FRAUDE À LEI EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA1 I. INTRODUÇÃO: ETIMOLOGIA, NOÇÃO E ESTRUTURA DA FRAUDE À LEI Etimologicamente fraude deriva do latim fraus, fraudis (engano, má-fé, logro), entende-se geralmente como engano malicioso ou ação astuciosa, promovidos de má-fé, para ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever. Segundo Aurélio 2: “fraude. (Do lat. Fraude.) S. f. 1. V. logro (2). 2. Abuso de confiança; ação praticada de má-fé. 3. Contrabando, clandestinidade. 4. Falsificação, adulteração. (Sin. ger.: defraudação, fraudação, fraudulência.)” Nestas condições, a fraude traz consigo o sentido de “engano”, não como se evidencia no “dolo”, em que se mostra a manobra fraudulenta para induzir outrem à prática de ato, de que lhe possa advir prejuízo, mas o “engano oculto” para furta-se o fraudulento ao cumprimento do que é de sua obrigação ou para “logro de terceiros”. É a intenção de causar prejuízo a terceiros. Assim, a fraude sempre3 se funda na prática de “ato lesivo” a interesses de terceiros ou da coletividade, ou seja, em ato onde se evidencia a intenção de “frustrar-se” a pessoa aos deveres obrigacionais ou legais. É por isso, indicativa de “lesão de interesses” individuais, ou “contravenção” de regra jurídica a que se está obrigado. O dolo é astúcia empregada contra aquele com quem se contrata. 1 Escrito por MARCUS VINICIUS LIMA FRANCO, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília e Advogado da União com atuação profissional na Procuradoria da União em Sergipe. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1998. p. 810. 3 Vale registrar aqui aquilo que a doutrina denomina de simulação inocente, que é aquela que oculta um negócio que seja válido por um motivo até altruístico, ou seja, uma simulação que não encerra fim fraudulento, contrário à lei ou que vise causar prejuízo a terceiro. 2 Segundo velha lição romana ao fraudulento, aquele que comete fraude, não aproveita o ato lesivo: nemini fraus sua patrocinari potest. Além do sentido de “contravenção à lei”, notadamente fiscal, possui o significado de “contrafação”, isto é, “reprodução imitada”, “adulteração”, “falsificação”, “inculcação” de uma coisa por outra. Aliás, em todas as expressões, está no seu sentido originário de “engano”, “má fé” e “logro”, todos fundados na intenção de “trazer um prejuízo”, com o qual se locupletará o “fraudulento” ou “fraudado”. A fraude fiscal é a contravenção às leis tributárias ou regras fiscais, como objetivo de fugirão pagamento do imposto devido. Ressalte-se, nesse ponto, que a “fraude à lei tributária” não tem qualquer semelhança com a “fraude tributária” tal como tratada em diversos artigos do Código Tributário Nacional (149, VII; 150, § 4º, 154, parágrafo único), e na própria legislação criminal (art. 1º, II e art. 2º, I da Lei nº 8.137/91). A fraude ou defraudação tributária implica necessariamente violação grave e frontal de deveres tributários principais e acessórios, como falsificar documentos livros fiscais, “fazer caixa dois” etc. Nesse sentido, a fraude tributária ou defraudação são típicos fenômenos da evasão de tributos através quase sempre de comportamentos criminosos. Muito diferente é a “fraude à lei tributária” (fraus legis) que a rigor não se configura uma violação frontal ao ordenamento tributário, mas um procedimento sofisticado pelo qual se busca evitar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Um aspecto da fraude à lei muito interessante, e que respalda sua constitucionalidade e de sua adequação também às regras interpretativas do CTN, é o seguinte: através do procedimento de declaração de fraude à lei tributária, o que equivale à declaração de que o contribuinte dissimulou a ocorrência do fato gerador através de atos ou negócios jurídicos, não se procura corrigir falhas da lei, que deveria ter gravado expressamente determinados atos mas por imperícia ou imperfeição redacional não o fez. Não é isso. Se o problema ocorre com a lei, que efetivamente gravou menos manifestações de capacidade contributiva de que poderia ter feito, e o individuo ou a empresa se aproveitaram desta “lacuna”, então não há que se falar em fraude alguma, não há que se falar em comportamento dissimulado. 3 A fraude à lei supõe que o problema não está na lei, a qual cumpriu o seu papel satisfatoriamente: o problema está é na atuação fraudulenta do sujeito passivo (lembrando mais uma vez que nem todas as atuações que buscam exclusivamente economias fiscais são ipso facto fraudulentas). Assim, a técnica da fraude à lei tributária não é uma solução à imperfeições da lei, mas um instrumento excepcional que resulta necessário para assegurar a plena aplicação da lei tributária, por mais perfeita que seja. Pertinente trazer à colação a lição do eminente Ministro Moreira Alves4, que esclarece que: No direito romano já se fazia a distinção entre os atos contra legem e os atos in frudem legis, embora nem sempre os textos romanos sigam essa distinção. Quando se estuda o problema da interpretação das leis, distinguem-se os verba legis da mens legis (e não da mens legislatoris). As verba legis são as palavras de lei, e a mens legis é o espírito da lei, ou seja, aquilo que suas palavras pretenderam exprimir . Daí, na interpretação da lei examina-se, num primeiro estágio (o da interpretação gramatical ou literal), os verba legis, ou seja, as palavras da lei, e num segundo estágio (o da interpretação lógica), a mens legis (o espírito da lei). A mesma distinção é de fazer-se aqui, porque no problema da fraude