159 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO PRESSUPOSTO FUNDAMENTAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Felipe Dalla Vecchia (UNESP- Franca) Riva Sobrado de Freitas (UNESP – Franca) 1 INTRODUÇÃO O escopo principal do trabalho consiste em tecer explanações acerca do princípio da igualdade em vigor no Brasil pela Constituição Federal de 1988, explicitando sua fundamentalidade no contexto do Estado Democrático de Direito, em que se proclama a República Federativa do Brasil no art. 1º do referido diploma legislativo. Para tal, algumas etapas hão de cumprir-se. Inicialmente e de modo a situar o leitor no tema abordado, expor-se-ão as concepções de igualdade em três correntes filosóficas, quais sejam: nominalista, idealista e realista, cuja adoção variou ao longo da história do pensamento constitucional brasileiro. Trata-se de uma análise preliminar das principais formas de tratamento da igualdade que constituíram influxos ao constitucionalismo brasileiro essenciais à investigação do princípio da igualdade adequado ao Estado Democrático de Direito, fundado na República Federativa do Brasil pelo artigo primeiro da Constituição Federal de 5 de Outubro de 1988. Intrinsecamente a esta configuração de Estado reside o desígnio de transformação do status quo, cujo objetivo consiste em proporcionar-se o bemestar de toda a população, conforme apontam os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, arrolados no artigo terceiro de sua Lei Maior. Para tanto, a igualdade, prevista duplamente no caput artigo 5º do referido Estatuto, constitui um pressuposto fundamental. Logo no início do dispositivo encontra-se a prescrição de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com isso, não se almeja o estabelecimento da igualdade jurídicoformal proveniente das Declarações Liberais do século XVIII. Nesta, o 160 tratamento homogêneo dos indivíduos perante a lei contrariamente constituía agravante da desigualdade, principalmente econômica, ao proporcionar a distribuição indiscriminada de bens e direitos a toda a população, beneficiando tanto os necessitados como os abastados. Em verdade, com esta pretende-se tolher as discriminações odiosas e as injustificadas concessões de privilégios. Alhures, o mesmo dispositivo confere a todos o direito à igualdade, referindo-se à sua materialização, auferida, paradoxalmente, ao tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. A observância conjugada destes dois aspectos da igualdade reveste-se de capacidade para proporcionar sua substancialização, mesmo que para tal haja a necessidade de provocar-se a intervenção jurisdicional. 2 CONCEITOS DE IGUALDADE Desde o nascimento, os seres humanos apresentam disparidades entre si, diversificando-se em homens e mulheres, brancos e negros, altos e baixos, ricos e pobres, portadores e não-portadores de deficiência, dentre outros, havendo, ainda, extraordinária variação entre esses pólos (VIEIRA, 2006, p. 281). Por outro lado, tais seres encontram-se envoltos por certa unidade, conferida pelo pertencimento à mesma espécie. Tendo em vista essas duas constatações, seria possível pretender-se o estabelecimento da igualdade entre os indivíduos, ou estaria esta completamente obstaculizada pelo antagonismo que envolve tais aspectos da existência humana? Na busca pela resposta a esta questão, destacam-se três correntes filosóficas principais, nomeadamente o nominalismo, o idealismo e o realismo (FARIA, 1973, p. 36). O estudo dos aludidos três conceitos reveste-se de importância primordial ao tratamento prático da igualdade e, conseguintemente, também à configuração do perfil constitucional de determinado Estado, uma vez que, dotados da capacidade de influir sobre a inteligência dos indivíduos, os conceitos formulados refletem-se nas atitudes e manifestações dos Poderes Públicos e também dos particulares. (MARITAIN, 1960, p. 115, 116). 