1 1. RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL 1.1 Esboço Histórico 1.1.1 Evolução Constitucional O recurso ordinário, que se encontra previsto no atual Texto Constitucional no inciso II dos artigos 102 e 105, teve sua origem no ordenamento jurídico brasileiro no final do século XIX com o advento da Constituição de 1891. A primeira Constituição da República do Brasil, contudo, não cuidou de nomear o recurso cuja competência estava afeta Supremo Tribunal Federal (art. 59, II e 61, da CR/1891). A nomenclatura recurso ordinário foi inserida explicitamente com a segunda Constituição republicana, do ano de 1934, que previa a competência da Corte Suprema para julgar as causas, inclusive em mandado de segurança, decididas por juízes e tribunais federais (art. 76, nº 2, II, alíneas “a”, “b” e “c” da CR/1934). Registre-se, também, que foi por ocasião dessa ordem constitucional que surgiu a expressão recurso extraordinário (art. 76, III). A Carta outorgada de 1937, sob o pálio do regime ditatorial, eliminou do sistema constitucional o instituto do mandado de segurança, mas manteve o recurso ordinário para as demandas em que houvesse interesse da União e das decisões de última ou única instância denegatórias de habeas corpus (art. 101, II, 2, “a” e “b”). Na Constituição Federal de 1946 o recurso ordinário era admitido para julgar, entre outros, os mandados de segurança e os habeas corpus decididos em última instância pelos tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão (art. 101, II, “a”). Observa-se, pois, que em 1946 foi revigorado o instituto do recurso ordinário em mandado de segurança. O recurso ordinário, na Carta de 1967, foi disciplinado de maneira semelhante à Constituição da República de 1946, notadamente no que alude aos mandados 8 2 de segurança e habeas corpus decididos em única ou última instância pelos tribunais locais ou federais, quando a decisão fosse denegatória (art. 114, II, “a”, “b” e “c”). Ocorre, porém, que, por ocasião do advento do Ato Institucional nº 6 e da Emenda nº 1, ambas de 1969, foi extirpado, uma vez mais, o instituto do recurso ordinário contra decisão denegatória de mandado de segurança. Em 5 de outubro de 1988, com a restauração do Estado Democrático de Direito a nova ordem constitucional trouxe significativas modificações no Poder Judiciário, entre as quais, merece relevo a criação do Superior Tribunal de Justiça o qual passou a absorver parcela considerável da competência até então afeta ao Supremo Tribunal Federal. Assim, o recurso ordinário continuou a ter previsão na Constituição da República de 1988, e o instituto do recurso ordinário em mandado de segurança, por sua vez, ressurgiu para o Supremo Tribunal Federal (artigo 102, inciso II, “a”), e, bem assim, entre as competências recursais afetas ao Superior Tribunal de Justiça (artigo 105, inciso II, “b”). É de fácil inferência que essa modalidade recursal, que tem seu nascimento e subsistência no texto constitucional, é, antes e acima de tudo, um meio voluntário de impugnação de decisões judiciais. 1.1.2 Legislação Infraconstitucional Segundo se podia observar do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869, de 11/1/1973), antes da vigência da atual Constituição Federal, eram cabíveis os recursos de apelação, agravo de instrumento, embargos infringentes, embargos de declaração e recurso extraordinário (art. 496). No Capítulo VI, que cuidava “Dos Recursos Para o Supremo Tribunal Federal”, verifica-se que havia previsão para a apelação cível, para o agravo de instrumento, para o recurso extraordinário e, bem assim, para os embargos de divergência (respectivamente, arts. 539, 541 e parágrafo único do art. 546). Nota-se que a despeito de a EC nº 1 de 1969 prever o recurso ordinário (art. 119, II), o Código de Processo Civil o nominava como apelação cível para o Supremo 8 3 Tribunal Federal, o qual, embora com designação distinta, se tratava do próprio recurso ordinário constitucional1. Com a nova ordem constitucional de 1988, se fazia mister uma adequação da legislação infraconstitucional ao sistema criado para o Poder Judiciário. Assim, em 28 de maio de 1990, veio a lume a Lei nº 8.038, a qual instituiu normas procedimentais para os processos no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Essa norma legal, em seu artigo 44, revogou, de modo explícito, os artigos 541 a 546 do Código de Processo Civil, que disciplinava o recurso extraordinário e os embargos de divergência. Por força do mesmo diploma legal, pode-se afirmar que os dispositivos processuais que tratavam da apelação cível e do agravo de instrumento para o Supremo Tribunal Federal, também deixaram de existir. Assim, a Lei nº 8.038/90, também chamada Lei dos Recursos, disciplinou os recursos extraordinário e especial e os embargos de divergência (arts. 26 a 29), os recursos ordinários em habeas corpus e mandado de segurança dirigidos para o Superior Tribunal de Justiça (arts. 30 a 35). Dispôs, ainda, acerca da apelação cível e do agravo de instrumento provenientes de decisão de primeiro grau, a qual caberia o Superior Tribunal de Justiça julgar as causas em que fossem partes de um lado, Estado estrangeiro ou organismo internacional e, de outro, município ou pessoa domiciliada ou residente no País. Do cotejo entre a Lei nº 8.038/90 e a Constituição da República (art. 102), observou-se que o legislador infraconstitucional acabou por omitir e, por conseguinte, desprezar o recurso ordinário em habeas data e em mandado de injunção. De igual forma, denota-se que não restou considerada a interposição de recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal, quando denegatória a decisão proferida pelos Tribunais Superiores, no julgamento do habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção. Outra imperfeição do diploma legal foi designar a competência do Superior Tribunal de Justiça para o julgamento de apelação cível, ou seja, atribuiu nova nomenclatura ao recurso ordinário constitucional, em nítida desarmonia com o preceito inserido na Constituição Federal2. VECHIATO JÚNIOR, Walter. Tratado dos Recursos Cíveis. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 425. No mesmo sentido: MOREIRA, José Carlos Barbosa . Comentários ao Código de Processo Civil. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 567 e DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil. 2a ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 190. 1 2 8 4 Em dezembro de 1994, entretanto, sobreveio a Lei nº 8.950, a qual, ao reintroduzir no Código de Processo Civil as regras até então disciplinadas pela Lei dos Recursos. De igual maneira, a Lei nº 8.950/94, cuidou de eliminar as pechas da Lei n. 8.038/90, exaustivamente criticadas. Atualmente a estrutura do Código de Processo Civil, no Capítulo VI, do Título X, encontra-se de acordo com a redação dada pela Lei nº 8.950/94. 1.1.3 Espécies de Recurso Ordinário Constitucional O recurso ordinário constitucional é uma modalidade de recurso dirigida ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, nas hipóteses disciplinadas no artigo 102, inciso II e 105, inciso II e reproduzidas no artigo 539, incisos I e II, do Código de Processo Civil. Consoante preleciona Aderbal Torres de Amorim, à luz do texto constitucional, “(...) ordinário é o recurso interponível para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, por três diferentes formas. Nessa medida, a espécie constitucional do recurso transmuta-se em gênero, ou subgênero; daí as três subespécies: (a) recurso ordinário para o STF, na improcedência de algumas ações julgadas em instância única em tribunais superiores (Constituição, art. 102, inc. II, alínea ‘a’); (b) recurso ordinário para o STJ de certos acórdãos de tribunais regionais federais e tribunais estaduais aí julgados originariamente, se improcedente a ação (Constituição, art. 105, inc. II, alínea ‘b’), ou também em última instância, se denegado o ‘habeas corpus’ (idem, idem, alínea ‘a’); (c) recurso com idêntica denominação para o STJ de decisões interlocutórias e sentenças prolatadas por juiz federal nas causa em que forem partes, de um lado, Município ou pessoa residente ou domiciliada no país, e, de outro, Estado estrangeiro ou organismo internacional (Constituição, art. 105, inc. II, alínea ‘c’). Neste último caso, procedente ou improcedente a ação3. AMORIM, Aderbal Torres de, Recursos Cíveis Ordinários.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 194. 3 8 5 Dos artigos 102, inciso II e 105, inciso II, da Constituição Federal, observase que no julgamento do recurso ordinário a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, há necessidade de que a decisão da qual originou o recurso ordinário tenha sido proferida em única instância. A dicção “única instância” traduz a idéia de que se trata de causa de competência originária dos correspectivos Tribunais Superiores, quando o recurso for dirigido para o Supremo Tribunal Federal ou tribunais regionais federais, de justiça estaduais e juízes federais de primeiro grau, se se tratar de recurso ordinário de competência do Superior Tribunal de Justiça4. No que alude a expressão “decisão denegatória”, conquanto seja tema a ser oportunamente apreciado de modo mais detido, não há olvidar que deve ser enfocado do modo mais amplo possível, a abranger, também, as decisões que extinguem o processo sem apreciação do mérito. Nesse contexto, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar o recurso ordinário, quando os Tribunais Superiores, entendidos como o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior Tribunal Militar, no exercício da competência originária afeta a cada um, denegam o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção. A Constituição Federal, em seu artigo 5º prevê, expressamente, as hipóteses de cabimento do habeas corpus (inciso LXVIII), do mandado de segurança (inciso LXIX), do habeas data (inciso LXXII) e do mandado de injunção (inciso LXXI). Observa-se, contudo, que, entre os Tribunais Superiores, somente o Superior Tribunal de Justiça possui a competência originária, constitucionalmente prevista, para processar e julgar o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção (art. 105, I, letras “b”, “c” e “h”). No que concerne ao Tribunal Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar, a própria Constituição da República consignou que cabe à lei dispor sobre a competência originária desses Tribunais Superiores (art. 111, § 3º e 124, parágrafo único). Em relação ao Tribunal Superior Eleitoral, a despeito de considerar expressamente recorríveis as decisões denegatórias de habeas corpus e mandado de 4 8 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ob. cit. p. 569. 6 segurança (art. 121, § 3º), a bem da verdade, se insere neste rol as decisões denegatórias de habeas data e de mandado de injunção. Infere-se, assim, que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar o recurso ordinário em habeas corpus, o recurso ordinário em mandado de segurança, o recurso ordinário em habeas data e o recurso ordinário em mandado de injunção, quando o Superior Tribunal de Justiça, ou o Tribunal Superior do Trabalho, ou o Tribunal Superior Eleitoral ou, ainda, o Superior Tribunal Militar, no exercício de suas respectivas competências originária, proferem decisão denegatória nos remédios constitucionais nominados anteriormente. A competência para o Superior Tribunal de Justiça julgar o recurso ordinário, por sua vez, se apresenta quando os Tribunais Regionais Federais ou os tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, julgam, originariamente, o habeas corpus, em última ou única instância e denegam a pretensão deduzida no writ. Igualmente, se denegado o mandado de segurança julgado em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou os tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, terá cabimento o recurso ordinário para o Superior Tribunal de Justiça. Outra hipótese em que se verifica a competência recursal ordinária do Superior Tribunal de Justiça é a que brota do julgamento do juiz federal de primeiro grau nas causas em que forem partes Estado estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, de outro, Município ou pessoa residente ou domiciliada no país (art. 105, II, letra “c”, c.c. o art. 109, II, ambos da CR). Nota-se que a Constituição da República prevê uma exceção à regra processual de que contra sentença proferida por juiz de primeiro grau o recurso cabível é o de apelação5. Verificadas as espécies constitucionais de recurso ordinário, merece registrar que a Lei nº 8.950/94, ao revigorar o artigo 539, notadamente o inciso II, letra “a”, do Código de Processo Civil, desprezou a circunstância de que o habeas corpus não se circunscreve ao processo penal, mas abarca, também, o direito processual civil quando se questiona a legalidade de prisão de depositário infiel ou aquela decorrente da falta de SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 575. 5 8 7 pagamento de pensão alimentícia6. Seja como for, essa falha não é óbice para a interposição, no Superior Tribunal de Justiça, de recurso ordinário em habeas corpus. 1.1.4 Terminologia Conforme ressaltado, a designação constitucional de “recurso ordinário” e “recurso extraordinário” passou a ser utilizada por ocasião do advento da Constituição da República de 1934. Colhe-se da atual Carta da República, bem como do próprio Código de 7 Processo Civil , a subsistência da divisão estabelecida entre o recurso ordinário e o recurso extraordinário. A respeito da classificação dessas modalidades recursais, sustenta Flávio Cheim Jorge que os recursos extraordinários tem como pressuposto a tutela do direito objetivo, razão pela qual são tidos por recurso de estrito direito, pois têm em mira examinar se a norma restou adequadamente aplicada ao caso concreto. Essa circunstância repercute em um juízo de admissibilidade diferenciado, de modo a impor uma série de condições específicas para a admissão do recurso. Sob esse enfoque, se inserem no rol dos recursos considerados extraordinários ou excepcionais o recurso extraordinário, o recurso especial e os embargos de divergência. Por outro lado, entende o processualista que os recursos ordinários visam a proteger imediatamente o direito subjetivo dos recorrentes, sendo que a correta aplicação da lei somente é visualizada mediatamente. Assim, para o cabimento do recurso ordinário se mostra suficiente a alegação de injustiça, bem como é permitida a revisão do conjunto fático-probatório existente nos autos. Como exemplo dos recursos ordinários, são lembrados o recurso de apelação, o de agravo, os embargos de declaração, os embargos infringentes e o ordinário constitucional8. VECHIATO JÚNIOR, Walter. Ob. Cit. p. 426; e, ROENICK, Hermann Homem de Carvalho. Recursos no Código de Processo Civil e na Lei dos Juizados Especiais Cíveis. Rio de Janeiro: Aide, 2003, p. 164. 