ordem dos enfermeiros | Número 31 | Dezembro 2008 Número 31 | Dezembro 2008 | www.ordemenfermeiros.pt | ISSN 1646-2629 IX Seminário de Ética 10 Anos de Deontologia Profissional 60 Anos de Direitos Humanos 2 0 0 7 Ciclo de V Debates Segurança da Informação 2 0 0 0 – A exemplo de anos anteriores, o V Ciclo de Debates vai realizar-se, ao longo deste ano nas cinco Secções Regionais da OE. Informações sobre datas e locais vão sendo disponibilizadas no site da Ordem dos Enfermeiros e pelas Secções Regionais. a do Secretariado 8.45H | Abertur 9.00H | Mesa de VII abertura cia Inicial: 9.30H | Conferên Humana” “Da Falibilidade Michel Renaud Professor Doutor o 10.00H | Interval dos Enfermeiros ções da Ordem s – perspectivas 10.30H | Interven ça nos cuidado para a Seguran o da S.R. Moderador: Conselho Directiv o, Presidente do Enf.º Amílcar Carvalh do Centro Intervenções: o • Conselho Directiv sidente do CD Oliveira, Vice-pre – Enf.º Jacinto onal • Conselho Jurisdici CJ Presidente do – Enf.ª Lucília Nunes, Enfermagem • Conselho de CE , Presidente do Oliveira is Delfim Enf.º – Directivos Regiona dos Conselhos • Representante do CDR do Sul a Abranches, vogal Regionais – Enf.ª Madalen de Enfermagem dos Conselhos • Representante Centro do vogal no CER – Enf.º Paulo Lopes, Seminário X de Ética Ética Seminário de Segurança nos cuidados Debate 12.30H | Almoço s de Saúde ça nos Cuidado 14.00H | Seguran Profissionais – Papel das Ordens onal do Conselho Jurisdici Moderador: es, Vice-presidente Enf.º Rogério Gonçalv Intervenções: rio • Ordem dos Médicos Digníssimo Bastoná – Dr. Pedro Nunes, uticos • Ordem dos Farmacê mo Bastonário da Silva, Digníssi – Dr. J. A. Aranda Dentistas rio • Ordem dos Médicos da Silva, Digníssimo Bastoná o – Dr. Orlando Monteir iros ma Bastonária • Ordem dos Enferme de Sousa, Digníssi – Enf.ª Maria Augusta alização o para a Contratu Comentadores: adora da Comissã Escoval, Coorden Prof.ª Dr.ª Ana Saúde Parlamentar da da Saúde te da Comissão Roseira, Presiden Dr.ª Maria de Belém AL ID AD E E CO N FI D EN CI IN FO RM AÇ ÃO EM D E EN FE RM AG D A PR ÁT IC A AS IC ÉT ES Õ Q UE ST S PRO FI SS IO N AI AS RE LA ÇÕ ES D AS IC ÉT ES Q UE ST Õ AO CU ID AD O D O D IREI TO I II II I IV RM AG EM V ÉTICA DE ENFE A V I FINAL DE VID OS N O S CU ID AD V II SEGURANÇA SS IO N AL LI D AD E PRO FI V II I RESPONSABI Anfiteatr o Jurisdicional ões finais sidente do Conselh 17.00h | Conclus Martins, Vice-pre Enf.ª Conceição 8.45H › Abertura do Secreta 9.00H › Mesa de abertur SETEMBRO 2009 riado a profissional» nsabilidade Honra: «Respo Bastonária Alocução de – Digníssima Augusta Sousa – Enf.ª Maria Enfermeiros da Ordem dos ção» autodetermina a : «Proteger a Berta Cerdeir edonda Ana – Enf.ª 10.00H › Mesa-r e Consentimento • Informação cional (CJ) Jurisdi ho – Vogal do Consel ades para decidir etências e inabilid • Das incomp Jurídico do CJ ia – Assessor Alberto Duarte – Dr. Nuno Lampre idade – Enf. menores de em al Region • Consentimento al da Secção do CJ Region – Presidente da RA dos Açores Moderadora: do CJ la Amaral – Vogal Enf.ª Manue lo 11.30H › Interva recusa(s)» – Vogal edonda: «Da(s) Salomé Matos 11.45H › Mesa-r cliente – Enf.ª RA dos Açores • Recusa(s) do Regional da al da Secção Silva – Vogal do CJ Region – Enf.ª Isabel a profissional RA da Madeir • Recusa(s) do Regional da a al da Secção Fátima Figueir do CJ Region ência – Enf.ª ão de Consci Objecç da al do Sul • O caso Secção Region Regional da – Vogal do CJ Secção Moderador: nte do CJ da Gomes – Preside Enf. José Luís Centro Regional do livre o» ico de trabalh Deodato edonda: «Mosa – Enf. Sérgio 14.30H › Mesa-r agir profissional • Critérios do – Vogal do CJ de Posição: Enunciados • Mosaico de consentimento Do sigilo; Do CJ › Da delegação; -presidente do Vice – ção Martins crianças; – Enf. ª Concei protecção das seguros; Da – Enf.ª Merícia › Dos cuidados s para o ensino al da Secção Das recomendaçõe do CJ Region – Presidente Bettencourt a RA da Madeir – Vogal do CJ Fraga o Regional da – Enf. José Antóni Do final de vida 13.00H › Almoço › e do CJ Moderador: Vice-president Gonçalves – Enf. Rogério eiro» ência final: lógica do enferm 16.00H › Confer ade ética e deonto «Responsabilid nte do CJ Nunes – Preside Enf.ª Lucília 16.30H › Mesa FOTO: VERA VIDIGAL Foto: vera vidigal Debate de 2006 7 de Novembro – Fátima toral Paulo VI o do Centro Pas Inscrições limitadas 1 à lotação SEMINÁRIO D E ÉTICA Segurança da Informação dade Responsabili l Profissiona bro de 2007 28 de Setem das Nações lhões 2 e 3) FIL – Parque Pavi FIL (entre os tius Pavilhão Mul de encerramento de saúde profissionais iros”) – gratuito | Outros dos Enferme de Enfermagem e estudantes s.pt. ordem de “Ordem Enfermeiros ou vale CTT à demenfermeiro em www.or ento por cheque válida. o disponíveis – 15 € (pagam cédula profissional e ficha de inscriçã lugares) e à apresentação de Informação da sala (800 VIII_sem_cartazA3.indd VIII elo ao Evento paral os da -Estar Saúde e Bem nacional de – Salão Inter 10/08/07 16:14:22 IX SEMINÁRIO DE ÉTICA 1 ARQUIVO OE Editorial – Bastonária Cara(o) Colega Tal como tem sucedido em anos anteriores, o actual Conselho Directivo da Ordem dos Enfermeiros (OE) decidiu dar continuidade à publicação, na Revista da Ordem dos Enfermeiros, das apresentações realizadas no âmbito do Seminário de Ética, uma actividade do Conselho Jurisdicional da OE. É, pois, com imenso prazer que aqui damos a conhecer, a todos aqueles que não puderam participar no evento, e recordamos, aos que estiveram presentes, os assuntos abordados pelos mais variados prelectores, no decurso do IX Seminário de Ética. Como foi divulgado na altura, a nona edição do Seminário de Ética teve lugar no Grande Auditório da Faculdade de Ciências de Lisboa, no dia 26 de Setembro de 2008. O tema escolhido pelo Conselho Jurisdicional foi «10 anos de deontologia profissional – 60 anos de direitos humanos». No ano em que se assinalaram duas efemérides tão importantes para a Enfermagem portuguesa e para a deontologia de Enfermagem, seria indeclinável, para a Ordem dos Enfermeiros, criar um espaço de reflexão e de debate sobre a profunda e inquebrável relação existente entre o exercício da Enfermagem e o respeito pelos direitos humanos. Recordo que o Estatuto da OE – Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril, diploma que criou formalmente a Ordem dos Enfermeiros – estabelece expressamente na alínea b) do número 3 do Artigo 78.º «o respeito pelos direitos humanos na relação» do enfermeiro «com os clientes» como um princípio orientador do exercício da Enfermagem. Também o número 2 do mesmo artigo refere que «são valores universais a observar na relação profissional a) a igualdade; b) a liberdade responsável, com a capacidade de escolha, tendo em atenção o bem comum; c) a verdade e a justiça; d) o altruísmo e a solidariedade; e) a competência e o aperfeiçoamento profissional». Ainda no mesmo articulado, saliento a redacção do Artigo 81.º, o qual, entre outros aspectos, define que «o enfermeiro, no seu exercício, observa os valores humanos pelos quais se regem o indivíduo e os grupos em que este se integra e assume o dever de: a) cuidar da pessoa sem qualquer discriminação económica, social, política, étnica, ideológica ou religiosa; (….)». Através da referência a estes três aspectos do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, fica claro que a defesa dos direitos humanos por quem dedica a sua vida ao exercício da Enfermagem foi uma preocupação fundamental para os precursores e fundadores da OE. Estou convicta de que esta preocupação – a par da necessidade de garantir cuidados de qualidade seguros, no respeito pelo ser humano enquanto indivíduo único e detentor de direito inalienáveis – continua presente no dia-a-dia de todos os colegas. Estamos a falar de princípios basilares da deontologia profissional do enfermeiro que nenhum de nós, em momento algum, deve descurar, quer esteja inserido na prática clínica, na docência, na gestão, na investigação ou na assessoria. O alicerce que a deontologia profissional representa no quadro regulador da profissão é, sem dúvida, o garante da centralidade dos cuidados ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 2 Editorial (continuação) Ficha técnica Propriedade: Ordem dos Enfermeiros – Av. Almirante Gago Coutinho, 75 1700-028 Lisboa Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259 E-mail: [email protected] www.ordemenfermeiros.pt Director: Maria Augusta Sousa na pessoa. Daí a relevância que assumem os direitos humanos como inalienáveis. Esta perspectiva adquire especial importância quando, num quadro global de desregulação, os direitos universalmente consagrados são, em muitas situações, relegados para segundo plano, sobrepondo-se meros enquadramentos economicistas aos quais não é alheia a ausência de condições promotoras de ambientes seguros e de reforço do profissionalismo que desejamos. De facto, é imperioso afirmar que a prática profissional em saúde, assente nos deveres deontológicos e na defesa dos direitos humanos, tem hoje escolhos que trespassam culturas organizacionais onde impera o medo, a insegurança, a hostilidade, muitas vezes o «faz de conta» dos números e a autoridade não reconhecida, por ausência de competências transversais de quem dirige as organizações. Neste quadro, reafirmamos que este é o reduto que continuará, no nosso quotidiano, a ser um permanente contraponto na adversidade, para garantir a todos aqueles que nos confiam os seus cuidados que podem contar com os enfermeiros para salvaguardar os seus direitos. Ou seja, garantimos que a saúde é um direito que todos temos o dever de preservar, seja através da promoção de mais e melhor saúde para todos, seja através da disponibilização do necessário suporte qualificado nos cuidados que cada um necessita quando está doente, em situação aguda ou crónica, ou ainda na promoção da autonomia, sempre que cada um se vê confrontado com situações de dependência. Coordenador: Júlio Branco Conselho editorial: Carminda Morais, Élvio Jesus, Germano Couto, Helena Simões, Jacinto Oliveira, Manuel Oliveira, Margarida Rego Pereira, Rogério Gonçalves, Teresa Oliveira Marçal Edição: Luísa Neves, Paula Domingos Colaboraram neste número: Mas é também nesta senda que aos enfermeiros está consagrado o direito a condições de exercício adequadas, que suportem o cumprimento dos seus deveres. Condições que permitam o desenvolvimento harmonioso das suas competências, a estabilidade no emprego, a formação e o reconhecimento do valor do seu trabalho. Ana Sofia R. Monteiro, Daniel Serrão, José Cerqueira, José H. Silveira de Brito, Lucília Nunes, Maria Augusta Sousa, M.ª Conceição Martins, Maria José Silva, Teresa Carneiro,Teresa Oliveira Marçal, Sérgio Deodato Fotos: Vera Vidigal Secretariado: Tânia Graça Av. Almirante Gago Coutinho, 75 Será na conjugação destes vectores que os cuidados seguros se reforçarão, garantindo o respeito pelos direitos das pessoas a quem são prestados cuidados. – 1700-028 Lisboa Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259 E-mail: [email protected] www.ordemenfermeiros.pt ISSN: 1646-2629 Consultoria em Língua Portuguesa: Espero que, através dos contributos que apresentamos ao longo desta edição da Revista da Ordem dos Enfermeiros, os colegas possam retirar a mais-valia que os palestrantes pretenderam transmitir, aquando da sua participação no IX Seminário de Ética. Letrário – www.letrario.pt Design Gráfico: Pedro Gonçalves Paginação, Pré-impressão, Impressão e Distribuição: DPI Cromotipo, Rua Alexandre Braga, 21 B, 1150-002 Lisboa Periodicidade: Trimestral Tiragem: 57 250 exemplares Distribuição gratuita aos membros A sua Bastonária Maria Augusta Sousa da Ordem dos Enfermeiros Depósito legal n.º 153540/00 Ordem dos Enfermeiros – Sede: Av. Almirante Gago Coutinho, 75 – 1700-028 Lisboa – Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259 – E-mail: [email protected] | Secção Regional da R. A. dos Açores: R. Dr. Armando Narciso, 2 – 9500-185 Ponta Delgada – Tel.: 296 281 868 / Fax: 296 281 848 – E-mail: [email protected] | Secção Regional do Centro: Av. Bissaya Barreto, n.º 185 – 3000-076 Coimbra – Tel.: 239 487 810 / Fax: 239 487 819 – E-mail: [email protected] | Secção Regional da R. A. da Madeira: R. Visconde Cacongo, n.º 35 – St.ª Maria Maior – 9060-036 Funchal – Tel.: 291 241 765 / Fax: 291 237 212 – E-mail: [email protected] | Secção Regional do Norte: R. Latino Coelho, 352 – 4000-314 Porto – Tel.: 225 072 710 / Fax: 225 072 719 – E-mail: As afirmações e ideias expressas [email protected] | Secção Regional do Sul: Rua Castilho, 59, 8.º Esq. – 1250-068 Lisboa – Tel.: 213 815 550 / nos textos publicados na ROE são Fax: 213 815 559 – E-mail: [email protected] da inteira responsabilidade dos autores das mesmas. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 3 | ARQUIVO OE Sumário o de dos e e e os | Número 31 | Dezembro 2008 | www.ordemenfermeiros.pt | ISSN 1646-2629 IX Seminário de Ética 10 Anos de Deontologia Profissional 60 Anos de Direitos Humanos Sumário 04 Palavras de abertura – Enf.º Sérgio Deodato 05 10 anos de deontologia de Enfermagem – Enf.º Sérgio Deodato 09 Alocução de honra – Enf.ª Maria Augusta Sousa 12 Deontologia e direitos humanos – Professor Doutor José Henrique Silveira de Brito VERA VIDIGAL VERA VIDIGAL N.º 31 | Dezembro 2008 VERA VIDIGAL 17 Os direitos humanos e a deontologia profissional – Professor Doutor Daniel Serrão 20 Os direitos humanos e a deontologia profissional de Enfermagem – Dr.ª Ana Sofia R. Monteiro, Enf.ª Maria José Silva 24 Os direitos humanos e a deontologia profissional de Enfermagem – Enf.ª Teresa Oliveira Marçal 29 Os direitos humanos e o Código Deontológico do Enfermeiro – Enf.º José Cerqueira 33 Fundamentos éticos da deontologia profissional – Enf.ª Lucília Nunes 46 Desenhando o sentido, perspectivando o futuro – Enf.º Sérgio Deodato, Enf.ª Conceição Martins e Enf.ª Teresa Carneiro ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 4 Divulgação ??? Enf.º Sérgio Deodato Presidente do Conselho Jurisdicional A presente Revista da Ordem dos Enfermeiros é exclusivamente dedicada ao IX Seminário de Ética, organizado pelo Conselho Jurisdicional e realizado em Lisboa, em 26 de Setembro de 2008. Esta é a oportunidade de publicar os riquíssimos textos relativos às excelentes comunicações que preencheram este Seminário. È também a altura de agradecer a todos quantos fizeram deste Seminário mais um momento de aprofundamento da reflexão sobre a ética de Enfermagem. No ano em que se comemorou o 10.º aniversário da criação da Ordem dos Enfermeiros e da publicação da deontologia de Enfermagem – através do Decreto-lei n.º 104/98, de 21 de Abril e também o 60.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Conselho Jurisdicional decidiu assinalar estas comemorações, como tema central do Seminário. Assim, construiu-se como lema: «10 Anos de Deontologia Profissional. 60 Anos de Direitos Humanos». Considerando estes direitos como universais, na medida em que são da titularidade de todas as pessoas, encontramos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma harmoniosa fonte formal para a sua consagração. É nesta medida que consideramos os Direitos Humanos como uma base ética fundamental para os deveres do enfermeiro. Os textos agora publicados, enquanto comunicações orais do Seminário, deram origem a um debate bastante profícuo, a todos os que tiveram oportunidade de participar. Desejo que sirva, igualmente, como contributo para a reflexão individual de cada leitor e constitua mais um elemento de desenvolvimento da ética de Enfermagem. oe VERA VIDIGAL A nossa deontologia – que integra os direitos, as incompatibilidades e os deveres do enfermeiro – encontra uma matriz de protecção dos direitos das pessoas, que constitui uma dimensão essencial da sua fundamentação ética. O Código Deontológico do Enfermeiro, que enuncia princípios e valores e prescreve um conjunto de deveres para o exercício profissional de Enfermagem em Portugal, está construído no respeito pelos diversos direitos das pessoas a quem são prestados cuidados. VERA VIDIGAL Palavras de abertura ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 5 Enquadramento do IX Seminário de Ética 10 anos de deontologia de Enfermagem Enf.º Sérgio Deodato Presidente do Conselho Jurisdicional O ano de 2008 assinala a comemoração do 10.º aniversário da criação da Ordem dos Enfermeiros e igualmente os 10 anos de deontologia de Enfermagem, formalizada em lei. Esta coincidência de comemorações resulta da opção do legislador de colocar na lei que criou a Ordem – o Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril – o capítulo da deontologia profissional, onde se inclui o Código Deontológico do Enfermeiro. Naturalmente que a previsão de deveres profissionais no exercício da profissão de enfermeiro é tão antiga quanto a prática profissional dos cuidados de Enfermagem. O enfermeiro sempre assumiu como dever a prestação do cuidado ao Outro, na satisfação das suas múltiplas necessidades, promovendo o conforto, procurando potenciar a sua qualidade de vida e ajudando a viver uma morte serena. Os deveres do enfermeiro encontraram sempre como fundamento ético a responsabilidade pelo Outro, em todas as fases da vida e nas diversas situações de saúde ou doença. Neste sentido, podemos fazer coincidir os deveres profissionais ao agir ético do enfermeiro, ao qual este se obriga, guiado pelos princípios e pelos valores que a profissão foi desenvolvendo no tempo. Todavia, aquando da publicação do Código Deontológico do Enfermeiro, o conjunto dos deveres profissionais são formalizados e assumem a natural obrigatoriedade enquanto parte de um diploma legal. Os deveres profissionais passam a ser os enunciados no Código Deontológico, pelos quais o enfermeiro passa a responder pelo seu cumprimento ou incumprimento. Mantêm-se como materialização do agir ético, mas ganham força obrigatória e a coercibilidade da norma jurídica que os impõe como deveres a serem praticados em toda a relação de cuidado, de tal forma, que a sua violação implica sanção disciplinar. Encontrando-se numa lei, podemos concluir que o conjunto dos deveres evidenciam aquilo que a sociedade onde estamos inseridos espera de nós, enquanto enfermeiros. De facto, a escolha destes deveres, tendo uma natural fundamentação na ética de Enfermagem, correspondem a opções do legislador (Assembleia da República que concedeu autorização legislativa e o Governo que a elaborou), ou seja, dos legítimos representantes do povo que os elegeu e, nessa medida, consubstanciam a valoração que a sociedade faz do nosso agir profissional, neste tempo histórico. Sendo o fim, a protecção do Outro, a deontologia de Enfermagem, consagra direitos (Artigo 75.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril), determina incompatibilidades (Artigo 77.º) e estabelece deveres no Código Deontológico, que visam a salvaguarda dos direitos das pessoas a quem são prestados cuidados. Desta forma, fica em harmonia a consagração de direitos que o ordenamento jurídico hoje faz às pessoas e a protecção destes direitos no agir profissional do enfermeiro, enquanto profissional de saúde. Assim, partindo da Postilla Religiosa ou do Juramento de Nigthingale, verificamos que o fundamento ético dos deveres profissionais se mantém no actual Código Deontológico do Enfermeiro. A interpretação que o Conselho Jurisdicional tem vindo a fazer de cada um dos deveres – bem como dos direitos e das incompatibilidades – tem em conta o referencial histórico da profissão, assim como o seu desenvolvimento recente, procurando sentidos com a adequada base ética que os suportem. Colocando a pessoa e a promoção dos seus direitos no centro da doutrina interpretativa, verificamos que a essência da esfera de protecção dos deveres se mantém, porque a natureza humana do cuidado de Enfermagem não se alterou no tempo. Desta forma, a espiral do desenvolvimento da interpretação da deontologia de Enfermagem – a que alude o símbolo deste Seminário – tem um traço de continuidade e de aprofundamento. As reflexões deste Seminário de Ética constituirão mais um contributo para o desenvolvimento do trabalho de interpretação pelo Conselho Jurisdicional, procurando ajudar a sua aplicação na prática diária dos enfermeiros em Portugal. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 6 Divulgação ??? Recordamos o Capítulo VI do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (integrado no Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril), dedicado à deontologia profissional. CAPÍTULO VI Da deontologia profissional SECÇÃO I Direitos, deveres em geral e incompatibilidades Artigo 74.º Disposição geral Todos os enfermeiros membros da Ordem têm os direitos e os deveres decorrentes do presente Estatuto e da legislação em vigor, nos termos dos artigos seguintes. Artigo 75.º Direitos dos membros 1 – Constituem direitos dos membros efectivos: a) Exercer livremente a profissão, sem qualquer tipo de limitações a não ser as decorrentes do código deontológico, das leis vigentes e do regulamento do exercício da enfermagem; b) Usar o título profissional que lhe foi atribuído; c) Participar nas actividades da Ordem; d) Intervir nas assembleias gerais e regionais; e) Consultar as actas das assembleias; f) Requerer a convocação de assembleias gerais ou regionais; g) Eleger e ser eleito para os órgãos da Ordem; h) Utilizar os serviços da Ordem. 2 – Constituem ainda direitos dos membros efectivos: a) Ser ouvido na elaboração e aplicação da legislação referente à profissão; b) O respeito pelas suas convicções políticas, religiosas, ideológicas e filosóficas; c) Usufruir de condições de trabalho que garantam o respeito pela deontologia da profissão e pelo direito do cliente a cuidados de enfermagem de qualidade; ordem dos enfermeiros d) A condições de acesso à formação para actualização e aperfeiçoamento profissional; e) A objecção de consciência; f) A informação sobre os aspectos relacionados com o diagnóstico clínico, tratamento e bem -estar dos indivíduos, famílias e comunidades ao seu cuidado; g) Beneficiar da actividade editorial da Ordem; h) Reclamar e recorrer das deliberações dos órgãos da Ordem contrárias ao disposto no presente Estatuto, regulamentos e demais legislação aplicável; i) Participar na vida da Ordem, nomeadamente nos seus grupos de trabalho; j) Solicitar a intervenção da Ordem na defesa dos seus direitos e interesses profissionais, para garantia da sua dignidade e da qualidade dos serviços de enfermagem. 