2.1 CORRENTE NOMINALISTA 161 Assim como o empirismo ou o sensualismo, a corrente nominalista atribui a capacidade de conhecer exclusivamente aos órgãos dos sentidos, os quais seriam responsáveis pela interação entre o objeto do conhecimento, e a inteligência do sujeito cognoscente. Assim, o conhecimento, para os adeptos desta corrente, corresponderia à instantânea reprodução de objetos ou fatos concretos na consciência daqueles que os contemplam. E, conforme considera a corrente nominalista, precisamente nesta espécie de interação se esgota a capacidade humana de conhecer, de modo que, se não pode o sujeito cognoscente relacionar-se com o objeto ou fato concreto por meio dos sentidos, não há como conhecê-lo. Somente se conhece, pois, o que se reveste de materialidade. Dentre os adeptos desta corrente destaca-se John Locke, quem argumenta a favor da experiência como a única fonte de conhecimento da realidade1 em fins do século XVII, na obra intitulada Ensaio sobre o entendimento humano: Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres sem quaisquer idéias; como ela será suprida? [...] De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. (LOCKE, 1983, 159) Por experiência compreende-se a interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, o qual será auferido pelo primeiro através de um processo que o mencionado pensador denomina sensação. Trata-se, desta forma, do processo pelo qual os órgãos dos sentidos apreendem as características dos objetos ou fatos oriundos do mundo sensível e os transportam para a inteligência, produzindo-se, pois, o conhecimento daquilo que se apresenta externamente à mente humana (LOCKE, 1983, 160). A mais alta expressão da concepção sobre o conhecimento humano em foco reside em David Hume, quem considera que mesmo noções abstratas como o tempo e os números não podem provir de criações autônomas do pensamento. Tais idéias, assim como todas as demais, surgiriam a partir da 162 reprodução de objetos ou fatos concretos sensorialmente apreendidos, com uma peculiaridade: a repetição com que as apreende a inteligência humana. Ou seja, a freqüência com que determinados fatos concretos apresentam-se perante os sentidos faz suscitar na inteligência uma relação apartada dos acontecimentos em que se baseiam, a qual não recebe respaldo do filósofo em apreço por considerá-la proveniente de uma extrapolação da capacidade cognoscente humana, conforme ele próprio assevera: [...] embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos, e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, de aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. (HUME, 1996, p. 36) Indubitavelmente, concepções como estas, apregoadas pelas correntes nominalista, empirista e sensualista revelam conseqüências práticas no tocante à validade e eficácia do princípio da igualdade. Por basearem o conhecimento humano estritamente no que a experiência sensível pode auferir por intermédio dos órgãos dos sentidos, os adeptos da corrente nominalista não crêem que exista a igualdade pelo fato de esta constitui-se em um conceito, um ente abstrato. A existência desta estaria restrita à de seu nome, de modo que toda a sua realidade seria a de mera palavra ou flatus vocis. Por conseguinte, nega-se qualquer unidade entre os indivíduos, conforme ilustra Jacques Maritain: Mesmo se reconhecem que a natureza humana é comum a todos os bípedes sem penas, não há para eles, de facto, mais do que uma simples afirmação verbal que não possui nenhum conteúdo de realidade própria e não descobre no seu campo de visão nenhum horizonte de ser e de vida a contemplar e a honrar. (1960, p. 110) Ademais, o contato com a realidade circundante revela a coexistência de homens e mulheres, brancos e negros, altos e baixos, gordos e magros, ricos e pobres, portadores e não portadores de deficiência, dentre outros. Deste modo, a corrente nominalista considera que a desigualdade caracteriza a espécie humana, 163 tal posicionamento acaba por justificar a existência de privilégios, sejam eles de nascimento, de riqueza ou os atribuídos à elite que detém o poder. Pode, deste modo, constituir-se em base ideológica para teses racistas, como a proclamada pelo nacional-socialismo (FARIA, 1973, p. 37), cuja ideologia pregava a superioridade de determinado grupo de seres humanos, aos quais atribuía a qualidade de superiores às demais “raças