UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
UFC
CENTRO DE HUMANIDADES
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
MESTRADO EM PSICOLOGIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?
Magaly Ferreira Mendes
Fortaleza, 23 de março de 2007
Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?
Magaly Ferreira Mendes
Dissertação de mestrado apresentada no Programa
de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de
Psicologia da Universidade Federal do Ceará como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Psicologia
Orientadora: Profa. Dra. Laéria Fontenele
Fortaleza, Março de 2007
II
MENDES, Magaly Ferreira.
Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a
feminilidade?
Magaly Ferreira Mendes. – Fortaleza: [s.n.], 2007
191 f.: il.; 30cm
Orientadora: Laéria Fontenele
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará.
Programa de Pós-graduação em Psicologia.
1- Grande Sertão: Veredas 2- função paterna 3feminilidade.
I- Fontenele, Laéria. II- Universidade Federal do Ceará
Programa de Pós-graduação em Psicologia.
III- Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a
feminilidade?
III
Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?
Magaly Ferreira Mendes
Dissertação de mestrado submetida ao corpo docente da Pós-Graduação em
Psicologia da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Laéria Fontenele
Prof. Dr. Ivan Corrêa
Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira
Fortaleza, Março de 2007
IV
A meu pai, pelos desenhos.
À minha mãe, pela música.
O meu amor.
V
TRAVESSIAS
A primeira vez que li a obra Grande Sertão: Veredas foi há muito tempo.
Nesta época, não estava aqui, na Fortaleza próxima ao sertão. Ao contrário dessa, eu me
encontrava longe, bem longe dele. Estava num Porto Alegre, mais próxima da
campanha. No entanto, levei para lá livros de psicanálise, Os Sertões e o Grande Sertão.
Não pensei no porquê de estar levando estes dois. Tampouco sabia se os leria. Li-os, é
claro. A distância e a saudade criaram o espaço e o tempo do desejo de fazê-lo e de lá,
mais afastada, apreciei o sertão.
Depois, estando de volta, o Grande Sertão ficou sendo para mim uma
espécie de livro de cabeceira. Algumas pessoas costumam abrir a Bíblia ao acaso
buscando algum saber. Eu fiz isso, durante estes anos, com esse romance. Se me
perguntassem por quê, não saberia dizer. Agora sei que é porque o amo.
Recentemente, minha filha me apresentou um novo termo colhido de um
livro que ela estava a ler, intitulado Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2006).
Nele, se encontra um termo inusitado - “serendipidade”. Para explicá-lo, a autora
recorre a Horace Walpole, que o empregou pela primeira vez no ano de 1754:
“Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que
descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas
para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados” (Walpole apud Gonçalves,
2006, p.9).
Talvez para mim, o Grande Sertão tenha funcionado como mais um caso de
serendipidade, pois, quando o descobri, na realidade, procurava outra coisa. Mas faço
uma ressalva: nesta ocasião, eu não estava preparada. Por isso o romance teve de passar
tantos anos ecoando até que, enfim, eu de alguma forma o ouvisse. Assim, de um
movimento que se originou de um afastamento, de uma deserção do sertão, comecei a
tecer um discurso sobre este deserto. O resultado foi esta minha dissertação. Nela, falo
apenas do que me foi possível encontrar naquilo que ouvi.
Sei que, se juntei coragem para falar agora sobre isso, não foi exatamente
por me sentir preparada, mas pelo anseio de buscar as condições que me permitiriam
dizer alguma coisa sobre meus achados. Nesta busca, dei-me conta de que ler livros é,
ao mesmo tempo, abrir e percorrer veredas, construir caminhos. A empreitada é
instigante e deliciosa. Mas, ao mesmo tempo, tem-se de enfrentar veredas de difícil
VI
acesso e até mesmo perigosas. Passa-se por trechos de grande solidão. Muitas vezes,
perdi-me entre veredas.