7 Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. 8 JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, ps. 18/19. 6 8 8 Essa classificação, entretanto, tem sido questionada quando o Ministério Público, ao atuar como custos legis o faz na proteção de direito objetivo, isto é, na hipótese de o Parquet interpor apelação - que está inserida na categoria dos recursos ordinários – na condição de fiscal da lei9. Outra crítica consiste na impossibilidade de inserção dos embargos declaratórios, do agravo interno e do agravo de despacho denegatório dos recursos especial e extraordinário, na categoria dos recursos ordinários ou mesmo dos extraordinários. Em verdade, os embargos de declaração podem ser opostos tanto contra a sentença de primeiro grau, como de decisão monocrática ou de acórdão que julga recurso especial ou extraordinário. Nessa linha de raciocínio, não haveria como qualifica-lo restritivamente como recurso extraordinário ou recurso ordinário. O agravo interno, de igual forma, pode ser interposto tanto nos tribunais de segundo grau como no Tribunal Superior. Mais uma imprecisão verificada consiste no fato de que o agravo, para a corrente doutrinária acima, é tido como recurso ordinário. Ocorre, porém, que o agravo de despacho denegatório busca a admissão de recurso especial e recurso extraordinário (art. 544 do CPC)10. Em linhas gerais, a par das críticas acerca dos critérios de classificação dos recursos, pode-se afirmar que os ordinários carregam uma carga de ampla devolutividade, ao contrário do que ocorre com os recursos extraordinários. Aliás, Celso Agrícola Barbi, ao reproduzir o magistério de Seabra Fagundes, também seguido por Frederico Marques e Alcides Mendonça Lima, destaca que entre os critérios utilizados para distingüir o recurso ordinário do extraordinário, merece relevo aquele que considera “ordinário o recurso em que o reexame da causa é feito em todos os seus aspectos de fato e de direito. Enquanto isto, no recurso extraordinário, o reexame é de aspectos especiais, v. g., as questões atinentes à Constituição e às leis e tratados federais, inclusive as atinentes à disparidade de interpretação (Dos recursos ordinários em matéria civil, cit., p. 12, n. 9)11. 9 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ob. cit. ps. 254/256, SOUZA, Bernardo Pimentel. Ob. cit. p. 265. SOUZA, Bernardo Pimentel. Ob. cit. ps. 266/267. 11 BARBI, Celso Agrícola. O Recurso ordinário em mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça, in Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 224. 10 8 9 1.2 Mandado de Segurança. 1.2.1 Noções Gerais O mandado de segurança, como remédio constitucional que é, tem em mira eliminar ou prevenir que atos de autoridade pública, dotados de ilegalidade ou abuso de poder, tenham a força de afrontar direito liquido e certo de seu titular. A Constituição Federal determina que: “conceder-se-à mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por `habeas corpus` ou `habeas data`, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público” (art. 5o, LXIX). No âmbito infraconstitucional, a norma que regula o predito instrumento constitucional nasceu sob a égide da Constituição da República de 1946 e se preservou em todas as Constituições posteriores, inclusive na atual Carta da República de 1988. Trata-se da Lei nº 1.533/51 que, complementada com as Leis nºs 4.348/64 e 5.021/66 e legislações esparsas, estabelece as diretrizes para a defesa contra os atos ilegais emanados do Poder Público. A ação mandamental, segundo a concepção inserta na Constituição da República, pode ser aforada de modo individual ou coletivo. Assim, pois, poderão compor o pólo passivo da demanda a pessoa física ou jurídica, órgão publico ou universalidade legal12, partido político com representação no Congresso Nacional, bem como organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa do interesse de seus membros ou associados (art. 5o, LXX) De acordo com sua natureza processual, o mandado de segurança é considerado ação civil de rito sumário especial13, razão por que o impetrante, ao buscar a tutela mandamental, deve demonstrar, de plano, por meio de prova documental e de MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “hábeas data”. 16a ed. Atualizada por Arnoldo Wald. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 19. 13 MEIRELLES, Hely Lopes. Ob. cit. p. 23. 12 8 10 maneira inequívoca, que o ato da autoridade apontada como coatora se reveste de ilegalidade ou abuso de poder. Assim, por ocasião da impetração, ou seja, apresentada a petição inicial, o pleito deverá estar instruído com as provas documentais necessárias à demonstração da ilegalidade e abusividade do ato praticado pela autoridade pública. Por certo não se admite que as eivas aflorem no decorrer do procedimento, sob pena de negar a celeridade e agilidade que natura o mandado de segurança. Nessa ordem de idéias é que se pode afirmar que o direito líquido e certo está a traduzir como condição de admissibilidade da ação mandamental, de maneira que, afastada a sua existência, a extinção do writ é conseqüência natural. Considerado o direito líquido e certo como condição da ação de mandado de segurança, não se deve esquecer que existem situações em que a aferição da ausência da pretensão mandamental poderá se mostrar após exauridas as etapas do mandado de segurança. Assim, considere-se a hipótese em que o juiz, em sede de cognição sumária, reconheça a presença do direito invocado e conceda a liminar. Entretanto, após todo o transcurso do procedimento do writ, isto é, em momento posterior à vinda das informações e à manifestação do Ministério Público, verifique, em cognição exauriente, não existir o reclamado direito líquido e certo. Essa situação, pois, redundará, no julgamento do mandado de segurança sem exame do mérito. Acerca dessa peculiaridade, averba, com sua habitual clareza, Lúcia Valle Figueiredo: “É importante assinalar: o direito líquido e certo aparece em duas fases distintas no mandado de segurança. Aparece, inicialmente, como condição da ação. É o direito líquido e certo, ao lado das demais condições da ação, requisito de admissibilidade de mandado de segurança. Em conseqüência, o próprio conceito de direito líquido e certo incide duas vezes. Incide de início no controle do juiz. Quando se apresenta a inicial, impende ao juiz verificar se há – como diz o Professor Sérgio Ferraz – plausibilidade da existência de direito líquido e certo. O problema que se coloca, a seguir, é de como aparece o direito líquido e certo no final do mandado de segurança. É dizer, instruído o mandado de 8 11 segurança, se ao juiz se apresentou o direito como líquido e certo inicialmente, mesmo assim poderá, a final, o juiz dizer que inexiste tal direito. Nessa oportunidade, abrem-se duas opções: é possível, com a vinda das informações, a verificação, pelo juiz, de que o direito, apresentado inicialmente como indene de controvérsias, não o é, por não ter o impetrante exposto todo o contexto factual. Em outro falar: não foram apresentados os fatos como efetivamente acontecidos. De conseguinte, o que parecera ao juiz extremamente plausível de existir, a lume da prova carreada aos autos, pode-se aferir que inexiste. É necessário deixar clara a existência de dois momentos processuais diferentes. No primeiro momento, há plausibilidade da existência do direito líquido e certo; no segundo momento, de cognição completa do mandado de segurança – portanto, na hora da sentença -, é possível a ocorrência de duas hipóteses. Primeiro, a inexistência daquela plausibilidade que parecera presente ao juiz. Neste caso, teremos a extinção sem julgamento de mérito; ou é possível, ainda, que a hipótese descrita na inicial não leve necessariamente àquela conclusão, Portanto, não há, pelo mérito, possibilidade de aquele impetrante vir a ser beneficiado pela concessão da ordem”14. O prazo para impugnar, por meio de mandado de segurança, o ato inquinado de ilegal, a teor do que dispõe o artigo 18 da Lei nº 1.533/51, é de 120 (cento e vinte) dias, contados do momento em que o interessado teve ciência da ilegalidade praticada. Arredada a discussão doutrinária acerca da constitucionalidade do lapso temporal para a impetração do mandado de segurança, tendo em vista o teor da Súmula nº 632 do Supremo Tribunal Federal15, não se deve perder de enfoque que, se transcorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias, o direito material não ficará desguarnecido, uma vez que FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de Segurança. 5a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, ps. 21/22. Súmula n. 632 do STF: “É constitucional a lei que fixa o prazo de decadência para a impetração de mandado de segurança”. 14 15 8 12 o seu titular poderá buscar a tutela jurisdicional por intermédio de outra ação que não a mandamental. Tema de suma importância no mandado de segurança e que merece realce diz respeito à figura da autoridade coatora. Autoridade coatora é aquela que está intimamente ligada à uma ação ou inação, cujo reflexo de seu proceder afronta a esfera de um direito protegido pelo ordenamento. No dizer de Cássio Scarpinella Bueno “autoridade coatora, pois, é a pessoa que ordena a prática concreta ou a abstenção impugnáveis. Não quem fixa diretrizes genéricas para produção dos atos individuais. Tampouco o mero executor material do ato, que apenas cumpre as ordens que lhe são dadas. A autoridade coatora deve ter competência para o desfazimento do ato. Trata-se, pois, de verificar quem tem função decisória ou deliberatória sobre o ato impugnado no mandado de segurança e não, meramente, função executória”16. A visualização do ato coator e, por conseguinte, da figura da autoridade coatora, irá repercutir no juízo competente para processar e julgar o mandado de segurança. Essa competência é revelada pela Constituição da República, com base na qualificação hierárquica da autoridade coatora. Assim, focado na Justiça Federal, notadamente em primeira instância, temos que cabe aos juízes federais processar e julgar “os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais” (art. 109, VIII, CF). No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a competência para processar e julgar, originariamente, os mandados de segurança se dá quando o ato emanar do próprio Tribunal ou de juiz federal (art. 108, I, c, da CF). Nos Estados, a organização da Justiça Estadual, à evidência, deverá guardar sintonia com os princípios estabelecidos na Constituição da República e, vinculados a essa regra, “a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça” (art. 125, § 1o, da CF). BUENO, Cássio Scapinella. Mandado de Segurança. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2004, ps. 20/21. Confira-se, também, em sentido semelhante: FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Ob. cit. p. 55; e, MEIRELLES. Hely Lopes. Ob. cit. p. 45. 16 8 13 Dentro desse contexto, se extrai da Constituição do Estado de São Paulo que cabe ao Tribunal de Justiça, processar e julgar, originariamente, os mandados de segurança impetrados contra atos do Governador do Estado, da Mesa e da Presidência da Assembléia, do próprio Tribunal ou de alguns de seus membros, dos Presidentes dos Tribunais de Contas do Estado e do Município de São Paulo, do Procurador-Geral de Justiça, do Prefeito e do Presidente da Câmara Municipal da Capital de São Paulo (art. 74, III, da Constituição Estadual). Semelhante disposição constitucional colhe-se do artigo 46, inciso VIII, letra “g”, da Constituição do Estado de Goiás. Em relação aos magistrados de primeiro grau do Estado de São Paulo, ficará a cargo dos juízes da Fazenda Pública processar e julgar o mandado de segurança apresentado contra as demais autoridades do Estado de São Paulo e dos Municípios que o compõem (cf. DL Complementar n. 3/69 e Lei n. 6.166/88)17. No que diz respeito à competência originária do Superior Tribunal de Justiça, para processar e julgar as ações mandamentais, o ato tido por ilegal ou abusivo deverá emanar dos Ministros de Estado, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica ou do próprio Tribunal (cf. art. 105, I, b, da CF). Por derradeiro, ao Supremo Tribunal Federal, cabe, originariamente, processar e julgar o mandado de segurança quando o ato ilegal for atribuído ao Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal (cf. art. 102, I, d, da CF). A título de mera lembrança, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, do ano de 1979, já previa a competência privativa e originária dos Tribunais para julgar os mandados de segurança contra seus próprios atos, bem como dos seus respectivos Presidentes e os de suas Câmaras, Turmas ou Seções (art. 21, VI, da LC 35/79). Como se observou, a Constituição da República, ao abrigar o remédio constitucional do mandado de segurança, também estabelece a competência originária dos tribunais em que ele deverá ser processado e julgado, levando em conta o critério da competência hierárquica. 17 8 BUENO, Cássio Scarpinella. Ob. cit. ps. 42/43. 14 1.3 Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. 1.3.1 Requisito de admissibilidade. Consoante já evidenciado, o recurso ordinário em mandado de segurança, está inserido no bojo das subespécies de recurso ordinário constitucional, trazidas com a nova ordem constitucional de 1988 e, bem assim, no rol da competência recursal afeta ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça. Segundo estabelece o artigo 540 do Código de Processo Civil, aplica-se ao recurso ordinário em mandado de segurança, quanto aos requisitos de admissibilidade, os ditames insertos nos “Capítulos II e III deste Título”, os quais disciplinam a apelação e o agravo. O cabimento do recurso ordinário em mandado segurança, tanto para o Supremo Tribunal Federal, como para o Superior Tribunal de Justiça, pressupõe a existência de “decisão denegatória” da impetração. O termo genérico “decisão” há de ser entendido como “acórdão” proveniente de Tribunal Superior ou de tribunal de segundo grau, pois não é admissível a interposição para o tribunal ad quem se não foram esgotados os recursos no tribunal a quo. Assim, impetrado o mandado de segurança originário, o relator, por meio de decisão singular, entende por indeferir liminarmente a impetração, não cabe a imediata interposição do recurso ordinário em mandado de segurança. Deverá o impetrante, antes de recorrer para o órgão ad quem, interpor agravo regimental ou interno, no próprio tribunal, contra a decisão que indeferiu liminarmente o mandado de segurança. Caso o regimento interno do tribunal a quo não preveja o cabimento do agravo regimental nessa hipótese, deverá o impetrante se valer da aplicação analógica do artigo 39 da Lei nº 8.038/90 (Lei dos Recursos)18, consoante, aliás, precedente do Superior Tribunal de Justiça19. 