humanas”, conforme usualmente referiam-se a outros grupos, compostos por indivíduos em que inexistiam as características aludidas. A elaboração destas falsas hierarquias, assentadas em critérios pseudo-científicos ensejava diretamente não somente o menosprezo pela idéia de igualdade entre todos os indivíduos humanos como o incentivo ao desrespeito a todos aqueles que não preenchessem as características que obrigatoriamente deveriam apresentar os homens considerados superiores. Segundo, novamente, Jacques Maritain: É assim que uma das teses racistas proclamadas em Nuremberg declarava que há ”uma maior distância entre as formas mais baixas chamadas humanas e as nossas raças superiores do que entre o homem mais inferior e os macacos mais desenvolvidos”. (1960, p. 117) Tendo em vista que um indivíduo aprende sem grande esforço os modelos cognitivos de sua cultura, logo a ideologia de menosprezo ao ser humano recebeu acolhida pela vasta maioria das pessoas sobre as quais o nazismo exercia sua influência, funcionando como verdadeiro axioma, ou seja, como uma norma inquestionável a serviço da elaboração de odiosas ordens morais. (GOLDHAGEN, 1997, p. 39 e ss) Sabendo-se que contra as coletividades consideradas inferiores verificavam-se desde agressões verbais e físicas, medidas legais e administrativas de isolamento, incentivo à emigração e deportação forçada, até a submissão a trabalho escravo e matanças através de fome e doenças (GOLDHAGEN, 1997, p. 150), não restam dúvidas a respeito do perigo de uma concepção nominalista da igualdade justificar a supremacia do mais forte sobre o mais fraco. Deste modo, não se pode nem sequer pretender uma discussão acerca da adequação ou inadequação do conceito de igualdade produzido por esta 164 corrente gnosiológica às características informadoras do Estado Democrático de Direito, vez que a última reputa-se inexistente. No entanto, considerar inexistente a igualdade agride frontalmente a configuração de Estado vigente no Estado brasileiro, e isto se pode considerar inadmissível perante a Constituição Federal Brasileira de 1988. 2.2 CORRENTE IDEALISTA Em posição diametralmente oposta ao Nominalismo, a corrente idealista sustenta que para conhecer determinado objeto ou fato não basta que este apareça na consciência, sendo necessário que se faça uma reflexão acerca deste objeto. E, tendo em vista que a reflexão é feita de maneira subjetiva, a verdadeira natureza do objeto consiste em um produto do sujeito. No tocante à igualdade, importa salientar a maneira como esta corrente gnosiológica responde à querela dos universais, âmago de controvérsias que objetivam responder à questão de se os conceitos existem somente de maneira abstrata, isto é, em nível de pensamento, ou se os mesmos materializam-se fora da consciência humana. E pelo fato de o Idealismo conferir validade exclusivamente ao conhecimento produzido através da reflexão, pode-se afirmar que aqueles que pensam desta maneira, o conceito de humanidade realmente existe e aplica-se a todos os indivíduos indistintamente, independentemente de suas características físicas e mentais individuais. Deste modo, o conceito idealista de igualdade prega a unidade absoluta entre os seres humanos, o que não significa o desconhecimento da existência de desigualdades, mas sua recusa. (MARITAIN, 1960, 119 e 120) Tanto que um dos maiores adeptos desta concepção de igualdade, o pensador francês Jean Jacques Rousseau reconhece duas espécies de desigualdades. A primeira, denominada natural ou física, conforme definição do próprio filósofo, “consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma”. (ROUSSEAU, 1999, 159) A outra, moral ou política, tem origem a partir de convenção entre os homens e corresponde aos diferentes privilégios conferidos a poucos em prejuízo dos demais, a exemplo da riqueza e do poder. (ROUSSEAU, 1999, 159) O extremo da concepção idealista de igualdade reside em Platão. 