ANTOLOGIA POÉTICA VINICIUS DE MORAES (1903-1980) PLANOS DE ANÁLISE POÉTICA/CONCEITUAÇÃO DE POESIA Forma e conteúdo: em poesia associa-se forma a conteúdo: se a diagramação do texto é descontínua, isto é, se ele vem escrito em versos e não em parágrafos, então chamamolo de poema. Poema é todo texto escrito, geralmente em versos metrificados (até o início do Modernismo, principalmente) e com um ritmo muito mais perceptível e evidente do que o da linguagem de prosa (organizada em parágrafos). Poesia é um conceito difícil; não há consenso (nem mesmo entre escritores e críticos literários) sobre como defini-la. O que se pode fazer é conceituá-la, no máximo. A palavra poesia vem do grego, “poiéin”, que significa "criação". A poesia pode ser conceituada então como obra de arte criada com palavras. A linguagem do texto poético é mais "concentrada", isto é, ela é utilizada de maneira criativa, explorando o significado conotativo das palavras (“linguagem carregada ao máximo de sentido” – Ezra Pound). Dica: estude as figuras de linguagem! A poesia não trata do mundo de maneira direta, objetiva; sua linguagem é conotativa, figurada, simbólica. Ela “recria um mundo novo" de sons, imagens e sentidos. Ler poesia é decifrar esse mundo ("o poético não deve ser compreendido, mas percebido" - Mário Faustino). Ao interpretar um texto poético não se deve lê-lo como "um texto qualquer", uma notícia de jornal, por exemplo, em que a linguagem é predominantemente denotativa. A poesia assume a forma de um poema, na maioria das vezes. Mas às vezes o texto é em forma de poema, mas nele não há poesia porque sua intenção não é poética. Por exemplo um texto em forma de poesia para vender um produto, cuja linguagem poética é utilizada com intenção conativa. É possível também aplicar a linguagem da poesia em textos dispostos em forma de prosa (poesia em prosa). Plano da Forma: o plano visual; a disposição e organização das palavras ou versos na página de modo a conseguir um determinado efeito (por exemplo: o soneto, entre tantas coisas, é uma forma de poema universalmente consagrada como agradável ao olhar, esteticamente atraente). Plano do Conteúdo: o plano do significado geral do que se quer dizer, a temática (conjunto de temas desenvolvidos no poema. O que se quer dizer para o leitor ou o que se quer nele suscitar (provocar). A temática pode ser filosófica, social, amorosa, religiosa, havendo quase sempre combinação de um ou mais temas, sob a predominância de um deles. Plano da Linguagem: a) plano semântico: significado das palavras, denotativos e conotativos; b) plano imagético: a criação, associação e combinação de imagens (figuras de linguagem) que se projetam na imaginação visual do leitor para atingir um determinado efeito, como por exemplo, estimular associações intelectuais ou emocionais em sua consciência. Plano Sonoro: a musicalidade das palavras, o ritmo, as rimas, a criação de efeitos sonoros (repetição de letras, palavras ou versos inteiros) que podem potencializar o sentido do texto ou simplesmente soar agradáveis ou inusitados ao ouvido produzindo emoções e reflexões no leitor. Antologia poética de Vinicius de Moraes - 2ª edição revista e aumentada, de 1960, (Obs: não confundir a primeira edição da Antologia poética - Rio de Janeiro, Ed. A Noite, 1954, nem com a Nova antologia poética (São Paulo, Companhia das Letras, 2003 - reedição em 2008, organizada por A. Cicero e E. Ferraz), que obedece a critérios de seleção diferentes. Seleção de poemas feita pelo próprio autor, o qual fixou, naquela data, o conjunto de poemas depois reproduzido, com alterações de pormenor, nas edições sucessivas da Livraria José Olympio Editora S.A., a partir de 1967. Posteriormente, nos anos de 1990, a mesma seleção passou a ser publicada pela Editora Companhia das Letras, também com pequenas modificações. De todas essas edições, consta uma "Advertência" do Autor, na qual ele expõe seus critérios de seleção e o sentido que atribui ao conjunto. Antologia significa, etimologicamente, "coletânea de flores"; o termo remete à idéia de escolha, coleção. Sendo assim, antologia é uma coleção de trabalhos literários; neste caso, coleção de trabalhos poéticos. Vinicius de Moraes foi diplomata, músico, boêmio, advogado, crítico de cinema e, sobretudo, poeta, que se auto-intitulava o "branco mais preto do Brasil". Um crítico certa vez disse que Vinicius era um homem plural, e que essa pluralidade era percebida nas várias atividades que o poeta desenvolveu, nos vários amores que teve (seus biógrafos afirmam que teve, oficialmente, 9 mulheres), e no próprio nome: Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes. Como diplomata, ele residiu em várias capitais do mundo. Além de formado em Direito, foi agraciado com a primeira bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. A importância de se ler uma obra como esta ("Antologia Poética") está no fato de que estamos tendo contato com uma seleção de poemas feita pelo próprio autor. A divisão da obra de Vinicius