No entanto, nas horas mais arriscadas, tive a sorte e a alegria de poder contar
com a ajuda, imprescindível, de muitos. Sem eles, sei que não teria conseguido - ou
talvez tivesse, mas aí teria sido tremendamente árduo. Talvez eu desistisse.
Quando atravessou o Grande Sertão, Riobaldo, personagem das criativas
veredas de Guimarães Rosa, foi com muitos companheiros. Ele cita 80 deles. Eu,
olhando para trás, olhando o caminho que fiz, posso dizer como Riobaldo que “se
agüentava aquilo, era por causa da boa camaradagem” (GSV1, p.242). Como ele, tive ao
meu lado “[g]2ente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem:” (GSV,
p.242) Ivan Corrêa, meu supervisor, “indo à frente, e não sediava folga nem cansaço”3;
a Laéria – que foi minha analista e depois ficou sendo minha orientadora: “sabendo
[desta], o senhor sabe minha vida”. A Tarciana, minha filha, “de ferro e ouro”; o João
Paulo, meu filho, “cumpridor de tudo e [rapaz] de muito respeito”; o Tiago, também
meu filho, rapaz “desmarcado de forçoso: capaz de segurar as duas pernas dum poldro”
- meus três amores. A Magda, esta “nunca se [esquece] de nada”; Baby, “quase
[menina], [filha] de todos no afetual paternal”; Odilo, “que [ganha] em todo jogo de”
sinuca; o Vicente, “filho dum [...] que se chamava” Francisco de Assis, meu avô, grande
pai; o Bosco, também filho deste, “muito parecido” com o pai dele; a Edwiges,
“[mulher cordata] – a [ela estou] devendo, sem me lembrar de pagar, a quantia de
dezoito mil-réis”; Jerzuí, amiga “de minha melhor estimação”; o Ronald, “rastreador,
[...] sabente”; o Hamilton, “outro rastreador, [...], boa pessoa”; o Secundo, “faquista,
perigoso nos repentes”; Iracema, “caçador[a] muito [boa]”; o Carlos, “amigo em tanto”;
o Anderson, “que achava os lugares d’água”, José Maria Arruda, “competente sujeito”,
Ricardo Barrocas, “valente demais e esquentado”, a Nadiá, que “[entende] de toda
mandraca”. “E – que ia me esquecendo – a Léa, “entendid[a] de curar qualquer doença”
de ortografia. “A mais, que nos dedos conto:” mulheres e homens, pais e filhas, que dia
1
A título de simplificação, quando nos referirmos ao romance Grande Sertão: Veredas, adotaremos a
abreviatura, “GSV” seguida da página onde se poderá localizar a citação. Todas as citações constantes no
corpo deste trabalho foram retiradas da 15ª edição publicada no ano de 1982 pela José Olympio Editora.
2
Ao longo deste trabalho, transcreveremos passagens de várias fontes. A fim de que estas se harmonizem
com o corpo do trabalho, procedemos a adaptações, às quais, mesmo estando entre aspas, por estarem
entre colchetes, hão de fazer parte do texto original do autor citado.
3
A partir deste ponto, e até o final destes agradecimentos, não farei mais referência à página onde as
citações que se seguem podem ser localizadas. Saiba-se que todas elas se encontram nas páginas 242 e
243 do Grande Sertão: Veredas. Depois, ao longo do texto, a citação seguirá em conformidade com o que
estabecemos na nota 1.
VII
após dia vão ao meu consultório e lá contam suas histórias; os companheiros do Centro
de Estudos Freudianos do Recife, queridos amigos; os do Corpo Freudiano de Fortaleza,
também; os professores do Mestrado de Psicologia da UFC, a Jaqueline da Secretaria de
Saúde do Estado do Ceará; os amigos do Hospital de Saúde Mental de Messejana e os
do CAPS Nilse da Silveira; os pacientes que atendo nestes lugares. “Afora algum de que
eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, [isso] tranqüiliz[ou] os ares”.
