OS SERVIÇOS SOCIAIS AUTÔNOMOS E A NECESSIDADE DE LICITAR Gina CopolaΑ (setembro/2.011) 1. O conceito dos serviços sociais autônomos Os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles1 entendem que “Serviços sociais autônomos são todos aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais.” (grifos originais) José dos Santos Carvalho Filho2 ensina que os serviços sociais autônomos “são aquelas entidades que colaboram com o Poder Público, a que são vinculadas, através da execução de alguma atividade caracterizada como serviço de utilidade pública.” Α Advogada militante em Direito Administrativo. Pós-graduada em Direito Administrativo pela UNIFMU. Autora dos livros Elementos de Direito Ambiental, Rio de Janeiro: Temas e Idéias, 2.003; Desestatização e terceirização, São Paulo: NDJ – Nova Dimensão Jurídica, 2.006; A ki dos crimes ambientais comentada artigo por artigo, Minas Gerais: Editora Fórum, 2.008, e A improbidade administrativa no Direito Brasileiro, Minas Gerais: Editora Fórum, 2.011, e, ainda, autora de diversos artigos sobre temas de direito administrativo e ambiental, todos publicados em periódicos especializados. 1 MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2.000, p. 346. CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1.999, p. 345. 2 2 Para nós, os serviços sociais autônomos, também denominados entes de cooperação, ou pessoas de cooperação governamental, são entidades privadas, paraestatais, sem fins lucrativos, que exercem atividades privadas de interesse público, notadamente serviços de assistência ou ensino, e sempre em absoluta cooperação com o Poder Público. Tais entidades também pertencem ao chamado terceiro setor. 2. A natureza jurídica dos serviços sociais autônomos Os serviços sociais autônomos são pessoas jurídicas de direito privado em cooperação com o Estado, e por isso não integram a Administração direta nem tampouco a indireta. Tais entidades trabalham ao lado do Estado, mas, repita-se, não integram a Administração. Essas pessoas jurídicas de direito privado podem ser fundações ou associações, ou, ainda, podem possuir uma forma jurídica que não é enquadrada nas categorias já existentes, conforme vem ocorrendo com inúmeras delas, e conforme ensina José dos Santos Carvalho Filho. 3 Tais entidades, conforme preleciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto4, em artigo intitulado Natureza jurídica dos serviços sociais autônomos, são entes paraestatais, porque não integram nem a Administração direta nem a indireta, e podem arrecadar as contribuições parafiscais, quando CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1.999, p. 345/6. 3 4 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, RDA – Revista de Direito Administrativo, RJ, jan./mar./97, nº 207, p. 79/94. 3 não estejam sendo subsidiadas diretamente por recursos orçamentários da entidade pública que as tenha criado. Conclui-se, portanto, que a natureza jurídica dos serviços sociais autônomos é de pessoas jurídicas de direito privado, e que, assim sendo, não pertencem ao Estado. 3. As principais características dos serviços sociais autônomos Os serviços sociais autônomos são pessoas jurídicas de direito privado, que atuam em cooperação com o Estado; e não prestam serviço público delegado pelo Estado, mas sim atividade privada de interesse eminentemente público. Os serviços sociais autônomos têm por objeto a assistência social ou ensino a certas categorias sociais ou grupamentos profissionais, com vistas à formação profissional e educação. Prestam assistência à comunidade ou ministram ensino a determinadas categorias profissionais. Os serviços sociais autônomos são subsidiados por recursos orçamentários da entidade que os criou, ou são autorizados a realizar arrecadação de contribuições parafiscais compulsórias. Os serviços sociais autônomos regem-se pelas normas de Direito Privado, com algumas adaptações conforme suas respectivas leis criadoras. 