165 Considera-se Platão um idealista devido à divisão que este filósofo faz entre o mundo sensível e o mundo inteligível, e a priorização deste sobre aquele no que diz respeito à busca pela compreensão da realidade. O primeiro corresponderia ao mundo real, no qual predominam objetos e fatos concretos, efêmeros e variáveis, aferíveis a partir dos órgãos dos sentidos, enquanto o mundo inteligível consistiria em um mundo eterno e imutável, em que predominam as respectivas essências do que se pode verificar no mundo sensível. Pontes de Miranda melhor explica a aludida divisão entre estes mundos: Temos diante de nós um cão, que acabas tu de trazer-nos, e também tua mulher e um livro. Platão ensinou que a verdadeira essência é “cão”, “mulher”, “livro”, isto é, as Ideas, e que o cão que me trouxeste, a tua mulher e o livro, cão que nasce, cresce, se transforma e morre, mulher que nasce, passa pelas idades humanas, envelhece e deixa de ser, livro que se compõe, se imprime, pode ser queimado e desaparecer, não são parte do mundo do “verdadeiro ser”. São o cão, a mulher e o livro do mundo dos sentidos. Reproduzem, apenas transeuntemente, na sua precariedade ínfima, no seu quási-nada, as múltiplas Ideas. (1937, 17) E refletindo acerca dos requisitos para que se torne possível definir determinada coisa, o que presume o conhecimento da mesma, Platão elenca dois principais, denominados princípios da identidade, pelo qual uma coisa é aquilo que é e não outra, e da permanência, o qual exige que a coisa sempre se conserve do mesmo modo. Como nenhum desses princípios aplica-se às coisas concretas do mundo sensível, dotadas de variabilidade e efemeridade, o filósofo considera o mundo das idéias como aquele em que residem os seres verdadeiros, idênticos a si mesmos e não sujeitos a mudanças. (ARANHA; MARTINS, 2005, p. 108) Esta forma de pensar exerce ponderosos influxos sobre a igualdade. Isto porque as dissemelhanças que se aferem entre os diversos exemplares da espécie humana, ademais das variações verificáveis desde o momento em que vêm ao mundo sensível, provêm de constantes alterações e mutações, o que representa fenômenos adversos ao conhecimento verdadeiro, de acordo com a concepção em apreço. Estas diferenças entre os seres humanos se podem comparar com sombras projetadas na parede de uma caverna2, ou seja, reproduções 166 imperfeitas do verdadeiro objeto, o qual corresponderia ao homem perfeito, inteligível, universal e imutável, verdadeira essência dos indivíduos reais e fonte da unidade entre os mesmos. Destarte, passa-se a encarar a igualdade entre os seres humanos de maneira absoluta, uma vez que toda a carga de realidade transfere-se a este homem ideal, ao qual todos os indivíduos apresentam-se iguais e, por conseguinte, iguais entre si. E por considerar que ente os indivíduos humanos existe uma igualdade absoluta, Platão identifica algumas conseqüências que se deveriam manifestar no mundo sensível, como a igualdade do processo educacional, a ausência de propriedade privada e a comunidade de habitações, refeições e até mesmo de mulheres e filhos, conforme se verifica em trecho da obra A República: Que as mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão que são os seus próprios filhos, nem os filhos os pais. (1949, p. 224) Conforme mencionado, Rousseau e Platão, assim como os demais idealistas, recusam tais disparidades, sob alegação de que, por integrarem a mesma espécie, haveria a igualdade entre os seres humanos. Trata-se, pois, de igualdade pura e simples, aritmética, em que não há lugar para a idéia de proporção ou distribuição. (MAIRTAIN, 1960, 123 e 124) A concepção idealista de igualdade caracteriza o Estado Liberal de Direito instituído na Europa após as Revoluções burguesas. Nesta configuração de Estado, a regulamentação da igualdade verifica-se a partir da laicização da máxima cristã pela qual todos são iguais perante a Deus, dando origem àquela que preceitua serem todos iguais perante a Lei. Afere-se, deste modo, que estas idéias serviram de base para a elaboração das Declarações de Direitos, típicas do contexto social e jurídico da época. Entretanto, apesar de muito significativa no tocante à instituição da igualdade entre os seres humanos, a concepção de igualdade proveniente da corrente idealista revelou-se insuficiente com o passar do tempo. Isto porque, entre