Sinceramente, agradeço a todos, tão amáveis.
Agora só me resta dizer que atravessei o Grande Sertão como pude e por ele
também fui atravessada. O que falo sobre suas Veredas é de minha exclusiva
responsabilidade. Assim são as travessias.
VIII
RESUMO
MENDES, Magaly Ferreira. Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a
feminilidade?, 2007. 191 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia – Área de
concentração: Psicanálise). UFC. Fortaleza.
Este trabalho realiza um estudo sobre a especificidade da relação entre pai e filha para
interrogar se a função paterna teria alguma influência sobre o advento da feminilidade
para uma filha. Desta maneira, seu objetivo principal consiste em identificar, a partir da
análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, os caminhos que
viabilizem um novo dizer no que concerne à relação entre a função paterna e a
feminilidade e que esteja alicerçado nas elaborações de Sigmund Freud e Jacques
Lacan. Ao recorrer tanto ao romance de Guimarães Rosa quanto às elaborações
psicanalíticas de Freud e Lacan, a presente investigação constata a abertura epistêmica
promovida por estes textos em torno das questões sobre o pai bem como sobre a
feminilidade e se insere na continuidade das reflexões sobre o tema. Para tanto, apóia-se
nas formas inéditas de dizer viabilizadas pela criação literária, nos avanços teóricos
promovidos pela obra freudiana e nas ampliações destas mesmas aquisições teóricas
proporcionadas pelas elaborações lacanianas. Especificamente no que diz respeito a
estas últimas, o trabalho conta com o alargamento das reflexões sobre a função paterna
na contribuição teórica de Lacan ao introduzir o conceito de Nome-do-Pai. Daí o título
desta investigação - “Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a
feminilidade?” – ser interrogativo, portanto, não-conclusivo, uma vez que não poderia
pretender a insensatez de um fechamento das questões aqui abordadas, tampouco da
obra literária. Isto, evidentemente, não impede que algo mais seja dito. Portanto, a
hipótese levantada neste trabalho consiste em verificar se, no Grande Sertão: Veredas, a
relação mantida entre o personagem Diadorim e seu pai, Joca Ramiro, impediu ou
viabilizou o acesso daquele à feminilidade. Ao final, o que se conclui é que esta relação
favoreceu um acesso muito peculiar de Diadorim ao infinito em que a feminilidade se
constitui. Por conseguinte, as veredas da investigação se mantêm em aberto suscitando
novas descobertas.
Palavras-chave: Grande Sertão: Veredas; função paterna; feminilidade.
IX
RÉSUMÉ
Ce travail réalise une étude sur la spécificité du rapport entre père et fille pour intérroger
si la fonction paternelle aurait quelque influence sur l’avènement de la féminisation
pour une fille. De cette manière, son objectif principal consiste à identifier, à partir de
l’analyse du roman Diadorim qui porte le titre original de Grande Sertão : Veredas, de
João Guimarães Rosa, les chemins qui viabilisent une nouvelle façon de dire en ce qui
concerne la relation entre la fonction paternelle et la féminisation et qui soit basée sur
les élaborations de Sigmund Freud et Jacques Lacan. Lors de la recherche basée sur le
roman de Guimarães Rosa et aussi sur les élaborations psychanalytiques de Freud et
Lacan, cette investigation constate l’ouverture épistémologique promue par ces textes
autour des questions sur le père ainsi que sur la féminisation et s’insère dans la
continuité des réflexions sur le thème. Pour le faire, l’investigation s’appuie sur les
formes inédites de dire rendue viables par la création littéraire, sur les progrès
théoriques promus par l’oeuvre freudienne et dans l’agrandissement de ces mêmes
acquisitions théoriques proportionnées par les élaborations lacaniennes. Spécifiquement
en ce qui concerne ces dernières, le travail compte sur l’élargissement des réflexions sur
la fonction paternelle dans la contribution théorique de Lacan lorsqu’il introduit le
concept de Nom-du-Père. C’est pourquoi l’investigation a le titre – “Os Nomes-do-Pai
no Grande Sertão : Veredas para a feminilidade?” – c’est-à-dire être interrogatif et, par
conséquence, ne pas être conclusif, puisqu’il ne pourrait pas avoir l’intention d’une
conclusions des questions y traitées ni de l’oeuvre littéraire non plus. Évidemment cela
n’empêche pas que d’autres choses soient dites. Donc, l’hypothèse suscitée dans ce
travail consiste à vérifier si, chez Grande Sertão : Veredas, le rapport entre le
personnage Diadorim et son père, Joca Ramiro, a empêché ou a rendu possible l’accès
de celui-là à la féminisation. A la fin nous arrivons à la conclusion que ce rapport a
favorisé un accès très particulier de Diadorim vers l’infini où la féminisation se
consistue. Par conséquence, les sentiers de l’investigation continuent ouverts suscitant
de nouvelles découvertes.
