentido de melhorar o seu padrão de consumo e qualidade de vida, “reforçando a consciência sanitária” e a cidadania, ao mesmo tempo em que se espera a redução da exposição a riscos desnecessários”. O mesmo autor afirma que “sem as atividades educativas e de comunicação – que devem permear toda a atenção à saúde, mormente a atenção básica - a vigilância sanitária não alcança efetividade”(O’DWYERet al, 2010, p. 47). Nesse momento, não se fala apenas em participação da comunidade na gestão do SUS, mas da apropriação dos saberes pertinentes à VISA pela população, de modo a se alcançar “ganho de saúde”. Diz Costa (2008b): “Um dos problemas mais relevantes na área de vigilância sanitária é praticamente sua ausência das instâncias de controle social. Tais espaços, no setor saúde, ainda são ocupados pelas questões advindas das demandas da assistência médica, em razão não apenas do modelo assistencial hegemônico como também pelo imenso débito em termos de atenção à saúde que o país tem para com a maioria da população. É possível que a ampliação do debate acerca das complexas questões da área de vigilância sanitária, junto com iniciativas de uma política de comunicação do risco, resulte não só em respaldo político para intervenções em favor da saúde, quando desagradam os setores hegemônicos, como também em influência por parte de diferentes forças sociais, na formulação, execução, fiscalização e avaliação das políticas públicas e serviços da área de vigilância sanitária.” (COSTA, 2008b, p. 85) Sensível à situação de pouca visibilidade das ações de vigilância sanitária para a população, a ANVISA e outros órgãos afins, através do PDVISA, reconhecem que: “tal participação e controle só podem ser exercidos mediante o conhecimento pela sociedade do que é vigilância sanitária [...] Assim, entendendo que essa situação atualmente é frágil, é importante enfatizar a necessidade de se promover ações que elevem a consciência sanitária da população de forma que tal participação e controle se efetivem”. (BRASIL, 2007, p. 48) Os fóruns de discussão e as audiências públicas são estratégias já existentes que estimulam a participação da sociedade nos debates da VISA. O fortalecimento dessas estratégias, a articulação com os conselhos de saúde, a sensibilização e a qualificação dos trabalhadores de saúde para atuação junto à comunidade são algumas das diretrizes do PDVISA para a “construção da consciência sanitária: mobilização, participação e controle social”. 4CONSIDERAÇÕES FINAIS É incontestável a importância da VISA em zelar pela saúde pública, intervindo nas atividades particulares e disciplinando-as quando implicarem em riscos. Também é incontestável a determinação constitucional das ações de VISA integrarem o SUS. Desde sua criação em 1990, o SUS evoluiu muito e vem consolidando suas diretrizes. O mesmo podemos afirmar para a VISA, ainda que mais tardiamente quando comparado às ações de atenção à saúde. Se na assistência havia um predomínio de ações curativas, havia na VISA um claro predomínio de respostas e demandas do setor produtivo. O esquecimento da VISA como componente do SUS já foi percebido e a ANVISA, como coordenadora do SNVS, já iniciou discussões e fomenta ações para sua consolidação e fortalecimento. Um novo paradigma em vigilância sanitária a aproxima das ações de promoção e proteção da saúde, e avança na integralidade na atenção à saúde. Nesse processo torna-se essencial a maior vinculação com a sociedade, propiciada pela descentralização da gestão e participação social. Pelas questões levantadas nesse estudo, há que se encontrar estratégias para o fortalecimento dos recursos humanos em VISA, debilitados em número e capacitação. O trabalhador da VISA, em todas as instâncias federativas, mas principalmente na municipal, é o agente responsável pela consolidação da “nova vigilância sanitária”, mais atrelada aos princípios e diretrizes do SUS. Definir estratégias para reorientar os projetos de formação e educação permanente de recursos humanos para o SUS, em especial da VISA, é o caminho para que toda a riqueza da discussão teórica alcance a prática. REFERÊNCIAS BRASIL, 1988. Constituição da República em:www.planalto.com.br. Acesso em ago. 2011. Federativa do Brasil. Disponível BRASIL, 1990. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.Disponível em: www.planalto.com.br. Acesso em ago. 2011. BRASIL, 1990. Lei nº 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.Disponível em: www.planalto.com.br. Acesso em ago. 2011. BRASIL, 1999. Lei nº 9.782 de 26 de janeiro de 1999. Cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e dá outras providências.Disponível em: www.planalto.com.br. Acesso em ago. 2011. BRASIL, 2007. Portaria nº 1052 de 08 de maio de 2007. Aprova e divulga o Plano Diretor de Vigilância Sanitária. Disponível em: www.dtr2001.saude.gov.br. Acesso em set. 2011. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. O SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios / Ministério da Saúde, Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde. 3. Ed. Brasília; Editora do Ministério da Saúde, 2009. 480 p. Disponível em:www.bvsms.saude.gov.br. Acesso em set. 2011. CENTRO COLABORADOR EM VIGILÂNCIA SANITÁRIA – NÚCLEO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA – CECOVISA – NESCON. Ações de Vigilância Sanitária na Atenção Básica - relatório de pesquisa. Belo Horizonte, set, 2006a. Disponível em:www.nescon.medicina.ufmg.br. Acesso em nov. 2011. CENTRO COLABORADOR EM VIGILÂNCIA SANITÁRIA – NÚCLEO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA – CECOVISA – NESCON. 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