à lei o que ocorre justamente é isto: observa-se a letra da lei, mas para se alcançar um fim contrário ao espírito da lei. Emprego a palavra lei no sentido amplo, para traduzir norma jurídica, pois, embora sejam raros os exemplos, é possível inclusive ocorrer fraude ao costume. Quando o ato vai contra as palavras e o espírito da lei, é ele contra legem, contrário à lei, em que há a violação direta da lei. Já quando o ato preserva a letra da lei, mas ofende o espírito dela, o ato é de fraude à lei. É possível, para praticar-se fraude à lei, que haja a utilização de 4 um ato só ou de um complexo de atos. De um ato só, temos vários exemplos. Darei o célebre exemplo de uma Constituição Imperial do Imperador Constantino, que estabeleceu que todas as doações de valor superior a 500 sólidos precisariam observar o instituto da insinuatio apud acta, ou seja, deviam ser celebradas por escrito e registradas em arquivo público. Então o que se fazia para não se observar essas formalidades era, ao invés de doar para a mesma pessoa 500 sólidos, celebrar seis doações cada uma de 100 sólidos. Com isso observavam-se estritamente as palavras da lei: não havia, considerando-se esse fracionamento, doação de mais de 500 sólidos. Desrespeitava-se, porém, o espírito da lei, que era justamente o de que toda doação que ultrapassasse o valor de 500 sólidos teria de observar aquelas formalidades. Por vezes, há necessidade de uma conjugação de atos. Temos, por exemplo, o caso e pessoas interpostas para o fim de fraudar à lei. Funcionário público não pode comprar em leilão bem público, então um amigo dele compra em leilão não para ficar com ele, mas com a finalidade posterior de revender esse bem para aquele funcionário público. Conseqüentemente, as palavras da lei foram observadas: ele não comprou em leilão, e sim, de terceiro, mas o espírito da lei foi violado. Assim, temos aqui um complexo de negócios jurídicos que em si mesmos são válidos, mas pela sua reunião passa a ser em fraude à lei. Observam os verba legis, mas ferem a mens legis ou a sententia legis. Temos, portanto, que a fraude à lei é uma espécie de gênero violação à lei. Quando é contra legem, há violação direta: quando é in fraudem legis, temos violação indireta. Também nesses casos se trata de ato ou negócio jurídico querido ou de complexo de atos ou negócios jurídicos queridos, havendo coincidência entre a vontade e a sua manifestação, ao contrário do eu ocorre na simulação. Quanto aos elementos de fraude à lei há duas posições doutrinárias: uma que considera que a fraude à lei é sempre objetiva; basta que haja a violação indireta para que, objetivamente, ocorra a fraude à lei. A outra é a subjetiva: a de a violação indireta, que é o objetivo da fraude à lei, decorrer de elemento subjetivo, ou seja, a intenção de fraudar a lei. 4 ALVES, José Carlos Moreira. As figuras correlatas da elisão fiscal. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003. p. 5 A teoria objetiva é a mais seguida, porque, pela teoria subjetiva, é preciso que o individuo conheça a lei que está violando, para saber que está infringindo essa lei. Aí, há a dificuldade decorrente do princípio geral de que a ninguém é dado desconhecer a lei. Por essa presunção absoluta, ou melhor, por essa ficção, porque não há, obviamente, ninguém que possa conhecer todas as leis que existem no país, todos se têm como conhecedores da lei, o que implica que se cairá sempre, em última análise, na teoria objetiva, porque o elemento subjetivo existirá por essa presunção. II. DISTINÇÃO DA FRAUDE À LEI DE FIGURAS AFINS, TAIS COMO ABUSO DE DIREITO, ABUSO DE FORMA, SIMULAÇÃO E DISSIMULAÇÃO. As doutrinas brasileira e estrangeira demonstram que o conceito de elisão tributária está relacionado ao emprego de formas jurídicas anormais, atípicas, inadequadas a sua finalidade usual, artificiais, na realização do fato imponível. É tradicional a referência à manipulação ou à adaptação do fato imponível como instrumento para atingir vantagem tributária. Diante deste fato, cabe a descrição das modalidades utilizadas na obtenção destas vantagens fiscais. A análise de institutos de direito privado tem correlação direta com a interpretação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 2001. As figuras que aqui serão abordadas se referem a algo que se prende à utilização de meios aparentes para ocultar aquilo que realmente as partes contratantes desejam, ou, então, à utilização de vias indiretas em vez de se utilizarem diretas para alcançarem os fins intentados. São elas o negócio jurídico simulado e dissimulado, o abuso de forma e de direito e, por fim, o negócio jurídico em fraude à lei, o grande objeto desse nosso despretensioso estudo. A diferença entre a chamada “economia de impostos” e a evasão reside na licitude ou ilicitude dos procedimentos ou dos instrumentos adotados pelo indivíduo; por isso e 17-19. 