18 Lei n. 8.038/90, art. 39: “Da decisão do Presidente do Tribunal, de Seção, de Turma ou de relator que causar gravame à parte, caberá agravo para o órgão especial, Seção ou Turma, conforme o caso, no prazo de cinco dias”. 8 15 Nessa linha de raciocínio, se for improvido o agravo interno no tribunal a quo e, por conseguinte, referendada pelo colegiado a decisão singular do relator que indeferiu liminarmente o mandado de segurança, caberá, desse acórdão, a interposição do recurso ordinário em mandado de segurança. Definido que, para a interposição do recurso ordinário em mandado de segurança, a locução “decisão” tem sentido de acórdão, cabe examinar a extensão do termo “denegatória”, que se extrai do disposto na Constituição Federal e no Código de Processo Civil. Acerca desse tema o jovem processualista Bernardo Pimentel Souza, ao tratar do recurso ordinário em mandado de segurança para o Superior Tribunal de Justiça, perlustra que “a expressão ‘quando denegatória a decisão’, inserta na alínea ‘b’ do inciso II do artigo 105 da Constituição Federal e na letra ‘a’do inciso II do artigo 539 do Código de Processo Civil deve ser interpretada em sentido amplo, abarcando o acórdão denegatório da ordem após o julgamento do mérito do writ, bem como o aresto extintivo do processo de segurança sem julgamento do mérito. (...) Em suma, à luz do direito brasileiro é possível concluir que a cláusula ‘denegatória a decisão’ alcança tanto o julgado de improcedência como a extinção do processo de segurança sem julgamento do mérito. Portanto, todo acórdão não concessivo da segurança pleiteada originariamente em tribunal regional federal ou em tribunal local deve ser considerado denegatório, com o cabimento do recurso ordinário para o Superior Tribunal de Justiça20. Observa-se, assim, que a locução “denegatória a decisão”, possui uma amplitude que abrange os acórdãos que apreciam o mérito da segurança, bem como aqueles que, sem examinar o meritum causae, extinguem o processo. Na linha dessa ampla extensão do termo “decisão denegatória”, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido que a concessão parcial da segurança pelo tribunal regional federal ou pelo tribunal local, também revela o cabimento de recurso ordinário em mandado de segurança, tendo em conta que é uma forma de não conceder o mandado de segurança em sua plenitude, ou seja, se traduz numa denegação parcial. O acórdão condutor desse modo de pensar, nessa parte, está assim redigido: 19 20 8 Ag RG no Ag 476.218-SP, Relator Ministro Luiz Fux, 1a Turma, DJ de 02/06/2003. SOUZA, Bernardo Pimentel. Ob. cit. ps. 578 e 580. 16 “A denegação de parte do pedido impõe o reexame da causa em sede de recurso ordinário, sem submissão ao juízo de admissibilidade, ínsito ao recurso especial. E não se justifica outra exegese diante da magnitude do ‘Remédio Heróico’, ação posta à disposição do cidadão pela Carta Magna, para a defesa dos seus direitos líquidos e certos contra ato de autoridade”21 A corroborar com a posição jurisprudencial, pontifica Humberto Gomes de Barros que em face do acórdão que conceder parcialmente a segurança, o recurso ordinário terá cabimento na parte do julgado que reflete a denegação parcial. Por sua vez, ao ente estatal caberá interpor recurso especial ou extraordinário (se o mandado de segurança for julgado no STJ) da parte que conceder a ordem22. Percebe-se que a sucumbência recíproca autoriza a interposição de duas modalidades de recurso, ou seja, o recurso ordinário em mandado de segurança da parte que denegar o mandado de segurança e recurso especial ou extraordinário contra a concessão da segurança. Definidas algumas peculiaridades específicas que circundam o cabimento do recurso ordinário em mandado de segurança, denota-se que de acordo com o que estabelece o artigo 508 do Código de Processo Civil, o prazo para interpor e responder o predito recurso é de 15 (quinze) dias. É sabido que, em linhas gerais, na hipótese em que são vencidos autor e réu poderá ser interposto recurso adesivo (art. 500 do CPC). Entretanto, no caso do recurso ordinário em mandado de segurança, essa regra não tem aplicação, tendo em vista se tratar de recurso dirigido precipuamente ao impetrante23. Esse tema, todavia, será apreciado de 21 RMS n. 3.826-AC, Relator Ministro Peçanha Martins, 2a Turma, DJ de 27/06/94. No mesmo sentido, confira-se, ainda, RMS n. 13.787-RS, Relator Ministro Franciulli Netto, 2a Turma, DJ de 31/05/2004; e, RMS n. 17.650-GO, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5a Turma, DJ de 11/04/2005. 22 BARROS, Humberto Gomes. Recursos Cíves Ordinários e Regimentais, no Superior Tribunal de Justiça, in Doutrina – Superior Tribunal de Justiça/Edição Comemorativa – 15 anos. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2005, p. 439. 23 Em sentido contrário, Cândido Rangel Dinamarco assevera que o recurso ordinário, “como verdadeira apelação que é, em seus objetivos, em seus efeitos e em sua disciplina legal , esse recurso comporta interposição segundo as normas do recurso adesivo, ditadas no art. 500 do Código de Processo Civil”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Ob. cit. p. 193. 8 17 modo mais detido quando forem traçadas as diferenças entre o recurso ordinário em mandado de segurança e a apelação. O tribunal que originariamente denegar o mandado de segurança é que definirá a competência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Infere-se daí que o recurso ordinário em mandado de segurança brota da competência originária dos Tribunais Superiores ou dos tribunais regionais federais ou locais, de maneira que o acórdão denegatório de mandado de segurança que advém de competência recursal de tribunal, não desafia recurso ordinário. Outra exigência relativa a apelação, que se aplica ao recurso ordinário em mandado de segurança, é a regra do artigo 514 e incisos, do Código de Processo Civil, segundo a qual o recurso deverá ser apresentado em petição escrita, com a devida qualificação das partes, bem como os fundamentos de fato e de direito e o pedido de nova decisão. 1.3.2 Procedimento no Tribunal “a quo”. Do cotejo entre os artigos 540 do Código de Processo Civil com o artigo 247 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que o recurso ordinário em mandado de segurança, orienta-se, no tribunal de origem, pelas mesmas regras orientadoras da apelação, sobretudo no que se refere ao duplo juízo de admissibilidade. Assim, pois, caberá ao tribunal que decidiu originariamente o mandado de segurança, realizar o primeiro exame acerca da admissibilidade do recurso ordinário. Por conseguinte, compete ao presidente ou vice-presidente do Tribunal Superior ou tribunal regional federal ou tribunal estadual/distrital aferir previamente se estão presentes os requisitos ou pressupostos genéricos e específicos de admissibilidade do recurso. Nessa oportunidade, por se tratar de recurso colocado à disposição do impetrante, o tribunal a quo irá verificar sua condição de sucumbente, bem como se o acórdão denegou a pretensão mandamental. 8 18 Acerca da feitura do juízo de admissibilidade pelo tribunal que julgou o mandado de segurança, vem a calhar o magistério de Humberto Theodoro Júnior: Caberá ao Presidente do Tribunal a quo receber o recurso ordinário, mas não fará exame do cabimento da impugnativa com os detalhes exigidos pelo recurso especial ou extraordinário, onde a admissibilidade excepcional do recurso quase sempre reclama análise do mérito do acórdão recorrido, em face dos próprios limites traçados pelos arts. 102, nº III e 105, nº III, da C. Federal. No recurso ordinário, o exame é apenas exterior e se limitará à comprovação da qualidade de vencido do recorrente, o caráter denegatório do julgado, a tempestividade e demais exigências procedimentais”24. É cediço, ainda, que o juízo de admissibilidade efetivado pelo tribunal local, se positivo, não tem a virtude de vincular o tribunal destinatário do exame do recurso ordinário em mandado de segurança. Aliás, nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça decidiu, quando o Tribunal Estadual recebeu recurso especial como recurso ordinário em mandado de segurança e admitiu esse recurso, a fim de que fosse examinada pela Corte Superior a pretensão recursal deduzida. Na oportunidade, ficou consignado que “a decisão proferida junto ao Tribunal a quo recebendo o recurso especial como ordinário não vincula esta Corte Superior”25. De outra banda, se obstada a caminhada do recurso ordinário em mandado de segurança, tendo em vista o Tribunal a quo ter observado a ausência de requisito para sua admissibilidade, caberá à parte recorrente interpor agravo regimental para o próprio Tribunal local, a fim de buscar a reforma do decisum. Essa matéria será apreciada em seguida, tendo em vista o objetivo de demonstrar, de maneira mais percuciente, que a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça merece melhor reflexão. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, in Livro de Estudos Jurídicos. vol. 5. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1991, p. 94. 25 RMS n. 7.647-RJ, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 16/02/98. 24 8 19 1.3.3 Efeitos. Superada a primeira etapa referente ao exame de admissibilidade do recurso ordinário, cumpre perquirir acerca do efeito em que deverá ser recebido. Em vista do caráter expedito do mandado de segurança, bem como de sua eficácia imediata, não há espaço para admitir que o recurso seja recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo. Deverá o recurso ordinário, no entanto, ser recebido somente no efeito devolutivo, da mesma forma que o parágrafo único do artigo 12 determina o recebimento da apelação em mandado de segurança. Não se desconhece, contudo, que há respeitáveis entendimentos no sentido de que o recurso ordinário deverá ser recebido em ambos os efeitos26. Ocorre, porém, que não se deve esquecer que o Superior Tribunal de Justiça ao decidir essa questão, se posicionou no sentido de que “o recurso ordinário, consoante definição da legislação de regência, deve ser recebido no efeito meramente devolutivo”27. Na mesma linha desse precedente, doutrina Bernardo Pimentel Souza: “(...) convém relembrar que o recurso ordinário em mandado de segurança não produz efeito suspensivo. Segundo a tradição do nosso direito, as decisões proferidas em mandado de segurança são de eficácia imediata, conforme revela o parágrafo único do artigo 12 da Lei nº 1.533, de 1951. a propósito, vale a pena conferir o verbete n. 405 da Súmula do Supremo Tribunal Federal: ‘Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária’”28. 26 De acordo com Cássio Scarpinella Bueno, “como não existe qualquer regra em sentido contrário, os recursos ordinários serão processados com os mesmos efeitos que a apelação (devolutivo e suspensivo), aplicando-se a eles, portanto, as considerações do título seguinte. Como só se pode falar em recurso ordinário quando denegatória a decisão, é correto o entendimento de que esse recurso sempre tem o efeito devolutivo e o suspensivo. Prevalece, para ele, à falta de lei específica em sentido contrário, a regra do ‘duplo efeito’, consoante o art. 520, caput, do Código de Processo Civil”. BUENO, Cássio Scarpinella. Ob. cit. p. 119. 27 MC n. 859, Relator Ministro Demócrito Reinaldo, 1a Turma, DJ de 18/12/98. 28 SOUZA, Bernardo Pimentel. Ob. cit. p. 587. 8 20 Com a mesma ênfase, Lúcia Valle Figueiredo sustenta que o efeito devolutivo é o inerente à sentença proferida em mandado de segurança. Assegura, ainda, que “como se pode verificar, qualquer sentido há para que a sentença proferida em mandado de segurança tenha efeito suspensivo. O efeito devolutivo é-lhe inerente. A lei não poderá, para situações peculiares, ao sabor das conveniências do momento, modificar o sentido da presteza da garantia constitucional. Caso haja fundado receio de grave lesão à saúde, à segurança ou à ordem públicas, o remédio que se apresentará é a suspensão da sentença pelo presidente do tribunal ad quem, se presentes os pressupostos legais, (...)”29. Observa-se, ainda, que Hely Lopes Meirelles, em sua clássica obra acerca do mandado de segurança, elucida que “o efeito dos recursos em mandado de segurança é somente o devolutivo, porque o suspensivo seria contrário ao caráter urgente e autoexecutório da decisão mandamental”30. 1.3.4 Recurso cabível contra decisão que não admite o recurso ordinário em mandado de segurança. Conforme já registrado, prevalece no Superior Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual da decisão proferida pelo presidente ou pelo vice-presidente da Corte a quo, que obsta a subida do recurso ordinário em mandado de segurança, cabe a interposição de agravo regimental ou agravo interno. A Corte Superior afasta, desde logo, o agravo de despacho denegatório dos recursos excepcionais, disciplinado no artigo 544 do Código de Processo Civil, uma vez que esse preceito processual somente tem aplicação para o caso de inadmissão do recurso extraordinário e especial. 29 30 8 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Ob. cit. ps. 231/232. MEIRELLES, Hely Lopes. Ob. cit. p. 74. 21 Com o fito de melhor visualizar essa assertiva, se faz oportuno trazer precedentes do Superior Tribunal de Justiça: “AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA DECISÃO INDEFERITÓRIA DE PROCESSAMENTO DE RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INCABIMENTO. 1. O agravo de instrumento de competência desta Corte Superior de Justiça é aquele interposto contra a inadmissão de recurso especial ou, ainda, das decisões interlocutórias nas causas em que forem partes, de um lado, Estado estrangeiro ou organismo internacional e, de outro, município ou pessoa domiciliada ou residente no País, sendo manifestamente incabível a sua interposição contra decisão do Presidente do tribunal a quo indeferitória de recurso ordinário em mandado de segurança. 2. Agravo regimental improvido”31. “PROCESSO CIVIL. SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. AGRAVO DE INSTRUMENTO INTEMPESTIVO SEGURANÇA. CONTRA RECURSO NÃO DESPACHO ORDINÁRIO CONHECIMENTO. EM AG. QUE JULGOU MANDADO DE REGIMENTAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. 1. O agravo de instrumento insrito no art. 544 do Código de Processo Civil, não configura o meio processual adequado para se reexaminar decisão proferida em Recurso Ordinário em Mandado de Segurança julgado intempestivo. Cabível, nestas hipóteses, o chamado agravo regimental ou interno, submetendo a decisão que decretou a deserção e obstou, com isso, eventual subida do recurso, ao crivo do Colegiado de origem. 