4 Os servidores dos serviços sociais autônomos são admitidos mediante concurso público, e são regidos pela legislação do trabalho, e seus dirigentes podem sofrer impetração de mandado de segurança, em razão dos atos praticados em tal cargo, nos termos da Lei federal nº 1.533, de 1.951, art. 1º, § 1º. Os serviços sociais autônomos não gozam de privilégios administrativos, nem fiscais – exceto quanto ao Imposto de Renda –, nem processuais, mas também não possuem fins lucrativos, e sua criação depende de lei autorizadora, uma vez que recebem contribuições arrecadadas compulsoriamente. Os serviços sociais autônomos possuem administração e patrimônio próprios. E, por fim, os serviços sociais autônomos submetemse ao controle do Poder Público, na forma definida pela sua lei de criação, nos termos do art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal, e do art. 183, do Decreto-Lei federal nº 200/67, e também prestam contas na forma do art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal. 4. A criação dos serviços sociais autônomos Os serviços sociais autônomos só podem ser criados por lei, apesar de não terem sido citados pelo inc. XIX, do art. 37, da Lei Maior. Tal exigência se fundamenta pelo fato de tais entidades receberem recursos provenientes de contribuições compulsórias arrecadadas. 5 A existência de tais entidades no mundo jurídico surge somente a partir da inscrição de seu estatuto no cartório competente, procedida nos termos do art. 45, do Código Civil, instituído pela Lei federal nº 10.406, de 10 de fevereiro de 2.002. 5. Os recursos financeiros e o controle dos serviços sociais autônomos Os serviços sociais autônomos possuem patrimônio próprio, sendo que seus recursos financeiros são provenientes dos recursos orçamentários diretos da entidade que os criou, ou provenientes das contribuições parafiscais compulsórias, o que obriga que tais entidades prestem contas, nos termos do art. 70, parágrafo único, da Magna Carta, e do art. 183, do Decreto-Lei federal nº 200, de 1.967, ambos acima transcritos. Com todo efeito, o dispositivo constitucional reza que deve prestar contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos, exatamente conforme ocorre com os serviços sociais autônomos que podem receber recursos orçamentários diretamente da entidade pública que os criou. No mesmo diapasão, o art. 183, do DL nº 200/67, reza que as entidades e organizações em geral com personalidade jurídica de direito privado, que recebem contribuições parafiscais, e exercem atividades de interesse público ou social - e os serviços sociais autônomos aí se enquadram -, estão sujeitas à fiscalização do Estado. 6 Além disso, os serviços sociais autônomos estão obrigados à prestação de contas ao Tribunal de Contas, nos termos da legislação específica, conforme entende a doutrina majoritária, dentre os quais citamos José dos Santos Carvalho Filho5, Alécia Paolucci Nogueira Bicalho Tostes 6; Diógenes Gasparini 7, e Maria Sylvia Zanella Di Pietro 8. 6. Os privilégios fiscais dos serviços sociais autônomos: Os serviços sociais autônomos, que são entes de cooperação, desempenham atividades privadas de utilidade e interesse públicos, e sem qualquer caráter econômico ou financeiro, vez que não possuem qualquer fim lucrativo, e via de conseqüência, os serviços sociais autônomos estão isentos do pagamento de imposto de renda, patrimônio ou serviços, conforme se depreende da leitura do art. 150, inc. VI, al. c, da Constituição Federal. Reza o dispositivo constitucional: “Art. 150 Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (....) VI - instituir impostos sobre: (...) CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1.999, p. 348. 5 6 TOSTES, Alécia Paolucci Nogueira Bicalho, Curso Prático de Direito Administrativo, Minas Gerais: Del Rey, 1.999, p. 158. 7 GASPARINI, Diógenes, Direito Administrativo, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.000, p. 371. 8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2.000, p. 401. 