6 que se fala em evasão legal e evasão ilegal de tributo. Análoga é a lição de Ives Gandra da Silva Martins5 e Antônio Roberto Sampaio Dória6, ao afirmarem que a distinção básica entre elisão (ou economia de impostos) e evasão está na licitude ou ilicitude dos meios empregados pelo indivíduo. Não se discute, é claro, que a fraude ou o artifício para mascarar ou dissimular o fato gerador são espécies do gênero evasão fiscal. Se alguém rasura documentos fiscais, ou registra fatos inverídicos, “notas ou recibos frios”, a ilicitude é evidente. Mas, certamente, há mecanismos menos grosseiros de ocultar ou dissimular os fatos, manipulando esquemas formais não coincidentes com a realidade dos fatos. O problema resvala, em última análise, para a apreciação do fato concreto (fato real) e de sua correspondência com o modelo abstrato (forma) utilizado. Se a forma não refletir o fato concreto, ela deve ser desqualificada. A simulação se traduz pela falta de correspondência entre o negócio que as partes realmente estão praticando e aquele que elas formalizam. As partes querem, por exemplo, realizar uma compra e venda, mas formalizam (simulam) uma doação, ocultando o pagamento do preço. Ou, ao contrário, querem este contrato, e formalizam o de compra e venda, devolvendo-se (de modo oculto) o preço formalmente pago. Em outras palavras, o negócio jurídico simulado é aquele que cria uma aparência querida pelas partes. É uma aparência que se cria, com a finalidade de apenas criá-la, sem se querer ocultar algo que realmente se deseja (simulação absoluta), ou então se cria essa aparência para ocultar o que realmente se deseja (simulação relativa). Na sempre atual doutrina de Clóvis Bevilacqua7, a simulação ocorre se e quando há “uma declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado”. De acordo com o conceito normativo de simulação, esta ocorre sempre que presentes declarações falsas ou documentos falsos. O negócio simulado é o que tem uma apa5 MARTINS, Ives Gandra da. Elisão e evasão fiscal, in caderno de Pesquisas Tributárias nº 13, São Paulo: Resenha Tributária, 1998. p. 118. 6 7 DÓRIA, Roberto Sampaio. Elisão e evasão fiscal. 2. ed. São Paulo: José Buushatsky, 1977. p. 58 BEVILACQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 225. 7 rência contrária à realidade, ou porque não existe em absoluto ou porque é diferente da sua aparência. No negócio simulado, o defeito pode recair sobre a existência do negócio, sobre a sua natureza, ou sobre as partes, as pessoas contratantes. A doutrina costuma distinguir entre simulação absoluta e relativa. No primeiro caso, o ato é inexistente, não inválido, enquanto que na simulação relativa o ato é mentiroso quanto ao seu conteúdo. Vejamos os exemplos de simulação absoluta e relativa citados por Moreira Alves8: ... ocorrendo uma revolução, e havendo a perspectiva de confisco dos bens dos anti-revolucionários, um deles celebrar simuladamente – simulação absoluta – contrato de compra e venda com um amigo que não corre esse risco por ser partidário da revolução, tornando-se este aparentemente proprietário da coisa, e não correndo, portanto o risco de tê-la confiscada. Criou-se a aparência sem que se oculte por baixo dela um negócio jurídico que é realmente desejado. ... quando o marido, não podendo fazer doação à sua concubina, simula compra e venda, pois não recebe o preço, para que essa compra e venda, na realidade, oculte uma doação – simulação relativa. Para que haja a simulação é preciso que exista: a) divergência entre a vontade interna e a vontade manifestada; b) a necessidade que o acordo simulatório ocorra entre as partes; e c) objetivo de enganar terceiros estranhos a esse ato simulado. A simulação e a dissimulação são defeitos do negócio jurídico que objetivam burlar a lei ou prejudicar terceiros, procurando alguma vantagem econômica. Apesar de possuírem a mesma finalidade e representarem uma realidade falsa, têm aplicações distintas e significados próprios. 8 ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit., p. 12-13. 8 Simular significa aparentar algo que não existe enquanto que dissimular significa esconder algo que existe. Na simulação encontramos apenas um componente irreal que se esgota em si mesmo, visando o ato a ser apresentado ao mundo, enquanto que na dissimulação existe um componente irreal para ocultar um componente real, visando um ato a ser escondido. Não há como confundir simulação com dissimulação, que também é chamada de simulação relativa pela doutrina. Desta forma, precisa é a definição trazida pela Lei Complementar nº 104 quando alude a desconsiderar atos que visem "dissimular" a ocorrência de fato gerador ou natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Neste sentido Ricardo Mariz de Oliveira9 pontifica: Com efeito, este dispositivo manda desconsiderar os atos ou negócios que aparentem perante o mundo exterior uma realidade falsa, porque a realidade verdadeira, que se constitui no fato gerador e/ou nos elementos constitutivos da obrigação tributária, está ofuscada pelos atos ou negócios dissimulatórios. Sendo assim, como os atos ou negócios dissimulatórios encobrem o fato real, incumbe à autoridade administrativa desconsiderá-los para desvendar a verdade, isto é, para trazer a verdade material às luzes claras. Dissimulação ou simulação relativa é a expressão mais correta a ser usada para conferir a lei o intuito desejado. Em matéria tributária, mesmo que tratemos de simulação absoluta, ou simulação propriamente dita, estaremos diante de simulação relativa. 