3 – Constituem direitos dos membros honorários e correspondentes: a) Participar nas actividades da Ordem; b) Intervir, sem direito a voto, na assembleia geral e nas assembleias regionais. Artigo 76.º Deveres em geral 1 – Os membros efectivos estão obrigados a: a) Exercer a profissão com os adequados conhecimentos científicos e técnicos, com o respeito pela vida, pela dignidade humana e pela saúde e bem-estar da população, adoptando todas as medidas que visem melhorar a qualidade dos cuidados e serviços de enfermagem; b) Cumprir e zelar pelo cumprimento da legislação referente ao exercício da profissão; c) O cumprimento das convenções e recomendações internacionais que lhes sejam aplicáveis e que tenham sido, respectivamente, ratificadas ou adoptadas pelos órgãos de soberania competentes; d) Exercer os cargos para que tenham sido eleitos ou nomeados e cumprir os respectivos mandatos; e) Colaborar em todas as iniciativas que sejam de interesse e prestígio para a profissão; f) Contribuir para a dignificação da profissão; g) Participar na prossecução das finalidades da Ordem; h) Cumprir as obrigações emergentes do presente Estatuto, do código deontológico e demais legislação aplicável; i) Comunicar os factos de que tenham conhecimento e possam comprometer a dignidade da profissão ou a saúde dos indivíduos ou sejam susceptíveis de violar as normas legais do exercício da profissão; j) Comunicar o extravio da cédula profissional no prazo de cinco dias úteis; l) Comunicar a mudança de domicílio profissional e o novo endereço no prazo de 30 dias úteis; m) Pagar as quotas e taxas em vigor. 2 – Os membros honorários e correspondentes estão obrigados a: a) Cumprir as disposições do Estatuto e dos regulamentos estabelecidos pela Ordem; b) Participar na prossecução das finalidades da Ordem; c) Contribuir para a dignificação da Ordem e da profissão; d) Prestar a comissões e grupos de trabalho a colaboração que lhes for solicitada. Artigo 77.º Incompatibilidades 1 – O exercício da profissão de enfermeiro é incompatível com a titularidade dos cargos e o exercício das actividades seguintes: a) Delegado de informação médica e de comercialização de produtos médicos; b) Farmacêutico ou técnico de farmácia; c) Proprietário de laboratório de análises clínicas, de preparação de produtos farmacêuticos ou de equipamentos técnico-sanitários; d) Proprietário de agência funerária; e) Quaisquer outras que por lei sejam consideradas incompatíveis com o exercício da enfermagem. 2 – Os membros da Ordem que fiquem em situação de incompatibilidade, nos termos do número anterior, devem requerer a suspensão da sua inscrição no prazo máximo de 30 dias após a posse do respectivo cargo. I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 3 – Não sendo os factos comunicados à Ordem no prazo de 30 dias, pode o conselho jurisdicional regional propor a suspensão da inscrição. SECÇÃO II Do Código Deontológico do Enfermeiro Artigo 78.º Princípios gerais 1 – As intervenções de enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro. 2 – São valores universais a observar na relação profissional: a) A igualdade; b) A liberdade responsável, com a capacidade de escolha, tendo em atenção o bem comum; c) A verdade e a justiça; d) O altruísmo e a solidariedade; e) A competência e o aperfeiçoamento profissional. 3 – São princípios orientadores da actividade dos enfermeiros: a) A responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade; b) O respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes; c) A excelência do exercício na profissão em geral e na relação com outros profissionais. Artigo 79.º Dos deveres deontológicos em geral O enfermeiro, ao inscrever-se na Ordem, assume o dever de: a) Cumprir as normas deontológicas e as leis que regem a profissão; b) Responsabilizar-se pelas decisões que toma e pelos actos que pratica ou delega; c) Proteger e defender a pessoa humana das práticas que contrariem a lei, a ética ou o bem comum, sobretudo quando carecidas de indispensável competência profissional; d) Ser solidário com a comunidade, de modo especial em caso de crise ou catástrofe, actuando sempre de acordo com a sua área de competência. Artigo 80.º Do dever para com a comunidade O enfermeiro, sendo responsável para com a comunidade na promoção da saúde e na resposta adequada às necessidades em cuidados de enfermagem, assume o dever de: a) Conhecer as necessidades da população e da comunidade em que está inserido; b) Participar na orientação da comunidade na busca de soluções para os problemas de saúde detectados; c) Colaborar com outros profissionais em programas que respondam às necessidades da comunidade. Artigo 81.º Dos valores humanos O enfermeiro, no seu exercício, observa os valores humanos pelos quais se regem o indivíduo e os grupos em que este se integra e assume o dever de: a) Cuidar da pessoa sem qualquer discriminação económica, social, política, étnica, ideológica ou religiosa; b) Salvaguardar os direitos das crianças, protegendo-as de qualquer forma de abuso; c) Salvaguardar os direitos da pessoa idosa, promovendo a sua independência física, psíquica e social e o autocuidado, com o objectivo de melhorar a sua qualidade de vida; d) Salvaguardar os direitos da pessoa com deficiência e colaborar activamente na sua reinserção social; e) Abster-se de juízos de valor sobre o comportamento da pessoa assistida e não lhe impor os seus próprios critérios e valores no âmbito da consciência e da filosofia de vida; f) Respeitar e fazer respeitar as opções políticas, culturais, morais e religiosas da pessoa e criar condições para que ela possa exercer, nestas áreas, os seus direitos. Artigo 82.º Dos direitos à vida e à qualidade de vida O enfermeiro, no respeito do direito da pessoa à vida durante todo o ciclo vital, assume o dever de: 7 a) Atribuir à vida de qualquer pessoa igual valor, pelo que protege e defende a vida humana em todas as circunstâncias; b) Respeitar a integridade bio-psicossocial, cultural e espiritual da pessoa; c) Participar nos esforços profissionais para valorizar a vida e a qualidade de vida; d) Recusar a participação em qualquer forma de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante. Artigo 83.º Do direito ao cuidado O enfermeiro, no respeito do direito ao cuidado na saúde ou doença, assume o dever de: a) Co-responsabilizar-se pelo atendimento do indivíduo em tempo útil, de forma a não haver atrasos no diagnóstico da doença e respectivo tratamento; b) Orientar o indivíduo para outro profissional de saúde mais bem colocado para responder ao problema, quando o pedido ultrapasse a sua competência; c) Respeitar e possibilitar ao indivíduo a liberdade de opção de ser cuidado por outro enfermeiro, quando tal opção seja viável e não ponha em risco a sua saúde; d) Assegurar a continuidade dos cuidados, registando fielmente as observações e intervenções realizadas; e) Manter-se no seu posto de trabalho enquanto não for substituído, quando a sua ausência interferir na continuidade de cuidados. Artigo 84.º Do dever de informação No respeito pelo direito à autodeterminação, o enfermeiro assume o dever de: a) Informar o indivíduo e a família no que respeita aos cuidados de enfermagem; b) Respeitar, defender e promover o direito da pessoa ao consentimento informado; c) Atender com responsabilidade e cuidado todo o pedido de informação ou explicação feito pelo indivíduo em matéria de cuidados de enfermagem; d) Informar sobre os recursos a que a pessoa pode ter acesso, bem como sobre a maneira de os obter. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 8 Divulgação ??? Artigo 85.º Do dever de sigilo Artigo 88.º Da excelência do exercício O enfermeiro, obrigado a guardar segredo profissional sobre o que toma conhecimento no exercício da sua profissão, assume o dever de: a) Considerar confidencial toda a informação acerca do destinatário de cuidados e da família, qualquer que seja a fonte; b) Partilhar a informação pertinente só com aqueles que estão implicados no plano terapêutico, usando como critérios orientadores o bem-estar, a segurança física, emocional e social do indivíduo e família, assim como os seus direitos; c) Divulgar informação confidencial acerca do indivíduo e família só nas situações previstas na lei, devendo, para tal efeito, recorrer a aconselhamento deontológico e jurídico; d) Manter o anonimato da pessoa sempre que o seu caso for usado em situações de ensino, investigação ou controlo da qualidade de cuidados. O enfermeiro procura, em todo o acto profissional, a excelência do exercício, assumindo o dever de: a) Analisar regularmente o trabalho efectuado e reconhecer eventuais falhas que mereçam mudança de atitude; b) Procurar adequar as normas de qualidade dos cuidados às necessidades concretas da pessoa; c) Manter a actualização contínua dos seus conhecimentos e utilizar de forma competente as tecnologias, sem esquecer a formação permanente e aprofundada nas ciências humanas; d) Assegurar, por todos os meios ao seu alcance, as condições de trabalho que permitam exercer a profissão com dignidade e autonomia, comunicando, através das vias competentes, as deficiências que prejudiquem a qualidade de cuidados; e) Garantir a qualidade e assegurar a continuidade dos cuidados das actividades que delegar, assumindo a responsabilidade pelos mesmos; f) Abster-se de exercer funções sob influência de substâncias susceptíveis de produzir perturbação das faculdades físicas ou mentais. Artigo 86.º Do respeito pela intimidade Atendendo aos sentimentos de pudor e interioridade inerentes à pessoa, o enfermeiro assume o dever de: a) Respeitar a intimidade da pessoa e protegê-la de ingerência na sua vida privada e na da sua família; b) Salvaguardar sempre, no exercício das suas funções e na supervisão das tarefas que delega, a privacidade e a intimidade da pessoa. Artigo 87.º Do respeito pelo doente terminal O enfermeiro, ao acompanhar o doente nas diferentes etapas da fase terminal, assume o dever de: a) Defender e promover o direito do doente à escolha do local e das pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal da vida; b) Respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe sejam próximas; c) Respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte. ordem dos enfermeiros Artigo 89.º Da humanização dos cuidados O enfermeiro, sendo responsável pela humanização dos cuidados de enfermagem, assume o dever de: a) Dar, quando presta cuidados, atenção à pessoa como uma totalidade única, inserida numa família e numa comunidade; b) Contribuir para criar o ambiente propício ao desenvolvimento das potencialidades da pessoa. Artigo 90.º Dos deveres para com a profissão Consciente de que a sua acção se repercute em toda a profissão, o enfermeiro assume o dever de: a) Manter no desempenho das suas actividades, em todas as circunstâncias, um padrão de conduta pessoal que dignifique a profissão; b) Ser solidário com os outros membros da profissão em ordem à elevação do nível profissional; c) Proceder com correcção e urbanidade, abstendo-se de qualquer crítica pessoal ou alusão depreciativa a colegas ou a outros profissionais; d) Abster-se de receber benefícios ou gratificações além das remunerações a que tenha direito; e) Recusar a participação em actividades publicitárias de produtos farmacêuticos e equipamentos técnico-sanitários. Artigo 91.º Dos deveres para com outras profissões Como membro da equipa de saúde, o enfermeiro assume o dever de: a) Actuar responsavelmente na sua área de competência e reconhecer a especificidade das outras profissões de saúde, respeitando os limites impostos pela área de competência de cada uma; b) Trabalhar em articulação e complementaridade com os restantes profissionais de saúde; c) Integrar a equipa de saúde, em qualquer serviço em que trabalhe, colaborando, com a responsabilidade que lhe é própria, nas decisões sobre a promoção da saúde, a prevenção da doença, o tratamento e recuperação, promovendo a qualidade dos serviços. Artigo 92.º Da objecção de consciência 1 – O enfermeiro, no exercício do seu direito de objector de consciência, assume o dever de: a) Proceder segundo os regulamentos internos da Ordem que regem os comportamentos do objector, de modo a não prejudicar os direitos das pessoas; b) Declarar, atempadamente, a sua qualidade de objector de consciência, para que sejam assegurados, no mínimo indispensável, os cuidados a prestar; c) Respeitar as convicções pessoais, filosóficas, ideológicas ou religiosas da pessoa e dos outros membros da equipa de saúde. 2 – O enfermeiro não poderá sofrer qualquer prejuízo pessoal ou profissional pelo exercício do seu direito à objecção de consciência. oe I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 9 Alocução de honra Enf.ª Maria Augusta Sousa Bastonária da Ordem dos Enfermeiros O IX Seminário de Ética que agora iniciamos realiza-se no ano das comemorações do 10.º aniversário da Ordem dos Enfermeiros. Há 10 anos, em 1998, era publicado o Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril, em resultado da autorização legislativa concedida pela Assembleia da República através da Lei n.º 129/87 de 23 de Dezembro. Desta forma, a Assembleia da República devolveu aos enfermeiros os poderes de auto-regulação. De facto, considerando os enfermeiros portugueses «uma comunidade profissional e científica da maior relevância no funcionamento do sistema de saúde» e que o «desenvolvimento induzido pela investigação tem facilitado a delimitação de um corpo específico de conhecimentos e a afirmação da individualização e autonomia da Enfermagem na prestação de cuidados de saúde» – como refere o preâmbulo do Decreto-Lei que criou a Ordem – o Estado entregou aos enfermeiros a função de criar regras profissionais, de zelar pelas qualidade dos cuidados de Enfermagem e de exercer o poder disciplinar, na garantia dos direitos dos cidadãos. Todavia, se assim é no plano formal, sabemos que esta decisão jurídica e política resultou da capacidade que os enfermeiros demonstraram, ao longo de vários anos, de evidenciar a necessidade da auto-regulação profissional da Enfermagem, como forma de garantir o desenvolvimento profissional, a par da promoção e da defesa da qualidade dos cuidados de Enfermagem no nosso país. No essencial, foi isto que aconteceu há 10 anos: aceitámos, da sociedade, o desafio de assegurar a protecção das pessoas que nos confiam os seus cuidados, através da regulamentação profissional. Como suporte fundamental à concretização deste desígnio, ao mesmo tempo que a Ordem foi criada foi também publicada a deontologia profissional onde se inclui o Código Deontoló- VERA VIDIGAL Enfermagem e direitos humanos gico. De facto, o referido Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril, inclui, no seu capítulo sexto, a deontologia profissional de Enfermagem, fazendo parte integrante do Estatuto da Ordem. Por isso, comemoramos este ano o 10.º aniversário da Ordem e da deontologia dos enfermeiros portugueses. Decidiu o Conselho Jurisdicional que o IX Seminário de Ética assinalasse também os 60 anos dos direitos humanos, comemorando o 60.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desta forma, juntamos à reflexão ética deste ano a ligação entre os direitos humanos e os deveres do enfermeiro. 60 anos da Declaração Universal é um tempo assinalável de vigência no plano internacional de um instrumento de consagração dos direitos das pessoas. A sociedade tem feito um caminho de interpretação e apropriação dos direitos humanos, nem sempre harmonioso e uniforme em todos os cantos do mundo. Em Portugal, a Declaração foi ratificada apenas em 1978 e hoje temos um quadro jurídico nacional que fundamenta os direitos das pessoas na Declaração Universal. O enfermeiro, profissional do cuidado humano, assume um papel crucial no respeito, na defesa e na promoção dos direitos das pessoas de quem cuida. O nosso agir ético centra-se no cuidado ao outro, respondendo às suas necessidades tendo em vista a sua máxima independência, no respeito pela sua dignidade e ajudando na prossecução dos seus projectos de saúde. As intervenções de ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 10 Divulgação ??? Enfermagem realizam-se no quadro dos valores e princípios profissionais, no respeito, em cada acto, pelos direitos de cada pessoa em particular e pelos direitos humanos em geral. de cuidados de Enfermagem, estes servem-nos também de base ética para a interpretação dos direitos em geral que devemos promover em cada relação de cuidado. A relação de parceria que o enfermeiro estabelece com as pessoas suas clientes, sendo uma relação profissional, é, antes de mais, uma relação humana. As intervenções planeadas são fortemente decorrentes de decisões de natureza científica, tendo em conta os problemas evidenciados, mas suportam-se igualmente na ética de Enfermagem. O cuidado realiza-se, assim, através das melhores escolhas que resolvam o problema de saúde / doença, centrando-se na protecção de cada direito em especial e no respeito pelo conjunto dos direitos humanos. Ouvimos que o símbolo deste Seminário de Ética significa desenvolvimento dos direitos humanos e da deontologia profissional de Enfermagem. É com este enquadramento que os direitos e as incompatibilidades, assim como os princípios, os valores e os deveres do enfermeiro que integram o Código Deontológico, assumem como base comum a protecção dos direitos das pessoas a quem são prestados cuidados de Enfermagem. De facto, os direitos dos enfermeiros visam garantir um exercício no respeito pela ética e deontologia profissionais. As incompatibilidades destinam-se a delimitar a esfera de competências de cada profissão, assegurando a necessária isenção e transparência no desempenho do enfermeiro, de modo a que cada cidadão identifique claramente qual o profissional de saúde a que se dirige. Os deveres têm como origem os direitos das pessoas e concretizam-se na salvaguarda da protecção dos mesmos. No exercício dos direitos das pessoas, na forma como cada direito é respeitado pelos outros e pelo enfermeiro, os direitos humanos servem de base interpretativa, permitindo encontrar o alcance do âmbito de protecção em cada caso concreto. Na dúvida sobre como considerar o respeito por um determinado direito, em cada situação específica de cuidado, socorremo-nos do conteúdo de cada direito humano e, assim, seremos levados à intervenção adequada. Deste modo, fica clara a ligação entre os direitos humanos e a deontologia profissional do enfermeiro, que é uma relação de suporte ético, centrada na responsabilidade que o enfermeiro assume pelo outro e pelos cuidados de que este necessita. Para além da incorporação directa dos direitos humanos nas decisões ordem dos enfermeiros Ao enfermeiro, cidadão e profissional de saúde, cabe um papel responsável nestes processos de aprofundamento dos direitos das pessoas e dos deveres profissionais. À Ordem cabe a responsabilidade de garantir que estes desenvolvimentos se traduzem em melhores cuidados de Enfermagem prestados aos cidadãos. A sua função reguladora tem, assim, como finalidade a promoção da excelência de cada cuidado, utilizando, para tal, os diversos instrumentos de que dispõe. Partindo do princípio de que a qualidade dos cuidados só é possível com um exercício profissional adequado às necessidades das pessoas e ao contexto sociocultural em que nos encontramos, a Ordem assumiu como objectivo a criação de um Modelo de Desenvolvimento Profissional (MDP) que visa, em última análise, melhorar a resposta de cuidados de Enfermagem aos cidadãos. A realização de um período de desenvolvimento de competências em contexto de exercício profissional, seguinte à formação académica, através de uma prática tutelada, com vista ao exercício autónomo da profissão, pretende, de facto, garantir a decisão segura. É em ambiente de prestação de cuidados que o jovem licenciado ou aqueles que não exercem a profissão há algum tempo desenvolvem as suas competências com vista a uma prática segura. É desta forma que podemos assegurar à sociedade que todos os enfermeiros se encontram em condições de decidir e executar cuidados adequados, de forma autónoma e responsável. A continuação do desenvolvimento profissional, no sentido da especialização em cuidados, justifica-se pela natureza dos cuidados que as pessoas precisam e pelas respostas que, hoje, o conhecimento de Enfermagem consegue oferecer. Aos múltiplos factores que influenciam os diversos estados de saúde / doença das pessoas, a Enfermagem deve responder com cuida- I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 11 VERA VIDIGAL Divulgação ??? dos suportados por um conhecimento aprofundado, só possível com algum nível de especialização. As especialidades em Enfermagem devem resultar das reais necessidades de cuidados e não de uma qualquer situação sociopolítica de natureza conjuntural. Daí que as necessidades de cuidados actuais apontem para especialização em diversas áreas que acompanhem o ciclo vital da pessoa e as suas situações específicas de saúde / doença. São dois pilares de desenvolvimento que integram o MDP, centrado nas necessidades que os cidadãos têm de cuidados de Enfermagem. O momento é de discussão com o Ministério da Saúde no sentido de serem encontradas as melhores formas de operacionalizar os princípios definidos. As propostas de alteração do estatuto aprovadas permitirão a sua concretização. Passados 10 anos desde a criação da Ordem dos Enfermeiros, estamos, neste ano de 2008, a construir uma etapa fundamental do nosso percurso de desenvolvimento profissional. Fazemo-lo no sentido da promoção da profissão de enfermeiro em Portugal, uma vez que outro não podia ser o nosso agir em resultado do legado histórico que vimos herdando. A história ensina-nos que o caminho é feito de desenvolvimento, através da nossa capacidade conjunta de tomar decisões boas para o futuro. Mas construímos hoje este projecto de futuro mantendo o essencial do sentido ético do cuidado: o outro e os seus problemas de saúde / doença. É este o foco central da nossa atenção. Num tempo histórico em que o contexto nacional e internacional nos proporciona um campo vasto de possibilidades e um leque amplo de dificuldades, continuamos, em saúde, a ter de pensar em desafios. Sabemos que o acentuado progresso científico e tecnológico é também acompanhado de inúmeros problemas éticos, que emergem dos cuidados de saúde, em geral, e de Enfermagem, em especial. Aos problemas novos devem corresponder também soluções inovadoras, mas eticamente aceitáveis. Os enfermeiros não podem isolar-se deste contexto, pelo que cabe ao conhecimento de Enfermagem revelar horizontes de soluções para os novos desafios. À profissão e à Ordem dos Enfermeiros compete regular a prática profissional, no sentido de garantir cuidados adequados à população. A cada um de nós cabe agir com base no conhecimento actual e nas boas práticas instituídas, no respeito pela ética e pela deontologia profissional. Este agir ético que nos é exigido e que se espera de nós realiza-se no quadro dos nossos deveres deontológicos e da interpretação que vamos conseguindo fazer de cada um deles. Momentos como o que hoje aqui vamos viver ajudam-nos nesta tarefa da reflexão ética e deontológica. Estou certa de que o Conselho Jurisdicional continuará a sua missão de interpretar os deveres profissionais, incluindo os contributos que daqui sairão. Estou igualmente convicta de que a CARED – Comissão de Apoio à Reflexão Ética e Deontológica, presidida pela Sr.