“Abuso de Direito em Direito Fiscal (?)” O direito tributário, em geral, e o direito fiscal, em particular, são perpassados, julgamos, por uma tensão entre a necessidade de garantir a arrecadação de receita para o custeio da despesa pública e a necessidade de garantir a defesa dos contribuintes, a quem é imposta a prestação pecuniária a que aquela receita corresponde. Em atenção a este último vector, conta-se, entre outros mecanismos de tutela dos contribuintes, o Princípio da Legalidade (103º da CRP), segundo o qual só podem gerar a obrigação tributária os factos previstos na lei. Consequentemente, só os factos previstos nas normas de incidência fiscal originarão um imposto, não sendo onerados os restantes. Ora, assim sendo e naturalmente, os contribuintes tendem a organizar o seu comportamento de modo a que sobre eles recaia a mínima carga tributária possível, ou que o seu impacto negativo se faça sentir o menos possível (por exemplo, através do pagamento em prestações). Este fenómeno – o planeamento fiscal – não só é admissível como é aproveitado pelo próprio legislador fiscal: os fins extrafiscais dos impostos (excluindo a redistribuição da riqueza) só são alcançados precisamente porque se verifica que os contribuintes orientam o seu comportamento com vista à diminuição da carga tributária. Porém, existem certas situações em que parece dever considerar-se abusivo o planeamento fiscal. Como modo de obstar a esse abuso, a Lei Geral Tributária prevê, no artigo 38º/2, a ineficácia tributária dos “actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das firmas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”. Apesar de prevista, com a actual redacção, desde 2000, esta Cláusula Geral Anti-abuso não é, ainda hoje totalmente pacífica, nem quanto à sua legitimidade, nem quanto à sua aplicação. Sendo a figura do abuso do direito (entre nós consagrada no artigo 334ºCC) mais antiga e trabalhada pela doutrina – essencialmente civilística – procuraremos neste trabalho analisar (algumas) das construções doutrinárias sobre esta figura, delas procurando algum contributo para uma melhor compreensão da cláusula geral anti-abuso. Mariana Geraldo Como é consabido, as normas tributárias procuram arrecadar receitas para custear a despesa pública, com a garantia de uma justa distribuição dos encargos que se impõem, para esse fim, a cada sujeito. Neste campo, as normas de incidência fiscal determinam os factos jurídicos cuja verificação determina o surgimento de um dever de realização de uma prestação coactiva, unilateral e pecuniária, a favor de um ente público. Existem, consequentemente, factos que originam a obrigação de imposto e outros factos que não estão sujeitos a tributação. Por outro lado, a realidade mostra-nos, também, que os contribuintes orientam o seu comportamento em função daquelas normas, procurando minimizar a carga fiscal a que se encontram sujeitos. Ora, São estas normas que dão forma ao sistema fiscal, garantindo (ou procurando garantir) o financiamento da despesa pública e uma correcta distribuição dos encargos tributários. A correcta distribuição dos encargos tributários e a manutenção dos serviços prestados pelo Estado dependem, não só mas também, da correcta aplicação do Direito Tributário, de nada valendo um aparentemente perfeito sistema tributário desenhado em diplomas normativos se a sua aplicação acabar, na prática, distorcida. A correcta distribuição dos encargos tributários e a manutenção dos serviços prestados pelo Estado dependem, não só mas também, da correcta aplicação do Direito Tributário, de nada valendo um aparentemente perfeito sistema tributário desenhado em diplomas normativos se a sua aplicação acabar, na prática, distorcida. A fraude fiscal consiste na situação em que, preenchidos (materialmente, na realidade), os pressupostos das normas de incidência fiscal, se verifica uma fuga ao imposto devido. Corresponderá, assim, a uma violação directa das normas de incidência e a um ilícito fiscal punido penal ou contra-ordenacionalmente.1 Para além destes comportamentos, que não são objecto do presente trabalho, outros existem pelos quais os contribuintes procuram diminuir a carga tributária a que estão sujeitos. Estamos, aqui, perante situações em que o contribuintes planeia a sua acção de tal modo que não chegam a estar preenchidos, pelo menos formalmente, os pressupostos da obrigação tributária que, assim, não chega a formar-se. Ora, aqui, há ainda que distinguir as situações de planeamento fiscal legítimo das situações de 1 Silva, João Nuno Calvão da, Elisão Fiscal e Cláusula Geral Anti-abuso, pág. 2; Sanches, Saldanha, Os limites do Planeamento Fiscal – Substância e forma no direito fiscal português, comunitário e internacional, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pág.22