9 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reinterpretando a norma antielisão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, nº 76. p. 97 9 Mesmo que o contribuinte simule um ato absolutamente inexistente (simulação absoluta), v.g. ágio de subscrição de capital, ainda assim, para efeitos tributários, estaremos diante de uma dissimulação. No exemplo mencionado há a simulação de um ato inexistente que não encobre qualquer outro ato, portanto simulação absoluta, mas que afeta os elementos constitutivos da obrigação tributária cujo objeto é o imposto de renda. Neste caso, pode-se notar que há um ato dissimulatório da realidade porque, embora sendo um ato falso que não encubra outro ato real no âmbito privado, no âmbito tributário encobre a realidade representada pela materialidade do fato gerador realmente existente. Portanto, na órbita tributária a simulação da órbita privada é recebida como dissimulação por encobrir a base de cálculo de tributo, no caso, de imposto de renda. O que ocorre é a "relativização" dos atos ou negócios jurídicos particulares em relação ao Fisco. Na verdade, o termo “dissimulação”, em uma das suas acepções, corresponderia à figura da simulação. Como o CTN utiliza ambos os termos em diversos dos seus artigos, o melhor entendimento é aquele segundo o qual o sentido de “dissimular” previsto pelo parágrafo único do artigo 116 do referido Código abrange o “simular”, mas possui abrangência maior que este. A teoria do abuso de forma está calcada na utilização de forma jurídica "atípica" ou "não comum" para realização de negócio jurídico visando menor incidência fiscal. Esta teoria, originalmente adotada pelo código alemão, nasce da interpretação econômica do direito tributário, onde é possível identificar quatro requisitos para a caracterização do abuso de formas jurídicas: i) adoção de uma forma jurídica não correspondente ao resultado econômico perseguido; ii) obtenção, através da elisão, de um resultado econômico substancialmente idêntico ao que se obteria com a forma jurídica prevista na lei tributária; iii) irrelevância das desvantagens jurídicas da forma elisiva em comparação com a forma jurídica prevista na lei tributária iv) intenção de elidir imposto. 10 Em suma, o abuso de forma poderia ser traduzido como a utilização de forma jurídica não correspondente ao resultado econômico desejado. Para Ives Gandra Martins10 o abuso de formas não encontra acolhida no direito brasileiro face à inexistência de normas legais que levem a sua aplicação. Gilberto Ulhoa Canto 11 esclarece com propriedade a aplicação da teoria do abuso de forma: O desacerto da teoria do abuso de formas de direito privado parece evidente. Se as formas são de direito privado e elas não são legitimadas pelas normas desse ramo do direito, então estaremos diante de um caso comum de ilegalidade ou nulidade, pura e simples. Mas, se face ao direito privado tais formas são legítimas, não vemos como se possa acusar alguém de estar cometendo abuso destas formas apenas para efeitos legais. Se o legislador tributário não quiser que as formas de direito privado que forem lícitas e legais em face das normas deste ramo do direito produzam os efeitos que os agentes poderiam ter em vista quando a eles recorrem, o que ele tem a fazer é, simplesmente, dizer que para fins especificamente tributários os atos que segundo o direito privado seriam lícitos e eficazes serão tratados como se fossem atos de natureza idêntica a um modelo predeterminado; ou poderia, ainda, o legislador tributário definir, para fins especificamente fiscais, determinados institutos originados do direito privado de modo substancialmente distinto daquele pelo qual estão definidos nesse departamento do Direito. Desta feita, o abuso de forma está intrinsecamente relacionado com os efeitos econômicos do ato praticado e como a intenção do agente. Se a forma utilizada está em desacerto com as normas de direito privado, estamos diante de uma ilegalidade e, portanto, haverá 10 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, nº 36, 2001. p. 231. 11 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Elisão e evasão fiscal, in caderno de Pesquisas Tributárias nº 13, São Paulo: Resenha Tributária, 1998. p. 16-17. 11 evasão fiscal; se a forma utilizada for legal, cabe ao direito tributário regular as situações em que as condutas serão consideradas não lícitas para efeitos fiscais. Vale lembrar que o abuso de forma é citado na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104 como procedimento a ser combatido pela referida lei, apesar de não constar expressamente no corpo do texto legal. O abuso de Direito está intimamente ligado à idéia segundo a qual não há direito ilimitado, e a distinção entre o direito, e a forma pela qual é este exercitado, revela-se de notável importância para a caracterização do abuso do direito, e em conseqüência, permite o estabelecimento de limites para o planejamento tributário, a partir dos quais a conduta destinada a evitar, ou reduzir o tributo, caracteriza “fraude fiscal”. Repita-se que a distinção entre o planejamento tributário e a fraude consiste em que no primeiro a conduta é licita, enquanto na fraude fiscal a conduta é ilícita. Não apenas perante o Direito Tributário, mas no próprio âmbito do Direito Civil ou Comercial. Como tal pode ser considerado o uso de fórmulas anômalas, absolutamente inusuais, cuja validade não pode ser razoavelmente sustentada mesmo no âmbito do Direito em que está situada a figura jurídica então deformada. O abuso de direito pode ser definido, portanto, como sendo o exercício egoístico, normal do direito, sem motivos legítimos, com excessos intencionais ou voluntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem, contrário ao critério econômico e social do direito em geral. O certo é que no mundo atual, pós era liberal, o abuso de direito é contrário à tendência socializante do direito, na sua vontade de sempre o direto, qualquer que seja, atender à sua função social. Moreira Alves12 nos ensina que: 12 ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit., p. 19-20. 