7 c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.” Os Serviços Sociais Autônomos estão desobrigados também de realizar o pagamento de Contribuição Social ao INCRA, nos termos da Lei federal nº 2.613/55, e conforme já decidiu o e. Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 766796/RJ, rel. Ministro LUIZ FUX, 1ª Turma, julgado em 06/12/2005, com a citação de jurisprudência daquela Corte, e com a seguinte ementa: “PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM INDUSTRIAL - SENAI. SERVIÇO SOCIAL AUTÔNOMO. ENTIDADE SEM FINS LUCRATIVOS. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL AO INCRA. FUNRURAL. ISENÇÃO. LEI N.º 2.613/55. 1. Os "Serviços Sociais Autônomos", gênero do qual é espécie o SENAI, são entidades de educação e assistência social, sem fins lucrativos, não integrantes da Administração direta ou indireta, e que, assim, não podem ser equiparados à entidades empresariais para fins fiscais. 2. A Lei n.º 2.613/55, que autorizou a União a criar a entidade autárquica denominada Serviço Social Rural - S.S.R., em seu art. 12, concedeu à mesma isenção fiscal, 8 ao assim dispor: "Art. 12. Os serviços e bens do S.S.R. gozam de ampla isenção fiscal como se fossem da própria União". 3. Por força do inserto no art. 13 do mencionado diploma legal, o benefício isentivo fiscal, de que trata seu art. 12, foi estendido, expressamente, ao SENAI, bem como aos demais serviços sociais autônomos da indústria e comércio (SESI, SESC e SENAC), porquanto restou consignado no mesmo, in verbis: "Art. 13. O disposto nos arts. 11 e 12 desta lei se aplica ao Serviço Social da Indústria (SESI), ao Serviço Social do Comércio (SESC), ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC)." 4. É cediço na Corte que "o SESI, por não ser empresa, mas entidade de educação e assistência social sem fim lucrativo, e por ser beneficiário da isenção prevista na Lei nº 2.613/55, não está obrigado ao recolhimento da contribuição para o FUNRURAL e o INCRA", exegese esta que, por óbvio, há de ser estendida ao SENAI (Precedentes: REsp n.º 220.625/SC, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 20/06/2005; REsp n.º 363.175/PR, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 21/06/2004; REsp n.º 361.472/SC, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 26/05/2003; AgRg no AG n.º 355.012/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 12/08/2002; e AgRg 9 no AG n.º 342.735/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ de 11/06/2001). 5. Recurso especial desprovido.” 7. Os empregados dos serviços sociais autônomos Os empregados dos serviços sociais autônomos estão sujeitos aos termos da legislação trabalhista em vigor, sendo que para fins de admissão deve ser realizado o competente e aplicável processo seletivo. São eles equiparados aos servidores públicos para responsabilização criminal dos delitos funcionais, nos termos do art. 327, § 1º, do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei federal nº 9.983, de 14 de julho de 2.000, que reza: “Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.” Os empregados dos serviços sociais autônomos são equiparados a servidores públicos para fins de improbidade administrativa, nos 10 termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1.992, que reza: “Art. 1º (...) Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.” Os atos dos dirigentes dos serviços sociais autônomos, praticados estritamente no desempenho de suas funções, podem ensejar a impetração de mandados de segurança, nos termos do art. 1º, § 1º, da Lei federal nº 12.016, de 7 de agosto de 2.009. É perfeitamente possível a propositura de ação popular com responsabilização pessoal daquele de praticou ou autorizou a prática de ato ou contrato lesivo ao patrimônio da entidade, conforme reza expressamente o art. 1º, da Lei federal nº 4.717, de 29 de junho de 1.965. 