os indivíduos, havia uma desigualdade de ponto de partida, de modo que a mera declaração de uma igualdade assentada no fato de que todos são iguais em essência, sem espaço para considerações acerca das 167 desigualdades fáticas entre os diversos exemplares da espécie humana acaba por agravar tais dissemelhanças, ao invés de proporcionar uma substancial equiparação entre os aludidos indivíduos. Não se trata, portanto de um conceito de igualdade suficiente para o Estado Democrático de Direito, apesar de integrá-lo, na medida em que ainda nesta configuração estatal aos Poderes Públicos e particulares é vedada a prática de desequiparações desmotivadas. A complementação verificar-se-á na próxima corrente abordada. 2.3 CORRENTE REALISTA Por fim, a corrente realista adota posição conciliadora entre o nominalismo e o idealismo. Considera que as diferenças naturais entre os indivíduos correspondem a todas as variedades de perfeições e virtudes das quais é capaz a espécie humana (MARITAIN, 1960, p. 135), de forma que, ao invés de conflitarem com a unidade que os envolve, estas a intensificam. No que diz respeito à querela dos universais, a corrente realista considera que os conceitos abstratos, como a humanidade – fundamental para a existência de igualdade e unidade entre os seres humanos – possuem, ademais de uma realidade objetiva, isto é, fora da mente, uma realidade metafísica, a qual constitui a essência de todos os indivíduos, e da qual todos fazem parte. Ou seja, a todos os indivíduos singularmente considerados, com todas as diferenças observadas com relação aos seus semelhantes, cabe participação nesta figura abstrata denominada humanidade, pelo fato de constituírem-se exemplares da espécie humana. Assim, concilia-se a existência de desigualdades com a necessidade de buscar-se a efetivação da igualdade, intrínseca a todos os seres humanos. Adotar este posicionamento significa responder considerar que nada dá a um e tolhe de outro indivíduo o direito de gozar de satisfatórios níveis de dignidade, visto que todos são acolhidos pela essência denominada humanidade. Por esta razão considera-se o conceito realista de igualdade o mais adequado ao Estado Democrático de Direito, uma vez que traz em si o sentimento de inconformidade frente à inaptidão de alguns e as exageradas suficiências de outros no que refere à consecução das ditas dignas condições de existência. 168 Aristóteles responde por uma das mais expressivas manifestações deste conceito. De um lado, considera fundamental à família ou ao Estado, que sua existência se assente na unidade entre os indivíduos que os compõem. De outro, adverte que tal unidade não pode tomar-se de maneira absoluta, aritmética, o que equivaleria à tentativa de “fazer um acorde com um único som, ou um ritmo com uma só medida” (ARISTÓTELES, 1995, p. 47). Destarte, o filósofo estagirita mostra-se favorável à igualdade proporcional, conforme se comprova pelo alerta de que “a desigualdade dos trabalhos e dos prazeres virá despertar, naturalmente, o descontentamento por parte dos que trabalham muito e recebem pouco, contra aqueles que mal trabalham e recebem muito” (ARISTÓTELES, 1995, p. 42). E esta noção encontra-se clara na idéia de igualdade material, a qual abordar-se-á adiante.3 3 A IGUALDADE FORMAL OU DE IURE Destarte, pela investigação dos documentos políticos e ordenamentos jurídicos ao longo da História, verificam-se distintas maneiras de se amparar a igualdade, todas resultantes da adoção de algum desses conceitos, conforme sugeria o contexto vigente. O primeiro a ampará-la foi a Declaração dos Direitos do Bom Povo de Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, ambas de 1776. No tocante à influência sobre o constitucionalismo brasileiro, sobreleva-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada na França em 1789. Tal ocorreu no contexto de derrocada do Absolutismo Monárquico e fundação de um Estado Liberal de Direito neste país, resultados das reações burguesas contra os constantes detrimentos experimentados em virtude da concessão de regalias ao clero e à nobreza. (BOBBIO; METTEUCI, 2004, p. 605 e 606) Proclama o referido