2. Precedente (Ag. Reg. Ag. N. 367.105-SP). 3. Agravo regimental conhecido, porém, desprovido”32. 31 8 Ag Reg no Ag n. 715.151-MT, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, 5a Turma, DJ de 06/03/2006 22 De acordo com a jurisprudência que prevalece no Superior Tribunal de Justiça, obstada a subida do recurso ordinário, o recorrente deverá se valer do agravo regimental ou agravo interno contra a decisão do presidente ou vice-presidente que inadmitiu o recurso ordinário. Se porventura for mantida a decisão pela turma julgadora do tribunal a quo, caberá ao impetrante/recorrente, se for o caso, interpor recurso especial do acórdão que confirmou a decisão atacada. Por outro lado, em princípio, há que se admitir ao impetrado/recorrido o direito de interpor recurso especial do julgado, proferido no agravo interno, que reformar a decisão que inadmitiu o recurso ordinário. Ao que parece, a posição jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça acerca do recurso cabível contra a decisão que não admite recurso ordinário desnatura o próprio recurso ordinário, o qual, por brotar de mandado de segurança, deveria ser tratado com a mesma urgência que o remédio constitucional, ainda mais para confirmar, ou não, a decisão que obsta que o tribunal destinatário do recurso ordinário possa examiná-lo. Além do mais, não se deve esquecer que a Corte Superior de Justiça é quem deve realizar o juízo definitivo de admissibilidade do recurso ordinário. Conclui-se que o agravo interno ou regimental não ostenta a característica do recurso cabível para dar caminhada ao recurso ordinário inadmitido. De qualquer forma, merece ser prestigiado o entendimento no sentido de que o agravo do artigo 544 do Código Processo Civil não é o meio idôneo para atacar a decisão que obsta o recurso ordinário. Ocorre, porém, que não se pode desprezar que o Código de Processo Civil, em seu artigo 540, é explícito ao determinar que para o recurso ordinário, deve ser aplicada a regra para a apelação, notadamente quanto aos requisitos de admissibilidade e ao procedimento no tribunal de origem. Assim sendo, há de prevalecer o agravo de instrumento do artigo 522 e seguintes do Código de Processo Civil, para o Superior Tribunal de Justiça, como meio para impugnar a decisão do presidente ou vice-presidente que inadmitir recurso ordinário. 32 8 Ag Reg no Ag n. 388.317-SP, Relator Ministro Jorge Scatezzini, 5a Turma, DJ de 20/05/2002. 23 1.3.5 Procedimento no tribunal “ad quem”. Efetivado o juízo positivo de admissibilidade, deverá o recurso ordinário ser remetido para o tribunal destinatário, que poderá ser o Supremo Tribunal Federal, se a decisão denegatório sobrevier de Tribunal Superior (STJ, TST, TSE e STM), ou o Superior Tribunal de Justiça se o mandado de segurança for denegado por tribunal regional federal ou tribunal estadual/distrital. De acordo com o artigo 540 do Código de Processo Civil, com a chegada do recurso ordinário em mandado de segurança na Corte excepcional competente, o procedimento a ser seguido é aquele disposto no respectivo regimento interno. No caso do Superior Tribunal de Justiça, consoante dicção do artigo 64, inciso III, combinado com o artigo 248, ambos de seu Regimento Interno, deverão os autos ser encaminhados ao Subprocurador-Geral da República, o qual terá vista dos autos pelo prazo de 5 (cinco) dias. Ao depois deverá ser concluso ao relator, o qual verificará se é o caso de proferir decisão monocrática, à luz do que preceitua o artigo 557 do Código de Processo Civil. Arredada a hipótese de decisão solitária do relator, deverá ser pedido dia para julgamento do recurso ordinário em mandado de segurança pela turma julgadora competente (art. 9o do RISTJ), nos termos do artigo 13, inciso II, letra “b”, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Da leitura do artigo 551 do Código de Processo Civil, infere-se que o recurso ordinário em mandado de segurança não necessita que os autos sejam conclusos ao revisor. No julgamento do recurso ordinário em mandado de segurança poderão ser examinadas todas as questões de fato e de direito, podendo ser, por conseqüência, analisado o conjunto probatório, apreciada matéria envolvendo direito local e, bem assim, de cunho constitucional. Não se exige o requisito do prequestionamento para essa modalidade recursal. 8 24 O artigo 515, §§ 1o e 2o, do Código de Processo Civil, aplica-se ao recurso ordinário em mandado de segurança Da decisão de mérito.não unânime proferida em recurso ordinário pelo Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça, a qual reformar o acórdão do tribunal de origem, não cabem os embargos infringentes (cf. art. 530 do CPC). O recurso ordinário em mandado de segurança não dá ensejo à interposição de embargos de divergência, nem se presta para demonstrar desarmonia jurisprudencial, pois essa modalidade recursal serve para eliminar discrepância de julgamento proferido em recurso especial e extraordinário. 1.3.6 Não incidência da fungibilidade recursal. Sabem-no todos que, ao contrário do Código de Processo Civil de 1939 (art. 810), o atual sistema processual civil não contempla, de modo explícito, o instituto da fungibilidade dos recursos. A fungibilidade recursal consiste na admissão de um recurso por outro, quando verificada uma situação de ambigüidade ou dúvida razoável, ou seja, o recorrente acaba por ser conduzido a interpor inadequadamente um recurso por outro que, efetivamente, o seria o correto. Prevalece, no entanto, que a dúvida objetiva sobre qual o recurso cabível, ao lado da inexistência de erro grosseiro, são os elementos autorizadores à aplicação do princípio da fungibilidade recursal. A dúvida objetiva traduz a idéia de incerteza sobre qual é o recurso idôneo para impugnar determinado pronunciamento judicial. Exemplo típico da dúvida ou incerteza que pode pairar consiste em responder qual o recurso cabível - agravo ou apelação -, no caso de indeferimento liminar da reconvenção. No particular, denota-se que falta consenso tanto na jurisprudência, como na doutrina, razão pela qual não se mostra razoável o recorrente ser penalizado com o não conhecimento do recurso, se apresentar apelação quando o correto seria agravo. 8 25 O erro grosseiro, por seu turno, está ligado à idéia de não se conceber que o recorrente interponha um recurso pelo outro, quando o recurso correto se encontra indicado no texto legal de forma expressa. Na trilha dessa despretensiosa visão geral acerca do princípio da fungibilidade recursal, é de elementar inferência que o recurso ordinário em mandado de segurança, dada sua previsão constitucional, bem como as disposições constantes no Código de Processo Civil, não tolera ser substituído por outro recurso, pois sua hipótese de cabimento encontra-se explicitamente regrado nos referidos diplomas normativos. A propósito, vem a calhar a Súmula n. 272 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “Não se admite como recurso ordinário recurso extraordinário de decisão denegatória de mandado de segurança”. O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha de entendimento, assim se decidiu: “PROESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DENEGATÓRIA. RECURSO CABÍVEL. ERRO GROSSEIRO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INAPLICAÇÃO. O recurso cabível de decisão denegatória de mandado de segurança, proferida em única instância por Tribunal Regional Federal, é o ordinário, configurando erro grosseiro a interposição em seu lugar, de recurso especial, de sorte a afastar a possibilidade de aplicar-se o princípio da fungibilidade recursal. Agravo a que se nega provimento. Decisão por unanimidade”33. Nessa vereda, ante a clareza do texto constitucional, reproduzida na norma infraconstitucional, não se cogita de qualquer incerteza acerca do cabimento do recurso ordinário em mandado de segurança, de maneira que não há espaço para contemplar a aplicação do princípio da fungibilidade recursal. 33 8 Ag. Reg. n. 70.714-PR, Relator Ministro Demócrito Reinaldo, 1a Turma, DJ de 18/12/95. 26 Esse raciocínio deve ser aplicado, também, à apelação, a qual, conquanto guarde algumas semelhanças com o recurso ordinário em mandado de segurança, é certo que não possui estatura constitucional e suas hipóteses de cabimento estão definidas de forma clara e precisa. 2. APELAÇÃO 2.1 Noções Gerais No rol estabelecido no artigo 496 do Código de Processo Civil, a apelação se insere em seu primeiro inciso. Essa posição geográfica no ordenamento processual, bem demonstra que entre as modalidades recursais, a apelação é o recurso ordinário por excelência no processo civil brasileiro34. O recurso de apelação tem por objeto toda e qualquer sentença, ou seja, tanto a que julga o processo sem exame do mérito (art. 267 – CPC), como a que decide a causa com apreciação do mérito (art. 269 – CPC) e, bem assim, em qualquer tipo de processo, isto é, de conhecimento, cautelar, de execução. Da mesma forma caberá apelação contra sentença proferida em sede de jurisdição voluntária ou contenciosa. O objeto da apelação, encontra-se regrado no artigo 162 do Código de Processo Civil, ao dispor que “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”(§ 1o). Essa disposição processual, como bem adverte Barbosa Moreira, deve ser entendido como o ato pelo qual o juiz põe fim ao procedimento de primeiro grau, decidindo ou não o mérito da causa35. 34 35 8 NERY JUNIOR, Nelson. Ob. cit., p. 433. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ob. cit., p. 413. 27 Não se pode perder de enfoque, porém, que existem situações em que a regra segundo a qual da sentença caberá apelação, comporta exceção. No que se refere ao recurso ordinário constitucional, por exemplo, da sentença proferida pelo juiz federal de primeiro grau, nas causas em que têm como partes Estado estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, do outro, município ou pessoa residente ou domiciliada no País, não cabe apelação, mais sim recurso ordinário em causas internacionais (cf. art. 105, II, “c”, c.c. art. 109, II, da CR). Entre outras hipóteses de exceção à regra de que da sentença decorre o recurso de apelação, vem à baila a limitação à atividade recursal prevista no artigo 34 da Lei n. 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal). Esse dispositivo estabelece que das sentenças de primeira instância, proferidas em execução, cujo valor não ultrapasse a 50 ORTNs serão admitidos embargos infringentes e de declaração, os quais deverão ser apresentados para o mesmo juízo que proferiu a sentença. De qualquer modo, prepondera a regra segundo a sentença terminativa ou definitiva, desafia recurso de apelação. Verifica-se, ainda, que entre as várias regras inerentes à apelação, a previsão contida no artigo 515 do Código de Processo Civil tem a virtude de se espraiar para todo o sistema recursal, notadamente no que se refere à questão do efeito devolutivo. Aliás, a apelação é o recurso que permite ampla atividade cognitiva para o órgão julgador, a prevalecer seu efeito devolutivo. O prazo para interposição e resposta da apelação é de 15 (quinze) dias, sendo permitido, no caso, a apelação adesiva (art. 500 – CPC). A propositura da apelação poderá ser efetivada pela parte vencida, por terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, nas causas em que atuou como parte, bem como nas que funcionou como fiscal da lei (art. 499 – CPC). A petição inicial deverá conter nome e qualificação das partes (recorrente e recorrido) e, bem assim, os fundamentos de fato e de direito que autorizam a interposição do apelo. No que toca o pedido de nova decisão, caberá ao recorrente postular a reforma do julgado, quando se tratar de error in judicando ou a anulação do acórdão quando evidenciada a hipótese de error in procedendo (cf. art. 514 e incisos, do CPC). 8 28 Merece ser registrada a regra inserta no artigo 296 do Código de Processo Civil, a qual confere ao magistrado a possibilidade de se retratar quando indefere liminarmente a petição inicial. Na hipótese de não ser reformado o decisum e, por conseqüência, mantida a sentença de indeferiu de plano a petição inicial, serão os autos encaminhados imediatamente para o tribunal destinatário do apelo. Seguindo o curso natural, no momento da interposição da apelação, a parte recorrente deverá demonstrar, de maneira inequívoca, o pagamento do respectivo preparo, sob pena de não ter seu recurso conhecido. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, por decisão de sua Corte Especial consignou que o preparo efetivado após a interposição do recurso, ainda que este esteja dentro do prazo, configura deserção36. Ao examinar o artigo 518 do Código de Processo Civil, colhe-se que o magistrado prolator da sentença, após a interposição da apelação, declara os efeitos que o recurso será recebido e determina que se dê vista à parte contrária para, querendo, apresentar resposta. Nessa primeira oportunidade é realizado um juízo prévio de admissibilidade pelo juiz de primeiro grau. Transcorrido o prazo para as contra-razões, o magistrado poderá realizar novo juízo de admissibilidade, independente de ter sido, ou não, apresentada resposta ao recurso de apelação. Harmônico com esse raciocínio, anota Bernardo Pimentel Souza que “apresentadas as contra-razões, o juiz a quo reexamina se os pressupostos recursais da apelação estão efetivamente satisfeitos. Aliás, é possível afirmar que o juiz de primeiro grau pode reapreciar os requisitos de admissibilidade até mesmo quando o apelado não apresenta resposta ao recurso. Portanto, oferecidas as contra-razões, ou não, há o reexame do juízo de admissibilidade do apelo pelo juiz a quo. Realmente, constatando o não-preenchimento de algum dos pressupostos recursais, o juiz de primeiro grau não admite a apelação anteriormente recebida. Tal decisão também pode ser impugnada por meio de agravo de instrumento, já que se encaixa na hipótese prevista na última parte do § 4º do artigo 523. A possibilidade de o juiz a quo reexaminar de ofício a observância dos requisitos de admissibilidade encontra explicação no princípio da economia processual, pois nada justifica a remessa dos autos ao tribunal ad quem para julgamento da apelação que nem sequer cumpre requisito de admissibilidade. Além disso, 36 8 Resp n. 135.612-DF, Relator p/ acórdão Ministro Garcia Vieira, DJ de 29/06/98. 