Mots-clés : Grande Sertão : Veredas ; fonction paternelle ; féminisation.
X
SUMÁRIO
Prelúdio ...................................................................................................................... 13
I
POR CAUSA DAS LACUNAS
1.1
Introdução.......................................................................................................... 20
1.2
A ficção e a psicanálise ...................................................................................... 24
1.3
A ficção e a literatura......................................................................................... 26
1.4
As lacunas que motivam a caminhada ................................................................ 30
1.5
Em busca de um caminho................................................................................... 32
II
UMA ESTÓRIA QUE NASCE DO CAOS PARA VIVER MUITAS GUERRAS EM
NOME-DO-PAI
2.1
Introdução .......................................................................................................... 35
2.2
Do caos ao “homem dos avessos”....................................................................... 35
2.3
O “redemunho” do Nome-do-Pai........................................................................ 38
2.4
O des-tino dos nomes ......................................................................................... 41
2.5
Uma figura estonteante....................................................................................... 44
2.6
Por causa de um olhar anterior ao olhar .............................................................. 47
2.7
Do vazio ao corte ............................................................................................... 50
2.8
Um Juiz Supremo ............................................................................................... 52
2.9
Sobre a condição para que o pai funde a lei ........................................................ 57
2.10 O Grande Sertão e a “excomunhão maior”......................................................... 64
XI
III
VESTÍGIOS DE MULHER
3.1
Introdução.......................................................................................................... 72
3.2
Torções.............................................................................................................. 72
3.3
“Um Diadorim assim meio singular”.................................................................. 75
3.4
Um Menino “Dessemelhante”............................................................................ 78
3.5
Um menino “diferente, muito diferente...”.......................................................... 81
3.6
Um Menino-Moço e o amor vindo “de um-que-não-existe” ............................... 82
3.7
Mulheres belas e instigantes............................................................................... 87
3.8
Os batedores investigam os vestígios de mulher ................................................. 95
3.9
Amor de ouro................................................................................................... 108
3.10 Amor de prata, outros amores e outros casos.................................................... 113
IV
UMA MULHER
4.1
Introdução........................................................................................................ 121
4.2
“um feio dia” ................................................................................................... 122
4.3
Uma música inaudível...................................................................................... 125
4.4
Joca Ramiro: um sol de alegria para Diadorim ................................................. 131
4.5
As roupas de Diadorim .................................................................................... 135
4.6
Em nome do pai............................................................................................... 141
4.7
Grilhão de elos imponderáveis ......................................................................... 146
4.8
Para além do traje, o ultraje de Diadorim ......................................................... 158
4.9
A pedra começa a rolar .................................................................................... 164
4.10Para Riobaldo, o êxtase e o horror. Para Diadorim, o horror e o êxtase ............... 170
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 187
XII
PRELÚDIO
“Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra” (GSV1,
p.229), afirma o narrador do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa. Nesta idéia, parece-nos ecoar uma espécie de síntese do trabalho que pretendemos
realizar: um estudo sobre a relação entre pai e filha, considerando-a, em suas
implicações, sobre a constituição da feminilidade, e efetivado a partir do referencial
teórico da psicanálise e da análise do romance rosiano.