ª Enfermeira Margarida Vieira e que iniciou a sua actividade em 2008 (a cujos membros aproveito para agradecer a sua disponibilidade para este trabalho) – irá também contribuir para o aprofundamento da reflexão ética de Enfermagem. Desta forma, assumimos a nossa responsabilidade profissional e institucional de garantir aos cidadãos o desenvolvimento da profissão de enfermeiro em Portugal, no respeito pelos seus direitos em particular e no quadro dos direitos humanos, que a todos cabe promover. oe ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 12 Divulgação ??? Professor Doutor José Henrique Silveira de Brito Docente de Ética na Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa Para abordar o tema que me foi proposto, deontologia e direitos humanos, torna-se indispensável precisar alguns conceitos, de modo a evitar equívocos. Assim, começaremos por tentar clarificar os conceitos de moral, ética e deontologia, de modo a, na parte final da conferência, podermos articular a deontologia com os direitos humanos. Comecemos pelo termo «moral». Provavelmente, todo o ser humano passa por experiências que o levam a ter a sensação de que a moral é uma espécie de colete-de-forças, de força constrangedora, que limita a vida, tal como ela parece arran car do fundo de si mesmo. Como as normas morais aparecem, na maior parte das vezes, em formulação negativa – «não fazer isto», «não fazer aquilo» –, esta sensação ganha consistência e olha-se a moral como uma série de proibições que limitam as tendências mais profundas do ser humano. Em suma, a moral aparece muitas vezes como uma realidade anti-humana. O ser humano, enquanto ser biológico, pode ser considerado uma coisa entre as coisas. O que o distingue, como diz Jean Ladrière, é o facto de ele ser uma consciência, isto é: «ele percebe, recorda -se, antecipa o seu futuro, lamenta-se, espera, rejubila, aflige-se, comunica as suas impressões, faz promessas, exprime o seu reconhecimento, admira, aprecia, condena, faz apelo ao outro, dá-lhe a sua ajuda, concebe a realidade da transcendência, dirige-se ao Altíssimo, e em cada uma das suas operações sabe, ao menos por um saber implícito e subentendido, o que está em causa, qual é a natureza da sua caminhada e o que produz» (LADRIÈRE, 1997: 25). Outras vezes, contudo, acontece exactamente o contrário: parece que a moral é sinónimo de humano. Esta experiência aparece mesmo retratada na linguagem de todos os dias, quando, por exemplo, perante um crime hediondo, se diz «que desumanidade!», ou, pelo contrário, quando afirmamos que determinada pessoa é muito humana, para significar que tem uma grande densidade moral. Isto é, o ser humano é um ser com consciência, afectado pela temporalidade, que age. Ele não está determinado, mas vai-se autoconstruindo mediante as opções que vai fazendo. Ele assume o seu passado e age no presente em função de um futuro que pretende alcançar. Se, por um lado, o ser humano, a existência, como lhe chama Ladrière, não consegue escapar a si mesma, e, neste sentido, no ser humano há uma certa passividade, por outro, o ser humano, a existência, na terminologia do filósofo que estamos a expor, Esta constatação de, umas vezes, sermos levados a considerar a moral como anti-humana e, de outras, ela nos aparecer como sinónimo de humano mostra a necessidade de ver se a moral é uma realidade extrínseca ou intrínseca ao ser humano, isto é, se a moral é constitutiva do ser humano, ou se é uma realidade que lhe é imposta de fora. «dispõe de uma capacidade de iniciativa que lhe permite não somente intervir no seu meio ambiente, mas contribui para ela forjar por si mesma, a partir dela mesma, a figura do seu ser futuro. Esta capacidade é o poder de agir, que tem a sua fonte no querer, que se estabelece concretamente na decisão e que se manifesta na sua efectividade nas operações ordem dos enfermeiros VERA VIDIGAL Deontologia e direitos humanos I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? externas nas quais a decisão é posta em marcha» (LADRIÈRE, 1997: 28). O ser humano é um ser que se autoconstrói, e nessa autoconstrução faz opções, isto é, confronta-se com valores que prefere ou rejeita. Esta autoconstrução faz-se sempre numa cultura, pois, como diz um autor, não assistimos à criação do mundo (LÉVINAS, 1974: 156), e cada cultura contém os modos que a tradição foi consagrando como caminhos de construção da existência humana. É por isso que se compreende o ponto de vista de Ricoeur, quando, ao discutir o sentido dos termos «moral» e «ética», propõe utilizar «o conceito de moral para o termo fixo de referência e de lhe atribuir uma dupla função, a de designar, por um lado, a região das normas, dito de outro modo dos princípios do permitido e do proibido, por outro lado, o sentimento da obrigação enquanto face subjectiva da relação de um sujeito a essas normas» (RICOEUR, 2001: 55-56). Todas as culturas têm um código moral que rege o comportamento daqueles que a partilham e esses seres humanos que compartilham essa cultura têm o sentimento de que devem obedecer às normas morais da sociedade a que pertencem. O ser humano é, pois, um ser intrinsecamente moral. É um ser que age de acordo com ou contra o juízo moral formulado pela sua consciência, que avalia o seu agir de acordo com as normas que a sua cultura consagrou naquilo que se pode designar como «o código moral» daquela cultura. Quando se procura a origem das normas e respectiva justificação, ou quando se procura ver em concreto como podem ser aplicadas essas normas, passa a tratar-se do que Ricoeur chama a «ética anterior» e a «ética posterior». É por isso que o autor diz que, quando se fala de ética, se aponta em duas direcções: «a ética anterior apontando para o enraizamento das normas na vida e no desejo, a ética posterior visando inserir as normas nas situações concretas» (RICOEUR, 2001: 56). Não vamos aqui desenvolver a problemática da ética anterior, isto é, a origem das normas e sua justificação, mas, atendendo ao título que me 13 foi proposto para esta conferência, desenvolveremos um pouco o tema da ética posterior. A moral apresenta um conjunto de valores, princípios e normas que devem reger o agir humano. Essas normas apontam para situações-tipo que aparecem na vida humana, isto é, são universais. Ora, a nossa acção é sempre praticada num contexto determinado, numa situação concreta, o que exige a aplicação das normas àquela situação singular. Perante essa situação, o sujeito moral normalmente intui a norma que se deve aplicar e procura encontrar o modo de aplicação que lhe corresponde. É assim que se vive o código moral na vida diária e essa vivência dá uma certa consistência à história de vida de cada um, pois que a pessoa vive as normas dentro de um acentuado grau de coerência, o que leva a falar-se da vida moral em termos de narrativa. Sendo a vida do sujeito moral uma só, deve reconhecer-se, contudo, que certos âmbitos da vida têm certas especificidades que exigem que se procure descobrir o modo como se aplicam as normas morais àquele contexto específico, isto é, há necessidade de elaborar éticas aplicadas. Os contextos profissionais, por exemplo, a área da saúde, o mundo dos negócios, as nossas relações com a natureza, tal como hoje acontecem, exigem a vivência dos valores e princípios e a aplicação das normas atendendo ao contexto da profissão; isto é, torna-se necessário elaborar as éticas das profissões, as éticas posteriores. E aqui tocamos a problemática suscitada pelo primeiro termo do título que me deram: deontologia. Há autores que designam as éticas aplicadas com o termo deontologia (BERTEN, 477). Outros autores, porém, consideram que as éticas das profissões devem ser mais do que meras deontologias profissionais, porque as primeiras são teorias do agir e as segundas, do fazer. O que se entende por éticas das profissões? Uma ética profissional procura «oferecer uma ética reflexiva e crítica sobre o saber e o que fazer profissional, uma ética que tenta orientar as condutas profissionais, mas entroncando com o pensamento ético actual e tentando estabelecer um diálogo interdisciplinar ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 14 Divulgação ??? com os saberes especializados nos quais se baseia o exercício de cada profissão» (HORTAL, 15). As éticas das profissões visam o agir em função de valores, princípios e normas morais que regem o comportamento humano do profissional, isto é, um agir com conhecimento, liberdade e intenção. Trata-se da teoria que se debruça sobre o agir da pessoa enquanto sujeito moral, enquanto sujeito que procura a vida boa, com e pelos outros, em instituições justas (RICOEUR, 1990). Nas palavras de Augusto Hortal: «A ética ocupa-se em dizer em que consiste [a] actuação boa que nos faz bons; a ética profissional centra-se, antes de tudo, no tema do bem: qual é o bem a fazer, ao serviço de que bens está uma profissão, qual é o tipo de bem que procura com a sua finalidade» (HORTAL, 193). A ética é o saber que visa a práxis, no sentido aristotélico do termo, isto é, é um saber normativo que visa não o que é, mas o que deve ser; não visa saber como as pessoas se comportam, mas como se devem comportar, de modo a atingirem uma vida boa e justa, atendendo ao agir concreto. Como diz França-Tarragó: a ética profissional é «o conjunto daquelas atitudes, normas éticas específicas, e maneiras de julgar as condutas morais, que caracterizam (os profissionais) como grupo sociológico. O ethos da profissão fomenta tanto a adesão dos seus membros a determinados valores éticos como a conformação progressiva a uma tradição valorativa das condutas profissionalmente correctas» (França-Tarragó, 17-18). A deontologia, por seu lado, é uma teoria do fazer, do praticar. A deontologia profissional «formula antes de tudo os deveres e obrigações do profissional, aquilo que há que exigir de todo o profissional no desempenho das suas funções profissionais. […] A deontologia profissional procura estabelecer um conjunto de normas exigíveis a todos os que exercessem uma mesma profissão» (HORTAL, 193) e, por isso, interessa, em primeira instância, aos profissionais. Enquanto a ética profissional trata da relação do profissional ordem dos enfermeiros como uma pessoa (no caso da ética da Enfermagem, é um assunto que interessa ao enfermeiro e às pessoas que ele cuida), a deontologia atende fundamentalmente aos problemas de uma classe. A deontologia procura regular, de um modo concreto, a prática profissional, elabora os chamados códigos de ética profissional, que são um catálogo sistemático que orienta e rege a conduta dos profissionais hierarquizando valores, princípios, normas e regras que o colectivo profissional estabelece para regular a vida dos seus membros, quer nas suas relações mútuas, quer nas relações dos seus membros com o exterior. Estes códigos são um instrumento valioso que expressa os princípios e as normas que emergem do papel social do profissional, promovendo a confiança mútua entre o profissional e uma pessoa ou instituição. As suas funções principais são: 1. declarativa: enuncia os valores fundamentais que fundamentam a ética profissional; 2. identificativa: uniformizando a conduta, dá identidade e papel social ao profissional; 3. informativa: informa a sociedade sobre os fundamentos e critérios éticos específicos que presidem às relações profissional / pessoa; 4. discriminativa: distingue o lícito do ilícito, o que está ou não de acordo com a ética da profissão; 5. metodológica e valorativa: dá os parâmetros das decisões éticas concretas e permite avaliar determinadas circunstância previstas nos códigos; 6. coerciva: dá os parâmetros para o controlo social das condutas do ponto de vista ético; 7. protectiva: protege a profissão das ameaças sociais (FRANÇA-TARRAGÓ). Pelo que se disse, a importância destes códigos deontológicos é por demais evidente. Eles estabelecem valores, princípios e normas mínimos que são universalmente exigidos aos profissionais daquela profissão. Neste aspecto, são importantíssimos. Contudo, não se devem esquecer as suas limitações, tais como: I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? E é por aqui que podemos fazer a ligação da deontologia com os direitos humanos. Os códigos deontológicos são meros instrumentos e não fins em si. O fim que os códigos deontológicos pretendem atingir é a prática da ética profissional. A enunciação do modo prático como o profissional deve actuar, que o código anuncia, visa, entre muitas outras finalidades, levar o profissional a adquirir um determinado comportamento que, uma vez interiorizado, levá-lo-á a viver mais correctamente a sua ética profissional. É verdade que o código tem muitas outras funções, entre elas, permitir a avaliação dos profissionais enquanto profissionais, reconhecer se determinada pessoa tem ou não determinada profissão, estabelecer os critérios que permitem avaliar se alguém é ou não profissional. Eles são constituídos por regras que indicam os modos de proceder que devem ser a exteriorização dos valores, dos princípios e das normas morais que devem ser vividos para que, na respectiva profissão, o ser humano se realize enquanto pessoa. Os códigos são um instrumento que visa impor maneiras de proceder que deveriam resultar da procura da vida boa, isto é, da procura da realização moral do profissional enquanto sujeito moral. Que valores, princípios e normas são essas? São os do profissional competente técnica e humanamente; são os que devem presidir VERA VIDIGAL poderem induzir a ideia de que a responsabilidade moral do profissional se limita ao explicitamente referido pelo código e poderem suscitar desacordos quanto à hierarquia dos valores, princípios ou regras. Apesar de tudo, são instrumentos educativos muito importantes para a formação da consciência ética dos profissionais (FRANÇA-TARRAGÓ). 15 ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? VERA VIDIGAL 16 a uma vida pessoal e social justa e que permitem a realização de cada um enquanto sujeito moral. Numa sociedade plural como a nossa, verifica-se um pluralismo moral evidente, mas há um largo consenso em torno dos direitos humanos como critério que deve ser assumido quando, em última instância, se pergunta se o ser humano está a agir bem ou não, de um modo justo ou injusto. Se, por um lado, a deontologia profissional é a exteriorização da moral profissional e, por outro, a fundamentação da moral se encontra nos direitos humanos, em última instância a deontologia profissional tem a sua justificação e o seu critério de avaliação nos direitos humanos. Em síntese: são os direitos humanos o critério último de avaliação da deontologia profissional. Mas este largo consenso em assumir os direitos humanos como critério último de avaliação da deontologia, para ser consistente, exige uma fundamentação filosófica dos direitos humanos e, depois, a procura de um caminho para passar das formulações abrangentes que encontramos na Declaração dos Direitos do Homem para a sua concretização específica nas éticas das profissões. Não vou agora desenvolver uma tentativa de fundamentação filosófica dos direitos humanos. Ficarei pela afirmação de que os seres humanos coordenam as suas actividades através de acções comunicativas e que estas só são possíveis entre seres morais cuja comunicação tem como condição de possibilidade princípios éticos. Esses princípios, pressupostos quer no discurso teórico quer no discurso prático, que é um prolongamento da acção comunicativa, são os direitos humanos, pois que, sem eles, cada ser humano não é considerado um interlocutor válido (CORTINA). Mas como encontrar o caminho para passar das formulações abrangentes da Declaração dos Direitos do Homem para a prática diária dos profissionais? Atendendo à moral vivida no contexto cultural em que a pessoa se encontra e, nas éticas profissionais, recorrendo ao código ético da respectiva profissão. E encontramos aqui mais uma função dos códigos deontológicos: aplicar à profissão, em regras muito concretas, as grandes formulações dos direitos humanos. ordem dos enfermeiros Prof. Silveira de Brito e a Enf.ª Conceição Martins, do Conselho Jurisdicional Bibliografia BERTEN, A; CANTO-SPERBER, Monique (sous la dir.) – Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. t. 1. 1.ª edition. Quadrige. Paris: P.U.F, 2004. CORTINA, Adela – Ética sin moral. 3.º Edição. Madrid: Editorial Tecnos, 1995. LADRIÈRE, Jean – L’éthique dans l’univers de la rationalité. Saint-Laurent/Namur: Fides/Artel, 1997. LÉVINAS, Emmanuel – Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. La Haye: Martinus Nijhoff, 1974. RICOEUR, P. – Le juste 2. Paris: Éditions Esprit, 2001. RICOEUR, P. – So- meme comme un autre. Paris: Editions du Seuil, 1990. HORTAL ALONSO, Augusto – Ética general de las profesiones. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 2002. FRANÇA-TARRAGÓ, Omar – Ética para psicólogos. Introdución a la Psicoética. 2.ª ed. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 1999. oe I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 17 Professor Doutor Daniel Serrão Especialista em Bioética A presente comunicação pretende fazer uma análise pragmática, introduzindo alguns conceitos operativos: ética operativa, deontologia e direitos humanos. Tenho optado por uma posição pragmática no que respeita à ética. Além da perspectiva filosófica, vamos procurar encontrar uma forma simples para entender o sentido e a utilização desta expressão. Actualmente, ética é, para o homem moderno, uma capacidade da sua inteligência. É uma categoria mental da actividade cerebral. Assim como somos capazes de pensar com a categoria lógica do pensamento, também o podemos fazer com a categoria ética do pensamento, como seres humanos e agentes morais. A ética é, então, a capacidade especificamente humana que permite que os seres humanos actuem e decidam após a ponderação de valores. Isto é feito na sua autoconsciência, na sua intimidade. É aí que se ponderam os valores antes de tomar uma decisão. Todos praticamos actos de relevância ética, porque tomamos decisões após ponderamos valores. VERA VIDIGAL Os direitos humanos e a deontologia profissional mada após a ponderação dos valores individuais é, por definição, ética. Em si própria, não é boa nem má. É simplesmente resultante da ponderação dos valores individuais. Há também a questão da circunstância, uma vez que o homem é, obrigatoriamente, um ser social e sociável. O ser humano não existe isolado, existe em relação com os outros, uma relação que acontece, naturalmente, num universo ético. Eu e o outro somos um «armazém de valores» e, quando entramos em diálogo, fazemos uma troca, uma comparação dos nossos respectivos valores individuais. Quando se estabelece essa relação, há uma espécie de adaptação de valores, que podem ser convergentes ou divergentes. Assim, entramos naquilo a que chamo ética dialogal. Os valores nascem exclusivamente das percepções individuais, da cognição individual. Eu vejo, ouço, palpo, cheiro, tenho uma relação com o mundo exterior. A partir dessa relação, construo imagens representativas, de todos os tipos. No mundo exterior está a natureza e eu transformo a percepção da natureza em valores individuais, em significados ou significâncias individuais. Ao ver, ouvir e ler, as pessoas vão arquivar progressivamente valores e significâncias individuais que têm uma valoração – boas ou más, gosto ou não gosto, bonito ou feio. O mundo exterior é permanentemente avaliado por todos nós de uma forma simples e natural. O resultado dessa avaliação fica arquivado na memória. De uma forma simples, a deontologia refere-se a um determinado universo de pessoas, por exemplo, médicos ou enfermeiros, que têm – como todas as pessoas – necessidade de estabelecer as suas relações numa base de ética individual e de ética dialogal. Mas, como naquelas profissões muitos actos se repetem constantemente ao longo do tempo, há um conjunto de decisões que aqueles grupos de profissionais entendem como boas decisões. Então, atribuem eticidade a determinadas decisões e dizem que, nas circunstâncias tipificadas, o profissional deve proceder daquela forma. Há uma cristalização em normas das propostas puramente éticas. Quando uma decisão passa a ser acolhida por um grupo profissional, deixa de ser livre e passa a ser, de certa