documento, em seu artigo primeiro: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem fundar-se senão na utilidade comum”4. Com isso, pretendia-se vedar a prática injustificada de desequiparações, tanto as proveitosas, a exemplo dos privilégios a determinados setores sociais, como as detrimentosas, tendo em vista as perseguições de qualquer gênero. (MELLO, 1993, p. 18) 169 A partir de então, funda-se um tratamento perante a lei de caráter puramente negativo (SILVA, 2007, p. 214). Trata-se, supostamente, do que Norberto Bobbio denomina “igualdade de oportunidades” ou “de ponto de partida” (BOBBIO, 1990, p. 30), pela qual o aproveitamento de determinados direitos tidos como naturais aos seres humanos, a exemplo da vida e da propriedade, dependeria estritamente dos méritos de cada um. Consiste, portanto, em uma igualdade meramente formal ou de iure, a qual esteve presente, no Brasil, na caracterização formal das instituições dos períodos considerados por Paulo Bonavides a primeira e segunda fases do constitucionalismo pátrio, às quais pertencem, respectivamente, as Constituições de 1824 e 1891 (BONAVIDES, 2009, p. 361 e ss). Na primeira, o princípio em apreço consta do artigo 173, item 13, in verbis: “A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Preceitua a outra, sucintamente, no §2º de seu artigo 72, serem todos iguais perante a lei. No entanto, logo no século XIX, o tratamento burguês da igualdade revelou-se insuficiente. A lei, ao conceder os mesmos direitos de forma genérica a todos os indivíduos, terminava por ignorar suas prerrogativas ou desvantagens, naturais ou sociais, de materialização de direitos (BOBBIO, 1990, p. 23). A contrario sensu, pois, a igualdade formal revelou-se fonte de acentuadas desigualdades, principalmente de natureza econômica. 4 IGUALDADE MATERIAL OU DE FACTO A partir de tal constatação, evidencia-se a necessidade de substancializar a igualdade no acesso aos direitos e garantias dignificadoras da pessoa humana (BONAVIDES, 1972, p. 6 e 7). Desse modo, o tratamento liberal da igualdade, insatisfatório quando abrigado com exclusividade nas constituições modernas, acha-se gradativamente complementado por dispositivos de teor social. Trata-se da tutela da igualdade material ou de facto, auferível mediante a compensação dos natural ou socialmente hipossuficientes, proporcionando-lhes a mesma dignidade daqueles “que nunca sofreram quaisquer restrições” (BULOS, 2009, p. 421). 170 Esta nova noção de igualdade se adequa à terceira e atual fase do constitucionalismo brasileiro, denominada por Paulo Bonavides de “constitucionalismo do Estado Social” (BONAVIDES, 2009, p. 366), cuja inauguração deu-se sob o influxo primordial da Constituição Alemã de Weimar de 1919. Não se trata, no entanto, da renúncia às características provenientes de fases anteriores, mas da conciliação destas com a nova realidade ou de sua incorporação de maneira cumulativa, conforme se verá infra. A partir da Constituição Federal de 1934, a primeira da etapa vigente, abandona-se a mera declaração de uma igualdade aritmética e busca-se sua concretização. Paradoxalmente, utiliza-se a discriminação como meio para tanto. Indivíduos, coisas ou situações são amparados por regimes diferentes, com base nas variações de determinado fator, considerado relevante aos olhos do legislador (MELLO, 1993, p. 13). Conforme exemplifica Oscar Vieira Vilhena, para proporcionar-se igual respeito e consideração a uma criança, um adulto e um idoso, os tratamentos dispensados a cada um deles não poderão ser os mesmos. Desse modo, o princípio da igualdade aproxima-se das necessidades reais apresentadas por grupos de pessoas, tornando-se um “regulador das diferenças”, e não mais uma regra de igualdade e absoluta e indiscriminada, o que pode sintetizar-se no enunciado de que “todos os Xs têm direito a Y” (VIEIRA, 2006, p. 284 e 285). 