29 os pressupostos recursais configuram matéria de ordem pública, o que explica a permissão da iniciativa oficial”37. Ainda sobre o artigo 518 do Código de Processo Civil, observa-se que a Lei n. 11.276, de 07 de fevereiro de 2006, a partir de maio do corrente ano, insere dois parágrafos ao dispositivo em comento, bem como lhe confere nova redação. Trata-se da determinação legal no sentido de que o recurso de apelação nem sequer deverá ser recebido quando a sentença proferida estiver em sintonia com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (§ 1º) e reafirma a possibilidade de o magistrado prolator da sentença reexaminar os pressupostos de admissibilidade da apelação, após a resposta, fixando, para tanto, o prazo de 5 (cinco) dias (§ 2º). Cumpre consignar, também, que em relação aos efeitos da apelação, segundo dicção do caput do artigo 520 do Código de Processo Civil, a regra é do duplo efeito (devolutivo e suspensivo). Os incisos I a VII, por outro lado, especificam as situações pelas quais o efeito deverá ser meramente devolutivo, tendo em vista a circunstância de o apelo originar de sentença que homologa a divisão ou a demarcação, condena à prestação de alimentos, julga liquidação de sentença, decide o processo cautelar, rejeita liminarmente embargos à execução ou julga-os improcedentes, julga procedente o pedido de instituição de arbitragem e, por fim, confirma a antecipação dos efeitos da tutela. Considerada a hipótese de admissão do apelo, os autos deverão ser remetidos para o tribunal de segundo grau, o qual seguirá os ditames dos artigos 547 e seguintes do Código de Processo Civil. Assim, efetivada a distribuição, deverão os autos ser conclusos ao relator, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas. O relator, após examinar a pretensão recursal, poderá decidir monocraticamente, valendo-se da regra autorizadora do artigo 557. Caso não seja possível a aplicação do mencionado dispositivo processual, deverá restituir à secretaria com seu “visto” e, também, uma exposição dos pontos relevantes e controvertidos do recurso. Não cuidando a hipótese de procedimento sumário, de ação prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 198, III, Lei nº 8.069/90), ou de tema referente à execução fiscal (art. 35 da Lei nº 6.830/80), entre outras, cabe ao relator determinar a remessa dos autos ao seu revisor. 37 8 SOUZA, Bernardo Pimentel. Ob. cit. p. 295. 30 Efetivado o pedido de dia e devidamente publicada a pauta de julgamento, dentro do prazo de 48 (quarenta e oito) horas, a apelação será julgada por decisão tomada pelo voto de 3 (três) magistrados (art. 555, caput, do CPC). A turma julgadora deve, por primeiro, reapreciar os requisitos de admissibilidade, para somente após penetrar no exame do mérito. Findo o julgamento, o presidente anunciará o resultado do julgamento e designará o relator ou o magistrado vencedor, conforme o caso, para redigir o acórdão. 2.2 Apelação em Mandado de Segurança Em linhas gerais, a breve exposição acerca das generalidades que circundam a apelação também se aplica à apelação que brota do mandado de segurança. Assim, a sentença desde a sentença que rejeita liminarmente o mandado de segurança, até a que extingue a ação mandamental com ou sem exame do mérito, cabe recurso de apelação (cf. arts. 8º e 12 da Lei nº 1.533/51). Merece realce, entretanto, a peculiaridade prevista no parágrafo único do artigo 12 da Lei n. 1.533/51, o qual prevê a sujeição ao duplo grau de jurisdição da sentença concessiva da segurança. A esse respeito, pondera Cássio Scarpinella Bueno que: “Diferentemente do que se dá para o reexame necessário do sistema codificado (CPC, art. 475), a aplicabilidade do instituto no mandado de segurança independe da natureza pública do réu. Como cabe mandado de segurança para impugnar ilegalidades ou abusos de poder derivados do exercício de ‘função pública’ eventualmente exercidas por particulares (Lei n. 1.533/51, art. 1º e §1º), a concessão da ordem nesses casos também estará sujeita ao reexame. O art. 12, parágrafo único, da Lei nº 1.533/51 não distingue as hipóteses, exigindo, apenas, o dado objetivo do acolhimento da pretensão do impetrante”38. 38 8 BUENO, Cássio Scarpinella. Ob. cit. p. 132. 31 Outro ponto de suma importância em relação ao mandado de segurança que dá origem ao recurso de apelação, se refere ao regramento constante na Constituição da República acerca da competência originária, para os magistrados de primeiro grau, no tocante ao processo e julgamento da ação mandamental. A despeito de ter sido assinalado anteriormente, vale a pena rememorar que aos juízes federais de primeira instância, compete processar e julgar “os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais” (art. 109, VIII, CF). Em relação à Justiça Estadual foi apresentada a situação do Estado de São Paulo, o qual, em observância ao artigo 125, § 1o, da Carta da República, estabelece em sua Constituição Estadual que cabe ao Tribunal de Justiça, processar e julgar, originariamente, os mandados de segurança impetrados contra atos do Governador do Estado, da Mesa e da Presidência da Assembléia, do próprio Tribunal ou de alguns de seus membros, dos Presidentes dos Tribunais de Contas do Estado e do Município de São Paulo, do Procurador-Geral de Justiça, do Prefeito e do Presidente da Câmara Municipal da Capital de São Paulo (art. 74, III, da Constituição Estadual). Em primeiro grau, fica a cargo dos juízes da Fazenda Pública processar e julgar o mandado de segurança apresentado contra as demais autoridades do Estado de São Paulo e dos Municípios que o compõem, de acordo com o Decreto-lei Complementar nº 3/69 e Lei n. 6.166/88. Em se tratando de competência originária previamente estabelecida na Constituição da República aos juízes de primeira instância, há que se perquirir sobre as objeções ao exame do mérito da apelação, pelo tribunal destinatário, quando a sentença julgar extinta a ação mandamental sem apreciação de seu mérito e a causa estiver devidamente madura para ser decidida. Em outras palavras, deverá ser investigado se o artigo 515 e seus §§, que se insere no bojo do capítulo da apelação, pode incidir na apelação em mandado de segurança. Essa questão será dirimida em conjunto com o exame a ser realizado com o recurso ordinário em mandado de segurança. 8 32 2.3 Apelação e Recurso Ordinário em Mandado de Segurança Afinado com a autorização constitucional para interposição do recurso ordinário em mandado de segurança, o Código de Processo Civil, nos artigos 539 e seguintes, estabelece que os juízos de origem deverão observar, no que alude aos requisitos de admissibilidade e ao procedimento, o disposto no capítulo referente à apelação e ao agravo (art. 540). Na segunda parte do artigo 540 do Código de Processo Civil, está previsto que o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça deverá dispor acerca do procedimento do recurso ordinário em mandado de segurança. Por sua vez, o art. 247 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça prevê: “Aplicam-se ao recurso ordinário em mandado de segurança, quanto aos requisitos de admissibilidade e ao procedimento no Tribunal recorrido, as regras do Código de Processo Civil relativas à apelação”. Desprezada a discussão acerca da possibilidade ou não de o regimento interno legislar sobre regras processuais, face ao que dispõe o artigo 22, inciso I, da Constituição da República, cabe traçar as dessemelhanças que norteiam o recurso de apelação e o recurso ordinário em mandado de segurança. Das diferenças dessas modalidades de recurso, merece relevo a circunstância de que ambas as hipóteses, antes e acima de tudo, são espécies recursais autônomas. Enquanto o recurso ordinário em mandado de segurança tem seu cabimento previsto expressamente na Constituição da República, a apelação decorre da inserção dentro do sistema processual civil brasileiro. A apelação se origina de sentença emanada de juiz de primeiro grau, ao passo que o recurso em mandado de segurança nasce de acórdão oriundo de Tribunal Superior, Tribunal Regional Federal ou Tribunal Estadual/Distrital. Do julgado no recurso em mandado de segurança não há previsão para a interposição de embargos infringentes. Por outro lado, no que toca à apelação é possível a interposição dos referidos embargos quando observadas as hipóteses de cabimento inseridas no bojo do art. 530 do Código de Processo Civil. 8 33 O recurso ordinário, por originar de mandado de segurança, necessita de exame prévio do Ministério Público Federal para que, somente após cumprida essa exigência, seja levado o feito a julgamento (RISTJ – art. 248). De outra banda, carece o Código de Processo Civil de regra específica sobre a necessidade de vista do Ministério Público em toda e qualquer apelação. Em relação à apelação, conforme já se anotou, há previsão expressa no sentido da presença de um de revisor no julgamento desse recurso (art. 551 – CPC). O recurso ordinário em mandado de segurança, ao contrário, não se submete à essa exigência legal. Outra diferença, que foi objeto de consideração preliminar anterior, diz respeito à impossibilidade de interposição de recurso ordinário em mandado de segurança adesivo. No que se refere à apelação, sua interposição poderá se dar de modo independente ou subordinado. Aliás, sobre esse tema elucida Bernardo Pimentel Souza, com sua habitual proficiência, que a vedação brota do seguinte raciocínio: “É que geralmente o recurso ordinário é cabível contra acórdão de conteúdo negativo. Para facilitar a compreensão do problema, basta imaginar a seguinte hipótese: diante de parcial concessão da segurança pela corte local, a pessoa jurídica de direito público interpõe recurso extraordinário para o Supremo Tribunal federal, impugnando o capítulo do julgado que concedeu a segurança com esteio em dispositivo da Constituição Federal. Se fosse possível a interposição de recurso ordinário adesivo, tendo como alvo o capítulo denegatório da segurança originária, não haveria como cumprir a regra inserta no parágrafo único do artigo 500”39. Observa-se, ainda, que de acordo com a regra prevista na primeira parte do artigo 520 do Código de Processo Civil, a apelação será recebida nos efeitos devolutivo e 39 8 SOUZA, Bernardo Pimentel. Ob. cit., p. 565. 34 suspensivo. O recurso ordinário, no entanto, consoante já foi consignado, deve ser recebido somente no efeito devolutivo. Sopesadas as diferenças que caracterizam as duas modalidades de recurso, cabe ponderar acerca de suas similitudes. A primeira semelhança diz respeito ao prazo de 15 dias para interpor e responder ambos os recursos (art. 508 do CPC). Da mesma forma, consoante anotado, para a apelação e para o recurso ordinário, o Tribunal de origem deve observar os mesmos requisitos para aferição da admissibilidade e do procedimento. A propósito, outra peculiaridade caracterizadora da semelhança entre os referidos recursos diz respeito à necessidade de se submeterem ao duplo juízo de admissibilidade, ou seja, após devidamente processados, passarão pelo crivo da instância de origem e, positivada a admissão, será reexaminada a presença dos requisitos que autorizam o conhecimento da pretensão recursal pela Corte competente para julgá-los. Em ambas as espécies recursais, o relator está autorizado a decidir, de modo solitário, se reconhecer que o recurso é manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudência do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de tribunal superior, nos exatos termos do artigo 557 do Código de Processo Civil. Em se tratando do âmbito da devolução do exame dos temas debatidos na demanda, na esteira do que dispõe o artigo 515, caput e §§ 1o e 2o, do Código de Processo Civil, se pode afirmar que os recursos ordinário em mandado de segurança e de apelação são detentores de devolutividade ampla. Assim, em relação ao recurso ordinário em mandado de segurança, aplica-se o magistério de que “a apelação é recurso de devolutividade ampla, como já dito. Importa isso dizer que, na apelação, pode a parte impugnar a decisão judicial, argüindo-lhe qualquer defeito que entenda existente. O tribunal ao examinar este recurso ficará adstrito à matéria impugnada (art. 515, caput, do CPC), devendo decidir o recurso apenas nos limites do pedido vazados nas suas razões. Dentro dos limites do pedido, porém, a devolução das questões relativas a este pedido é ampla, como informam os §§ 1o e 2o do art. 515 do CPC”40. MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 528. 40 8 35 Como é de elementar inferência, quanto às matérias de ordem pública, em ambos os recursos aplica-se a regra segundo a qual o tribunal competente não fica limitado aos termos das razões recursais, pois está autorizado a reconhecer, de ofício, as matérias elencadas no artigo 267, § 3o, do Código de Processo Civil. No particular, impera o denominado efeito translativo que afasta a incidência chamado efeito devolutivo restrito (arts. 460 e 128, ambos do CPC). Para rematar, mister se faz advertir que os pontos convergentes e divergentes apresentados não exaurem as peculiaridades caracterizadoras da apelação e do recurso em mandado de segurança. O rol apresentado, todavia, tem por escopo alertar para a circunstância de que antes e acima de tudo, se tratam de espécies recursais que gozam de autonomia própria. 2.4 Aspectos Relevantes da Inovação Trazida pelo Artigo 515, 3o, do CPC Indubitavelmente, com o advento da Lei 10.352, de 26/12/2001, o recurso de apelação sofreu uma das mais significativas mudanças trazidas pela onda de reformas do Código de Processo Civil, que se iniciou na década de 90. Cuida-se da introdução de mais um parágrafo ao art. 515 do Código de Processo Civil, o qual determina ao Tribunal que conheça o mérito da causa, na hipótese em que o juiz de primeiro grau haja proferido sentença terminativa e, ainda, que o julgado não tenha examinado os argumentos expendidos pelo autor ou pelo réu. Essa possibilidade, consoante rememora Estevão Mallet41., já foi disciplinada no “Codigo do Processo do Estado da Bahia”, em seu art. 1.290, da seguinte forma, verbis: MALLET, Estevão. Reforma de Sentença Terminativa e julgamento imediato do Mérito (Lei 10.352), in Aspectos polêmicos e atuais dos Recursos Cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. vol. 7. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 185. 