12 O Código Civil pretérito não tinha nenhum dispositivo expresso e direto relativo ao abuso de direito. Os autores, em geral, sustentam a sua acolhida por parte do Código Civil pela circunstância de que o art. 160, inciso I, ao dizer que não constitui ato ilícito o exercício regular de um direito reconhecido, dava a entender que o exercício irregular, portanto, abusivo, de um direito reconhecido é abuso de direito. Conseqüentemente, tal Código Civil adotou, contrário senso, a figura do abuso de direito como ato ilícito. O novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) considera abuso de direito como ato ilícito, assim o caracterizando no art. 187, que se encontra no capítulo concernente aos atos ilícitos: “Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” O novel Código utiliza-se aí, inclusive, de um conceito que encontra emprego bastante amplo nele como cláusula geral, que é o conceito de boa-fé objetiva, que não se confunde com aquela boa-fé subjetiva que nada mais é do que a ignorância de não se estar ferindo direito alheio ou pelo menos a convicção de que não se estar ferindo direito alheio. A boa-fé objetiva é a boa –fé normativa, ou seja, aquela boa-fé que implica a observância e certos deveres que não são expressos nos atos jurídicos, mas que são secundários ou instrumentais. Por exemplo: nas tratativas para a celebração de um contrato, e, portanto, antes da celebração deste, já há o dever de sigilo com relação ao conhecimento de fatos, por causa dessas tratativas, que digam respeito à outra parte e que possam causar-lhe prejuízo. O novo Código Civil, portanto, não só conceitua, como caracteriza expressamente essa figura como sendo ato ilícito, sofrendo, conseqüentemente, seu autor as sanções decorrentes dos atos ilícitos. Ricardo Lobo Torres13 traz um exemplo brasileiro discutido no antigo Tribunal Federal de Recursos onde, sob a veste de abuso de forma jurídica, os sócios da Grendene criaram 8 sociedades de pequeno porte com o objetivo de manipular o preço das mercadorias aproveitando-se da diferença no regime tributário do tributo federal. O Tribunal desconsiderou 13 TORRES, Ricardo Lobo. Normas gerais antielisivas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003. p. 116. 13 o fracionamento da empresa para efeitos de pagamento do imposto de renda, embora não tivesse desconstituído os atos jurídicos. Abaixo o acórdão do TFR: LEGITIMIDADE DA ATUAÇÃO DO FISCO, EM FACE DOS ELEMEMTOS CONSTANTES DOS AUTOS. CONSTITUÍDAS FORAM, NO MESMO DIA, DE UMA SÓ VEZ, PELAS MESMAS PESSOAS FÍSICAS, TODAS SÓCIAS DA AUTORA, 8 (OITO) SOCIEDADES COMO OBJETIVO DE EXPLORAR COMERCIALMENTE, NO ATACADO E NO VAREJO, CALÇADOS E OUTROS PRODUTOS MANUFATURADOS EM PLÁTICO, NO MERCADO INTERNO E NO INTERNACIONAL. TAIS SOCIEDADES, EM DECORRÊNCIA DE SUAS CARACTERÍSTICAS DE PEQUENO PORTE, ESTAVAM ENQUADRADAS NO REGIME TRIBUTÁRIO DE APURAÇÃO DE RESULTADOS COM BASE NO LUCRO PRESUMIDO, QUANDO SUA FORNECEDORA ÚNICA, A AUTORA, PAGAVA O TRIBUTO DE CONFORMIDADE COM O LUCRO REAL. RECONHECE-SE À RECORRENTE, APENAS O DIREITO DE COMPENSAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA PAGO PELAS ALUDIDAS EMPRESAS. REFORMA PRCIAL DA SENTENÇA.14 Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é desdobramento da interpretação econômica do direito tributário. O abuso de direito considera ilícita a conduta do contribuinte que pratica negócios jurídicos visando exclusivamente a economia de imposto, tendo como fundamento o uso imoral do direito. O intérprete aplicaria uma regra moral própria, convertendo-a numa regra jurídica a incidir em cada caso. Para cada situação existirá uma regra moral específica. Seu campo de incidência é o plano da moral, o que rejeita o princípio da legalidade e o valor da segurança jurídica. A maioria da doutrina nacional rejeita a teoria do abuso de direito. Segundo Ives Gandra Martins15 o "o abuso de direito esbarra de forma incontornável – antes de qualquer outro aspecto jurídico – na ausência de previsão legal conferindo à fiscalização autori14 APELAÇÃO Cível nº 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel. Ministro Américo Luz. Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. 15 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, nº 36, 2001. p. 235. 14 dade para ultrapassar o limite da estrita legalidade, buscando outros elementos e subsídios para afirmar ou não a validade jurídica, ainda que sob o prisma tributário, de cada operação individualizada.” Alfredo Augusto Becker, citado por César A. Guimarães Pereira16, questiona se é possível haver mau uso do direito sem que este se confunda com ilegalidade ou ilicitude. Sendo uma regra moral, o abuso de direito entrega ao intérprete o poder de converter uma regra moral em regra jurídica, sendo que o intérprete não detém poder de legislar. O novo Código Civil suplantou tal questão pelo seu art. 187, quando prevê que o titular de um direito comete ato ilícito ao exercê-lo de modo manifestamente excedente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Desta forma, o legislador caracterizou o abuso de direito como ato ilícito. A sua prática com a finalidade de economia de tributos configura evasão tributária, em função da ilicitude, não estando afeta a elisão tributária, que pressupõe a utilização de atos lícitos. Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é mencionado na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104, como sendo objeto de combate pela referida lei, mas não integra o seu texto legal. Uma figura jurídica conexa à simulação, ao abuso de forma e ao abuso de direito é a fraude à lei (frau legis). Aquele que defrauda não contradiz o teor verbal da lei, antes atém-se respeitosamente à sua letra, mas, na realidade, vem a frustrar o fim a que objetivava o princípio jurídico. Há uma enorme diferença entre negócio jurídico simulado e o negocio jurídico praticado em fraude à lei. Naquele o negócio é apenas aparente, enquanto este é querido ostensivamente pela partes com o objetivo de iludir a lei e conseguir o fim proibido por caminho indireto. Exemplo clássico de fraude à lei nos é dado, novamente, por Ricardo Lobo Torres17, nos seguintes termos: 16 17 PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão e função administrativa. São Paulo: Dialética, 2001. p. 70. TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., p. 115. 15 Para pagar menos imposto determinada pessoa, ao revés de vender o bem, preferiu fazer contrato de locação, de tal forma que no prazo previsto os aluguéis chegariam aproximadamente ao mesmo valor da venda, sujeitando-se a imposto menor; ao adquirente era garantida a preferência para a aquisição do bem por preço determinado ao fim do contrato. Quer dizer: o ato praticado era lícito, mas se utilizou para qualificar o negócio uma norma de cobertura que não lhe era adequada. Houve o desencontro entre a intentio facti e a intentio júris. Marcos Bernardes de Mello18, afirma que é perfeitamente possível distinguir o ato in fraudem legis do ato simulado. Diz ele: O ter a simulação, em alguns casos, a finalidade de infringir preceito legal não a torna semelhante à fraude à lei. Primeiro porque esse dado não é essencial à simulação. No mais das vezes o ato simulado de destina a prejudicar direitos subjetivados de terceiros. Na fraude à lei a sua característica substancial é, precisamente, a infração da norma jurídica por meios indiretos. Depois, o outro elemento fundamental para distinguir o ato in fraudem legis do ato simulado consiste em que na simulação os atos não são verdadeiros, embora se destinem a violar a lei. Realmente, na simulação os atos praticados ou são aparentes ou são mentirosos. No ato in fraudem legis nada é aparente. Tudo o que aparece é querido, especialmente o resultado. Como demonstramos acima (2.3.3), os atos em si, considerados isoladamente, são válidos e eficazes. A invalidade é produto da infração à lei, que se consuma com a conjunção dos diversos atos através da qual o fim proibido ou imposto é alcançado ou evitado. Como se vê não é fácil distinguir entre simulação e fraude à lei. O elemento comum entre elas é a ilicitude que contamina a validade dos atos ou negócios jurídicos e não podem aparelhar qualquer conduta elisiva. III. CABIMENTO DA FIGURA DE FRAUDE À LEI NA MATÉRIA TRIBUTÁRIA, ESPECIALMENTE TENDO EM VISTA O NOVO CÓDIGO CIVIL. 18 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 156-157. 16 Para responder a esta indagação precisamos, antes de enunciarmos a nossa modesta opinião, nos socorrer das ponderações feitas pela doutrina brasileira. Pela firmeza e lucidez com que defendem os seus pontos de vista e, principalmente, por terem respostas diferentes à indagação título desse item, escolhemos expor os pensamentos dos professores Alberto Xavier e Marco Aurelio Greco. Alberto Xavier adota, como fundamento chave da sua doutrina, a denominação de “negócio jurídico menos oneroso”19 para qualificar os atos jurídicos praticados pelos particulares como propósito de não pagar ou pagar menos impostos. Para ele a elisão tributária pode ocorrer na generalidade dos tributos, não apenas naqueles cujas hipóteses de incidência descrevem atos jurídicos, já que mesmo nestes há interferência de atos jurídicos na configuração do fato imponível. Pode-se dar tanto em relação ao pressuposto (hipótese) quanto à estatuição (mandamento) da norma tributária. Pode ocorrer em todos os aspectos da norma tributária em que exista tipificação. Assim, Xavier não aceita a tese de que os negócios fiscalmente menos onerosos pudessem ser qualificados como negócios em fraude à lei. A teoria da fraude à lei, para ele, seria inaceitável porquanto apenas normas preceptivas ou proibitivas poderiam ser objeto de fraude. Embora a norma tributária seja inderrogável pela vontade das partes, não proíbe a realização de nenhum fim nem torna obrigatória a adoção de certas formas para a realização de determinados fins. A norma tributária incide (ou seja, qualifica fatos e faz nascer os deveres jurídicos previstos em seu mandamento) desde que ocorra o fato jurídico descrito no seu pressuposto. A prática do negócio fiscalmente menos oneroso faz com que não se realize o fato descrito no pressuposto e, portanto, não sejam desencadeadas as determinações do mandamento. A norma tributária não seria, assim, suscetível de fraude à lei. Inclui o exame da fraude à lei na perspectiva mais ampla das nulidades no direito tributário brasileiro. 19 XAVIER. Alberto P. A evasão fiscal legítima – o negócio jurídico indireto em Direito Fiscal. Revista de Direito Público. São Paulo: RT, nº 23. p. 12. 