5 CRITÉRIOS PARA A EFETIVAÇÃO DA IGUALDADE MATERIAL Mas o que difere a discriminação que proporciona a igualdade daquela que, contrariamente, a ofende? Em um primeiro momento, tem-se a impressão de que a legitimidade da discriminação aceitável reside no próprio traço de diferenciação escolhido. Essa suspeita supostamente confirma-se pela da análise de dispositivos constitucionais como o artigo 113 da Constituição Federal de 1934, que estabelecia, in verbis: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções por motivos de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”. 171 No entanto, Celso Antônio Bandeira de Mello identificou três critérios que, se observados cumulativamente, possibilitam a utilização de qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações como fator de discrímen. O primeiro deles exige que este elemento não especifique o destinatário da diferenciação a ponto de singularizá-lo. Procura-se impedir, com isso, que a concessão de um benefício ou a imposição de uma sujeição se revelem fontes de favoritismo ou ofensa à garantia individual (MELLO, 1993, p. 24). Ademais, não se podem eleger quaisquer fatores alheios às pessoas, coisas ou situações a serem discriminadas. Conforme exemplifica o próprio Bandeira de Mello, ofender-se-ia o princípio da igualdade ao conceder “aos magistrados ou aos advogados ou aos médicos que habitem em determinada região do País – só por isso – um tratamento mais favorável ou mais desfavorável juridicamente” (MELLO, 1993, p. 30). O segundo critério consiste na exigência de haver correlação lógica e abstrata entre o elemento tomado como fator de discrímen e a disparidade estabelecida. Ofenderia a igualdade, verbi gratia, permitir-se somente a funcionários gordos o afastamento remunerado para assistir a congresso religioso (MELLO, 1993, p. 38). Neste caso, não se guarda a referida correlação entre o elemento compleição corporal e o privilégio produzido. Por fim, o terceiro critério procura impedir que a desigualação revista de caráter negativo situações às quais a Constituição confere conotação positiva e vice versa. É dizer, nenhum dispositivo constitucional deve restar desacatado pela prática da discriminação (MELLO, 1993, p. 42). Tendo em vista que a observância de tais critérios permite que a prática de discriminações constitua meio idôneo ao alcance da igualdade de facto, deve-se compreender que, a exemplo já citado do artigo 113 da Constituição Federal Brasileira de 1934, a proibição de adotar-se qualquer dos fatores de desigualação arrolados nas Cartas aplica-se somente nas ocasiões em que originam discriminações odiosas e preconceitos. Exempli gratia, a atual Constituição Federal Brasileira, de 1988, trata de maneira abrangente as desequiparações entre pessoas. No caput de seu artigo 5º estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Em seguida, no inciso I deste mesmo artigo, estabelece que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. No entanto, nos artigos 40, §1º, III, a e b e 201, 172 §7º, I e II, instaura a aposentadoria da mulher com menor tempo de contribuição e idade. José Afonso da Silva justifica tal medida considerando que a mulher que trabalha apresenta uma sobrecarga de serviços, proporcionada pelo fato de que a ela tradicionalmente cabem as tarefas domésticas, para a realização das quais conta com pouca ajuda do marido (SILVA, 2007, p. 217 e 128). Destarte, os dispositivos que à primeira vista constituiriam uma antinomia inconciliável com princípio da igualdade, em verdade, contribuem para a distribuição eqüitativa de dignidade social. 6 DIMENSÕES DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Ainda utilizando-se do mesmo exemplo, podem-se demonstrar as três dimensões que, segundo J. J. Gomes Canotilho, compõem o princípio da igualdade no contexto do Estado de Direito Democrático, fundado no Brasil pelo artigo primeiro da Constituição Federal de 1988 sob a denominação de Estado Democrático de Direito. Ao determinar que “todos os cidadãos são iguais perante a lei” e que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, proíbe-se a distribuição das pessoas em diferentes classes jurídicas tendo em vista características provenientes do nascimento e do sexo. De maneira mais abrangente, visa proporcionar a igual posição de todas as pessoas perante a lei geral e abstrata. Trata-se da dimensão liberal do atual princípio da