forma, imposta. Quando temos de decidir, chamamos à autoconsciência esses conteúdos e tomamos a decisão. Qualquer decisão que seja to- O Código Deontológico explica aos profissionais, por exemplo, que o médico não pode matar os seus doentes. Trata-se de uma ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 18 Divulgação ??? norma obrigatória. O problema que se coloca é sobre o direito. É uma norma obrigatória para quem? Para os profissionais que aderem àquele código, fazendo um juramento, que só cria um compromisso ético. As Ordens – mas o mesmo não se aplica à Ordem dos Enfermeiros –, além do seu Código Deontológico, têm um código disciplinar que aplica penas, como se fosse legítimo que tivessem um direito e uma jurisprudência próprios. As Ordens profissionais, ao possuírem um Código Deontológico e um código disciplinar com aplicação de penas suspensas e de multas, têm um foro privado. Isto significa que a deontologia ou é uma norma fraca em relação aos profissionais, ou procura fortalecer-se, transformando-se, sem o dizer, em norma jurídica. Esta última aparece com a organização do Estado moderno democrático. Nessa altura, entendeu-se que, para a manutenção da coesão social, era necessário que os cidadãos aceitassem um mínimo de obrigações, transformadas num código de procedimentos – o Código Civil – e puníveis por um Código Penal. Mas, na realidade, numa sociedade organizada, democrática, só pode ser punido o que ofender leis públicas, leis do Estado, não códigos ou leis privadas de uma determinada profissão. Numa profissão, estamos num universo ético e deontológico, num universo de valores e de deveres fundamentados em valores. As punições – respeitando o código de punições da Ordem dos Médicos, a que pertenço – são de honra. Se o médico não o quiser aceitar, nenhum tribunal vai confirmar uma sentença, um castigo ou uma pena aplicados profissionalmente pela Ordem profissional ao seu membro. Se ele aceitar, fá-lo por uma questão de honra, por reconhecer que procedeu mal. Se recusar, não lhe acontece nada. O fundamento do universo ético humano são as percepções individuais, a experiência de vida de cada um, a forma como cada um interiorizou as suas relações com o mundo. Esta percepção passa por uma leitura emocional das percepções e por uma análise racional, de inteligência reflexiva, transformando as percepções em ideias abstractas. Este é o universo com que eu construo a minha «biblioteca de valores». ordem dos enfermeiros Na deontologia, o fundamento da norma é o que a população, por exemplo, de enfermeiros considera que é bom que seja feito. É uma espécie de consenso. Todos os enfermeiros acham que, em determinada situação, o bom é fazer desta maneira. Depois, a norma dita como deve ser feito. Mas, antes de a norma o ditar, é necessário que os profissionais, entre si, de uma forma o mais democrática, abrangente e dialéctica possível, tenham concordado com isso. A origem da norma deontológica é exclusivamente o consenso entre os membros daquela profissão. Quando as crenças ou opiniões que dão origem a esse consenso mudam, a norma deontológica também tem de mudar. A questão jurídica, mais universal, que aponta para uma ética global mundial, tem como justificação a paz entre os seres humanos como condição para a paz entre as nações. Os seres humanos devem estar em paz entre si, porque aceitam um conjunto de normas que tendem a criar a paz e a acabar com a violência, a guerra e a morte. Os direitos do Homem – referindo-me em concreto à Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 – são um documento de pura ética. A utilização da palavra «direitos» é desajustada. Não se trata de direito jurídico. Muito mais do que de direitos humanos, fala-se de valores. A Declaração não tem força jurídica e até diria que não tem peso deontológico. Tem uma grande dignidade ética, porque diz ao mundo o que cada cidadão, na sua autoconsciência, deve aceitar. Entre 1948 e 1966 tentou-se criar uma Convenção dos Direitos do Homem, ou seja, um documento que tivesse valor jurídico para os países que o ratificassem. Ao fim de algum tempo, verificou-se que tal não era possível e optou-se pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos, com um estatuto mais fraco dentro da Organização das Nações Unidas (ONU). Este documento foi aprovado por uma parte dos países em 1966. Trata-se de um texto deontológico, porque também não tem valor jurídico, não faz com que os Estados tenham de o cumprir, mas cria uma obrigação moral. Quem adere ao Pacto é como um médico ou um I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? Na Europa, no final da Segunda Guerra Mundial – depois de se ter percebido que o que fez com que as nações entrassem em guerra foi a não-existência de códigos que estabelecessem a paz entre as pessoas e os Estados –, foi criado o Conselho da Europa (1950). Este foi inspirado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada dois anos antes, e destinava-se a defender os direitos do Homem e a dignidade de cada ser humano. O seu objectivo era promover a paz, para que nunca mais houvesse guerra entre os países que subscrevessem esse documento, que é uma convenção – tem valor jurídico e é a verdadeira Convenção dos Direitos Humanos para a Europa. Na Convenção são consignados direitos e deveres atribuídos aos cidadãos e que estes podem questionar junto de um tribunal; é como se fosse um Código Civil. Se houver desrespeito de um cidadão ou de um Estado, pode ser apresentada uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em Estrasburgo. concretas da relação dos biólogos e dos médicos – ou dos profissionais de saúde em geral – com as pessoas. Sendo uma convenção de artigos gerais, têm-lhe sido adicionados protocolos. O primeiro protocolo proibiu a clonagem humana com finalidade reprodutiva. Em Portugal, país que ratificou este documento em Abril de 1997, nenhum laboratório de biologia da reprodução pode fazer clones humanos para reprodução. Mas foram aprovados outros protocolos, como o Protocolo sobre Colheita de Órgãos para Transplantação, o Protocolo sobre Investigação Biomédica e o Protocolo sobre Testes Genéticos. Estes temas são tratados, na generalidade, na Convenção, enquanto os protocolos abordam estes temas, na especialidade. Em síntese, quando queremos falar de direitos humanos, é melhor fazê-lo ao nível da Europa. Além disso, é melhor trabalhar com documentos jurídicos e não com documentos deontológicos e éticos, que procuram honrar os critérios da deontologia das profissões, mas não têm eficácia no plano do direito interno. oe VERA VIDIGAL enfermeiro que assina o seu Código Deontológico. Estas normas precisariam de ter um suporte jurídico. 19 Um dos direitos incluídos nesta Convenção é que todo o cidadão tem direito a que lhe seja feita justiça em tempo útil, sendo que o tempo considerado útil para a resolução dos processos comuns é de quatro anos. Qualquer pessoa que, em Portugal, tenha um processo em tribunal durante mais de quatro anos sem que lhe tenha sido feita justiça, pode apresentar queixa e o Estado terá de pagar uma indemnização. A pessoa é ressarcida dos prejuízos de não lhe terem feito justiça em tempo útil e as penas aplicadas têm sido pesadas. Com base neste documento jurídico europeu, foi criado outro texto que se relaciona com a actividade profissional de médicos e enfermeiros: a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade Humana face às Intervenções da Biologia e da Medicina. Para o Conselho da Europa, algumas intervenções da Biologia e da Medicina podiam ser ameaçadoras para a dignidade do ser humano e ofensivas para os direitos do Homem. Neste documento são estabelecidas situações muito ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 20 Divulgação ??? Dr.ª Ana Sofia R. Monteiro Socióloga, pós-graduada em Sociologia da Saúde, membro da Direcção da Amnistia Internacional Enf.ª Maria José Silva Docente na Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Minho, membro da Amnistia Internacional – GL24 de Viana do Castelo Falar de direitos humanos nesta mesa-redonda e num seminário em que se celebram dois aniversários relacionados com os direitos humanos obriga a rever, sucintamente, alguns aspectos importantes da história dos direitos humanos, em geral, e do direito à saúde, em especial. Em 1946, a Organização Mundial da Saúde (OMS) consagrou, pela primeira vez, o direito ao mais alto nível de saúde física e mental como um direito fundamental. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos apresenta os seus 30 artigos, distinguindo-os em direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos. Rapidamente, o mundo divide-se no modo de os considerar: o Ocidente considera os direitos civis e políticos os mais prioritários, relegando para segundo plano os direitos sociais, culturais e económicos. Em contrapartida, os países de Leste valorizam estes direitos, privilegiando o direito à educação, à saúde e à alimentação. Só na Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993 a comunidade internacional defendeu a interdependência dos direitos humanos. Os quase 50 anos de ausência de efectiva utilização do trabalho produzido com a Declaração Universal dos Direitos Humanos resultaram no não-desenvolvimento dos direitos económicos e sociais em termos da sua definição, abrangência e conteúdo, impedindo, deste modo, a sua realização na prática. ordem dos enfermeiros Na área da saúde pública, foi a pandemia do VIH / SIDA, nos anos 80, que serviu de alerta, demonstrando como os programas de saúde pública e os princípios de direitos humanos estão inter-relacionados1. Evidenciou-se uma série de princípios de direitos humanos, entre os quais o direito à privacidade, à não estigmatização e Enf.ª Maria José Silva à não discriminação em relação à raça, cor, opção sexual e género, à língua, à religião, à nacionalidade ou à origem social; e o direito à informação e à educação relacionados com a saúde. Apesar deste despertar para os direitos humanos, no que respeita à saúde pública, este não levou a um esforço no sentido de relacionar, de forma efectiva, a luta por mais justiça social na área da saúde pública com os direitos económicos e sociais, incluindo o direito à saúde. Embora a OMS tenha adoptado a Declaração de Alma-Ata (1978) relativa aos cuidados básicos de saúde, estabelecendo a saúde como um direito humano, o mesmo ocorrendo com a Declaração Mundial de Saúde de 1998, a imaturidade e a controvérsia em torno do propósito, do conteúdo e da aplicação do direito à saúde demonstrou que esse tema continua a merecer mais que uma propaganda, uma verdadeira cultura de direitos humanos. Com o advento do novo milénio, tanto os governos internacionais como os movimentos de saúde pública têm demonstrado 1 O pioneiro a estabelecer a relação entre saúde e direitos humanos foi o Dr. Jonathan Mann (1947-1998), primeiro coordenador do programa de VIH / SIDA da Organização Mundial da Saúde (OMS). VERA VIDIGAL Os direitos humanos e a deontologia profissional de Enfermagem I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? uma tendência para o aumento da consciência e da aplicação mais sistemática dos direitos humanos, indo-se para além das questões colocadas pelo VIH / SIDA e estabelecendo-se uma gama de desafios para toda a comunidade. A Declaração do Milénio, adoptada em 2000 por todos os 189 estados-membros da Assembleia Geral das Nações Unidas, veio lançar um processo decisivo de cooperação global para o século XXI. Nela foi dado um enorme impulso às questões do desenvolvimento, com a identificação dos desafios centrais enfrentados pela humanidade no limiar do novo milénio e com a aprovação dos denominados Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) pela comunidade internacional, a serem atingidos num prazo de 25 anos. Erradicar a pobreza extrema e a fome, alcançar a educação primária universal, promover a igualdade do género e capacitar as mulheres, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, combater o VIH / SIDA, a malária e outras doenças, assegurar a sustentabilidade ambiental e desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento foram os objectivos estabelecidos naquela assembleia. Para atingir estes objectivos, a Dr.ª Margaret Chan, Directora-Geral da OMS, disse2, em 2007: «Não acredito que consigamos atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, a menos que regressemos aos valores, aos princípios e às abordagens dos Cuidados de Saúde Primários... Décadas de experiência dizem-nos que os Cuidados de Saúde Primários são a melhor via para o acesso universal, a melhor forma de garantir melhorias sustentáveis nos resultados de saúde e a melhor garantia de que o acesso aos cuidados será equitativo.» O International Council of Nurses (ICN) assinalou o Dia Internacional do Enfermeiro de 2008 assumindo o compromisso de servir a comunidade e de garantir a qualidade de cuidados de saúde, colocando os enfermeiros na vanguarda dos Cuidados de Saúde Primários. O desafio está lançado, cabe agora a todos os enfermeiros desempenhar o seu papel nos diferentes cenários 2 ICN – Servir a Comunidade e Garantir Qualidade: os Enfermeiros na Vanguarda dos Cuidados de Saúde Primários. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros, 40 pp., ISBN: 978-972-99646-7-1, 2008. 21 de intervenção. Este compromisso encontra-se incorporado, desde 1953, no Código Deontológico do ICN, que afirma que «os enfermeiros têm quatro responsabilidades fundamentais: promover a saúde, prevenir a doença, restabelecer a saúde e aliviar o sofrimento»3. Também a Amnistia Internacional, como organização de direitos humanos, para além de outros aspectos, preocupa-se com as situações que, na área da saúde, resultam de ou em violações de direitos humanos. Existe uma rede de profissionais de saúde que participam em campanhas, apelos e acções direccionados para esta área, incidindo em temas como: pena de morte, violência contra mulheres e crianças, VIH / SIDA, refugiados, minorias, prisioneiros, conflitos armados, tortura e tratamentos desumanos, saúde mental, entre outros. Foi lançada pela secção irlandesa uma rede de lobby de saúde mental da Amnistia Internacional. Tentaremos, também, no futuro, criar um núcleo de saúde na secção portuguesa da Amnistia Internacional, que se irá juntar às duas redes referidas. Em 1996, a Amnistia Internacional adoptou a «Declaração sobre o papel dos profissionais de saúde na divulgação de casos de tortura e maus tratos» no âmbito da campanha sobre este tema e defendeu que os profissionais de saúde tinham um papel de enorme relevância na denúncia deste tipo de casos. Decorrem actualmente em Portugal campanhas que também incidem na área da saúde, como por exemplo, a campanha para a eliminação da violência contra as mulheres e a campanha «Discriminar não é humano», legados dos Jogos Olímpicos de Pequim, e «Combater o terrorismo com justiça». No próximo ano, a Amnistia Internacional dará mais ênfase à campanha pela dignidade humana que também terá grande incidência não só na área da saúde, como noutros temas que lhe 3 ICN – ICN Code of Ethics for Nurses. Geneva: ICN, 2006. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? VERA VIDIGAL 22 são próximos, tais como o direito à alimentação, ao alojamento e à protecção social. Para além deste tipo de responsabilidades, cabe também aos profissionais de saúde, em geral, e aos enfermeiros, em particular, a responsabilidade ética para com as pessoas que são submetidas à experimentação, assegurando-se de que são plenamente respeitados os princípios bioéticos4. Um dos exemplos de problemas a nível ético que foram levantados ocorreu em 1996, na Nigéria, na cidade de Kano, durante um surto de meningite. Os profissionais de saúde da Pfizer efectuaram experiências em crianças com um novo fármaco e, como resultado, morreram aproximadamente 50 crianças e muitas mais ficaram com deficiências mentais e físicas.5 Nenhum dos pais assinou um consentimento informado e muitos deles nem sequer sabiam que os seus filhos estavam a servir como cobaias, pois foi-lhes assegurado que o medicamento já tinha sido testado nos Estados Unidos da América (EUA) e que era eficaz. A suposta comissão de ética que havia autorizado as experiências não existia na altura e alguns médicos nigerianos consideraram o documento de autorização falso e forjado. 1994, o ano da descoberta de que o AZT diminui o risco de infecção do VIH entre mãe e filho (através da experiência 076), foi também o ano em que a OMS decidiu não apoiar a utilização global do AZT, uma vez que muitos dos investigadores e profissionais de saúde defendiam que o continente africano não se adequava a esta terapêutica. Era necessário encontrar alternativas mais simples e menos dispendiosas e, assim sendo, o vencedor do Prémio Nobel, Dr. Frederick Robbins, e o Dr. Jackson iniciaram experiências com um novo fármaco denominado nevirapina. As experiências não poderiam ser efectuadas nos EUA, pois do ponto de vista ético não seria correcto, nem permitido por nenhuma comissão de ética, privar as grávidas desta terapêutica com o AZT para testar a eficácia da nevirapina. Os 4 5 São exemplo os contemplados no Código de Nuremberga e na Declaração de Helsínquia. Amnistia Internacional - Amnesty International News for Health Professionals, vol. 10, n.º 12, 2007. ordem dos enfermeiros investigadores procuraram então alternativas no hospital de Mulago, em Kampala, no Uganda. O Dr. Jackson sabia que era mais provável que a nevirapina não tivesse tanta eficácia como o AZT e, para além disso, existia o problema ético de negar tratamento ao grupo de controlo. Justificou-se afirmando que as grávidas deste hospital não recebiam nenhuma terapêutica anti-retroviral, por isso não lhes estava a ser negado nenhum direito. Afinal de contas, era necessário apresentar resultados e estes tinham de seguir o protocolo da experimentação científica6. Numa conferência, na Costa do Marfim, em 1997, investigadores do Center for Disease Control (CDC) admitiram terem administrado a um grupo de grávidas meias doses da terapêutica de AZT e, ao grupo de controlo, placebos. O Dr. Peter Lurie (activista e 6 SHAH, Sonia – Cobaias Humanas: os Testes de Medicamentos no Terceiro Mundo, 1.ª edição, Casal de Cambra: Editora Caleidoscópio, pp. 125-136, 2008. I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? O Dr. Lurie não entendia por que razão se realizavam testes deste tipo quando era possível realizar testes com terapêutica de AZT de longa duração comparando-os com os de curta duração, no qual todas as participantes eram tratadas com algo que evitaria a infecção, como acontecia com as experiências do Dr. Marc Lallemant, na Tailândia. Não se entende também porque é que em França e nos EUA, as grávidas que tinham sido participado nas experiências do regime 076 na altura da descoberta da eficácia do AZT foram imediatamente retiradas dos grupos de controlo e autorizadas a tomar o novo fármaco para impedir que os bebés nascessem infectados, mas as grávidas de países em vias de desenvolvimento viram esse mesmo direito ser-lhes negado. As comissões de ética aceitam mais facilmente que certo tipo de experiências que envolvam grupos de controlo com placebos se realize em países em vias de desenvolvimento. Uma das justificações é que nestes países o tratamento disponível é inexistente ou de fraca qualidade, portanto o facto de os profissionais de saúde negarem tratamento às participantes supostamente não viola os princípios éticos, uma vez que elas não o teriam de qualquer maneira. Esta justificação vai contra o Artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os princípios nos quais se fundou a bioética7. O que fazer então? Travar o progresso da medicina e deixar de experimentar novos fármacos? A resposta terá de ser não. Mas a principal pergunta que deverá ser feita é: «Qual o preço?». Porque este preço implica, como já foi verificado, a morte de pessoas que não sabem que estão a ser sujeitas a experiências, implica deixar que nasçam crianças infectadas com VIH quando se tem ao lado o anti-retroviral que poderá evitar a infecção, implica que uma pessoa se torne um corpo para experiências e seja despojada da sua condição de ser humano que tem direitos inegáveis. oe 7 Apesar das revisões de 1996 e 2000 e da clarificação, em 2002, do parágrafo 29.º da Declaração de Helsínquia, a ética da experimentação humana com recurso a placebos continuar a gerar grande controvérsia. VERA VIDIGAL médico) ficou chocado, assim como grande parte da audiência, uma vez que, se era evidente que meia dose era melhor do que nada, porque é que precisavam de comprovar isso deixando que mais bebés nascessem infectados? Descobriu então que o CDC e o UNAIDS, entre outros, estavam a realizar mais de 15 testes diferentes com grupos de controlo que recebiam placebos em vários países em vias de desenvolvimento. 23 ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 24 Divulgação ??? Enf.