Por que reconhecemos ressonâncias entre a afirmação do narrador rosiano e
uma síntese do nosso estudo? O intuito desta introdução seria, então, o de nos
mostramos decididos a assumir, como faz o narrador do Grande Sertão, o tom
persuasivo sobre a não existência de algo? Acaso estaríamos, desde já, reiteradamente
procurando nos convencer de que não existe relevância em investigarmos as possíveis
implicações da relação entre pai e filha no que diz respeito aos rumos que esta pode
adotar frente à feminilidade? Devemos prontamente responder que não, pois, muito ao
contrário, o que a observação clínica, a teoria psicanalítica, e a própria narrativa do
romance rosiano nos propiciam é a oportunidade de soletrarmos a importância desta
relação sobre o devir da feminilidade.
No entanto, em nenhum destes campos do saber, essa possibilidade nos é
dada como já completamente explicitada. Antes, tanto a clínica quanto a teoria
psicanalíticas - bem como o Grande Sertão - nos incitam a realizar uma travessia
procedente de questões lacunares que assim se mantiveram em decorrência de alguns
paradoxos e impossibilidades. Frente a estes, as soluções muitas vezes conduziram à
suspensão e à perplexidade.
Um dos paradoxos diz respeito exatamente à confrontação de Freud - o
inventor da psicanálise - e de Riobaldo - o narrador do romance - com a própria noção
de existência que remete, grosso modo, à tentativa de definição ou delimitação de algo.
No caso de Riobaldo, o que ele reitera é a não existência do “Outro – o figura,
o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, o pé-de-pato, o mal-encarado,
aquele – o-que-não-existe!” (GSV, p.229). Portanto, pela soletração, ele procura tornar
inteligível que o Demônio, enquanto alteridade absoluta e enquanto algo da ordem do
ser, não existe.
1
Cf. nota nº 1, p. VII.
13
O narrador do Grande Sertão não se confunde: existência não é o mesmo que
essência. A ligação enclítica das palavras efetuada na expressão “o-que-não-existe”
parece-nos indicar a não existência de um ser que possamos denominar plenamente.
Mesmo ao recorrermos, como faz o narrador, ao uso dos hífens - que, pela
promoção de uma união, visa representar a perda do acento de cada palavra em favor da
composição de uma única expressão -, ainda assim não conseguimos ter acesso a uma
definição acabada da essência, não temos acesso à totalidade dos predicados de algo.
Deparamo-nos, portanto, com uma impossibilidade, pois, antes, o que costuma
acontecer é termos de recorrer a várias expressões quando queremos nomear alguma
coisa. Sobre este aspecto, chama especial atenção a profusão de referências feitas ao
demônio no Grande Sertão: numa riqueza referencial ímpar, o narrador chega a
empregar 92 denominações diferentes para referir-se a ele (MARTINS, 2001).
No que tange à construção da teoria psicanalítica, Freud também não se
confundiu. Ao estudar um objeto2 cuja manifestação clínica se dava através de uma
objetividade3 incontestável, mas para a qual, até então, não se dispunha de dispositivos
adequados para proceder a uma abordagem objetiva, Freud enfrentou o caráter inefável
de seu objeto de estudo, o inconsciente, e superou várias aporias.
Mais do que tentar reduzir o inconsciente ao consciente - o que na verdade é
impossível -, Freud abordou este objeto, inabordável pela consciência, forjando
instrumentos que não apenas permitiram algum acesso ao saber inconsciente, mas
fundaram uma ciência inédita: a psicanálise.
