Ao
Ministério da Justiça da República Federativa do Brasil – Secretaria de Assuntos
Legislativos (SAL)
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Ministério da Justiça, 4º andar, sala 426
Brasília – DF
CEP 70.064-900
Ref. Nota Técnica do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais ao PL 5502/2013
(Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), para tornar crime vender,
fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a
criança ou adolescente; e revoga o inciso I do art. 63 do
Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das
Contravenções Penais).
O INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCRIM, entidade
não governamental, sem fins lucrativos, com sede na cidade de São Paulo (SP), Rua
Onze de Agosto, 52 – Centro, vem, por meio de seus representantes, apresentar nota
técnica sobre o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 5502/13.
1.
É absolutamente louvável se partir, no campo de processo legislativo que
pretenda dar atenção às crianças e adolescentes brasileiros, ter como norte a doutrina da
1
proteção integral e, particularmente, o escopo protetivo do artigo 227, da Constituição
da República.
Também inquestionável que as crianças e adolescentes, seja pela dita escolha
constitucional, seja pela intuitiva situação de desenvolvimento que as expõe com mais
sensibilidade a riscos sociais, merecem a melhor e mais efetiva tutela, por intermédio do
Estado e também, de órgãos comunitários, sem falar da família.
Feita a advertência inicial, chega-se ao centro do problema.
2.
O PL 5502/13, aprovado na Câmara dos Deputados após o encaminhamento do
PLS 508/11, que criminaliza a venda de bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes – e
com isso revoga o art. 63, I, da Lei de Contravenções Penais -, além de impor pesada
multa pecuniária (variável entre R$ 1.000,00 e R$ 3.000,00, nos termos do acrescido
art. 258-C, ao ECA) à desobediência no cumprimento da lei, atende a dois propósitos.
O primeiro, como constava do PLS 508/2011 e foi encampado no PL 5502/13, é
o de dar “fim a candente discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a aplicação do art.
63, I, da Lei de Contravenções Penais, ou do art. 243, do próprio ECA.” (justificação, p.
2). Por essa perspectiva, o que se pretende é superar, por via legislativa, os precedentes
do STJ predominantes na matéria.
E o segundo, como constou do parecer aprovado pela Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (CJC) do Senado Federal que readequou o patamar da pena imposta
no projeto de lei aos patamares do hoje vigente art. 243 do ECA, é retirar o tratamento
da matéria “do âmbito da Lei das Contravenções Penais, possibilitando a aplicação de
medidas mais rigorosas para coibir essa prática nefasta.” (p. 2)
Assim, as contribuições, sintéticas, que o Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais se propõe a fazer nesse caso, podem ser aglutinadas na seguinte colocação:
mesmo que o legislador tenha a legitimidade democrática para superar precedentes
judiciais, o citado Projeto de Lei afronta o interesse público.
A situação é, pois, merecedora de parcial veto por parte de S. Exa., a
Presidenta da República Federativa do Brasil, por contrariedade ao interesse
público (art. 66, §1º, CF).
Em outros termos: a partir da premissa da possibilidade abstrata de se superar
precedentes mediante inovação legislativa, empiricamente não se encontra qualquer
2
justificativa para deixar de tratar o tema como contravenção penal e tomá-lo como
crime com pena de 2 a 4 anos.
3.
Sabe-se que tema candente, seja nas escolhas políticas, seja nas decisões
judiciais mais atuais do Brasil e fora daqui, constitui-se na chamada “proibição de
proteção insuficiente”, o que, a existir, reclama tutela mais efetiva, isto é, mais sensível
aos pontos em que a proteção não é suficiente.
Como se apregoa, aqui e no estrangeiro, a “proibição de proteção insuficiente”
pode ser vista, até, como o outro lado da moeda da proibição do excesso,
particularmente em matéria de direito e de processo penal.
Pois bem. A partir dessa perspectiva, parece que a escolha do legislador foi
partir da premissa de que a tutela penal dos adolescentes expostos aos riscos de compra
de bebidas alcoólicas, como vista hoje, é insuficiente.
E esse é, particularmente, o problema da escolha política: não há indicativo
algum, seja em qualquer menção do projeto, seja em quaisquer pesquisas por
índices oficiais, de que a Lei de Contravenções Penais tenha sido, sequer, acionada
nas matérias.
4.
O ponto é importante: nenhum cidadão responsável desconhece os efeitos
deletérios do consumo excessivo de álcool, e nem muito menos a potencialidade dos
males causados à saúde individual e pública, em situação de livre comércio a crianças e
adolescentes. Ainda assim, e até paradoxalmente, diante de quadro tão conhecido
quanto cruel, não se percebe iniciativa para estudo, no âmbito público ou privado,
especificamente, de motivação para a modificação da lei.