ª Teresa Oliveira Marçal Vice-presidente do Conselho Directivo da Ordem dos Enfermeiros Nota Introdutória Hoje, em Portugal, os enfermeiros podem, neste IX Seminário de Ética, celebrar 10 anos de deontologia profissional. Fazemo-lo no ano em que o mundo celebra os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Compreende-se, assim, que o Conselho Jurisdicional (CJ) nos tenha convidado, a cada um de nós, a fazer uma reflexão que terá de ser feita em torno de dois eixos: • o da universalidade, da cidadania • e o da profissionalidade – entendida, no sentido etimológico de profissão, como «declaração pública», capaz de explicitar e respeitar o compromisso que um determinado grupo tem perante a sociedade. Considero estarmos perante o desafio de fazer desta dupla celebração uma convocação à efectiva procura dos caminhos da realização do nosso mandato social. Somos convocados a reflectir sobre o incessante e exigente movimento de passar de um ideal comum e universal para uma busca inteligente de soluções competentes e justas para os problemas de saúde daqueles a quem prestamos cuidados. Esse movimento será, em primeiro lugar, um movimento ético, um movimento de cada um de nós, de procura de realização do «eu». Mas, simultaneamente, terá de ser um movimento deontológico, marcado por aquilo que é adequado fazer, pelos deveres dos membros de uma profissão na consecução das actividades próprias com que está comprometida. ordem dos enfermeiros Compromisso que, assumido pela própria profissão, é manifestação da sua possibilidade de auto-regulação, apelando não a uma lógica de obediência mas de responsabilidade. A deontologia diz -nos quais os deveres a cumprir, proporciona um conjunto de orientações para a acção profissional. De um modo auto-orientado, dá-nos as indicações que nos ajudam no nosso agir quotidiano, nos nossos processos de tomada de decisão, na salvaguarda da segurança daqueles de quem cuidamos. Cabe-me, neste seminário, enquanto elemento do Conselho Directivo da Ordem dos Enfermeiros (OE), retomar as profundas relações entre a deontologia profissional e a saúde enquanto desígnio da humanidade, enquanto direito universal. E esta profunda relação leva-nos a uma outra celebração, a dos 30 anos da Declaração de Alma-Ata1. Nela (re)assume-se a saúde como um direito fundamental e apontam-se os Cuidados Primários de Saúde como sendo a chave para a realização desse espírito de justiça social. É neste entrelaçamento que me situarei, num percurso necessariamente breve, que procurarei que seja de partilha das nossas perspectivas mas, acima de tudo, que seja interpelador. • Percurso que, partindo dos direitos humanos, a eles permanentemente terá de se reportar. 1 Declaração de Alma-Ata, URSS, 12 de Setembro de 1978. VERA VIDIGAL De Alma-Ata à deontologia de Enfermagem I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 25 • Percurso que, retomando Alma-Ata, perspective o nosso compromisso, as nossas responsabilidades de intervenção como profissionais e como profissão. Nele surge claramente a referência a grupos mais vulneráveis da população – crianças e mães – e o seu direito a cuidados e assistência especiais. O mandato social da OE e as suas atribuições colocam os cidadãos e as respectivas necessidades de saúde e de cuidados de Enfermagem seguros no centro de toda a nossa atenção. Por isso, este compromisso está bem patente na acção da OE desde a sua criação, bem como no plano de acção para este mandato, quando nele se afirma como objectivo estratégico «continuar a reforçar o direito dos cidadãos aos cuidados de Enfermagem»2. Este direito social, presente desde o acto constitutivo da OMS, está expresso em muitos dos documentos normativos de que a humanidade dispõe. Compreende-se, assim, que esta apresentação se detenha num primeiro olhar sobre o direito à saúde, ligado aos princípios de Alma-Ata, seguido de um olhar mais dirigido à intervenção da OE na procura da consecução desse direito. Procura que implica a deontologia profissional que os enfermeiros portugueses souberam construir e tomar como sua. Dos direitos humanos e da Declaração de Alma-Ata Assegurar que o fim do milénio correspondia ao pleno reconhecimento deste direito e à garantia da saúde para todos, levou a que todos os países, em 1978, em Alma-Ata, adoptassem o lema «saúde para todos até ao ano 2000» e reconhecessem os Cuidados de Saúde Primários como a chave para a sua concretização, apresentando-os como a mais importante meta social mundial3. Revisitando a Declaração de Alma-Ata, encontramos a denúncia de quanto as desigualdades existentes no estado de saúde dos povos e dentro dos países eram e são, política, social e economicamente inaceitáveis. Continuam, por isso, a constituir objecto da preocupação comum de todos os países.4 Encontramos nessa declaração valores / princípios como: Falar de direitos humanos exige reafirmar os seus fundamentos: a dignidade de toda a «família humana» e a inalienável igualdade dos direitos dos seres humanos. E é nesta perspectiva que falaremos do direito à saúde, sabiamente apresentado no Artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos com uma estreita ligação às condições de vida. Esse artigo inicia-se afirmando que «toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.» • a autonomia e autodeterminação da pessoa para participar nos cuidados de saúde; • a justiça social como imperativo que apela à responsabilidade dos governos; • a proximidade à pessoa e ao grupo em dinâmicas de referenciação integradas; • a aplicação dos resultados relevantes da pesquisa social, biomédica e de serviços de saúde e da experiência em saúde pública; • a adequação das actividades às necessidades da população; • a promoção e a rentabilização dos recursos disponíveis; • a cooperação entre países, num espírito de comunidade e serviço, para assegurar os cuidados primários de saúde a todos os povos, uma vez que a consecução da saúde do povo 3 2 Plano de Acção, mandato entre 2008 e 2011. 4 Declaração de Alma-Ata. Idem. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 26 Divulgação ??? de qualquer país interessa e beneficia directamente todos os outros países. É bem visível a convergência destes princípios com os pilares fundamentais dos direitos humanos, retomados pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), no seu importante parecer de 19955, relativo às Questões Éticas na Distribuição e Utilização dos Recursos Para a Saúde: • • • • a dignidade humana, a participação, a equidade, e a solidariedade. Princípios igualmente inscritos na nossa deontologia profissional, nomeadamente no Artigo 78.º do Código Deontológico. Desse articulado recordo somente a afirmação do respeito pela dignidade das pessoas co-autoras do processo de cuidar – a pessoa cuidada e o enfermeiro. Vou relembrar, ainda, o apelo que ele nos faz: • à responsabilidade perante a sociedade, • ao respeito pelos direitos humanos, • à excelência no exercício da profissão e na relação com outros profissionais. São princípios que terão de ser referência para a nossa acção. Celebrar as efemérides presentes ao tema deste Seminário é, portanto, trazê-los aqui e agora. 1. a definição da posição da OE perante os órgãos de soberania e da Administração Pública em matéria que se relacione com as suas atribuições; 2. a elaboração e proposta, após audição dos conselhos regionais e do parecer do CJ, dos regulamentos necessários à execução do estatuto e à prossecução das atribuições da OE. No que concerne à primeira área de competência, vejamos, seguidamente, a posição da OE face à actual reforma dos cuidados de saúde. É de todos conhecido que temos defendido que é essencial para a melhoria das respostas às necessidades em cuidados de saúde aos cidadãos que a reforma assente na acessibilidade e na equidade, que seja marcada por lógicas centradas na pessoa e família, que esteja atenta aos mais vulneráveis e que garanta o atendimento ao longo de todo o continuum de cuidados, desde o nascimento até à morte. Consideramos que, para além de exigir dinâmicas de proximidade, integradas e integradoras, articuladas e inteligíveis para os cidadãos e os profissionais, a reforma terá de ser feita a partir: • da evidência produzida, • da participação dos diferentes agentes, • da implicação das organizações profissionais no sentido de poderem melhor desempenhar os seus mandatos sociais. Defendemos ainda que a reforma terá de garantir: E porque os princípios se vivem no terreno e porque me compete um olhar mais dirigido à intervenção da OE, falemos das acções feitas e a fazer, falemos da procura da concretização dessas condições de universalidade, proximidade, equidade e acessibilidade nos cuidados de saúde e de Enfermagem. Estas questões levam-nos às áreas de competência do Conselho Directivo, das quais apenas destacarei: 5 Parecer 14/CNECV/95. ordem dos enfermeiros • a gestão descentralizada e participativa na saúde, • o reconhecimento de idêntico nível de dignidade e autonomia no exercício profissional das diferentes profissões da área da saúde. Cumpre-nos também ir apresentando formalmente esta nossa posição e as suas implicações, em primeiro lugar aos enfermeiros, reunidos em Assembleia Geral, das quais se destacam as de 2006, 2007 e 2008, e depois ao poder político. I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? Porque vos trago aqui estes dados, estas afirmações? Não o faço para simples demonstração de obra feita, trago-as no sentido interpelador, porque todos e cada um de nós somos convocados a dar vida à profissão, trago estas posições porque elas nos vinculam e responsabilizam. As tomadas de posição da Ordem, os pareceres emitidos, ancorando-se no enquadramento para a profissão – de que se destacam o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros (REPE), o Código Deontológico, os Padrões de Qualidade e as Competências do Enfermeiro de Cuidados Gerais – orientam o nosso agir, e não o digo numa mera figura de retórica. Constituem-se como orientações de natureza profissional que se inscrevem também no quadro deontológico da profissão, são directrizes que não podemos ignorar. Não posso hoje, aqui, referir-me às tomadas de posição da OE, sem retomar duas delas, que pela sua natureza foram elaboradas pelo CJ e posteriormente assumidas pelo Conselho Directivo da OE. • Uma delas, a Tomada de Posição sobre Segurança do Cliente, decorreu do segundo ciclo de debates sobre cuidados seguros, e nela se enuncia a perspectiva ética e deontológica da segurança dos clientes. • A outra respeita à Delegação, profundamente ligada à anterior, dado que todas as decisões relacionadas com a delegação são baseadas no princípio de protecção da saúde, da segurança e do bem-estar do público. Ambas são recurso para a tomada de decisão e vinculam-nos ao seu cumprimento. Mas continuando, no que diz respeito à consecução das reformas da saúde, estas exigem-nos que, como profissionais, sejamos mais do que actores de papéis predefinidos. Somos chamados a ser seus co-autores, no sentido pleno deste termo. Exigem que participemos no vasto processo que vai da sua concepção política à sua implantação e avaliação no terreno e ao desenho das correcções convenientes. 27 Se a nossa posição face à reforma dos cuidados de saúde tem por intenção assegurar o desígnio fundamental da OE de «promover a defesa da qualidade dos cuidados prestados à população», ela tem também de preservar as condições para «o desenvolvimento, a regulamentação e o controlo do exercício» profissional, de modo a podermos cumprir a atribuição de «zelar pela função social, pela dignidade e pelo prestígio da profissão de enfermeiro, promovendo a valorização profissional e científica dos seus membros»6. Estas atribuições, decorrentes da devolução à OE dos poderes que ao Estado competem no que concerne à regulamentação e ao controlo do exercício profissional, têm-nos conduzido na procura e defesa das condições que garantam a excelência do exercício, tais como o exigir: • a definição de uma verdadeira política de gestão de recursos humanos, • a utilização dos indicadores disponíveis para assegurar dotações seguras nos serviços de saúde, • a definição de sistemas de informação de Enfermagem e de Saúde integrados e interoperáveis. Mas, acima de tudo, temos procurado criar todas as condições para que seja criado um Modelo de Desenvolvimento Profissional (MDP) que potencie um processo harmonioso de desenvolvimento de competências do enfermeiro e do enfermeiro especialista, que seja mais transparente para os cidadãos e para as entidades empregadoras. A implementação de um novo MDP como garante de certificação de competências e da progressiva especialização dos enfermeiros tem vindo a ser trabalhada desde o primeiro mandato e consideramo-la relevante para a qualidade e segurança dos cuidados. O trabalho que agora se inicia com o Ministério da Saúde, quer de preparação da necessária alteração estatutária, quer de 6 Estatuto da OE – Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril, Artigo 3.º. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? VERA VIDIGAL 28 -me-ei apenas naquelas de que éramos não só autores como destinatários. Recomendámos, então, aos enfermeiros prestadores de cuidados, gestores, docentes e investigadores que, usando todas as prerrogativas conferidas pelo exercício do seu cargo: • assegurassem a implementação das tomadas de posição e de outras orientações emanadas pela Ordem, na garantia dos padrões de qualidade, na defesa de dotações seguras e de outras condições necessárias à segurança dos cuidados; • garantissem as condições para o processo de desenvolvimento de competências para o exercício autónomo dos jovens profissionais; • mantivessem com a OE um diálogo sobre as potencialidades e os constrangimentos sentidos no exercício profissional, com implicações para a segurança dos cuidados e a dignidade da profissão, assim como um diálogo sobre os projectos inovadores no terreno. aprofundamento do seu dispositivo jurídico e regulamentar, vai continuar a exigir o nosso e o vosso empenho. Porque são determinantes para a profissão, e para a sua efectiva auto-regulação, as questões relativas ao desenvolvimento profissional e à certificação de competências convocam todos aqueles que o REPE inscreve no seu Artigo 9.º 7: os enfermeiros das áreas da prestação de cuidados, da gestão, da docência, da investigação e da assessoria. Todos são convocados a, na sua esfera de intervenção, tudo fazerem no respeito pelo enquadramento científico e técnico, deontológico e legal da profissão, na salvaguarda dos princípios da responsabilidade, do respeito e da excelência que atrás referimos. Permitam-me que destaque apenas algumas das recomendações aprovadas na Assembleia Geral de Março de 2008. Deter7 REPE – Decreto-Lei n.º 161/96, de 4 de Setembro. ordem dos enfermeiros Recomendámos ainda que: • participassem na construção e no suporte ao desenvolvimento dos instrumentos necessários ao novo modelo de desenvolvimento profissional. Recordar, neste dia de trabalho sobre a nossa deontologia profissional, estas recomendações, dar-lhes-á um novo impulso. Seremos capazes de, permanentemente, recriar uma noção de dever responsável, dever que se assume como compromisso perante cada um de nós, perante aquele que cuidamos, mas também perante a sociedade. Vivemos uma época de necessidade, mas sabemos que o futuro depende de mim e de si, de cada um de nós. Depende das pessoas. O futuro está em aberto. Vamos ser capazes de nele continuar o desenvolvimento que até hoje a Enfermagem portuguesa tem sido capaz de assegurar, na defesa da qualidade dos cuidados que presta, em suma, na defesa dos direitos humanos dos portugueses. oe I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 29 Enf.º José Cerqueira Vogal do Conselho Jurisdicional Nesta comunicação, pretendemos «lançar um olhar» sobre os direitos humanos e a sua ligação à deontologia profissional de Enfermagem. Não nos propomos perseguir a longa caminhada histórica do homem pelos seus direitos, nem as raízes históricas da deontologia profissional de Enfermagem, tão antigas quanto a prática profissional de cuidados. Situemo-nos em 10 de Dezembro de 1948, dia em que foi proclamada, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento pretendeu consagrar a nível internacional um conjunto de direitos de carácter político, económico, social e cultural, no pressuposto de que o respeito pelos direitos humanos permitiria à humanidade viver num mundo mais consentâneo com a dignidade da vida, e, talvez, com os sonhos humanos de uma felicidade possível. Também a comunidade profissional de Enfermagem em Portugal, desde a publicação do Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril, diploma que aprovou o Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, está dotada de um Código Deontológico que constitui também um documento jurídico, com função normativa e vinculativa, em que os enfermeiros, individualmente, têm o dever de responder às promessas feitas e aos compromissos assumidos perante a sociedade, no respeito pela dignidade de cada pessoa. Assim, quando analisamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a relacionamos com o Código Deontológico do Enfermeiro, podemos verificar que existe uma correspondência manifesta entre a fundamentação de ambos, ou seja: o respeito pela dignidade humana. A dignidade humana é o verdadeiro pilar a partir do qual decorrem os outros princípios, valores e deveres, e que tem de estar presente, VERA VIDIGAL Os direitos humanos e o Código Deontológico do Enfermeiro de forma inequívoca, em todas as decisões e intervenções. Daí que a mesma se encontre consagrada na primeira norma do Código Deontológico: o n.º 1 do Artigo 78.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, (onde o Código Deontológico se inclui, do Artigo 78.º ao Artigo 92.º). A Declaração Universal dos Direitos Humanos dirige-se à protecção dos direitos hoje reconhecidos a todas as pessoas, independentemente do lugar onde se encontram. Do mesmo modo, o Código Deontológico do Enfermeiro assume como fundamento ético a protecção dos direitos das pessoas a quem são prestados cuidados. É o que retiramos da própria formulação de cada dever do Código, em que cada dever se destina à protecção de um ou mais direitos. Nesta perspectiva, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos estão inscritas duas considerações que nos parece importante referir: «o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis, que constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo» e também que «os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos». De igual forma, o Código Deontológico do Enfermeiro prescreve no n.º 1 do Artigo 78.º, como já vimos, que «as intervenções de Enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro»; ordem dos enfermeiros V I IXIXI ISSE SEE M MMIIN INNÁÁRRI IOO D DDEEE ÉÉÉTTTIIICA C CA A 30 Divulgação ??? isto é, e nas palavras de Margarida Vieira1, ao enfermeiro pode dizer-se: cuida de tal forma que as tuas acções preservem a dignidade e liberdade da pessoa. E, se a defesa da dignidade das pessoas envolvidas na relação de cuidado estabelecida entre a pessoa e o enfermeiro deve fazer parte do compromisso deontológico, sabemos bem que a dignidade designa realidades tão fundamentais e profundas que se torna difícil explicitá-la numa definição propriamente dita. No entanto, aprofundando a reflexão sobre este princípio, caminhamos para o conceito de ser humano como «fim em si mesmo» de Kant. Para Kant, o ser humano é um valor absoluto, fim em si, o que significa que nunca pode ser transformado em instrumento ou meio para atingir outro fim. A dignidade está, assim, ligada ao respeito pela pessoa, e significa que o ser humano VIEIRA, Margarida – Ser Enfermeiro: Da Compaixão à Proficiência. Universidade Católica Editora Unipessoal, Lda., 158 pp., ISBN 978-972-54-0195-8.p101, 2008. Salientámos que, segundo Kant, é digno algo que não tem preço. Tudo o que tem preço pode ser substituído, como é o caso daquilo que nos serve de instrumento para outra coisa, que pode efectivamente ser substituído por outra coisa. Assim, não tendo preço, e não podendo ser considerado como instrumento para outra coisa, o ser humano, tendo a sua dignidade, é um fim em si. Como prestadores de cuidados, gostaríamos de acautelar que não entendemos o conceito de dignidade enclausurado em categorias empíricas, como por exemplo a racionalidade e autonomia que podem ser questionadas em situação de VERA VIDIGAL 1 é digno de respeito total. Neste sentido, a dignidade refere-se ao outro ser humano em primeiro lugar, ou seja, é o outro que deve ser respeitado por mim e por nós. No entanto, em sentido contrário, dado que eu sou um outro para o outro, a dignidade é-me também devida nesta qualidade. ordem dos enfermeiros V I XI I IS E SE MMI N I NÁÁRRI IOO DDEE ÉÉTTIIC CA A Divulgação ??? vulnerabilidade. A dignidade é uma qualidade axiológica que não admite um «mais ou menos», não se pode ter mais ou menos dignidade, como não se pode ser mais ou menos pessoa. A dignidade é própria de todos os seres humanos sem excepção, ou seja, é independente de um conjunto de características em determinados estados de vida ou condição de saúde. Aliás, neste sentido se pronunciou o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida2 na sua extensa «Reflexão ética sobre a dignidade humana», ao concluir que «todo o ser humano, por ser, é o maior valor, e este sobressai quando é mais agredido, violentado, ignorado ou negado». Assim, a dignidade ética do ser humano, entendida como exigência de respeito, está na base dos direitos inalienáveis do homem, e poderá encontrar nela fundamento necessário e suficiente para uma dimensão jurídica e deontológica da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o beneficio de lhe conferir uma visibilidade social, política e profissional. De facto, valores fundamentais como a igualdade, justiça e solidariedade, bem implícitos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, estão também plasmados em todo o articulado do Código Deontológico. Sendo assim, as intervenções autónomas e interdependentes de Enfermagem são realizadas com a «preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa e do enfermeiro», onde a igualdade, a solidariedade, a verdade e a justiça, a competência e o aperfeiçoamento profissional são valores universais a observar na relação profissional, face à responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade no respeito pelos direitos humanos e pela excelência do exercício, conforme está consagrado no Artigo 78.º do Código Deontológico do Enfermeiro. Neste itinerário a percorrer entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os deveres dos enfermeiros no respeito pelos direitos humanos consagrados no Código Deontológico, 2 CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA – Reflexão ética sobre a dignidade humana. In Documentação. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, vol. VI, 1999. 31 fazemos uma paragem obrigatória na sua melhor expressão, ou seja, no Artigo 81.