O avanço inquestionável promovido pela teoria freudiana pode ser constatado
pela coerência de sua metodologia, que - apesar de influenciada por modelos
contemporâneos de decifração científica - viabilizou o entendimento das manifestações
do inconsciente sem se deixar restringir pelas concepções científicas de então, e assim
chegou mesmo a superá-las. Além disto, o rigor teórico de Freud pode também ser
2
Segundo Abbagnano (2000, p.723), “objeto” é o termo “de qualquer operação, ativa, passiva, prática,
cognoscitiva, ou lingüística. O significado dessa palavra é generalíssimo e corresponde ao significado de
coisa. Objeto é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade percebida, a
imagem da fantasia, o significado expresso ou o conceito pensado”.
3
Ainda seguindo com Abbagnano (2000, p.721) empregamos o termo “objetividade” tanto como o
“caráter daquilo que é objeto”, quanto como o “caráter da observação que procura ver o objeto como ele é
não levando em conta as preferências ou os interesses de quem o considera, mas apenas procedimentos
intersubjetivos de averiguação e aferição”. Apesar de a objetividade ser um ideal - especificamente, um
ideal da ciência -, consideramos que o método freudiano não abriu mão deste ideal e se constituiu como
um excelente exemplo desta prática, pois, como veremos, ele superou as limitações dos métodos
científicos de sua época e forjou uma técnica mais eficiente para se aproximar do inconsciente enquanto
objeto de sua investigação.
14
confirmado por sua determinação em não se deixar capturar por qualquer tipo de
cosmovisão.
Portanto, a teoria e a clínica psicanalíticas lidam com um objeto cuja
existência só pode ser depreendida se a considerarmos a partir de seus efeitos e jamais
por sua delimitação precisa como se tratássemos de uma essência. Sobre o inconsciente,
assim como sobre o Demônio, podemos dizer muito, podemos elucidar suas formações,
porém, ambos permanecem indomáveis e inapreensíveis.
O inconsciente não é predicável, isto é, universal, um ser. Ele é
impredicável4. Sendo assim, não podemos atribuir-lhe valores tais como verdadeiro ou
falso. O incorpóreo verdadeiro participa da verdade e esta pode habitar uma mentira do
mesmo modo que a ficção pode veicular uma verdade.
Nossa tarefa nesta introdução é justamente dar a entender que o enredamento
da função paterna com o acesso de uma filha ao âmbito da feminilidade deve ser
pesquisado não no campo de uma essência5 da paternidade ou do tornar-se mulher, mas
no campo de afinidade da função paterna e da feminilidade com o indizível e o inaudito.
Ainda que impredicáveis, indizíveis e inauditas, tanto a função paterna
quanto a feminilidade foram amplamente estudadas e elucidadas por Freud. No entanto,
a exaustiva investigação freudiana sobre a feminilidade acabou por conduzi-lo à
perplexidade: “O que quer uma mulher?”, interrogou Freud em uma de suas cartas a
Marie Bonaparte, no momento em se aproximava do final de suas elaborações. A
questão sobre a feminilidade foi, por conseguinte, deixada em suspensão.
Já no que diz respeito ao entendimento da função paterna, Freud também
deslindou grande parte da problemática aí envolvida. Contudo, sua produção teórica
continuou a suscitar uma melhor formalização. Não que a elaboração freudiana sobre o
pai seja inconsistente. Pelo contrário, sua teorização permanece sustentável sob diversos
aspectos. No entanto, por falta de recursos científicos que surgiram apenas depois de
sua morte, Freud teve de apoiar sua construção teórica sobre a função paterna em dois
mitos: o mito de Édipo e o mito do pai da horda primitiva.
Quer dizer, na obra freudiana, tanto a conceitualização da função paterna
quanto da feminilidade, restaram em aberto – qualidade princeps de um corpo teórico
4
A noção de “impredicável” será esclarecida ao longo do próximo capítulo.