17 O fundamento legal para concepção acerca do tema está na sua interpretação do art. 118 do CTN, que suprime a competência administrativa para conhecer defeitos dos atos jurídicos. A administração tributária não detém competência para reconhecer a nulidade ou a anulabilidade de atos jurídicos, devendo promover o lançamento com abstração desses defeitos (apenas lhes sendo dado conhecer da inexistência jurídica do ato). A fundamentação teórica dessa concepção consiste no princípio da capacidade contributiva, que determina “a prioridade do conceito de eficácia sobre o de validade”, tornando cabível a tributação de atos nulos que tenham sido executados. A aparência supera a realidade no lançamento, até que a verdade material venha a ser declarada pelo Poder Judiciário. A fraude à lei, tanto quanto qualquer outro defeito dos atos jurídicos, somente pode ser tomada em conta pela administração tributária após declaração eficaz do Poder Judiciário. A doutrina de Marco Aurelio Greco centra-se, ao nosso ver, na distinção entre elisão tributária eficaz e a elisão tributária ineficaz. A prática de negócio fiscalmente menos oneroso caracterizado por simulação não configura elisão tributária eficaz. Esta é a que se exterioriza através de negócios jurídicos indiretos. Sugere modificação no pensamento brasileiro sobre a economia de tributos e o planejamento fiscal. Chama atenção para o fato de que a nova ordem constitucional instituída em 1988 agregou novos valores que condicionaram o exercício do direito de auto-organização. Esse direito não mais envolve apenas a idéia de esfera de liberdade resultante de condutas possíveis não descritas como pressuposto de nenhum efeito tributário, construída com base na reserva absoluta de lei como forma de bloqueio da ação do Estado. Essa concepção é típica da noção de Estado de Direito. Com a Constituição de 1988, o Brasil passou a configurar Estado Democrático de Direito, incorporando valores do Estado Social20. Por isso, o direito de auto-organização (concebido sobre os valores propriedade e segurança) terá seu exercício condicionado pelos valores igualdade, solidariedade e justiça21. 20 GRECO, Marco Aurelio. Planejamento fiscal e abuso de direito. Estudos sobre o imposto de renda. São Paulo: Resenha Tributária, 1994. p. 94/95. 21 GRECO, Marco Aurelio. Ob. cit., p. 96. 18 Sob essas premissas, conclui que será abusivo o exercício do direito de auto-organização quando seu uso ou o seu resultado deixar de atender a esses novos valores trazidos pela Carta Magna de 1988. A estrutura de sua doutrina está na idéia de finalidade exclusiva de reduzir ou impedir a tributação. A auto-organização com finalidade exclusiva de obter vantagem tributária configura abuso de direito. O fisco pode recusar-se a reconhecer os seus efeitos fiscais, mesmo sem que isso implique a decretação da ilicitude da operação. O professor Greco, em magnífica obra publicada pela Editora Dialética 22, afirma ser possível o cabimento da fraude à lei em matéria tributária, vejamos, in verbis: Dirão alguns que o raciocínio acima exposto estaria comprometido, pois as figuras do abuso do direito e da fraude à lei em matéria tributária não têm aplicação no direito brasileiro, enquanto não sobrevier lei expressa neste sentido, pois o princípio da legalidade assim determinaria. Neste ponto é preciso proceder a alguns esclarecimentos. Primeiro, é preciso distinguir abuso de direito e fraude à lei por definição legal, de abuso de direito e fraude à lei, identificados a partir de características fáticas de atos ou negócios praticados. Estas figuras “por definição legal” podem existir desde que o legislador as enumere segundo entender pertinente. Para tanto, pode utilizar a técnica de editar dispositivo pelo qual “consideram-se abusivas ...”, ou “consideram-se em fraude à lei ...” tais ou quais condutas. Nesta hipótese, as condutas enumeradas necessariamente configurarão abuso ou fraude à lei. Nesta primeira categoria, não há dúvida que a existência de lei é indispensável para tipificá-los. Porém, não é esta a única forma pela qual podem estar configuradas tais figuras. Elas podem existir independentemente de tipificação legal e prévia, por corresponderem a distorções instauradas a partir de conduta realizadas. 22 GRECO, Marco Aurelio. Constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei complementar nº 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 196199. 19 Realmente, abuso de direito e fraude à lei são também categorias teóricas, cuja verificação se dá em função de realidades concretas, vale dizer, algo efetivamente ocorrido no plano dos fatos. O exame dos fatos e a busca de sua interpretação, para fins de enquadramento nas normas jurídicas, integra a experiência jurídica como um todo, tanto quanto a análise e interpretação das leis. Transitar no plano dos fatos é tão relevante quanto analisar as previsões abstratas do Direito. A realidade jurídica não é feita apenas de leis; compõe-se também de fatos aos quais as leis devem se aplicar. Desta ótica, abuso de direito e fraude à lei são figuras voltadas às qualidades que cercam determinados fatos, atos ou condutas realizadas, que lhes dão certa conformação à vista das previsões legais. Afirmar que houve abuso ou que o comportamento de alguém se deu em fraude à lei, não significa ampliar ou modificar o sentido e o alcance da lei tributária. Significa, apenas, identificar, nos fatos ocorridos, a hipótese legal, neutralizando o “excesso” ou afastando a “cobertura” que se pretendeu utilizar, para tentar escapar da incidência da lei. Neste segundo plano, estas categorias são aplicáveis ao Direito Tributário independente de lei expressa que as preveja. De um lado, porque não interferem com a legalidade e a tipicidade, posto que situadas no plano dos fatos e não da norma; de outro lado, porque são categorias gerais do Direito. O abuso é o corolário do uso regular do direito, pois há décadas já se afastou a visão individualista de que um direito comporta qualquer tipo de uso, inclusive o excessivo ou que distorça seu perfil objetivo. A fraude à lei é decorrência da legalidade