º, onde o enfermeiro assume deveres relativos aos valores humanos. Consagra este artigo que o enfermeiro, no seu exercício, observa os valores humanos pelos quais se regem o indivíduo e os grupos em que se integra. Assim, no respeito pela autonomia e dignidade de cada pessoa, os enfermeiros comprometem-se a respeitar e fazer respeitar as opções políticas, culturais, morais e religiosas das pessoas ao seu cuidado e a criar condições para que possam exercer, nestas áreas, os seus direitos. De facto, numa sociedade cada vez mais plural, revela-se de particular importância o respeito pelos valores e pelas crenças individuais de cada um dos nossos clientes. É neste contexto que o enfermeiro se compromete a cuidar da pessoa sem qualquer discriminação económica, social, política, étnica ou ideológica e, ainda, a abster-se de juízos de valor sobre o comportamento da pessoa assistida, não lhe impondo os seus próprios valores no âmbito da consciência e da filosofia de vida. Ainda segundo o mesmo artigo, e tendo sempre como horizonte a liberdade e dignidade do ser humano, a deontologia obriga os enfermeiros a respeitarem os direitos específicos das pessoas em situação de especial vulnerabilidade ou seja: proteger e defender as crianças de qualquer forma de abuso; promover a independência física, psíquica e social e o autocuidado das pessoas idosas com o objectivo de melhorar a sua qualidade de vida e, ainda, colaborar activamente na reinserção social das pessoas com deficiência. Seguindo o mesmo enquadramento, propomo-nos, numa abordagem sumária, a referir alguns dos direitos humanos presentes de forma evidente nos 15 artigos do Código Deontológico do Enfermeiro (CDE). Assim, é porque a pessoa tem direito à protecção dos seus direitos e a ser cuidada sem discriminação que o enfermeiro assume o dever de observar os valores humanos e de proteger os direitos da pessoa, conforme consagrado no Artigo 81.º do CDE – (Dos valores humanos). ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? VERA VIDIGAL 32 É porque a pessoa tem direito à confidencialidade e à protecção da vida privada que o enfermeiro assume dever de sigilo, conforme consagrado no Artigo 85.º do CDE – (Do dever de sigilo). É porque a pessoa tem direito à intimidade que o enfermeiro assume o dever de proteger os sentimentos de pudor e interioridade, conforme consagrado no Artigo 86.º do CDE – (Do respeito pela intimidade). É porque a pessoa tem direito ao respeito pela dignidade em fim de vida, que o enfermeiro assume o dever de defender e promover o direito do doente à escolha do local e das pessoas que deseja que o acompanhem neste acontecimento universal da vida humana, conforme está consagrado no Artigo 87.º do CDE – (Do respeito pelo doente terminal). A deontologia profissional constitui-se como um conjunto de normas, alicerçadas em princípios da ética da Enfermagem, que procura definir modos de agir bons, no respeito pelos projectos de saúde de cada um. Assim, na procura dos fundamentos éticos para os deveres profissionais do enfermeiro, encontramos nos direitos humanos uma base essencial, porquanto constituem a esfera nuclear de protecção de cada pessoa a quem prestamos cuidados. É porque a pessoa tem direito à vida, à integridade física e à igualdade que o enfermeiro assume o dever de respeitar a integridade biopsicossocial, cultural e espiritual da pessoa e de participar nos esforços profissionais para valorizar a vida e a qualidade de vida, conforme está consagrado no Artigo 82.º do CDE – (Dos direitos à vida e à qualidade de vida). É porque a pessoa tem direito a receber cuidados em tempo útil que o enfermeiro assume o dever de prestar cuidados e assegurar a continuidade dos cuidados, conforme consagrado no Artigo 83.º do CDE – (Do direito ao cuidado). É porque a pessoa tem direito à autodeterminação que o enfermeiro assume o dever de informar e esclarecer quanto aos cuidados de Enfermagem, conforme consagrado no Artigo 84.º do CDE – (Do dever de informação). ordem dos enfermeiros Neste sentido, o agir profissional de Enfermagem deve não apenas respeitar, mas promover e defender, os direitos de cada pessoa e, nesta medida, contribuímos para a promoção e a defesa dos direitos humanos. Para terminar, gostaríamos de referir que, por imposição do tema proposto, foi dada ênfase aos direitos humanos e ao compromisso deontológico do enfermeiro. No entanto, cada um de nós, como pessoa e profissional, tem também direitos e deveres que se expressam de forma correlativa. E a sociedade tem tendência a olhar-nos como «profissionais corajosos», «pessoas especiais». Contudo, como afirma Wanda Horta, somos tão-somente «gente que cuida de gente» e, como tal, temos de cuidar bem de nós próprios, para posteriormente cuidarmos bem dos outros. oe I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? 33 Enf.ª Lucília Nunes Presidente do Conselho de Enfermagem No contexto do IX Seminário de Ética, foi-me proposto estruturar os fundamentos éticos da deontologia profissional do enfermeiro. Pode ser interessante, durante um espaço de tempo reflexivo, fazer convosco o caminho de indagar acerca dos princípios em que se ancora a práxis do enfermeiro. Por isso, não pretendo abordar profundamente os deveres ou o normativo deontológico. Vamos centrar-nos no campo que Ricoeur designou por «ética anterior», pois sem esta ética, a deontologia seria como uma casa sem alicerces... I. Da deontologia A moral é atravessada pela norma – se tem «lei», «regra», é desta esfera; parâmetros que indicam o que se pode ou não pode fazer. Naturalmente, não há regras para tudo... Ou melhor, apesar de as normas existentes (jurídicas, morais...), muitas vezes ficamos na dúvida sobre como agir recta e correctamente. Isto porque ou não existem normas que se apliquem concretamente, ou não as conhecemos, ou não as sabemos interpretar bem. No dia-a-dia, debatemo-nos frequentemente com problemas que carecem de que formulemos juízo ou, se preferirem, julgamento moral, e para os quais pode não existir uma norma concreta. Felizmente, diria. Até porque a realidade não se amansa nem se aquieta sob as regras. O acto que realizamos, consciente e voluntário, supõe a participação livre de quem age – e quando se adere às normas, é, ainda assim, da liberdade de cada um escolher seguir a regra. Uma convicção íntima ou pessoal há-de presidir aos nossos actos, diremos assim, até porque não poderia tratar-se de uma adopção mecânica, impessoal, ou de uma imposição das normas. Todos os códigos (de direito civil, de direito penal, de direito canónico, de trânsito, deontológicos) ditam normas que prescrevem deveres, estabelecem regras que devem ser obedecidas. Estes códigos têm todos em comum uma origem – lugar e data, além dos autores – e um fundamento ético. A sua génese, na organização social e política, tem um sentido próprio. E, fundamentalmente, delimitam, configuram. Foi Jeremy Bentham que usou, pela primeira vez, a palavra deontologia, no título de um tratado de moral publicado postumamente em 1834: Deontology or the Science of Morality. Etimologicamente, é o discurso ou tratado acerca daquilo que se deve fazer. Assim, a deontologia toma como objecto do seu discurso o «a fazer», aquilo que, por dever, se nos impõe como tarefa indeclinável, quer enquanto projecto, quer enquanto realização concreta. Em formato simples, a deontologia é o estudo ou tratado dos deveres próprios de uma determinada situação social ou, no nosso caso, profissional. Compreensivelmente, pressupõe uma teoria geral da acção humana, isto é, uma ética geral e uma teoria especial de acordo com a(s) tarefa(s) humana(s) em questão. Associando as duas ideias, podemos seguir a concepção de que a deontologia profissional seja «o conjunto de normas jurídicas, cuja maioria tem conteúdo ético e que regulam o exercício de uma profissão»1. 1 GUEDES DA COSTA, Orlando – Direito Profissional do Advogado. Coimbra: Almedina, 2003. ordem dos enfermeiros VERA VIDIGAL Fundamentos éticos da deontologia profissional I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 34 Divulgação ??? De onde, uma deontologia profissional trata de garantir o bom exercício da profissão, alicerçando-se, por um lado, nos princípios éticos e, por outro, na sua própria regulamentação – ou seja, na auto-regulação que decorre da formulação e defesa de um padrão de competência. Por isso, a auto-regulação profissional tem sido perspectivada como o sentido último da responsabilidade dos profissionais. encontram presentes, mesmo quando mais difusos ou mais ideológicos – diria que uma espécie de cristalização dos princípios e valores pensados sobre a experiência ética de ser enfermeiro. Por isso, a deontologia é vista como algo construído a partir do interior da profissão, resultante duma reflexão própria sobre a prática, e não como algo imposto de fora, por exemplo, pelo Estado. Notemos que o ético não é algo estranho a nós – envolve um juízo e determina, em si, uma escolha, uma direcção para agir. E a escolha não é fruto da arbitrariedade, antes se constituindo como expressão máxima de um conjunto de valores. A Enfermagem é uma profissão que tem uma finalidade moral e ao enfermeiro é exigível que regule a sua actividade por uma ética profissional. Vejamos que, de acordo com o enquadramento conceptual, afirmamos que o «exercício profissional da Enfermagem centra-se na relação interpessoal de um enfermeiro e uma pessoa ou de um enfermeiro e um grupo de pessoas (família ou comunidades).»2 Se pensarmos que a deontologia visa disciplinar uma actividade profissional, estabelecer regras direccionadas para a vivência profissional, o pressuposto é que a ética encerra em si a ideia do valor pelo qual se age e que é fundamental, tanto do ponto de vista interno – da concepção própria – como externo – na relação social e com o colectivo. Fechamos mais o círculo, se quiserem, colocando a deontologia como dimensão ética aplicada do agir profissional. II. Da procura dos princípios éticos na ancoragem da deontologia A Enfermagem é uma profissão, e, como mostraram muitos estudos, a definição de um conjunto de normas e valores próprios constituiu uma dimensão essencial do processo de profissionalização. Entendemos, neste contexto, profissão como uma construção social e histórica, através da qual foram sendo incorporadas, em momentos diferentes e com intensidades diferentes, diversas componentes, entre as quais podemos destacar um processo de socialização em determinados valores, sistematizado, por vezes, sob a forma de um código. No tempo e na estruturação como profissão, os enfermeiros foram identificando os princípios e os valores, que sempre se ordem dos enfermeiros Partindo da premissa que, quer o enfermeiro, quer as pessoas clientes dos cuidados de Enfermagem possuem quadros de valores, crenças e desejos, decorre que o enfermeiro se distingue pela formação e experiência – e, de modo central para o que aqui nos interessa – por respeitar os outros numa perspectiva multicultural. Assim, evidencia-se o princípio humanista de respeito integral pelas pessoas. Mais afirmamos que a «relação terapêutica promovida no âmbito do exercício profissional de Enfermagem caracteriza-se pela parceria estabelecida com o cliente, no respeito pelas suas capacidades e na valorização do seu papel». Por isso afirmamos que os «cuidados de Enfermagem tomam por foco de atenção a promoção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue»3. Posto isto, regressemos à demanda da finalidade. Quais os fins que a Enfermagem persegue? O que queremos? Com a pessoa, ao longo de todo o ciclo vital, (1) «prevenir a doença e promover os processos de readaptação», (2) «promover a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a máxima independência na realização das actividades da vida, 2 3 ORDEM DOS ENFERMEIROS – Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros, 2001. Idem, p. 8. I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? considerando a adaptação funcional aos défices e a adaptação a múltiplos factores»4. Premissas O enfermeiro e as pessoas possuem quadros de valores, crenças e desejos. Perspectiva humanista de respeito integral pelas pessoas. Caracterização da profissão Finalidades da acção Centra-se na relação interpessoal entre um enfermeiro e uma pessoa ou um grupo de pessoas. Relação terapêutica caracteriza-se pela parceria estabelecida com o cliente, no respeito pelas suas capacidades e na valorização do seu papel. A procura do interesse e do bem-estar do outro. Cuidados de Enfermagem tomam por foco de atenção a promoção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue. Podemos agora recentrar na preocupação com as implicações éticas do ser enfermeiro. Existe uma dimensão ética deste agir, própria, que nos leva a firmar a existência de uma ética de Enfermagem. Quais os fundamentos dessa ética? E, antes, qual a noção de fundamento? A noção filosófica de princípio e de fundamento Na linguagem clássica falava-se de princípio – Aristóteles atribuiu à «arqué» várias acepções, sintetizadas por Comparato5: (1) o sentido do começo de uma linha ou de uma estrada, o ponto de partida de um movimento – físico ou intelectual; (2) o elemento primeiro e imanente do futuro, ou seja, algo que evolui ou se desenvolve – podem ser exemplo as fundações de uma casa; (3) a causa primitiva e não imanente da geração ou de uma acção – portanto, os pais em relação aos filhos ou um insulto em relação a um combate; 4 5 Idem, p. 9. Cf. COMPARATO, Fábio Konder – Fundamento dos Direitos Humanos. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de S. Paulo. Disponível em http://www.iea. usp.br/artigos (20. Agosto, 17:50). Sd. 35 (4) a palavra «princípio» também se usa para designar a pessoa, cuja vontade é causa de movimento ou de transformação; (5) e, ainda, é princípio, numa demonstração lógica, as premissas em relação à conclusão. Foi preciso chegar a Kant para o desenvolvimento da noção de princípio para fundamento. Na «Fundamentação da Metafísica dos Costumes»6, abordando com profundidade o problema do imperativo moral, irredutível a qualquer outro fundamento anterior, Kant quer encontrar o último fundamento da moralidade, a que viria a chamar «imperativo categórico», isto é, um princípio que é fundamento último para todas as acções humanas. Na sua obra, «A Religião nos Limites da Simples Razão»7, a noção de princípio ético, no sentido de razão justificativa, foi inteiramente substituída pela noção de fundamento. Enquanto na teoria geral do Direito, a noção de fundamento diz respeito à validade das normas jurídicas e à fonte de irradiação dos efeitos decorrentes, na filosofia moral procuramos o princípio ético, que justifica (se formos kantianos) a conduta humana. Uma das tendências marcantes do pensamento de hoje é a convicção generalizada de que o verdadeiro fundamento não deve ser procurado na esfera da revelação religiosa nem numa abstracção metafísica como essência imutável de todos os seres humanos. Se o direito, por exemplo, é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que o fundamento não é outro senão o próprio homem, considerado na sua dignidade substancial de pessoa. 6 7 KANT – Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1992. KANT – A Religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992. Kant compreende que a religião não é um objecto do conhecimento teórico e sim da disposição prática subjectiva, o que pressupõe, no seu ponto de partida, que a moral conduz à religião e não o contrário. A religião racional tem como princípio a formação moral do indivíduo, que torna sensível a percepção da lei moral para o homem, que por sua vez, procura dentro de si um princípio subjectivo que possa orientá-lo na formulação de máximas morais para a sua vida. Verdadeiramente, pode dizer-se que a vontade é livre se as leis da acção são dadas pelo próprio sujeito da acção, de forma autónoma. Ou seja, a famosa máxima do «pensar por si mesmo». ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 36 Divulgação ??? Como é que passamos para a ideia de dignidade humana? Para responder, precisamos de tomar posição sobre a essência do ser humano. Ou seja, temos de formular uma antropologia filosófica, pois é a concepção que temos do ser humano que orienta as outras formulações. Já nos filósofos antigos se destacou a concepção do ser humano, aliás, a pergunta «O que é o homem?» é fundante da reflexão filosófica. Diria Protágoras que «o homem é a medida de todas as coisas». Afirmava Plotino que «o lugar do homem é entre os deuses e as feras». Sem dúvida que a especificidade da condição humana se foi modificando, tendo, por isso mesmo, um carácter histórico. Digo hoje que uma das características essenciais do homem – e não estou a escamotear a racionalidade – é a razão axiológica, ou seja, a nossa capacidade de apreciação de valores (éticos, estéticos, religiosos, políticos...) e de livre escolha em relação a eles. E se não é possível fundar a ética com recursos a princípios puramente formais, pois que o suposto da ética é a Pessoa humana, na sua racionalidade e afectividade, pode fundar-se nas preferências axiológicas. O homem é um ser dotado de vontade, ou seja, da capacidade de agir livremente. E voltamos a chegar a Kant, naturalmente, com o «homem como fim em si mesmo». E ao imperativo categórico que ouvimos já muitas vezes – «age de modo a tratar a humanidade, não só na tua pessoa mas na de todos, como um fim e jamais como um meio». Ponto assente, então. Do ponto de vista filosófico, «princípio» remete-nos para o início, para a ausência de algo anterior, pois que ele mesmo inicia. Causa primeira, fundamento de que derivam outras proposições, com nexo lógico, de consequência ou de relação subordinada. Pensando numa teoria da acção, podemos assim retomar a ideia do agir em que «agere» significa tanto comandar como desencadear um processo, imprimir um movimento. O princípio instala-se como «o começo», inspirador e fundador do que se sucede. O princípio, na realidade, não obriga nem impõe – ou não fosse ele do domínio da ética. Mas o princípio é gerador da norma, ordem dos enfermeiros que enquanto enunciado de aplicação obrigatória, já saiu da esfera da ética para a do direito. Entendendo o princípio como requerido pela ética, a norma como sendo do campo do direito, a sabedoria prática tem a ambição de conciliar ambos, em situação concreta, singular, de conflito e incerteza. Claramente, coloco aqui a concepção de Ricoeur, de que o horizonte é de procura de uma vida boa, com e para com os outros, em instituições justas. Assim, quem formula os princípios são as pessoas, na assunção de que se possa viver bem e uma vida boa. A ideia directriz é que os princípios fundamentam os procedimentos e que estes viabilizam a construção de uma sociedade livre e equitativa. Então, que princípios estarão colocados, cuja finalidade da acção do enfermeiro possa ser a procura do bem-estar e do que cada um entende como «qualidade de vida»? Princípios do agir próprio do enfermeiro O primeiro que pode parecer-nos relevante é o facto de tomarmos conta da vida. Poderíamos pensar num princípio de protecção da vida, e não de direito à vida porque este, sendo um direito, seria ele mesmo fundamentado num princípio ético. Princípio este que proclamaria o valor da vida e a exigência ética da protecção da vida. Sendo assim, percebemos que proteger a vida pode ser feito de várias formas. Protejo a vida quando actuo no sentido de prevenir que ela esteja em risco ou venha a poder ser colocada em causa. Protejo a vida quando ela está ameaçada e intervenho com cuidados de reparação. Protejo a vida quando coloco taipais de protecção em redor de andaimes, para evitar que quem vai a passar se magoe. E sigo o mesmo princípio quando lavo as mãos ou quando asseguro o bom funcionamento dos equipamentos. Este eventual princípio de protecção da vida tem um amplo espectro de aplicações... Na nossa área de acção, tanto justifica a protecção ou promoção da saúde como justifica a intervenção curativa e os tratamentos. De que vida se trata? Do ponto de I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? vista ético, da vida humana. Que tem, ela mesma, condições de ambiente para existir. Por isso, protecção da vida humana. Mas também protecção do ambiente, dos meios necessários à vida. É para proteger a vida que se deve proteger a água, por exemplo. Portanto, não será difícil consensualizar que este não seria um princípio específico. A dimensão que o torna mais específico pode ser pensá-lo na área da saúde? Mas não poderemos trocar por protecção da saúde – não apenas porque é hoje considerada um direito civilizacional, o que implica que a sua salvaguarda é responsabilidade da sociedade e das suas instituições democráticas, como, no nosso caso, é assumido como direito constitucional. Aliás, o direito à saúde literalmente entendido seria um estranho e curioso direito, que ninguém poderia assegurar e, portanto, ninguém poderia ter como dever. Por isso, o direito reporta a cuidados de saúde com o correlativo dever de desenvolver esforços tendo em vista a recuperação da saúde, a prevenção da doença ou a reabilitação e reinserção das pessoas. Realmente, não se consegue assegurar o (desejável) fim de garantir um determinado nível de saúde e existem inúmeros factores que aqui intervêm (sejam eles pessoais, sociais, culturais ou organizacionais). O direito a cuidados de saúde é uma exigência primária do direito à vida. Podemos pensar que temos por valores finais a preservação da vida e a diminuição do sofrimento. Estes fins operacionalizam-se com meios políticos, isto é, a protecção da saúde como um direito de todo o cidadão, considerando que toda a vida é importante em si, desagua na razão de dever do Estado. É, hoje, um direito democrático dos cidadãos que se estabeleceu a partir de uma racionalidade comunicativa, como diria Habermas, na qual a razão se constitui, fundada no diálogo, na argumentação e, portanto, no reconhecimento do outro como sujeito ético e político. Por detrás da implementação prática das políticas públicas ressentem-se conflitos ético-políticos seja pelas pressões de uma 37 ética mais utilitarista, como defendem alguns, ou de uma ética da «responsabilidade» como definia Weber, que dá mais ênfase aos resultados a serem obtidos. Portanto, reconhecemos que a protecção da saúde não basta como princípio, pois tomar conta da vida humana acompanha para lá dos limiares onde a protecção da saúde é possível e acompanha nos processos de morrer. Temos de recuar um pouco mais e equacionar um princípio ético, que se coloque antes das normas e das leis, e que estas dele derivem. Os fins são o que se visa, o que se quer alcançar como resultado final. Os princípios serão de onde se parte, fornecem os critérios que orientam as decisões que conduzem aos fins. Não será, então, o bem-estar que se pode colocar como princípio. Aquilo que se visa, que se tem como fim, não pode ser princípio... A Enfermagem tem como finalidade o bem-estar das pessoas, com conforto, sem ou com o menor sofrimento possível, com capacitação do outro para o autocuidado. É porque somos pessoas que a nossa vida não é meramente biológica. E o facto de nascermos pessoas confere, a cada um, dignidade. A dignidade é o princípio e assumir-se-á como valor, ao constituir-se como critério das decisões. O princípio da dignidade humana é um princípio ético que tem repercussões na deontologia como tem no direito ou na moral. E porque a dignidade diz respeito ao ser humano, nela se ancoram a autonomia, o respeito pelas escolhas de cada um, a tolerância activa face às diferenças, o respeito pelas opiniões e convicções pessoais. E o princípio da dignidade humana pertence, se quisermos, à ética anterior. É, aliás, reconhecido, no Código Deontológico do Enfermeiro, como princípio geral, pois «as intervenções de Enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro»8. 