Aqui o termo “essência” deve ser entendido não apenas como aquilo que indicaria as características ou
as qualidades do pai e do tornar-se mulher, mas também enquanto aquilo que designaria a substância,
quer dizer, a estrutura que necessariamente estaria por baixo – a sub-estância -, destes. Veremos, com
Freud e Lacan, que é impossível definir, declarar, a essência substancial do pai e da feminilidade.
5
15
que não pretende compor uma visão de mundo. Isto, obviamente, instigou novas
formalizações.
Estas nos chegaram através dos esclarecimentos e da perspectiva inovadora
de Jacques Lacan. A partir da retomada mais precisa dos fundamentos freudianos,
Lacan pôde não apenas fazer ruir os desvirtuamentos de que o texto de Freud vinha
sendo vítima, mas ampliar o entendimento do inconsciente bem como da transmissão do
saber psicanalítico.
Assim como Freud, Lacan também se empenhou em dar um estatuto de
cientificidade à psicanálise e, tal qual aquele, não se deixou seduzir por ideologias ou
argumentações falaciosas. Soube escapar aos reducionismos e não se furtou de efetuar
transições e rupturas quando estas assim o exigiram. Lançou mão da referência a outros
registros tais como o registro do Real, do Simbólico e do Imaginário e introduziu um
conceito de nosso particular interesse: o conceito de Nome-do-Pai.
Veremos com Lacan (1995, p.209) que é impossível abordar o pai em sua
essência. Por isso ele indicou mais uma questão em aberto na psicanálise ao questionar:
“O que é ser um pai?”. Como resposta, ele propôs que se transferisse a questão sobre o
pai para o nome, o Nome-do-Pai, a metáfora da função paterna.
Por conseguinte, nosso intuito é o de trabalhar com questões sobre as quais
podemos agora enumerar algumas peculiaridades. Primeiro, tratam-se de questões em
aberto, logo, permitem mais algumas elaborações. Segundo, como a afirmação sobre a
não existência do Demônio e as questões sobre a feminilidade e a função paterna nos
remetem ao inominável, temos de reconhecer que estamos lidando com noções que se
desviam das regras de delimitação, ultrapassando-as para se constituírem como
exceções. Terceiro, em conseqüência desta ultrapassagem e como inerência das
exceções, encontramo-nos no campo em que o particular garante a validade do
universal, uma vez que a exceção confirma a regra. Encontramo-nos no campo da
exceção e do excesso.
Mas ainda nos resta justificar melhor nossa escolha do romance Grande
Sertão: Veredas, aqui tomado como objeto de uma análise que pretende investigar os
destinos da feminilidade a partir da intervenção da função paterna.
Dissemos que a referência ao Demônio feita pelo narrador do Grande Sertão
sintetiza nosso percurso de trabalho. Fundamentamo-nos na observação de que a figura
demoníaca tem como origem as concepções gregas do Daimónion e do Diaballein.
Nestas, demônio e diabo não detinham a conotação aviltante que ordinariamente se lhes
16
atribui. Ao contrário. Tratava-se de divindades propulsoras da diferenciação, da saída do
caos. Não era atribuída a elas qualquer conotação pejorativa. A afinidade entre as
concepções do Demônio e de Deus só veio a se desfazer por volta dos séculos III e II
a.C. e se generalizou com o Novo Testamento.
Por conseguinte, originariamente, o Demônio nos remete a Deus, o primeiro
motor, a causa ordenadora do mundo, seu criador - o Pai. Ao nos questionarmos sobre a
função paterna, somos levados, inevitavelmente, a refletir sobre a idéia de deus e do
demônio tal como o faz o narrador rosiano.
Mas não é só isso. Depois da diferenciação estabelecida entre Deus e o
Diabo, com o passar do tempo, mais especificamente, no final da Idade Média,
instaurou-se a espantosa associação do Demônio à mulher. Esta que, em várias culturas
primitivas, ocupara o lugar do sagrado ou usufruíra da possibilidade de governar junto
com o homem e que, mesmo na alta Idade Média, teve oportunidade de desenvolver-se
através do acesso às artes e ciências, vivenciou durante quatro séculos um fenômeno
assustador: “a caça às bruxas” (KRAMER e SPRENGER, 2000).