e da imperatividade do ordenamento positivo, como um todo, e da norma jurídica específica. Lei existe para ser seguida e não contornada ou “driblada”. A meu ver, é ínsita ao ordenamento positivo a possibilidade de existirem mecanismos que possam neutralizar as condutas que contornem as normas jurídicas, frustrem sua incidência, esvaziem sua eficácia, naquilo que a experiência jurídica conhece por fraude á lei ou abuso de direito. A imperatividade e a eficácia do ordenamento supõem a existência de mecanismos que as assegurem; são o espelho das suas próprias previsões. Portanto, a meu ver, estas figuras 20 não dependem de “outra lei” prevendo seu cabimento. Ao contrário, são decorrência da legalidade, pois esta só tem sentido desde que o ordenamento tenha sua eficácia, imperatividade e aplicabilidade asseguradas. Porém, ainda que houvesse tal necessidade, ela estaria atendida pelo parágrafo único do artigo 116. Realmente, ao qualificar o efeito ou resultado (dissimulação) o dispositivo abrangeu todos os meios que podem levar à sua configuração; vale dizer, inclusive abuso de direito e fraude à lei. Além disso, não se pode perder de vista o sentido ético que permeia a aplicação de medidas visando neutralizar as figuras do abuso de direito e da fraude à lei. Assim como se exige da Administração Pública a moralidade da sua ação (CF/88, artigo 37, caput), também exige-se do cidadão lisura de conduta. Moralidade e lisura de conduta são princípios que se aplicam a todas as pessoas e não apenas à Administração Pública. Neste sentido, é muito importante recente decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, relatada pelo Min. Celso de Mello, na qual o tema do abuso do direito (naquele caso concreto, direito de recorrer) vem atrelado a um princípio ético-jurídico subjacente e resvala para um juízo sobre a probidade da conduta. Ou seja, não é apenas uma questão de imperatividade e eficácia do ordenamento positivo, mas abrange, inclusive, um aspecto de ordem moral e ética. Em suma, a meu ver, a aplicação das figuras do abuso do direito e da fraude à lei em matéria tributária, no ordenamento positivo brasileiro, pode ocorrer independente de lei expressa que as autorize, pois elas são decorrência da legalidade e da imperatividade do ordenamento. Ainda que fosse indispensável uma lei autorizando a aplicação de tais categorias, este requisito estaria atendido pelo parágrafo único do artigo 116 aqui comentado. (grifamos) Postas as abalizadas opiniões da doutrina, aqui representadas pela doutrina do professores Alberto Xavier e Marco Aurelio Greco, podemos fazer as considerações abaixo e, ao final, concluir, nos seguintes termos: 21 Considerando que o vínculo entre direito tributário (como direito de superposição) e outros ramos do direito (especialmente do direito privado) é evidente, principalmente tendo em vista que estes também qualificam os fatos colhidos na norma tributária; Considerando que os institutos de direito privado têm plena relação com a interpretação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, criado pela Lei Complementar nº 104, de 2001; Considerando que a caracterização do que seja a dissimulação a que alude o dispositivo retro citado passa, necessariamente, pelo estudo dos negócios jurídicos; Considerando que a partir da edição da Lei Complementar mencionada a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos estabelecidos em lei ordinária; Considerando que as figuras de direito privado, estudadas resumidamente neste singelo trabalho, se referem a algo que se prende à utilização de meios aparentes para ocultar aquilo que realmente se deseja, ou, então, à utilização de vias indiretas em vez de se utilizarem vias diretas para alcançar os fins desejados; Considerando a constitucionalidade da LC nº 104/2001, a possibilidade e a conveniência das normas antielisivas, que equilibram a legalidade com a capacidade contributiva, especialmente por estarmos num Estado democrático de direito que visa construir uma sociedade livre, justa e solidária; Considerando que o novo Código Civil estabelece que: 22 Art. 421 – a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato; Aqui fica claro que a liberdade de contratar (fundada na autonomia da vontade, consistindo no poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica) não é absoluta, pois está limitada não só pela supremacia da ordem pública, que veda convenção que lhe seja contrária e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais. Consagrado está o princípio da socialidade23. Art. 422 – os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé; Art. 167 – é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma; Art. 169 – o negócio jurídico nulo não é suscetível de conformação, nem convalesce pelo decurso do tempo; Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito; 23 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 8. ed. Atual. de acordo como novo Código Civil. (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 305. 23 Art. 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes; Art. 166, inciso III e IV – é nulo o negócio jurídico quando o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito e tiver por objetivo fraudar lei imperativa; Considerando que a lei tributária é uma lei imperativa; Forçoso é concluir, após todas as considerações expendidas, que a figura da fraude à lei é plenamente aplicável à matéria tributária, nos termos e limites positivados pelo Código Tributário Nacional (art. 116, parágrafo único) e pelo atual Código Civil.