igualdade, herança do Estado Liberal de Direito (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 337 e 338). Quanto ao tratamento diferenciado de determinado grupo de indivíduos frente a uma situação concreta, verifica-se uma “desequiparação positiva”, característica da dimensão social deste princípio. Esta visa a eliminação ou atenuação das desigualdades, e a conseqüente consecução de uma igualdade real entre as pessoas (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 337). Por fim, a dimensão democrática visa tolher qualquer espécie de desequiparação injustificada no tocante à participação política (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 337). 173 A partir da conjugação destas três dimensões, aufere-se o princípio da igualdade como o principal dentre os princípios garantidores dos direitos individuais (MELLO, 1993, p. 45). Portanto, constitui-se um dos alicerces da atual configuração de Estado em Democrático de Direito, o qual, de acordo com o artigo segundo da Constituição da República Portuguesa, baseia-se: [...] na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. Diante do exposto, constata-se que a tutela da igualdade como princípio constitucional constitui uma das mais recentes conquistas do constitucionalismo brasileiro. Com base em Pontes de Miranda, pode-se asseverar que, de maneira geral, o desenvolvimento dos princípios capazes de proporcionar a dignificação da pessoa humana encontra-se a meio caminho, mesmo nos países em que a afirmação e reconhecimento destes verificam-se nos mais elevados graus (MIRANDA, 1953, p. 6). Destarte, como tudo o que é novo, o princípio da igualdade necessita ser desbravado, explorado e desenvolvido, o que seguramente mostrar-se-á frutífero tanto no campo doutrinário como no prático. No entanto, José Afonso da Silva e Celso Antônio Bandeira de Mello alertam que há “minguado auxílio doutrinal efetivo em tema de igualdade” (MIRANDA, 1953, p. 12), uma vez que este não tem merecido “tantos discursos como a liberdade” (SILVA, 2007, p. 211). Destarte, a realização do presente trabalho justifica-se na medida em que este se constituirá contribuição para o suprimento dessa escassez de trabalhos sobre o princípio constitucional da igualdade, mesmo que de maneira modesta. Ademais, tendo em vista que a pesquisa e a produção de conhecimento doutrinário acerca da temática da igualdade constituem-se meios aptos fazer com que esta seja observada tanto na atuação dos Poderes Públicos como nas relações dos particulares entre si, este ensaio constituir-se-á contributo à consolidação do Estado Democrático de Direito, do qual o princípio da igualdade é pressuposto fundamental. 174 Por fim, há que ressaltar-se a inegável constatação de que, a negligência do estudo e da aplicação do princípio em tela significa abrir espaço à prática de discriminações injustificadas e, conseqüentemente, de preconceitos dos mais odiosos gêneros. 1 Saliente-se: conhecer a realidade. John Locke identificava, ainda, uma segunda fonte de conhecimento, denominada reflexão, pela qual a mente humana far-se-ia capaz de conhecer seus próprios procedimentos cognitivos, o que não haveria como provir de fontes externas. Verbi gratia, o pensamento, a crença, o raciocínio e etc. (LOCKE, 1983, p. 160) 2 Diz-se que as sombras projetam-se na parede de uma caverna devido ao Mito da Caverna, elaborado por Platão para explicar, por meio de metáforas, como usualmente opera a inteligência humana com relação ao conhecimento das coisas. 3 Verificar item 4. 4 No original: “Article premier: Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l'utilité commune.” REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Maria Helena Pires, MARTINS. Temas de filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2005. ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Edipro, 1995. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. BOBBIO, Norberto; METTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 12. ed. Brasília: UnB, 2004. v. 1. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. BONAVIDES, Paulo. 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