8. A celeuma: a licitação nos serviços sociais autônomos No que tange aos serviços sociais autônomos, a grande celeuma gira em torno da exigência ou não da obrigatoriedade na realização de licitação, uma vez que a maioria dos aplicadores do direito entende que a 11 licitação é absolutamente exigível, em razão de tais entidades gozarem de uma série de privilégios próprios dos entes públicos. Dentre os que militam neste sentido, citemos Maria Sylvia Zanella Di Pietro9, José dos Santos Carvalho Filho10, Alécia Paolucci Nogueira Bicalho Tostes 11 , e o saudoso Diógenes Gasparini 12. O fundamento de tal posicionamento encontra-se no art. 1º, parágrafo único da Lei nº 8.666/93, ao rezar que subordinam ao seu regime jurídico, as “demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios”, conforme ocorre com os serviços sociais autônomos, que recebem controle dos órgãos que os criaram. Sobre o tema específico, o e. Tribunal de Contas da União, no proc. TC nº 001.620/98-3, em Decisão nº 461/98-Plenário, publicada no DOU de 7/8/98, em compasso com a anterior Decisão nº 907, de 11/12/97, já entendeu que os serviços sociais autônomos não estão sujeitos à observância aos estritos procedimentos estabelecidos na Lei nº 8.666/93, e sim aos seus regulamentos próprios devidamente publicados. De tal sorte, o e. TCU entendeu que os SSA não estão obrigados a obedecer aos termos da Lei de Licitações, mas que, por outro lado, precisam obedecer aos ditames de seu regulamento próprio. 9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2.000, p. 401. CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1.999, p. 348. 10 TOSTES, Alécia Paolucci Nogueira Bicalho, Curso Prático de Direito Administrativo, Minas Gerais: Del Rey, 1.999, p. 158. 11 11 12 GASPARINI, Diógenes, Direito Administrativo, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.000, p. 371. 12 Ainda no mesmo sentido, é a decisão do e. TCU, no processo TC nº 014.238/94-2 - Recurso de Reconsideração, publicada no DOU de 17/3/99. 13 A supracitada Decisão nº 461/98, do e. TCU, também serviu para analisar minuta de regulamento de licitações e contratos dos órgãos do sistema “S”, que são exatamente os chamados serviços sociais autônomos SESI, SENAI, SESC, SENAC, SEST, SENAT, SENAR e SEBRAE. 14 Ainda nesse diapasão, decidiu o e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação nº 742.556-5/6-00, rel. Desembargador LAERTE SAMPAIO, 3ª Câmara de Direito Público, julgada em 04/03/2008, com a seguinte ementa: “Administração. Licitação. Serviço Social Autônomo. 1. O Senai é uma entidade inserida dentre os chamados “serviços sociais autônomos” porque instituído por lei, com personalidade de direito privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais e por isso mesmo fiscalizado pelo Poder Público, mas administrado por entidades representativas das indústrias. 13 BDA - Boletim de Direito Administrativo, da ed. NDJ, ago./99, p. 539. 14 BLC - Boletim de Licitações e Contratos, da ed. NDJ, out/99, p. 496/510. 13 2. À interpretação literal do par. único do art. 1° da Lei n° 8.666/93 se sujeitaria à obrigatoriedade da licitação se fosse a expressão "controlada" entendida de forma ampla, abrangendo a simples fiscalização pelo Poder Público mas sem sujeição direta e imediata à referida lei mas sim ao princípio geral da licitação conforme regulamentação própria. 3. O Regulamento das Licitações do SENAI não determina a aplicação da Lei n° 8.666/93 em suas omissões e, por isso mesmo, inexiste obrigatoriedade de serem todos os participantes do certame intimados para impugnar o recurso de outros nem norma clara e absoluta de obstar a complementação da documentação, relativa à habilitação, quando a impossibilidade de sua juntada no envelope respectivo se deu por exclusiva responsabilidade do órgão emitente da certidão. Apelação improvida.” A ilação que se retira, portanto, é no sentido de que os Serviços Sociais Autônomos precisam licitar porque são entidades fiscalizadas pelo Poder Público, e gozam de privilégios próprios dos entes públicos, porém os Serviços Sociais Autônomos não se sujeitam à Lei federal nº 8.666/93, mas, sim, ao princípio geral da licitação, conforme regulamentação própria e específica de cada entidade.