8 DL 104/98, SECÇÃO II, Código Deontológico do Enfermeiro, Artigo 78.º, n.º1. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 38 Princípio Ética anterior Dignidade humana Divulgação ??? Decorrentes Travessia pela norma Autonomia. Respeito pelas escolhas de cada um, opiniões e convicções pessoais. Tolerância activa face às diferenças. «As intervenções de Enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro» Princípio Ética anterior Fundamento ético do agir Autonomia. ??? Dignidade humana Diria que o cuidado humano é o eixo que permite que seres humanos percebam e se reconheçam uns aos outros, pois existe um compromisso, uma responsabilidade profissional. O cuidado como uma forma de relacionamento com o outro ser humano e com o mundo, enfim, como uma forma de viver plenamente. Cuidado humano dirigido ao tomar conta da vida. O cuidado emerge quando nos preocupamos com alguém, quando nos responsabilizamos, nos fazemos profissionalmente presentes. Funda-se num interesse pelo bem-estar do outro, pelo despender atenção ao outro. Bem vistas as coisas, o cuidado pode bem ser um imperativo moral das profissões de saúde. Temos então o cuidado humano, que se assume como respeitador da pluralidade e da diversidade. Da multiculturalidade. Portanto, o cuidado não ignora o outro, nem a sua autonomia, nem o seu desenvolvimento. Não substitui o outro quando ele precisa de apoio parcial. Promove o desenvolvimento do outro e a optimização das suas capacidades. Se imitássemos Kant e construíssemos um imperativo, diríamos: «Age sempre de tal maneira que a tua acção de cuidado seja protectora da vida e da dignidade humanas». Respeito pelas escolhas de cada um, opiniões e convicções pessoais. Tolerância activa face às diferenças. Fundamento ético do agir do enfeImeiro «As intervenções de Enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro» O cuidado humano dirigido ao tomar conta da vida «Age sempre de tal maneira que a tua acção de cuidado seja protectora da vida e da dignidade humanas.» Como é que, atravessando a norma, se transforma em princípio da ética aplicada à acção do enfermeiro? O modo específico como o enfermeiro operacionaliza este princípio? ordem dos enfermeiros Decorrentes Travessia pela norma Existe uma relação anunciada entre a preocupação da defesa da dignidade e da liberdade. Não tomemos, portanto, uma pela outra. Seres humanos igualmente dignos e livres, eis quem são os destinatários dos cuidados do enfermeiro. Mas colocados numa posição assimétrica, uns em relação aos outros. Se pensarmos num eixo de dar e receber, há uma clara assimetria na relação entre o enfermeiro e a pessoa de quem ele cuida. Como é que se equilibra esta assimetria? Já lá iremos.... Vejamos quais são os valores universais9 a observar na relação profissional. Trata-se de um conjunto. Podia aqui evocar a formulação da teoria dos conjuntos e a concepção abstracta de que o que os torna conjunto é terem uma propriedade comum. Ao caso, terem sido formulados como os valores universais da práxis do enfermeiro. Quatro pares e um isolado. Isolada está a igualdade, que aparece sozinha. Depois, quatro pares: «a competência e o aperfeiçoamento profissional», «o altruísmo e a solidariedade», «a verdade e a justiça» e a «liberdade responsável», sendo que este tem um descritivo associado – «com a capacidade de escolha, tendo em atenção o bem comum». Tomo a liberdade de os organizar em torno de eixos ligeiramente diversos: 9 DL 104/98, SECÇÃO II, Código Deontológico do Enfermeiro, Artigo 78.º, n.º 2. I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? • inerentes ao papel assumido perante a sociedade – a liberdade responsável; a verdade e a justiça; • centrados no outro – a igualdade; o altruísmo e a solidariedade; • virados para o exercício da profissão – a competência e o aperfeiçoamento profissional. Porquê assim? Os valores valem como critérios orientadores da decisão. E a própria actividade dos enfermeiros tem preconizado três princípios orientadores da acção, a saber: a) a responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade; b) o respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes; c) a excelência do exercício na profissão em geral e na relação com outros profissionais. E como estes são princípios da ética aplicada, da acção, posso pensar que existem princípios éticos anteriores, em que estes se ancoram e fundamentam. Resta identificar quais são... Valores universais na relação profissional igualdade altruísmo e solidariedade liberdade responsável verdade e justiça competência e aperfeiçoamento profissional Travessia pela norma e ligação aos princípios orientadores Fundamentos éticos centrados no outro (respeito pelos direitos humanos) ?? inerentes ao papel assumido perante a sociedade (responsabilidade...) ?? virados para o exercício (excelência do exercício) 39 estabelecemos no dia-a-dia. A assunção de um pacto decorre de um contacto estabelecido – habitualmente, por parte das pessoas que recorrem aos enfermeiros (directamente ou indirectamente, através dos serviços de saúde) podendo igualmente acontecer que seja o enfermeiro a estabelecer o contacto (em situações de saúde comunitária, saúde escolar ou no trabalho, entre outros). E em cada contexto – de acordo com modalidades diferentes – o pacto de cuidado reveste-se de formas diversas, podendo ir do serviço público ao privado, ao regime liberal e até ao voluntariado. Julgo o pacto posterior ao compromisso, pois é necessário que o enfermeiro seja enfermeiro (isto é, tenha um título profissional) e tenha assumido a responsabilidade de prestar cuidados de Enfermagem, de acordo com determinados padrões, previamente a estar em situação efectiva de contrato ou de prestação de serviço. Assim, a precedência é claramente do compromisso sobre o pacto. Comprometemo-nos a cuidar profissionalmente das pessoas, em termos abstractos. É requisito deste compromisso que exista um perfil de competências – a aquisição de competências na formação inicial é enriquecida e desenvolvida, no tempo e nos contextos de prestação de cuidados, através da reflexão sobre a acção. Reorganizando, a Enfermagem tem como essência e especificidade o cuidado ao ser humano na área da saúde. ?? Vejamos um a um. A responsabilidade é inerente ao papel assumido perante a sociedade – portanto, decorre – é consequente – de um compromisso profissional de cuidado humano, que é, em meu entender, anterior ao pacto de cuidado, concreto, que Assim se entende que o foco de atenção dos cuidados seja «a promoção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue» relevando-se que, ao longo de todo o ciclo vital, se procura «prevenir a doença e promover os processos de readaptação após a doença, procura-se a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a máxima independência na realização das actividades da vida diária». Por isso se desenvolvem actividades de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, actuando em equipas ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 40 Divulgação ??? multiprofissionais a todos os níveis de organização dos serviços de saúde. Valores universais na relação profissional igualdade altruísmo e solidariedade liberdade responsável Travessia pela norma e ligação aos princípios orientadores ?? Fundamentos éticos centrados no outro (respeito pelos direitos humanos) verdade e justiça inerentes ao papel assumido perante a sociedade (responsabilidade...) competência e aperfeiçoamento profissional virados para o exercício (excelência do exercício) Compromisso profissional de cuidado humano Se quisermos, o compromisso profissional de cuidado é o princípio que suporta a responsabilidade e de onde ela deriva. Vejamos o segundo, neste processo de «andarmos para trás». O respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes é princípio orientador da actividade. Vale perguntar o que se entende por direitos humanos. Enquanto reivindicação moral, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como bem realçou Norberto Bobbio, não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado mas um constructo, uma invenção humana, em constante processo de construção e de reconstrução. A concepção contemporânea dos direitos humanos começou no pós-guerra, como resposta às atrocidades e horrores cometidos pelo regime nazi. Estamos a falar do envio de 18 milhões de pessoas para campos de extermínio, da morte de 11 milhões, seis dos quais judeus. E o conhecimento dos factos provocou o esforço de reconstrução dos direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. O maior marco desse esforço data de 1948, 10 de Dezembro. Inaugura a concepção da universalidade e da indivisibilidade dos ordem dos enfermeiros direitos humanos. Universalidade, porque a convicção é de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade, porque há uma visão integral dos direitos, sejam eles civis e políticos ou sociais, económicos e culturais. Se a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) afirma que «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos» é justamente porque os homens não são iguais por natureza – se assim fosse, o conteúdo dessa declaração seria, no mínimo, supérflua. A esfera pública caracteriza-se pela igualdade – por natureza, os homens não são iguais; só o acto político pode gerar igualdade. A liberdade e a igualdade não são dados de facto, existentes, mas valores a defender. Nesta perspectiva, a DUDH é um instrumento político da igualdade e, mais ainda, há quem afirme que forneceu o lastro axiológico e a unidade valorativa a um campo do direito. Disse Nobbio que os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada constituição incorpora declarações de direito) para encontrarem a sua plena realização como direitos positivos universais. O sistema internacional de protecção dos direitos humanos é integrado por tratados internacionais de protecção que reflectem, sobretudo, a consciência ética contemporânea, partilhada entre os Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de parâmetros mínimos de protecção (o «mínimo ético irredutível»). Para quem assume uma postura crítica diante do mundo da produção intelectual sobre os direitos humanos, dois aspectos chamam a atenção: (1) a enorme dimensão quantitativa e (2) o carácter predominantemente pacífico da evolução conceptual… I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? «Nascidos como resposta política contingente e concreta a um acontecimento monstruoso, impensável a priori, tal como o Holocausto, o seu desenvolvimento teórico esteve marcado por um extraordinário consenso universal baseado no repúdio mundial do plano insano de aniquilação em massa de um povo. O enorme consenso político promoveu amplo consenso teórico e este, objectivamente, o empobrecimento intelectual do seu desenvolvimento.»10 Paradoxalmente, enquanto cresce o carácter conflituoso da política em ternos críticos de direitos humanos, ou seja, enquanto se multiplicam as violações dos direitos mais elementares, expande-se incessantemente a lista de direitos humanos referentes ao desenvolvimento económico e social. «É verdade que o maior acolhimento dos direitos humanos contribui para a paz social. No entanto, não é menos verdade que a paz social e a estabilidade democrática são o único ambiente onde os direitos humanos podem desenvolver-se de forma genuína e sustentável»11. Mas se, numa primeira fase, a protecção dos direitos humanos foi marcada pela tónica da protecção geral, com base na igualdade formal, percebe-se que é insuficiente considerar a pessoa de forma genérica, geral e abstracta. 41 categorias vulneráveis e devem ser vistas nas especificidades e particularidades da sua condição social. Como afirma Boaventura, «temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza»13. Por isso, uma dupla necessidade: de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza desigualdades. Ao lado do direito à igualdade surge o direito à diferença. Qual o fundamento ético? O respeito à diferença e à diversidade. O facto de a pessoa ter dignidade própria é uma convicção relativamente recente, no percurso histórico-filosófico da humanidade – quando Kant, em 1785, escreveu que as pessoas têm valor absoluto, e devem ser consideradas «sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio»14, estava a definir o que faz com que o ser humano seja dotado de dignidade especial. É também superconhecida a sua afirmação de que «No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade.»15 Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito na sua particularidade. Assim, determinados sujeitos de direitos ou determinadas violações de direitos exigem uma resposta específica e diferenciada. «Ao processo de expansão dos direitos humanos soma-se o processo de especificação de sujeitos de direitos.»12 É neste cenário que as mulheres, as crianças, as pessoas portadoras de deficiência, os migrantes, são consideradas E esta dignidade da pessoa é o núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais. 10 Todavia, se trouxe de Kant a ideia de respeito – da dignidade e da pessoa como fim-em-si-mesmo – iria a Hegel buscar a ideia 11 12 MÉNDEZ, Emilio Garcia – Origem, sentido e futuro dos direitos humanos: reflexões para uma nova agenda. In SUR Revista Internacional de Direitos Humanos. Ano 1, n.º 1, Rede Universitária de direitos humanos, pp. 7- 20. (cit. p. 7), 1.º semestre 2004. MÉNDEZ, idem, p. 16. PIOVESAN, Flávia – Direitos sociais, económicos e culturais e direitos civis e políticos. In SUR Revista Internacional de Direitos Humanos. Ano 1, n.º 1, Rede Universitária de direitos humanos, pp. 21-47 (cit. p. 29), 1.º semestre 2004. 13 14 15 SANTOS, Boaventura de Sousa – Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In Reconhecer para Libertar: Os Caminhos do Cosmopolitismo Cultural. Rio de janeiro: Civilização,. p. 458, 2003. Kant, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. (1785) Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70,. p. 69, 1986. Idem, p. 77. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 42 Divulgação ??? de reconhecimento16. Talvez por ser mais básica, mas sobretudo por implicar a relação com o olhar do outro. O significado de «reconhecimento» remonta à filosofia de Hegel que usou o conceito para descrever a estrutura interna da relação ética entre dois sujeitos. Para o jovem Hegel (à época), o processo de formação da identidade tem como pressuposto o reconhecimento recíproco entre sujeitos, de modo que somente quando um indivíduo vê confirmada a sua autonomia pelos demais é que pode chegar a uma compreensão completa de si mesmo como sujeito social. Em termos semelhantes, sugere Charles Taylor que a identidade é construída dialogicamente, a partir da relação do sujeito com os demais membros da sociedade de que faz parte. A dignidade é, realmente, efeito do reconhecimento recíproco que fazemos uns aos outros. E tendo a noção de que o ser humano é capaz de se elevar acima das circunstâncias imediatas do seu ambiente para colocar questões sobre o sentido do real e da vida. Ademais, nós não conferimos dignidade às pessoas – fazemos o reconhecimento da dignidade. E é este reconhecimento da dignidade que constitui, assim o afirma o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, «o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo». o caminho percorrido com a pessoa. As modalidades de ajuda têm de ser ajustadas a cada um, de acordo com as suas necessidades. Este caminho é o de tornar autónomo tanto quanto seja possível, no sentido de ajudar a prover a força, a vontade ou o saber, daí que releve a expressão do autocuidado. O trabalho do enfermeiro desenvolve-se no sentido de se tornar dispensável, de que o outro deixe de necessitar da ajuda por se bastar a si mesmo. A finalidade é, claramente, autonomizar, no sentido do autocuidado, reconhecendo no outro a condição de pessoa, ser em projecto e em desenvolvimento. Entendo, portanto, que o reconhecimento do outro é fundamento para o princípio orientador do respeito pelos direitos humanos, do mesmo modo que o compromisso de cuidado é fundamento para a responsabilidade profissional. Valores universais na relação profissional igualdade altruísmo e solidariedade liberdade responsável Posta esta divagação, voltemos ao nosso assunto. Ou seja, a identificação do fundamento ético do princípio orientador da actividade, que é o respeito pelos direitos humanos. Agora, parece muito mais fácil responder... O fundamento é o reconhecimento do outro. Um cuidado profissional que pode – tem de ter a capacidade de – realizar uma trajectória com diferentes modalidades: quer seja em substituir, ou seja, fazer por alguém; em ajudar, num fazer com a pessoa; em orientar, em termos de ensinar para; em encaminhar para outros recursos, dirigir para; e em avaliar 16 Vidé Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Reflexão ética sobre a dignidade humana. Documento de Trabalho. 26/ CNECV/ 1999. Disponível (20.08.2006, 16h) em http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres/C718779C-F74743D0-A3D0-67F394F937EC/0/P026DignidadeHumana.pdf. ordem dos enfermeiros verdade e justiça competência e aperfeiçoamento profissional Travessia pela norma e ligação aos princípios orientadores ?? Fundamentos éticos centrados no outro (respeito pelos direitos humanos) Reconhecimento do outro como pessoa inerentes ao papel assumido perante a sociedade (responsabilidade...) Compromisso de cuidado virados para o exercício (excelência do exercício) ?? Vamos ao terceiro princípio orientador da actividade, a excelência do exercício na profissão em geral e na relação com outros. A excelência do exercício remete-nos para um dever que é esperado e que o conteúdo profissional exige, de carácter fiduciário, ou seja, assente na confiança. Entendemos que a vida em sociedade, em geral, e na saúde, em particular, assenta sobre redes de confiança, que repousam sobre a crença no cumprimento I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? das promessas ou dos compromissos. Estamos perante a relação entre a obrigação profissional e a protecção da pessoa através da excelência do exercício. De base, entendemos que a excelência é uma exigência ética, antes de ser deontológica. A qualidade dos cuidados demanda níveis de realização, entrecruzados da capacidade científica, da execução técnica e da relação interpessoal. Parece-nos que, além dos aferidores profissionais (padrões de qualidade), da avaliação das práticas e da gestão do risco, a personalização do cuidado é traço universal da qualidade. De base fiduciária, estruturada a partir da confiança, a relação de cuidado prometeu-se ao nível do melhor possível ou, pelo menos, ao mínimo desejável, abaixo do qual não se cumpre o prometido e se lesa quem se confia ao cuidado. Estamos na esfera da competência ou do poder como capacidade para. No plano ético, cada um de nós é responsável pelo outro e, neste sentido, cuidador do outro. A obrigação especial dos enfermeiros mediará no sentido da persecução da excelência e da protecção das pessoas – do que nos parece resultar a relação com aferidores de excelência (comummente designados legis artis) e a valoração do respeito (próprio e do outro). Mais do que limitar-se a seguir os aferidores de excelência, a qualidade dos cuidados reporta a uma assistência qualificada à pessoa, detectando e reduzindo os factores que possam despersonalizar, desrespeitar. Por isso, ergue-se a questão das condições exteriores (por exemplo, os contextos e recursos do exercício profissional nos locais concretos), assim como a da diferença do que a qualidade representa para cada um. A procura da qualidade é a demanda da excelência em cada acto profissional, parecendo-nos que se distancia da auto-complacência tanto quanto de uma satisfação extática com o já alcançado. O cuidado na acção decorre da obrigação profissional assumida para agir de determinado modo. Os adquiridos são uma espécie de pedras, de degraus, sobre os quais não é suposto que se fique, mas de onde se prossiga para o nível seguinte. 