Dizendo de outro modo, mas como forma de se chamar a atenção ao risco da
manipulação legislativa na utilização do Direito Penal como promotor – o que é claro
equívoco de escolha pública em tempos de Estado Democrático de Direito – de política
social sem se refletir previamente sobre canais diversos do recrudescimento penal para
se chegar ao mesmo fim.
Desconsiderar, na vã imaginação de que a mera nova roupagem da mesma
conduta, tornando-a mais grave, resolveria o apontado déficit da proteção estatal,
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significa grave descuido com as premissas das quais qualquer alteração legislativa deve
partir.
No caso posto à apreciação da Exa. Sra. Presidenta da República, não se
comprovou minimamente a deficiência da tutela na Lei de Contravenções Penais e
se imagina, ainda assim, revogá-la para readequar o tema em dispositivo penal
mais rígido.
5.
Nesse cenário, sente o IBCCrim que há um equívoco legislativo porque a
imaginada deficiência na proteção dos interesses de crianças e adolescentes não está na
previsão da Lei de Contravenções Penais; e sim, muito antes, em sua não-aplicação.
Ora bem.
No âmbito do Estado de Direito brasileiro, e, vez mais, a partir do extrato do art.
227, da Constituição Federal, previram-se medidas estatais e comunitárias de prevenção
aos riscos de exposição de crianças e adolescentes quanto ao contato indevido com
drogas lícitas ou ilícitas; e, dentre elas, a exposição ao comércio de bebidas alcoólicas.
Mas há mais.
6.
Estrutura-se o Ministério da Justiça, com a Secretaria de Assuntos Legislativos –
SAL - com corpo técnico adequado para, no âmbito de programas institucionais de
idoneidade conhecida, propor estudos científicos prévios ao encaminhamento de
Projetos de Lei, contando com conhecidas possibilidades de remuneração a cientistas do
direito e de áreas contíguas a, primeiro, mapear possíveis pontos de necessidade de
reconformação legislativa.
Vale lembrar a esse propósito – e particularmente por se tratar de possibilidade
interna do próprio Poder Executivo, em cuja autoridade máxima agora reside a
possibilidade de vetar ou aprovar o projeto de lei (CF, art. 66), o programa Pensando o
Direito.
Dentre tantas bem sucedidas iniciativas daquele programa, de amplo
conhecimento nacional, são de se lembrar, por exemplo, os debates públicos sobre
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temas tão importantes à sociedade quanto este aqui comentado, quais sejam: Marco
Civil da Internet; Proteção de Dados Pessoais1.
É cortante perceber que o programa Pensando o Direito, criado em 2007 pelo
Ministério da Justiça – órgão consultivo da Presidência da República em matéria de
processo legislativo – desde então tem o seguinte perfil:
“O Projeto Pensando o Direito é uma iniciativa da Secretaria de Assuntos
Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ), e foi criado em 2007 para
promover a democratização do processo de elaboração legislativa no Brasil.
A partir do lançamento de editais para a contratação de equipes de pesquisa, o
Projeto mobiliza setores importantes da sociedade – Academia, instituições de
pesquisa, ONG’s entre outros – para a realização de estudos em temas de
interesse da Secretaria.
Para atingir o propósito de conferir com maior efetividade às normas perante a
realidade social, são privilegiadas pesquisas aplicadas, de caráter empírico, com
o emprego de estratégias qualitativas e quantitativas que informem e
fortaleçam o debate no processo de produção de leis e demais atos normativos.
Além de qualificar a atuação da SAL/MJ, órgão que tem por objetivo
institucional a preservação da ordem jurídica, essa iniciativa busca fortalecer as
instituições democráticas voltadas à construção de um ordenamento normativo
mais próximo da realidade da população brasileira. A aproximação entre
Academia e Parlamento permite que a discussão política seja associada a
argumentos, dados e informações embasados em pesquisas com comprovação
empírica, propiciando a construção de normas mais democráticas e efetivas.”2
Imaginar-se, a partir de todo esse contexto – e particularmente no desprestígio
que seria ao próprio Ministério da Justiça a aprovação ao Projeto de Lei sem contar com
o prévio estudo de seu conhecido corpo técnico, talhado especificamente para esse fim que a Lei de Contravenções Penais não tem eficácia ou, pior, fazer pouco dos deveres
1
Mera consulta ao sítio do Ministério da Justiça possibilita diagnosticar a importância que se dá a esses
temas: http://participacao.mj.gov.br/
2 participacao.mj.gov.br/pensandoodireito/o-que-e/
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estatais de proteção que não passam pela atuação do sistema penal para desde logo
trazê-lo à baila, soa como medida descompromissada com os compromissos assumidos
constitucionalmente, mais preventivos e construtivos, do que a pretendida nova tutela
penal.