41 8 36 “Art. 1.290. Tendo o juiz de primeira instancia deixado, por qualquer motivo, de julgar a causa de meritis, a turma ou juiz da appellação, si entender que isto não obsta que se conheça do pedido, julgará a causa definitivamente”42 A par dessa peculiaridade, não custa lembrar que o artigo 515 e seus §§ situa-se no Título X (Dos Recursos), Capítulo II (Da Apelação), do Código de Processo Civil. Conforme se pode verificar, é regra que orienta o julgamento da apelação, ou seja, cuida-se de norma processual dirigida aos tribunais, órgãos de segunda instância, a quem é dado julgar a apelação. Notadamente no que se refere ao § 3o do art. 515, dispõe o Código de Processo Civil que “nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento”. Quando ainda na fase embrionária, a justificativa da inserção do referido dispositivo processual ficou assim registrada na Mensagem n. 1.110/00 do Projeto de Lei n. 3.474, de 2000: “Art. 515. Cuida-se de sugestão que valoriza os princípios da instrumentalidade e da efetividade do processo, permitindo-se ao tribunal o julgamento imediato do mérito, naqueles casos em que o juiz não o tenha apreciado mas, sendo a questão exclusivamente de direito, a causa já esteja em condições de ser inteiramente solucionada. Anota-se que o duplo grau de jurisdição não é imposição constitucional. Consoante Carreira Alvim, ‘como o processo não é um fim em si mesmo, mas um meio destinado a um fim, não deve ir além dos limites necessários à sua finalidade. Muitas matérias já se encontram pacificadas no tribunal – como, por exemplo, na Justiça Federal e na dos Estados, as questões relativas a expurgos inflacionários – mas muitos juízes de primeiro grau, em lugar de decidirem de vez a causa, extinguem o processo sem julgamento do mérito, o que obriga o tribunal a anular a sentença, devolvendo os autos à origem para que seja julgada no mérito. Tais feitos, estão, muitas vezes, devidamente instruídos, comportando julgamento antecipado da lide (art. 330, CPC), mas o julgador, por apego às ESPÍNOLA, Eduardo. Codigo do Processo do Estado da Bahia Annotado. vol. 2º. Bahia: Typ. Bahiana, de Cincinnato Melchiades,1916, p. 441. 42 8 37 formas, se esquece de que o mérito da causa constitui a razão primeira e última do próprio processo”43. Da exposição de motivos acima, percebe-se, também, que o novel comando normativo está ligado à idéia de celeridade e economia processual. À evidência que atrelado aos ideais que ensejaram o mencionado parágrafo está a necessidade de observância do contraditório, seja em benefício da segurança das partes, seja em respeito ao devido processo legal. Sobre essa premissa, vem a calhar o escólio de Eduardo Cambi: “(...) o tribunal estará em condições para julgar imediatamente uma questão exclusivamente de direito somente quando o fato for incontroverso. No entanto, nenhum fato se torna incontroverso antes de ser dada oportunidade para a parte exercer seu direito de defesa. Por exemplo, tendo o juiz de primeiro grau indeferido liminarmente a petição inicial (art. 267, inc. I, CPC), em razão da ilegitimidade de parte (art. 295, inc. II, CPC), não pode o Tribunal, afastada a carência da ação, julgar o mérito porque o réu, nem teve oportunidade de integrar a relação jurídica processual. Logo, nesse momento processual, o fato ainda não era incontroverso, devendo o Tribunal anular a sentença, para permitir que o processo prossiga o seu curso normal, com a citação do demandado. Conseqüentemente, a observância do contraditório, em primeiro grau de jurisdição, é uma condição absolutamente indispensável para que o Tribunal possa julgar o meritum causae”44. Com o mesmo raciocínio, acentua Estevão Mallet: “A possibilidade de imediato exame do mérito, em caso de acolhimento do recurso interposto contra sentença terminativa, acha-se respaldada na idéia de obtenção de maior rendimento na atividade jurisdicional. É desejável, 43 Diário da Câmara dos Deputados. Agosto de 2000, p. 44.552. CAMBI, Eduardo. Mudando os Rumos da Apelação: Comentário sobre a inclusão, pela Lei 10.352/2001, do § 3º ao art. 515 do CPC, in Aspectos Polêmicos Atuais dos Recursos e de outros meios de impugnações às decisões judiciais, vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 184. 44 8 38 desde que não comprometam as garantias fundamentais dos litigantes, que o processo ofereça o máximo possível de rendimento, com menor custo e dispêndio de tempo, em respeito ao princípio da economia processual. É igualmente desejável que, na medida do possível e respeitadas as condições pertinentes, leve o processo à decisão de mérito, resolvendo em definitivo o conflito existente entre os litigantes, finalidade principal da atividade jurisdicional legal 45. Um ponto controvertido que brotou com a inserção do § 3º ao artigo 515 do Código de Processo Civil, consiste na aparente colisão do referido dispositivo com o princípio do duplo grau de jurisdição. Nunca é demais lembrar que o duplo grau, como garantia, foi disciplinado somente por ocasião da vigência da Constituição do Império de 182446. Ocorre, contudo, que a despeito da falta de previsão expressa nas constituições que sobrevieram a Carta Imperial de 1824, não há olvidar que a essência do duplo grau de jurisdição parte do princípio segundo o qual existem tribunais, para exercerem, além da competência originária, a competência recursal que deriva do exercício do direito de recorrer. Esse direito de recorrer, a bem da verdade, não é absoluto, de modo que pode sofrer limitações. Exemplo típico da mencionada restrição encontra-se no artigo 34 da Lei n. 6.830/80, o qual prevê que das sentenças de primeira instância, proferidas em execução, cujo valor não ultrapasse a 50 ORTNs serão admitidos embargos infringentes e de declaração, os quais deverão ser apresentados para o mesmo juízo que proferiu a sentença. Ora, se está disposto no Código de Processo Civil que da sentença proferida com base no artigo 267 ou no artigo 269, caberá apelação (art. 513), denota-se que o artigo 34 da 45 MALLET, Estevão. Ob. cit. p. 187. Constituição Política do Império do Brazil de 1824: “Art. 158. Para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá nas Provincias do Imperio as Relações, que forem necessarias para commodidade dos Povos” (cf. www.presidencia.gov.br). Em sentido semelhante, confira-se JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª edição. Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 211; ALVIM, Eduardo Arruda. “Anotações sobre o novo § 3o, do art. 515, do Código de Processo Civil”, in, Linhas Mestras do Processo Civil. São Paulo: Atlas, 2004, p. 191. 46 8 39 Lei n. 6.830/80, deixa evidente que não é toda a sentença que será reexaminada pelo juízo de segundo grau. Dessa linha de raciocínio observa-se que a submissão do reexame da sentença ao duplo grau de jurisdição somente não poderia ser mitigado se tivesse sido elevado, pela atual Constituição da República, à categoria de garantia constitucional, ou seja, houvesse previsão expressa de que toda a sentença deveria ser reexaminada pelo tribunal competente, após interposto o recurso de apelação. Com a percuciência de hábito, Luiz Rodrigues Wambier e Tereza Arruda Alvim Wambier, concluem com a inserção do duplo grau de jurisdição à categoria de princípio constitucional e, da mesma maneira, afastam uma pretensa inconstitucionalidade do art. 515, § 3o, do Código de Processo Civil, quando, nas hipóteses previstas nesse dispositivo, é suprimido da parte o direito ao duplo grau de jurisdição47. Sem desprezar a discussão em torno do duplo grau de jurisdição, a reflexão sobre a incidência do disposto no § 3o do art. 515 do CPC, deve ser focada à luz da competência originária do tribunal destinatário da apelação. Dentro desse contexto, ensina de Nelson Nery Júnior que: “O problema do duplo grau de jurisdição é respeitante única e exclusivamente à recorribilidade da sentença, ato que encerra o processo segundo o direito brasileiro vigente (CPC 162 § 1º, 267, 269 e 513). Algumas questões que se tem levantado sobre o duplo grau não pertencem à discussão sobre a incidência ou não do princípio. O exemplo mais comum é o da apelação de sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito, que, quando provida pelo tribunal ad quem, sofre julgamento pelo mérito sem que o juiz de primeiro grau houvesse decidido o fundo do litígio. O que ocorre nesse caso, em verdade, é a discussão sobre a competência do órgão judicante para conhecer e julgar esta ou aquela questão ou causa. Nada tem a ver com o duplo grau de jurisdição” 48,. WAMBIER, Luiz Rodrigues e WAMBIER Teresa Arruda Alvim. Breves Comentários à 2a fase da Reforma do Código de Processo Civil”. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002, p. 141. 48 NERY JUNIOR, Nelson. Ob. cit. ps. 45/46. . 47 8 40 Jorge Tosta, como a mesma ênfase, também adverte: “A questão, portanto, deve ser analisada não sob o enfoque do princípio do duplo grau de jurisdição, mas sim da competência do juízo ad quem para reconhecer e julgar a questão de fundo, mesmo quando o juízo a quo não o tenha feito”49 Acerca desse entendimento, Luiz Rodrigues Wambier e Tereza Arruda Alvim Wambier50, assinalam que essa inferência pode coexistir com a idéia do duplo grau de jurisdição, mas devem ser arredados seus entraves, tendo em vista que há previsão legal expressa no sentido de abrandar a sua incidência. Deflui, pois, que a permissão legal de que o tribunal competente para o exame da apelação se pronuncie acerca do mérito, sem que o juízo de primeiro grau o tenha feito, configura nítida absorção da competência originária. É estreme de dúvidas que a possibilidade da alteração da competência se mostra viável, desde que a regra que a determina possua a mesma estatura normativa. Assim, pois, no caso do artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil, não há óbice para a sua alteração se a regra de competência estiver prevista no próprio Diploma Processual Civil. O entrave surge, porém, se a previsão da competência originária emanar de norma constitucional. Outro ponto que merece reflexão diz respeito ao confronto entre o art. 515, § 3º, do Código de Processo Civil e a proibição da reformatio in pejus. Em outras palavras, trata-se de verificar se o exame do mérito, realizado pela primeira vez no tribunal destinatário da apelação poderá ser desfavorável àquele apelou da sentença terminativa, sem que isso configure reforma para pior. Conquanto o direito brasileiro não discipline, explicitamente, o instituto da reformatio in pejus, é certo que o óbice da reforma da situação do recorrente para pior deriva do próprio sistema processual. O princípio dispositivo, atrelado à devolutividade do TOSTA, Jorge. O Reexame Necessário em Face do Art. 515, §3o, do CPC, in Do Reexame Necessário.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 255. 50 WAMBIER, Luiz Rodrigues e WAMBIER Teresa Arruda Alvim. Ob. cit. P. 132. 49 8 41 recurso, se traduz na circunstância de que é devolvido para o tribunal destinatário do recurso, somente a matéria que o recorrente impugnou e a qual está a almejar nova decisão. Aliado ao princípio dispositivo, encontra-se a sucumbência como requisito de admissibilidade para recorrer. A caracterização da sucumbência se apresenta quando tenha havido no processo divergência entre a pretensão deduzida pela parte que integra a relação processual e o que foi decidido no processo, bem como quando o julgado de que se recorre, produziu um efeito desfavorável à parte recorrente. Nessa quadra, ilustra o Professor Nelson Nery Júnior: “Em nosso direito positivo não há regra explícita a respeito da proibição da reformatio in peius. Essa proibição, que entre nós efetivamente existe, é extraída do sistema, mais precisamente da conjugação do princípio dispositivo, da sucumbência como requisito de admissibilidade e, finalmente, do efeito devolutivo do recurso”51. Como é de fácil constatação a reformatio in pejus tem aplicação ao tribunal destinatário do recurso para o qual é defeso agravar a situação do recorrente. Ocorre, porém, que o agravamento da situação do recorrente deve ser visualizado à luz do que restou decidido e daquilo que efetivamente foi impugnado. No caso do artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil, a parte recorrente apresenta o recurso contra a sentença terminativa, ou seja, ataca a matéria que efetivamente foi decidida pelo juiz de primeiro grau. Por conseguinte, o recorrente não impugna o mérito da causa, até porque, no caso, nem sequer foi decidido pelo magistrado de primeiro grau. O princípio dispositivo e da devolutividade estão alinhados com o que efetivamente foi decidido, ou seja, com a extinção do processo sem exame do mérito. Quanto a matéria de mérito nem há falar em sucumbência, pois observa-se que a sentença terminativa não reflete que o recorrente tenha experimentado uma situação desfavorável ou em desarmonia com o que almejou em sua demanda, uma vez que o objetivo da ação é a solução do mérito, o qual ainda não se materializou. 51 8 NERY JUNIOR, Nelson. Ob cit. p. 185. 42 Percebe-se, assim, que o artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil não afronta o princípio da reformatio in pejus tendo em vista que a interposição da apelação faz com o tribunal atue como Corte revisora da sentença terminativa e, ao julgar o mérito da ação, o tribunal estará examinando originariamente, ou atuando como se fosse o juízo de primeiro grau. Leonardo José Carneiro da Cunha, ao tratar do princípio da reformatio in pejus do advento do 515, § 3º, do Código de Processo Civil, acentua que: “(...) havendo a interposição de uma apelação contra sentença terminativa, estará sendo inaugurado o segundo grau de jurisdição, cuja análise irá restringir-se a examinar o acerto ou não da decisão de primeiro grau de jurisdição. Em outras palavras, o segundo grau de jurisdição, ou seja, a revisão a ser desempenhada pelo tribunal dirá respeito, apenas, à extinção do processo sem julgamento do mérito. Não haverá, na hipótese, revisão quanto ao exame do mérito ou à análise da segunda pretensão ou, ainda, no tocante ao bem da vida pretendido. Logo, a proibição da reformatio in pejus alcança, apenas, a parcela de revisão; abrange, tão-somente, o exame da sentença terminativa, que é a única parte em relação a qual estará havendo segundo grau de jurisdição. De resto, reformada que seja a sentença terminativa e caso o tribunal venha a prosseguir no julgamento da lide, houve o exercício do segundo grau de jurisdição em relação à análise revisional da sentença terminativa, passandose, em seguida, a haver primeiro grau de jurisdição no concernente ao mérito, à segunda pretensão, ao bem da vida perseguido. E, como se viu, não há falar em reformatio in pejus quando se está originariamente examinando a pretensão do autor, ou melhor, não há aplicação da proibição da reformatio in pejus no primeiro grau de jurisdição. 8 43 Ao aplicar o § 3o do art. 515 do CPC, o tribunal estará exercendo primeiro grau de jurisdição, não vindo a pêlo cogitar-se da aplicação da proibição do princípio da reformatio in pejus.52 Definido que no julgamento previsto no § 3o do art. 515 do Código de Processo Civil não incide a reformatio in pejus, se faz necessário examinar se o dispositivo processual em comento está dirigido ao magistrado do tribunal destinatário da apelação como uma faculdade ou exigência normativa. Merece ser reproduzido, uma vez mais, o disposto no § 3o do art. 515 do Código de Processo Civil: “Art. 515. (...) § 3o. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento”. Dos princípios que nortearam a inserção do predito dispositivo processual, se infere, sem maiores esforços, que o termo “pode” há de ser interpretado como um “dever” do julgador. Assim, evidenciadas as condições de julgamento estabelecidas no dispositivo processual reproduzido, deverá o tribunal examinar o mérito da demanda. A Professora Teresa Arruda Alvim Wambier partilha dessa linha de entendimento ao assentar que: “Outro problema que surge na interpretação do § 3o do art. 515 é o de se saber se o tribunal deverá assim proceder ou poderá. Nós nos inclinamos a dizer que se trata de dispositivo que encerra um dever, como, aliás, ocorre com quase todos os dispositivos que dizem respeito à atividade do juiz. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Duas Questões em Torno do § 3o do art. 515 do Código de Processo Civil: sua relação com o Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus e sua Incidência no Mandado de Segurança, in, Revista Dialética de Direito Processual n. 9. 2003, ps. 74/75. 52 8 44 Tratando-se de um dever, isso significa dizer que, estando presentes os pressupostos, deve o tribunal, necessariamente, por economia processual, decidir o mérito da causa”53. Essa linha de pensar, elimina a possibilidade de que o exame da pretensão deduzida no mérito, está a reclamar um requerimento expresso da parte recorrente. Como se observou, o julgamento imediato do mérito decorre da circunstância de o tribunal considerar que a causa se encontra suficientemente madura para julgamento e, conseqüentemente, sem a necessidade de qualquer diligência. A título de reforço, é oportuno colher, uma vez mais, as palavras de Estevão Mallet, ao tratar da desnecessidade de requerimento do recorrente: “Do que acaba de ser dito no item anterior tira-se que o julgamento imediato do mérito, em caso de reforma de sentença terminativa, não depende de requerimento do recorrente. Não cabe argumentar, para justificar solução diversa, com o caput do art. 515, porque o § 3o constitui exceção à primeira norma. Tampouco importa o desejo da parte de, com o retorno dos autos ao juízo recorrido, produzir provas adicionais. De duas, uma: ou as provas que a parte pretende produzir são pertinentes, ou não. Sendo pertinentes, não cabe aplicação do § 3o do art. 515, porque não se encontram presentes as condições para julgamento imediato do mérito no juízo do recurso. Se são impertinentes as provas, não serão produzidas nem mesmo em primeiro grau de jurisdição (CPC, art. 130, parte final), por mais que o deseje a parte. A vontade do litigante é, no particular, irrelevante. O que importa é a necessidade objetiva da prova”54. Do que se visualizou até então, o tribunal, ao julgar a apelação de sentença terminativa, e decidir o mérito da causa, exerce a competência originária do juízo de primeiro grau e, nem por isso viola o princípio que proíbe a reformatio in pejus. ObservouWAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os Agravos no CPC Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 346. 54 MALLET, Estevão. Ob. cit. ps 196/197. 53 8 45 se, ainda, que a aplicação do § 3o do artigo 515 do Código de Processo Civil não se traduz em mera faculdade para o julgador, nem mesmo um prerrogativa que depende de requerimento do recorrente. Cabe examinar, por oportuno, as circunstâncias autorizadoras do julgamento do mérito, ou seja, que a demanda verse unicamente sobre tema de direito e, por conseqüência, esteja em condições de imediato julgamento. A primeira circunstância que autoriza a aplicação do dispositivo é de que seja a “questão exclusivamente de direito”. Essa locução não deve ser focada restritivamente, no sentido de cuidar, pura e simplesmente, de matéria de direito, pois, a bem da verdade, não se concebe a idéia da existência de matéria unicamente de direito. É sabido que do fato é que surge o direito, de forma que a dissociação de ambos não se justifica. Leciona Estevão Mallet que “nem mesmo no juízo abstrato de constitucionalidade das normas – em que presumivelmente menos importância poderia ter a realidade concreta – a separação entre fatos e direito mostra-se cabível, aludindo a doutrina à necessidade de ‘investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos’. E tanto é verdade que a Lei 9.868, ao regular o procedimento para julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, reconheceu a importância que os fatos podem ter no exame da controvérsia, admitindo sejam solicitados pareceres ou ouvidos especialistas”55. Assim, pois, a correta interpretação ao § 3o, no que se refere à questão de direito, deve ser realizada levando-se em consideração a circunstância de que os fatos que emergem da causa sejam efetivamente incontroversos e, bem assim, aceitos pelos litigantes. Os Professores Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, ao discorrerem sobre esse tema elucidam que: “(...) a expressão matéria de direito, no contexto desse dispositivo, pode significar, literalmente, matéria de direito pura e simplesmente (no sentido mais restrito), que assim se tenha revelado desde o início da demanda; matéria de direito e de fato, mas cujo aspecto fático tenha sido comprovado por prova documental, submetida ao adequado e imprescindível contraditório (incidindo aqui, por analogia, o art. 330, inc. I, do CPC); 55 8 MALLET, Estevão. Ob. cit. ps. 190/191. 46 matéria de direito e de fato, mas cujo aspecto fático não tenha suscitado divergência entre as partes, ou se componha de fatos notórios (art. 334); enfim, parece-nos que o Tribunal pode afastar a preliminar e decidir a respeito de processo que ‘esteja em condições de ser julgado’, ou seja, em que o aspecto instrutório se encontre de tal forma delineado de molde que não haja séria margem de dúvidas a respeito de quais sejam e de como tenham os fatos ocorridos. Pensamos, pois, que este dispositivo não deve incidir única e exclusivamente quando se trate de matéria de direito em sentido estrito, sob pena de se revelar restritíssimo seu rendimento e sua utilidade”56 O termo “estar em condições de imediato julgamento”, ou “devidamente madura”, revela a circunstância de que é defeso ao tribunal examinar o mérito de uma questão se ela reclamar a dilação probatória. No caso, se faz necessário que reformada a sentença terminativa, retornem os autos para o juízo de primeiro grau. Em relação ao procedimento que deverá ser aplicado para o julgamento da apelação, na hipótese em estudo, deve observar-se o que foi dito por ocasião do exame das generalidades que circundam o predito recurso. Assim, em princípio pode-se até afirmar que o relator, de modo solitário poderia afastar a sentença terminativa e examinar, pela primeira vez, o mérito da demanda. Essa decisão, a teor do artigo 557, § 1o,§, do Código de Processo Civil, desafia agravo interno. Tema que merece reflexão é o do julgamento colegiado da apelação, em que a turma julgadora – composta de três magistrados -, após afastar a sentença terminativa, entende que a causa está suficientemente apta para ser julgada pelo mérito. Na colheita dos votos, porém, considere-se que há discrepância entre os julgadores quanto ao mérito. Conquanto se trate de acórdão não unânime proveniente de apelação, não há espaço para a interposição de embargos infringentes, pois a sentença de primeiro grau reformada não é de mérito, conforme determina o artigo 530 do Código de Processo Civil. WAMBIER, Luiz Rodrigues, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, e, MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, ps. 269/270. 56 8 47 O único recurso que se mostra adequado é o extraordinário ou o especial, dependendo da matéria decidida pelo tribunal de apelação. Aliás, no caso do Superior Tribunal de Justiça, não se pode cogitar da aplicação da Súmula nº 207, que enuncia ser “inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem”. Assim, pois, é possível visualizar uma anomalia que repercute na violação à própria isonomia que deveria ter sido observada para os jurisdicionados. Verifica-se que os litigantes poderão se deparar com situações semelhantes, mas o direito de recorrer para uns acaba por ser mais limitado do que para outros, que podem exercê-lo em sua plenitude. Não merece ser compartilhado, porém, o entendimento de que na hipótese de o tribunal, por força do artigo 515, § 3º, julgar, por maioria de votos, o mérito da causa, são cabíveis os embargos infringentes57. Efetivamente, conforme anotou Nelson Nery Júnior, a falta de debate e diálogo efetivo com a comunidade jurídica brasileira, se apresenta como a principal crítica da inserção do referido dispositivo processual58, que, por certo, eliminaria várias anomalias que se surgem quando da aplicação do § 3º do artigo 515. Por fim, não custa reiterar, que o recurso destinatário do dispositivo processual é a apelação, mas antes e acima de tudo, deve-se investigar a possibilidade de o tribunal destinatário do recurso exercer a competência originária. 3. OBSTÁCULOS PARA A INCIDÊNCIA DO ARTIGO 515, § 3º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Da Redução da Área de Cabimento dos Embargos Infringentes e a Ampliação do Efeito Devolutivo da Apelação”, in Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Ano VI, n. 31, Set-Out 2004, p.13. 58 NERY JÚNIOR, Nelson. Ob. cit. p. 47. 57 8 48 3.1 Normas Constitucionais que vedam a incidência do artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil nos Recursos que derivam do Mandado de Segurança. Não é demais lembrar que a norma processual em estudo, a qual permite ao tribunal se pronunciar sobre o mérito sem que o juízo de primeiro grau o tenha feito previamente, equivale a conferir competência originária ao tribunal destinatário do recurso59. Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, ao tratarem da questão relativa à competência, elucidam que no bojo da competência absoluta se encontram a competência de jurisdição, que resulta da resposta relativa a qual justiça é competente, bem como a competência originária, que deriva da indagação acerca de qual órgão é competente, o superior ou o inferior? 60. No que se refere ao mandado de segurança, é cediço que a competência para processá-lo e julga-lo é definida pela natureza e atribuições da autoridade coatora, ou seja, consoante ensina Castro Nunes: “A Competência judiciária para o mandado de segurança está assentada em dois princípios: a) o da qualificação da autoridade como federal ou local, e b) o da hierarquia, isto é, da graduação hierárquica da autoridade, para efeito da competência do mecanismo das instâncias em cada uma daquelas jurisdições”61. Nessa linha de pensar, se faz necessário examinar a ordem constitucional, para determinar quali o órgão competente para conhecer, originariamente, do mandado de segurança. 59 NERY JÚNIOR, Nelson. Ob. cit. p. 47. No mesmo sentido: TOSTA. Jorge. Ob. cit. p. 255, ALVIM, Eduardo Arruda. Ob. cit. p. 175. 60 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17a ed. São Paulo: Malheiros, 2001, ps. 232/233 e 241. 61 NUNES, Castro. Do Mandado de Segurança. 8a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 207. 8 49 A propósito, vem à baila, novamente, o magistério de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco: “Como se vê, em duas etapas apresenta-se o problema da competência hierárquica, ou competência em sentido vertical (órgão superior ou inferior?): primeiro para determinar-se qual deles conhece originariamente da causa, depois na escolha do órgão que conhecerá dos recursos interpostos. Naturalmente, o primeiro dos quesitos acima envolve a determinação da competência de uma das Justiças ou de um dos órgão de superposição (Supremo Tribunal federal, Superior Tribunal de Justiça), que não pertencem a nenhuma delas e sobrepairam a todas”62. Assim, em relação ao primeiro grau de jurisdição, ou seja, dos órgão que proferem sentença e, por conseguinte, são passíveis de recurso de apelação. Observa-se da Constituição da República que o legislador constituinte conferiu aos juízes federais a competência originária para processar e julgar “os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais” (art. 109, VIII, CF). Restou definido, pois, que em se tratando de autoridade federal que não se insere na competência do Tribunal Regional Federal, compete ao juiz de primeiro grau, originariamente, examinar o mandado de segurança. A Lei nº 1.533/51, prevê a hipótese de interposição de apelação das sentenças terminativas e definitivas, proferidas pelo juiz de primeiro grau, em mandado de segurança originário (arts. 8o e 12). Considere-se, assim, que o juiz federal, ao processar e julgar mandado de segurança contra autoridade federal de sua competência originária, a despeito de estar devidamente instruído o mandamus, entende que deve incidir a regra do artigo 267 do Código de Processo Civil e extingue o processo sem exame do mérito. O impetrante, 62 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Ob. cit. p. 233. 8 50 inconformado, interpõe recurso de apelação, com a finalidade de afastar o fundamento da sentença terminativa. O Tribunal Regional Federal, por sua vez, ao apreciar o recurso de apelação, entende não verificadas as causas que ensejaram a sentença que extinguiu o processo sem exame do mérito. Questiona-se: Pode o TRF fazer uso do § 3o do artigo 515 do Código de Processo Civil ? A resposta há de ser negativa, uma vez que a competência originária, que, no particular, decorre da competência hierárquica, é de caráter absoluto e jamais, ou seja, em nenhuma hipótese, pode ser modificada. Assim, o Tribunal Regional Federal, em respeito aos ditames constitucionais, e, especificamente, em estrita observância ao princípio segundo o qual “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5o, LII), não poderá julgar o mérito do mandado de segurança, decidido por meio de sentença terminativa. Desprezar essa regra, consiste em desprezar a norma de ordem pública, de que a competência absoluta (competência hierárquica definidora da competência originária), não poderá jamais ser modificada. Nem se alegue que o preceito processual tem aplicação a toda e qualquer sentença terminativa que dá ensejo à apelação. Ora, a se admitir que uma norma infraconstitucional tenha a força de absorver uma competência constitucional, significa crer na premissa de que uma norma constitucional é que deve se adequar ao sistema processual. Correta, pois, a lição de Nelson Nery Júnior, ao dispor que “se o tribunal der provimento à apelação, este segundo julgamento terá efeito apenas de cassação, vale dizer, determina o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau, a fim de que este profira julgamento sobre o mérito. Entender o contrário seria compactuar com a infringência de norma de competência hierárquica, já que a causa seria julgada originariamente pelo tribunal destinatário da apelação. A burla seria, até, mais séria, pois semelhante atitude feriria o princípio constitucional do juiz natural (CF 5º, XXXVII e LII)63. Jorge Tosta, não menos contundente, assevera que: “Ainda sob o enfoque da competência do órgão jurisdicional, quer nos parecer que o § 3o do art. 515 do CPC acabou criando nova espécie de 63 8 NERY JÚNIOR, Nelson. Ob. cit. p. 46. 