43 Portanto, do desenvolvimento da capacidade... ou melhor, da competência. Valores universais na relação profissional igualdade altruísmo e solidariedade liberdade responsável verdade e justiça competência e aperfeiçoamento profissional Travessia pela norma e ligação aos princípios orientadores ?? Fundamentos éticos centrados no outro (respeito pelos direitos humanos) Reconhecimento do outro como pessoa inerentes ao papel assumido perante a sociedade (responsabilidade...) Compromisso de cuidado virados para o exercício (excelência do exercício) Competência – poder enquanto capacidade Façamos agora a prova final – «a prova dos nove» – do sentido destes fundamentos. Procurando articulá-los e verificar se não se contradiz a ideia de princípio fundante. Síntese dos fundamentos éticos da deontologia A cada ser humano incumbe a ética tarefa de desenvolver a sua potencialidade, de auxiliar o outro neste sentido de persecução dos projectos de uma vida boa, relevando igualmente a obrigação de participação no mundo. Diria Ricoeur, que se trata de procurar «o sentido de uma vida boa, com e para com os outros, em instituições justas». A cada enfermeiro incumbe a tarefa de agir no sentido de se desenvolver, de prestar um cuidado equitativo e excelente, que se reflecte na melhoria na qualidade de vida da pessoa. (1) Respeitar os direitos do outro, com base no fundamento do reconhecimento do outro como pessoa, (2) assumir a responsabilidade numa perspectiva que se ancora no encargo confiado e no compromisso profissional, (3) e procurar a excelência, fundamentada na sua competência para agir, no seu poder-capacidade. ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? Esta é a nossa tese, portanto. Que os fundamentos éticos da deontologia são: (1) reconhecimento do outro como pessoa, (2) compromisso profissional, (3) competência para agir, no seu poder-capacidade. Princípios ética anterior Travessia pela norma Responsabilidade Dignidade humana Respeito pelos direitos humanos Liberdade Excelência do exercício Ética de enfermagem O cuidado humano – dirigido ao tomar conta da vida Respeito por si e pelo outro Aferidores de excelência Fundamentos éticos da deontologia Compromisso de cuidado Reconhecimento do outro como pessoa Competência – poder enquanto capacidade tica dos cuidados, a indivisibilidade da pessoa e, portanto, não poder ser abordada como a doença de um órgão ou em função de uma necessidade específica – neste sentido, a linguagem técnica mais corrente atraiçoa, por vezes, este princípio. Quando se afirma que alguém é hipertenso, está-se perante a fusão da entidade nosológica com a pessoa, a confusão entre ser e «Age sempre de tal maneira que a tua acção ter uma condição patológica. As pessoas não são as doenças de cuidado, inspirada pelo compromisso que têm... Afirmei que o princípio da dignidade humana ancora o princípio do cuidado humano, no agir do enfermeiro. Portanto, faltaria ancorar os fundamentos da ética posterior (ética aplicada, deontologia) na ética anterior (filosófica). Chegam-nos dois – a dignidade e a liberdade. Sendo certo que temos um compromisso profissional, por um lado, cada um de nós escolheu tê-lo, ou seja, ser enfermeiro; profissional, reconheça o outro como pessoa e, por outro, é possível enraizáO cuidado protector carece da lo numa «ética da promessa», e se ancore na atestação de competência.» reciprocidade da confiança e relacionando-o com o poder da do respeito pelo outro, como confiança que depositamos uns pessoa única, que se radica no reconhecimento do outro. Connos outros, confiança esta que provém de compromissos mútuos sequentemente, o processo de cuidado constitui-se como uma e da vivência em organismos constituídos por acordo. Nesta relação interpessoal, em que a competência da enfermeira se confiança se estabelece a entrega e a aceitação de encargo (por fundamenta no seu compromisso de cuidar do outro e na intenção isso, confiado), pelo que estaremos na esfera da responsabilidade de o afirmar como pessoa, configurando um cuidado protector. fiduciária, exactamente assente sobre os vínculos que a confiança entretece. E os nossos utentes entregam-se ao nosso cuidado. Portanto, indo ao «mais atrás», ao anterior, o que possibilita o Note-se que do fundo ético da dignidade da pessoa decorrem reconhecimento da dignidade da pessoa é o reconhecimento do outros princípios basilares. Apontamos, pela relação com a práoutro como pessoa. ordem dos enfermeiros VERA VIDIGAL 44 I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? A condição de pessoa é o requisito e a base para todas as derivações, desde a dignidade à liberdade. E considerar o outro diferente de si em incontornável alteridade só não se transforma em distância por via da compaixão e da solicitude. E aqui, já saímos do fundamento para o processo, o recurso operativo. É atendendo à fragilidade da pessoa, com destaque para o respeito por si, pelo outro próximo, por cada um, que se exige visão prospectiva e cuidado na acção. Os enfermeiros escolheram comprometer-se ao cuidado ao outro, no trajecto vital da finitude irrecusável, da fragilidade e da vulnerabilidade; é verdadeiramente autónomo o enfermeiro capaz de conduzir o seu trajecto na convergência do compromisso, da capacidade e da atestação. Deixem-me evocar o primeiro dever da deontologia. a) «Exercer a profissão com os adequados conhecimentos científicos e técnicos, com o respeito pela vida, pela dignidade humana e pela saúde e bem-estar da população, adoptando todas as medidas que visem melhorar a qualidade dos cuidados e serviços de Enfermagem». 45 – «exercer a profissão» –, o reconhecimento do outro como pessoa e a atestação de competência, quer ao nível cognitivo (dos conhecimentos), quer operativo (adoptar medidas). Não só não encontramos contradição – um princípio importante para quem pensa – como sai reforçada a convicção de que são estes os fundamentos éticos da deontologia. Em quem posso confiar para cuidar de mim no momento em que estou vulnerável para cuidar de mim mesmo? No enfermeiro. Entendo, portanto, que o reconhecimento do outro, com recurso à solicitude, niveladora das assimetrias, é fundamento para o princípio orientador do respeito pelos direitos humanos do mesmo modo que o compromisso de cuidado é fundamento para a responsabilidade profissional e que a competência, enquanto «poder para», fundamenta a excelência do exercício. E os princípios primeiros são a dignidade e a liberdade, respectivamente, condição de nascer pessoa e princípio da moralidade, em Kant. Reformulo, agora, o imperativo ético prático da deontologia dos enfermeiros: Voltemos a olhar para a frase: adoptando todas as medidas que visem melhorar a qualidade dos cuidados e serviços de Enfermagem; Que é a práxis real e concreta O «com» assinala o que tem de lá estar. Conhecimentos + respeito pela vida e pela dignidade humana + VERA VIDIGAL Exercer a profissão .................... com os adequados conhecimentos científicos e técnicos, ............... com o respeito pela vida, pela dignidade humana e pela saúde e bem-estar da população Daqui derivará que os processos sejam de fazer recurso à solicitude e à compaixão, bem como à demanda concreta da qualidade do que se faz. Mas isto seria outra conversa... oe respeito pela saúde e bem-estar que são realmente a nossa «diferença específica» Como se realiza? É operativo este «adoptar TODAS as medidas» que cumpram o fim de melhorar a qualidade... Reencontramos os princípios orientadores – responsabilidade, respeito pelos direitos humanos e excelência do exercício. Mas atrás, em suporte anterior, encontramos o compromisso ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA 46 Divulgação ??? Texto final do IX Seminário de Ética 2008 Enf.º Sérgio Deodato, Enf.ª Conceição Martins e Enf.ª Teresa Carneiro Conselho Jurisdicional O exercício de Enfermagem e a protecção das pessoas O exercício profissional da Enfermagem centra-se na prestação de cuidado ao outro, assumindo-se que «os cuidados de Enfermagem centram a atenção na promoção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue»1. O cuidado concretiza-se numa relação interpessoal entre a pessoa e o enfermeiro, e, sendo de natureza profissional, toma como objecto da relação o outro e as necessidades de cuidados do outro. É, por isso, uma relação que, não subtraindo a pessoalidade dos dois intervenientes, se dirige de forma terapêutica à ajuda do outro. Nesta relação de cuidado, a pessoa encontra-se, frequentemente, com alterações do seu estado de saúde, o que lhe confere uma especial vulnerabilidade. De igual modo, dependendo do estádio de desenvolvimento do seu ciclo vital, as pessoas podem apresentar-se aos cuidados de Enfermagem com dependência parcial ou absoluta. Assim, o enfermeiro, ao prestar cuidados, toma como objecto do seu papel social a pessoa e a sua condição particular decorrente do estado de saúde / doença. Do nascimento à fase final da vida, o enfermeiro responsabiliza-se pela prestação do cuidado, na defesa da protecção de cada pessoa. O cuidado de Enfermagem não surge isolado, enquanto resposta a um problema determinado, mas inclui a pessoa na sua totalidade única. É neste sentido ético que o enfermeiro concretiza a responsabilidade pelo outro. 1 ORDEM DOS ENFERMEIROS – Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem. Enquadramento Conceptual. Enunciados Descritivos, 2002. ordem dos enfermeiros A defesa dos direitos como uma dimensão da protecção das pessoas A protecção das pessoas pode ser reflectida de diferentes perspectivas, consoante as diversas dimensões em que essa protecção se concretiza. Uma dimensão fundamental integra o respeito pelos direitos das pessoas. A pessoa, considerada nos cuidados de Enfermagem, é um ser com direitos, que entra na relação de cuidado com o enfermeiro, com a sua titularidade plena. Enquanto cidadão, vê atribuído pelo Estado um conjunto de direitos que permite a sua vivência em sociedade. Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa consagra um leque amplo de direitos, garantindo, assim, o exercício da cidadania. Esta consagração constitucional fundamenta o exercício de cada direito por cada pessoa em particular, nos termos em que as leis determinam. O reconhecimento da titularidade dos direitos fundamentais é dever de todos, assim como o respeito pelo exercício num ambiente de liberdade responsável, de cada um em especial. Ao Estado e à Administração Pública Portuguesa – onde a Ordem dos Enfermeiros se inclui – cabe um papel de promoção e protecção relativas à efectivação dos direitos pelas pessoas. É nesta medida que a Ordem dos Enfermeiros assume a responsabilidade institucional de fomentar a promoção e a defesa VERA VIDIGAL Desenhando o sentido, perspectivando o futuro I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? dos direitos das pessoas a quem são prestados cuidados de Enfermagem, em especial, a aos cidadãos, em geral. Para tal, as suas atribuições devem ser interpretadas no sentido do fim último da garantia da qualidade dos cuidados de Enfermagem, «assegurando a observância das regras de ética e deontologia profissional», como enuncia a formulação do seu desígnio fundamental, formalizado no n.º 1 do Artigo 3.º do seu Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril. Garantindo a qualidade dos cuidados, a Ordem dos Enfermeiros defende os direitos das pessoas. Esta defesa da qualidade dos cuidados de Enfermagem não consubstancia um princípio abstracto, de onde não decorrem actividades concretas por parte da Ordem dos Enfermeiros. Materializa-se na definição de padrões de qualidade, na criação de normas de boas práticas profissionais, na tomada de posições políticas sobre assuntos específicos da saúde e na emissão de pareceres sobre problemas concretos. Do mesmo modo, a garantia da qualidade dos cuidados de Enfermagem em Portugal integra uma componente muito significativa da interpretação e defesa da aplicação das normas da Deontologia Profissional. De facto, no uso do seu poder regulamentar enquanto entidade pública, compete à Ordem interpretar os direitos dos enfermeiros no sentido da protecção dos direitos das pessoas, uma vez que os direitos consagrados no Artigo 75.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, integram eles próprios uma dimensão de protecção das pessoas clientes de cuidados. Por exemplo, quando a alínea c) do n.º 2 deste artigo consagra o direito a «usufruir de condições de trabalho», acrescenta que estas condições de exercício visam assegurar «o respeito pela deontologia da profissão e pelo direito do cliente a cuidados de Enfermagem de qualidade». Do mesmo modo, as incompatibilidades previstas no Artigo 77.º do Estatuto destinam-se a proteger as pessoas de eventuais conflitos de interesses que pudessem existir em resultado do desempenho de actividades diferentes pela mesma pessoa. 47 Finalmente, os deveres do enfermeiro, que decorrem dos princípios e valores profissionais que integram o Código Deontológico2 dirigem-se directamente à protecção dos direitos das pessoas. Desta forma, a interpretação formal que a Ordem dos Enfermeiros faz da deontologia profissional de Enfermagem, nomeadamente através dos pareceres emitidos pelo Conselho Jurisdicional, assume como fundamento ético o respeito pela dignidade humana, da qual os direitos individuais constituem um seu corolário. É neste sentido que o Código Deontológico enuncia como dever geral, na alínea c) do Artigo 79.º, que o enfermeiro assume o dever de «proteger e defender a pessoa humana das práticas que contrariem a lei, a ética ou o bem comum, sobretudo quando carecidas de indispensável competência profissional». Quando o Código Deontológico prescreve no seu Artigo 83.º o dever de prestar cuidado «em tempo útil», fundamenta este dever no «respeito do direito ao cuidado na saúde ou doença». Ou seja, a responsabilidade pela prestação de cuidado ao outro decorre do direito atribuído a este, no âmbito de um direito mais amplo de protecção da saúde, que a Constituição da República Portuguesa estabelece para todos os cidadãos, no seu Artigo 64.º. Do mesmo modo, ao prescrever no seu Artigo 82.º o dever de «atribuir à vida de qualquer pessoa igual valor» e defender a «vida humana em todas as circunstâncias», o Código Deontológico suporta-se no «respeito pelo direito da pessoa à vida durante todo o ciclo vital». Igualmente, a consagração do direito à vida pela Constituição, no seu Artigo 24.º, encontra protecção especial na deontologia profissional de Enfermagem. O direito à autodeterminação, que constitui uma dimensão do princípio da dignidade humana consagrado no Artigo 1.º da Constituição e no n.º 1 do Artigo 78.º do Estatuto da Ordem 2 Incluído no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (Artigos 78.º a 92.º). ordem dos enfermeiros I IXX SSEEM MIIN NÁ R I O D DEE ÉÉTTIICA CA Divulgação ??? VERA VIDIGAL 48 dos Enfermeiros (Código Deontológico) encontra também protecção especial no Código. O respeito pelo consentimento para os cuidados de Enfermagem constitui uma manifestação essencial deste direito, encontrando-se estabelecido como dever na alínea b) do Artigo 84.º. Assim e com esta interpretação, a Ordem dos Enfermeiros tem contribuído para a clarificação do quadro deontológico da profissão, no respeito pela base ética que o suporta e na relação formal adequada com o ordenamento jurídico do País. No centro desta regulamentação, encontra-se a pessoa e a especial protecção dos seus direitos pelos cuidados de Enfermagem. Os direitos humanos e a deontologia profissional de Enfermagem Quando nos referimos aos direitos das pessoas, estamos a considerar uma esfera ampla de direitos, em que se podem identificar diversas categorias. Como pano de fundo ou base ética de suporte, encontram-se os direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de Dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da Nações Unidas, constitui um documento histórico para a protecção das pessoas no mundo. Inscrevendo os diversos direitos que os países conseguiram considerar por consenso, formaliza em texto escrito a definição de cada um. O ser humano passou, assim, a contar com um instrumento que pode ser utilizado para a regulação da sua vida em sociedade. Em Portugal, a Declaração Universal foi ratificada apenas em 19783, mas desde 1976 que constitui uma base interpretativa para os direitos consagrados na Constituição. De facto, o n.º 2 do Artigo 16.º da Lei Fundamental estabelece que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem». Assim, na dúvida 3 Publicada no Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março de 1978, mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros. ordem dos enfermeiros sobre o alcance de um determinado direito, este é determinado com base na formulação dos direitos humanos. Desta forma, quando reflectimos os direitos das pessoas, a partir dos deveres deontológicos do enfermeiro, devemos discutir a sua esfera de protecção, nos termos em que os direitos humanos correlacionados o fazem. Assim, podemos considerar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui um fundamento ético essencial à deontologia profissional do enfermeiro em Portugal. À Ordem dos Enfermeiros cabe promover o desenvolvimento da reflexão neste sentido, garantindo que a interpretação institucional realizada concretize esta premissa. A cada um de nós, compete participar neste desenvolvimento e apropriar-se da reflexão ética e da interpretação da Deontologia, em cada relação de cuidado que estabelecemos. oe 2 0 0 7 Ciclo de V Debates Segurança da Informação 2 0 0 0 – A exemplo de anos anteriores, o V Ciclo de Debates vai realizar-se, ao longo deste ano nas cinco Secções Regionais da OE. Informações sobre datas e locais vão sendo disponibilizadas no site da Ordem dos Enfermeiros e pelas Secções Regionais. a do Secretariado 8.45H | Abertur 9.00H | Mesa de VII abertura cia Inicial: 9.30H | Conferên Humana” “Da Falibilidade Michel Renaud Professor Doutor o 10.00H | Interval dos Enfermeiros ções da Ordem s – perspectivas 10.30H | Interven ça nos cuidado para a Seguran o da S.R. Moderador: Conselho Directiv o, Presidente do Enf.º Amílcar Carvalh do Centro Intervenções: o • Conselho Directiv sidente do CD Oliveira, Vice-pre – Enf.º Jacinto onal • Conselho Jurisdici CJ Presidente do – Enf.ª Lucília Nunes, Enfermagem • Conselho de CE , Presidente do Oliveira is Delfim Enf.º – Directivos Regiona dos Conselhos • Representante do CDR do Sul a Abranches, vogal Regionais – Enf.ª Madalen de Enfermagem dos Conselhos • Representante Centro do vogal no CER – Enf.º Paulo Lopes, Seminário X de Ética Ética Seminário de Segurança nos cuidados Debate 12.30H | Almoço s de Saúde ça nos Cuidado 14.00H | Seguran Profissionais – Papel das Ordens onal do Conselho Jurisdici Moderador: es, Vice-presidente Enf.º Rogério Gonçalv Intervenções: rio • Ordem dos Médicos Digníssimo Bastoná – Dr. Pedro Nunes, uticos • Ordem dos Farmacê mo Bastonário da Silva, Digníssi – Dr. J. A. Aranda Dentistas rio • Ordem dos Médicos da Silva, Digníssimo Bastoná o – Dr. Orlando Monteir iros ma Bastonária • Ordem dos Enferme de Sousa, Digníssi – Enf.ª Maria Augusta alização o para a Contratu Comentadores: adora da Comissã Escoval, Coorden Prof.ª Dr.ª Ana Saúde Parlamentar da da Saúde te da Comissão Roseira, Presiden Dr.ª Maria de Belém AL ID AD E E CO N FI D EN CI IN FO RM AÇ ÃO EM D E EN FE RM AG D A PR ÁT IC A AS IC ÉT ES Õ Q UE ST S PRO FI SS IO N AI AS RE LA ÇÕ ES D AS IC ÉT ES Q UE ST Õ AO CU ID AD O D O D IREI TO I II II I IV RM AG EM V ÉTICA DE ENFE A V I FINAL DE VID OS N O S CU ID AD V II SEGURANÇA SS IO N AL LI D AD E PRO FI V II I RESPONSABI Anfiteatr o Jurisdicional ões finais sidente do Conselh 17.00h | Conclus Martins, Vice-pre Enf.ª Conceição 8.45H › Abertura do Secreta 9.00H › Mesa de abertur SETEMBRO 2009 riado a profissional» nsabilidade Honra: «Respo Bastonária Alocução de – Digníssima Augusta Sousa – Enf.ª Maria Enfermeiros da Ordem dos ção» autodetermina a : «Proteger a Berta Cerdeir edonda Ana – Enf.ª 10.00H › Mesa-r e Consentimento • Informação cional (CJ) Jurisdi ho – Vogal do Consel ades para decidir etências e inabilid • Das incomp Jurídico do CJ ia – Assessor Alberto Duarte – Dr. Nuno Lampre idade – Enf. menores de em al Region • Consentimento al da Secção do CJ Region – Presidente da RA dos Açores Moderadora: do CJ la Amaral – Vogal Enf.ª Manue lo 11.30H › Interva recusa(s)» – Vogal edonda: «Da(s) Salomé Matos 11.45H › Mesa-r cliente – Enf.ª RA dos Açores • Recusa(s) do Regional da al da Secção Silva – Vogal do CJ Region – Enf.ª Isabel a profissional RA da Madeir • Recusa(s) do Regional da a al da Secção Fátima Figueir do CJ Region ência – Enf.ª ão de Consci Objecç da al do Sul • O caso Secção Region Regional da – Vogal do CJ Secção Moderador: nte do CJ da Gomes – Preside Enf. José Luís Centro Regional do livre o» ico de trabalh Deodato edonda: «Mosa – Enf. Sérgio 14.30H › Mesa-r agir profissional • Critérios do – Vogal do CJ de Posição: Enunciados • Mosaico de consentimento Do sigilo; Do CJ › Da delegação; -presidente do Vice – ção Martins crianças; – Enf. ª Concei protecção das seguros; Da – Enf.ª Merícia › Dos cuidados s para o ensino al da Secção Das recomendaçõe do CJ Region – Presidente Bettencourt a RA da Madeir – Vogal do CJ Fraga o Regional da – Enf. José Antóni Do final de vida 13.00H › Almoço › e do CJ Moderador: Vice-president Gonçalves – Enf. Rogério eiro» ência final: lógica do enferm 16.00H › Confer ade ética e deonto «Responsabilid nte do CJ Nunes – Preside Enf.ª Lucília 16.30H › Mesa FOTO: VERA VIDIGAL Foto: vera vidigal Debate de 2006 7 de Novembro – Fátima toral Paulo VI o do Centro Pas Inscrições limitadas 1 à lotação SEMINÁRIO D E ÉTICA Segurança da Informação dade Responsabili l Profissiona bro de 2007 28 de Setem das Nações lhões 2 e 3) FIL – Parque Pavi FIL (entre os tius Pavilhão Mul de encerramento de saúde profissionais iros”) – gratuito | Outros dos Enferme de Enfermagem e estudantes s.pt. ordem de “Ordem Enfermeiros ou vale CTT à demenfermeiro em www.or ento por cheque válida. o disponíveis – 15 € (pagam cédula profissional e ficha de inscriçã lugares) e à apresentação de Informação da sala (800 VIII_sem_cartazA3.indd VIII elo ao Evento paral os da -Estar Saúde e Bem nacional de – Salão Inter 10/08/07 16:14:22 ordem dos enfermeiros | Número 31 | Dezembro 2008 Número 31 | Dezembro 2008 | www.ordemenfermeiros.pt | ISSN 1646-2629 IX Seminário de Ética 10 Anos de Deontologia Profissional 60 Anos de Direitos Humanos