A obra poética de Vinícius de Moraes é tradicionalmente dividida pela crítica em três fases distintas. A primeira inicia-se em 1933 e abrange os livros O caminho para a distância (1933); Forma e exegese (1935); Ariana, a mulher (1936). Nesse período encontramos um poeta místico, "Advertência" à sua Antologia Poética ele afirmava que "a primeira [fase], transcendental, frequentemente mística, [era] resultante de sua fase cristã". Segunda fase: a partir de 1943, com Cinco elegias, a poesia de Vinícius começa a mudar. Nela - segundo o próprio autor – "estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consciente repulsa ao idealismo dos primeiros anos". Esta vinculação à realidade mais imediata dá-se esquematicamente em três planos: - o canto do amor concreto e a exaltação da mulher; - a valorização do cotidiano e a abertura para o social; - a utilização da linguagem coloquial. Veja Soneto da Fidelidade (poema da segunda fase). Ferraz e Cícero, abandonaram esta divisão ao organizar Nova Antologia Poética. Eles rejeitaram as leituras cristalizadas e os lugares comuns que se formaram em torno da obra do autor. O resultado foi uma seleção que servirá tanto para apresentar Vinicius aos leitores não iniciados, como para oferecer ao público familiarizado com sua obra uma nova chave de compreensão. Soneto de fidelidade De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa lhe dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure Este é um dos mais conhecidos e apreciados sonetos de Vinicius de Moraes. Observam-se nele a clareza e a concisão de linguagem, características clássicas que substituem a tendência alegórica e o derramamento declamatório dominantes na fase inicial do poeta. O dia da criação Macho e fêmea os criou. Gênese, 1, 27 Hoje é sábado, amanhã é domingo A vida vem em ondas, como o mar Os bondes andam em cima dos trilhos E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar. Hoje é sábado, amanhã é domingo Não há nada como o tempo para passar Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal. (...) Impossível fugir a essa dura realidade Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios (...) Porque hoje é sábado. II Neste momento (...) Há uma mulher que apanha e cala Porque hoje é sábado (...) Há criancinhas que não comem Porque hoje é sábado III Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação. De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. Na verdade, o homem não era necessário Nem tu, mulher, (...) Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias (...) Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo (...) Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo E para não ficar com as vastas mãos abanando Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança Possivelmente, isto é, muito provavelmente Porque era sábado. A ironia está presente em O dia da criação, poema contido na Nova Antologia Poética, onde o autor transita numa constante oposição entre matéria e espírito. Transitamos, como ele, entre crença, referência e questionamento, com uma leve incursão pelos caminhos da ironia. Por haver nessa fase uma renúncia à superstição e ao purismo fortemente presentes na primeira, bem como um direcionamento para uma atitude mais brincalhona e amorosa perante a poesia, essa segunda fase ficou conhecida como "O encontro do cotidiano pelo poeta". Nessa passagem do metafísico para o físico, do espiritual para o sensual, do sublime para o cotidiano, o poeta retoma sugestões românticas (como lua, cidade, samba). Refugia-se no erotismo: há contemplação do amor, poemas "sobre a mulher" e adoração panteística da natureza. Compôs também poemas de indignação social, cujos exemplares são: "Balada dos mortos dos campos de concentração", "O operário em construção" e "A rosa de Hiroshima". A rosa de Hiroxima Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada Numa postura humanista, em que cria figuras com fortes tintas, o poeta canta contra a guerra. Usando o verbo "pensar" no imperativo ("pensem"), "convida-nos" a todos a refletir diante das atrocidades causadas pela guerra; e, principalmente, a causada pelo mais novo rebento gerado pelo ser humano: a bomba atômica. A culpa não é apenas de um indivíduo ou outro. A culpa, a responsabilidade da destruição não é de um país X ou Y, mas de toda a humanidade. O que está em jogo aqui é a própria existência, ou melhor dizendo, a própria sobrevivência humana. O terceiro Vinicius é o compositor, letrista e cantor. Autor de mais de trezentas músicas (como atesta seu Livro de letras, lançado postumamente, em 1991, onde estão mais de 300 letras de músicas de sua autoria), difundidas pelo mundo com o grande acontecimento cultural e musical que foi a bossa nova. Seus parceiros, como vimos, vão desde Bach a Toquinho. Embora a crítica fizesse (faça) tal divisão, colocando de um lado o poeta e de outro o “showman”, Vinícius nunca concordou que houvesse diferença entre seus sambas e seus poemas escritos, pois para ele tudo era igual.