51 competência originária dos Tribunais, na medida em que chancela ao órgão ad quem o conhecimento e julgamento do mérito da causa sem qualquer pronunciamento anterior do juiz de primeiro grau. Ora, é sabido que a competência originária dos órgão de jurisdição recursais é traçada pelas Constituições Federal e Estadual, sendo vedado à lei ordinária ampliar tal competência”64. A impossibilidade de incidência da regra do § 3o do artigo 515, como é de elementar inferência, tem aplicação, também, em relação aos magistrados de primeiro grau da Justiça Estadual, uma vez que, à luz da regra estabelecida artigo 125, § 1o, da Carta da República, caberá a Constituição do Estado definir a competência dos respectivos tribunais, orientados pelos princípios estabelecidos na Carta Magna. Quando a competência originária para processar e julgar o mandado de segurança advém dos Tribunais Superiores ou tribunais regionais federais ou tribunais locais a inobservância das regras constitucionais, acaba por ser ainda mais grave. É que, se a inobservância da regra de competência originária, prevista na Constituição Federal, para julgamento do mandado de segurança dos Tribunais Superiores existir, e for admitida a aplicação ao recurso ordinário do disposto no § 3o do artigo 515 do Código de Processo Civil, deve-se entender que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Magna está a infringi-la. Se o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, em recurso ordinário, o mandado de segurança que foi extinto sem exame do mérito pelo Tribunal Regional Federal ou tribunais locais, utilizando-se do § 3o do artigo 515 do Código de Processo Civil, acabará por dar uma interpretação ao direito federal em total desarmonia aos preceitos constitucionais. Significa dizer, que o Superior Tribunal de Justiça, no exercício de sua competência recursal, constitucionalmente prevista, acabará por invadir, indevidamente, a competência originária de tribunal, também prevista na Constituição da República, em respeito a um mandamento infraconstitucional, o que, a bem da verdade, é inconcebível. 64 8 TOSTA, Jorge. Ob. cit. p. 256. 52 Leonardo José Carneiro da Cunha, em suas lúcidas palavras, realça a impossibilidade de uma Corte ad quem, com base em norma processual, absorver uma competência prevista em preceito constitucional: “Ora, a competência originária do STJ está, precisamente, definida nas hipóteses do inciso I do art. 105 da Constituição Federal, não sendo possível que uma norma legal altere, modifique ou amplie aquele rol. É que, como exsurge elementar, as competências constitucionalmente fixadas constituem normas de interpretação estrita, não sendo legítima ao legislador infraconstitucional alterá-las. Assim, impetrado, por exemplo, um mandado de segurança, originariamente, num tribunal de justiça contra o Governador do Estado ou impetrado um remédio heróico, originariamente, perante um TRF contra um juiz federal ou contra membro do próprio TRF, não deve o STJ assumir tal competência e, aplicando o § 3º do art. 515 do CPC, julgar originariamente, a causa, eis que essas não são hipóteses previstas nas alíneas do referido inciso I do art. 105 da Constituição da República. (...) Todas essas considerações atinentes ao recurso ordinário em mandado de segurança para o STJ aplicam-se, igualmente, à apelação interpostas contra sentença de juiz de primeira instâncai. Isso porque a competência originária dos tribunais de justiça está fixada na respectiva Constituição Estadual, não devendo sofrer alteração por lei ordinária federal, em razão da necessidade de obediência ao pacto federativo. No tocante à justiça federal, a restrição parece ser a mesma, eis que a competência originária dos tribunais regionais federais está prevista, especificamente no art. 108 da Constituição Federal, não devendo haver alteração por norma infraconstitucional. Como se sabe, a competência para processar e julgar o mandado de segurança é definida pela natureza e atribuições da autoridade coatora. Da mesma forma que um juiz de primeira instância não deve apreciar um mandamus impetrado contra autoridade sujeita à competência originária de tribunal, este não deve, igualmente, processar e julgar, originariamente, um writ contra autoridade sujeita à competência de um juiz singular. Tudo leva 8 53 a crer, portanto, que o § 3º do art. 515 do CPC não se aplica à apelação nem ao recurso ordinário em mandado de segurança, sob pena de haver desrespeito às regras constitucionais de competência65. Diante do que foi exposto, é de fácil inferência que cabe ao aplicador do direito não se descuidar da observância dos princípios da celeridade e economia processual, mas não deve fazê-lo de maneira afoita, que evidencie o desprezo a preceitos basilares de ordem pública e atentatórios à Constituição da República. 3.2 Posicionamento Jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal No que se refere ao posicionamento jurisprudencial, cumpre lembrar que 3 (três) meses após a vigência da Lei nº 10.352, de 26/12/2001, que inseriu o § 3º ao artigo 515 do Código de Processo Civil, o Superior Tribunal de Justiça afastou a incidência da regra processual ao recurso ordinário de mandado de segurança, fincado no fundamento, segundo o qual, por cuidar de recurso cujo cabimento somente se evidencia com a denegação da segurança, não haveria como adotar a regra processual. Eis os termos da ementa do mencionado julgado: “I - CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL – COMPETÊNCIA – MANDADO DE SEGURANÇA – ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA - ATO DE COMISSÃO – COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. (...) II – PROCESSUAL – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – PROVIMENTO - JULGAMENTO IMEDIATO DO MÉRITO (CPC, ART. 515, § 3º). 65 8 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Ob. cit. p. 77. 54 - O novíssimo § 3º do Art. 515 do Código de Processo Civil, não se aplica no julgamento de recurso ordinário em Mandado de Segurança. É que, neste tipo de apelo, a competência do Tribunal ad quem manifesta-se secundum eventus litis: somente acontece, quando se denega a Ordem 66 Constitucional . Consoante se percebe, a questão atinente á competência originária e hierárquica não foram objetos de manifestacão da turma julgadora. Em seguida, esse modo de julgar foi abandonado pelo Superior Tribunal de Justiça e, segundo se pode verificar, tem prevalecido o entendimento de que o § 3º do artigo 515 do Código de Processo Civil tem aplicação no recurso ordinário em mandado de segurança, fincado no singelo e frágil argumento de que ambos os recursos se assemelham: “ADMINISTRATIVO – PROCESSO CIVIL – ESCOLTA DE PRESOS – POLÍCIA CIVIL X POLÍCIA MILITAR. (...) 2. Afastado o óbice da impropriedade da via eleita e que extinguiu o processo sem exame do mérito, pode o STJ, com respaldo no art. 515, § 3º, do CPC, examinar o mérito do mandamus. (...) 5. Recurso ordinário provido”67 Na mesma linha, há precedente no sentido de que em vista de o recurso ordinário em mandado de segurança se assemelhar à apelação, deve ser adotada a regra do § 3º do artigo 515 do Código de Processo Civil: “(...) RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REFORMA DO ACÓRDÃO QUE EXTINGUIU O PROCESSO SEM 66 67 8 RMS n. 14.645-SC, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, DJ de 26/08/2002. RMS n. 19.269-MG, Relatora Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, DJ de 13/06/2005. 55 JULGAMENTO DE MÉRITO. VIABILIDADE DO IMEDIATO EXAME DO MÉRITO DA IMPETRAÇÃO, ATENDIDOS OS PRESSUPOSTOS DO ART. 515, § 3º DO CPC. 1. Reformando o acórdão que extingue o processo sem julgamento de mérito, cumpre ao STJ apreciar, desde logo, o mérito da impetração, se presentes os pressupostos do art. 515, § 3º do CPC, aplicável por analogia. 2. No caso dos autos, a questão de mérito é exclusivamente de direito e não há empecilho ou pendência a inviabilizar a sua apreciação. 3. Recurso ordinário provido para conceder a ordem”68 A par do respeito aos pronunciamentos acima, verifica-se que a bem da verdade, embora sejam recursos que se assemelham, são espécies recursais distintas. Antes e acima de tudo o recurso ordinário tem sua previsão na Constituição Federal, enquanto que a apelação encontra-se regrada em norma infraconstitucional. Outra circunstância que não tem sido observada nos julgados reproduzidos e, data venia, é a questão mais importante, consiste na impossibilidade de transferência da competência originária para processar e julgar mandado de segurança, conferido pela Carta da República aos Tribunais Regionais Federais e aos tribunais locais. Essa competência originária dos tribunais citados, tem sido absorvida indevidamente pelo Superior Tribunal de Justiça. Vale lembrar, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o mérito do recurso ordinário em mandado de segurança, obsta a possibilidade de ser interposto embargos de divergência, os quais, segundo os artigos 496, inciso VIII, e 546, o recurso de embargos de divergência é cabível para impugnar acórdão proferido por turma do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal em julgamento de recurso especial ou de recurso extraordinário, respectivamente, que esteja em divergência em relação a aresto prolatado por outro órgão colegiado do próprio tribunal. Para melhor visualizar essa afirmação, imagine-se a hipótese em que uma turma do Superior Tribunal de Justiça não adote o § 3º do artigo 515 do Código de 68 8 RMS 15.877-DF, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 21/06/2004. 56 Processo Civil e, por conseguinte, após afastar o acórdão que extinguiu, sem exame do mérito, o mandado de segurança impetrado em tribunal estadual. Efetivado o exame do mérito, o tribunal estadual concede a ordem, de modo que a parte vencida interpõe recurso especial e é improvido no Superior Tribunal de Justiça. De outra banda, suponha-se que outra turma do Superior Tribunal de Justiça, diante da mesma situação fática, utilize-se da regra do § 3º do artigo 515 do Código de Processo Civil, e, após afastar a sentença terminativa do mandado de segurança impetrado originariamente no tribunal estadual, julgue o mérito da impetração. Essa decisão, contudo, denega a segurança. Por certo, nunca será possível obter um julgamento uniforme no Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria discutida nos mandados de segurança, pois, não é possível, na hipótese descrita a interposição de embargos de divergência. Infere-se, pois, que a Corte Superior de Justiça deverá rever o tratamento que tem sido dado ao recurso ordinário em mandado de segurança, proveniente de acórdão que profere decisão terminativa. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, não se filia ao entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça e afasta a incidência do § 3º do artigo 515 do Diploma Processual Civil: “(...) RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL – MANDADO DE SEGURANÇA – DEVOLUTIVIDADE. O DISPOSTO NO § 3º DO ARTIGO 515 DO Código de Processo Civil não se aplica ao recurso ordinário em mandado de segurança, cuja previsão, no tocante à competência, decorre de texto da Constituição Federal” 69. Na mesma vereda, o precedente a seguir reproduzido, consigna que “com a competência originária definida no texto constitucional (art. 105, I, “ b”), que não pode ser alterada por lei processual, há de ser prestigiado o Superior Tribunal de Justiça” e, em decorrência determina a remessa dos autos para que o mandado de segurança tenha prosseguimento. Eis o teor da ementa: 69 8 Emb. Decl. No RMS 24.309-4, Relator Ministro Marco Aurélio, 1ª Turma, DJ de 30/04/2004. 57 “RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE PASSIVA. SECRETÁRIO DE ADMINISTRAÇÃO FEDERAL. IMÓVEL FUNCIONAL. LEI N. 8.025/90. ART. 515, § 3º, DO CPC. INAPLICABILIDADE AO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. 1. (...) 3. Inaplicabilidade do art. 515, § 3º, do CPC --- inserido no capítulo da apelação --- aos casos de recurso ordinário em mandado de segurança, visto tratar-se de competência definida no texto constitucional. Precedentes [RMS n. 24.309, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ 30.04.2004 e RMS n. 24.789, Relator o Ministro EROS GRAU, DJ 26.11.2004]. 4. Recurso ordinário julgado parcialmente procedente, determinando-se a remessa dos autos ao Superior Tribunal de Justiça para apreciação do mérito da impetração” 70. Pelo que precede, é de reconhecer que as decisões que não sejam harmônicas com a interpretação constitucional dada pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido da inaplicação da regra do § 3º do artigo 515 do Código de Processo, em vista da competência originária do mandado de segurança, por certo, após ultrapassadas as correspectivas etapas processuais até o julgamento do recurso, acabarão por receber a devida interpretação constitucional. Em decorrência, os princípios da celeridade e da economia processual, não serão prestigiados pelo tribunal que desconsiderar os preceitos constitucionais. 70 8 RMS 22.180-DF, Relator Ministro Eros Grau, 1ª Turma, DJ de 12/08/2005 58 CONCLUSÃO Sem desconsiderar os respeitáveis precedentes do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da aplicação do § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil, é de ver que a regra constitucional de competência originária e competência hierárquica do mandado de segurança, acaba por ser vulnerada. Os recursos que derivam de mandado de segurança não podem ter sua competência originária absorvida pelo tribunal destinatário do recurso. Trata-se de regra de ordem pública, de maneira que o julgamento do mérito do mandado de segurança, pela primeira vez do mérito, transfere a competência originária que se encontra explicitamente fixada na Carta Política. Assim a pretexto de prestigiar o princípio da celeridade e economia processual, não se deve desprezar os ditames insertos na própria Constituição da República. Assim, pois, não deve ser adotada a regra do § 3º do art. 515 para os recursos que brotam de mandado de segurança, uma vez que vulneram a Constituição Federal ao admitir a mudança da competência originária prevista no ordenamento constitucional. 8 59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. AMORIM, Aderbal Torres. Recursos Cíveis Ordinários. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 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