Como se sabe desde Beccaria, a se levar a sério a ideia de se evitar ao máximo e
dentro de limites toleráveis de Estado de Direito a impunidade: mais conta aplicar a lei
vigente do que simplesmente trocá-la por outra.
7.
Parece ao IBCCrim, particularmente, que o tema – importante como se disse
logo no início desta manifestação – tem importância que transcende ao seu tratamento
no âmbito específico do Direito Penal, isto é: não se cuida de questão exclusivamente
repressiva; ao contrário, trata-se – é preciso ter olhos para ver, no cume do exercício
lídimo do Poder Executivo e de sua decisão de cumprir a Constituição do país – de
questão de saúde pública.
O assunto, pois, nitidamente, resolve-se com políticas de planejamento; e
não com alteração penal. Com isso quer o IBCCrim frisar: o interesse público aí
está – no planejamento, na prevenção, no raciocínio construtivo; e não, de forma
alguma, na repressão penal, que soa simbólica e de nenhum poder reativo ao
estado de coisas.
Por isso mesmo, não há como se dizer que a premissa da qual se partiu no citado
projeto de lei é válida.
Não há consonância do citado projeto de lei ao interesse público que
entorna o tratamento de crianças e adolescentes. Bem ao contrário, não há
qualquer razão para, a partir de absolutamente nenhum critério empírico quanto
à insuficiência da proteção penal vigente, postular, abruptamente e sem discussão
quanto a intervenção menos castradora dos direitos e garantias individuais,
recrudescer a pena prevista para os casos em questão.
Há um problema, portanto, de cunho político-criminal, que soa inclusive a um
retrocesso, com o devido a respeito, a tempos pré-iluministas.
8.
A bem da verdade, e conclusivamente, entende o Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais que a nova legislação trará efeitos meramente simbólicos.
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A uma, porque tanto a Lei de Contravenções Penais quanto a nova redação
pretendida para o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente trará a
consequência de, em caso de condenação na última e em caso de transação penal
naquela, a manutenção da liberdade do comerciante.
E, de toda forma, a recalcitrância na prática vedada significará, inclusive ao hoje
incurso na Lei de Contravenções Penais, a impossibilidade de receber o novo benefício,
dentro do prazo de 5 anos a contar da homologação do acordo firmado na primeira
situação em que processado (Lei 9099/95, art. 76, § 4º).
E, a duas, porque o que realmente parece ter algum efeito dissuasório no
comerciante que poderia expor à venda bebidas alcoólicas a adolescentes seria medida
de cunho patrimonial, isto é: a imposição de pena de multa.
9.
Por essa específica e concludente razão, sustenta o IBCCrim que o projeto de
Lei n. 5502/2013, deve ser parcialmente vetado.
Se acaso realmente se entender que a situação é de proteção insuficiente aos
adolescentes, que se sancione a alteração quanto ao artigo 258-A, do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Mas se vete, por contrariedade ao interesse público na
efetiva tutela aos adolescentes, a proposta de revogação do art. 63, I, da Lei de
Contravenções Penais, e se evite, assim, a inserção da bebida alcoólica,
expressamente, como constante do tipo penal do art. 243, do ECA.
Clamorosa a falta de interesse público no tema, como se confessa inclusive e até
pelas razões do citado Projeto de Lei: a questão quanto à alteração jurisprudencial que
se pretende na matéria deve ser debatida em âmbito dos próprios Tribunais; tanto no
próprio STJ, quanto, se for o caso, no STF.
No STJ, se controvérsia jurisprudencial ocorre, cabe àquele Tribunal de
Cassação, ao fim e ao cabo, determinar a interpretação da legislação infraconstitucional
brasileira.
E o STF pode ser provocado quanto à interpretação do STJ e a apontada
deficiência no cumprimento do artigo 227, da Constituição Federal, em vias de controle
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difuso ou concentrado de constitucionalidade, inclusive e particularmente por meio de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
De São Paulo para Brasília, aos 05 de março de 2015.
Andre Pires de Andrade Kehdi
Alberto Silva Franco
(Presidente do IBCCrim)
(1º Vice-Presidente do IBCCrim)
Renato Stanziola Vieira
(Coordenador-Chefe do Departamento de Estudos e Projetos
Legislativos do IBCCrim)
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