Apesar de aparentemente surpreendente, este fenômeno não se deu de forma
gratuita. O final do feudalismo germinou o que viriam a ser as nações modernas.
Tomado como nascedouro do capitalismo, iniciou um processo de controle do corpo,
condição sine qua non para se manter a alienação do trabalhador, sedimento da lógica
capitalista.
Foi por esta motivação que o Demônio - agora plenamente identificado a
uma categoria hierarquicamente inferior a Deus, mas que, paradoxalmente, contava com
a autorização deste para exercitar, através dos homens, toda espécie de sórdidos
desígnios -, teve de ser banido.
O ponto da vulnerabilidade humana, através do qual o Demônio exercia sua
influência, era a sexualidade. A mulher - descendente de Eva, que pecara ao aquiescer
com o Demônio - era tida como aquela que incorporava a fruta do pecado e
compactuava com o Demônio. Acreditava-se mesmo que algumas delas copulavam com
ele. A mulher era vista, então, como a própria “má sã”6. Com isto, queremos esclarecer
que a perseguição às bruxas não se direcionou exclusivamente às histéricas. Ela também
se estendeu àquelas que ascendiam à feminilidade. É sob este aspecto que nos
interessamos pelo Demônio.
6
Devemos esta feliz articulação ao Prof. Dr. Ricardo Lincoln, comunicada oralmente durante o curso de
mestrado em Psicologia da UFC, no dia 14 de maio de 2005.
17
Mas, nosso interesse tem ainda outro motivo: o Demônio e o Diabo grassam
soltos no Grande Sertão: Veredas, cujo subtítulo parece-nos representar as contorções
realizadas pelo próprio fio da narrativa: “O diabo na rua, no meio do redemoinho...”.
Se acertarmos ao afirmar que a narrativa se desenvolve ao modo de um
redemoinho, portanto, que ela descreve um movimento espiralar, nos permitiremos ir
mais além para acrescentar que seu eixo de rotação consiste, justamente, no
questionamento sobre a função paterna.
Por consideramos que, em torno deste eixo, giram os vários desdobramentos
do relato - sendo, inclusive, o ponto central do romance marcado pelo assassinato do pai
-, procuraremos demonstrar que, no Grande Sertão, o acesso de uma filha à
feminilidade também gira em torno da função do pai. Portanto, associaremos a
feminilidade ao movimento do redemoinho. Quer dizer, para nós, o móbil da
feminilidade é inapreensível qual um redemoinho. Apesar disto, interessa-nos averiguar
se a feminilidade e o Pai rodopiam pelas ruas do Grande Sertão, as veredas.
Na tentativa de percorrer essas ruas, nos dedicaremos inicialmente à
fundamentação de nossa pesquisa e aproveitaremos a oportunidade para explicitar nossa
metodologia. Uma vez que pretendemos trabalhar no interstício da psicanálise com a
literatura, trataremos dos vínculos da ficção com a psicanálise e a literatura. Ao lado
disso, indicaremos as lacunas teóricas que incitam nosso interesse e definiremos os
caminhos a ser explorados.
Em seguida, lançaremos a hipótese de que a função paterna se mostra
amplamente representada no Grande Sertão. A nosso ver, esta representação se dá a
perceber através do fio narrativo que descreve - como dissemos - um movimento
espiralar qual um redemoinho. Assim sendo, nos conduziremos não apenas pelas voltas
da narrativa - que está sempre retornando à questão paterna -, mas também pelos giros
de Freud e Lacan em torno do pai. Guiaremos nosso estudo pela perspectiva freudiana
apoiada no mito de Totem e tabu, e seguiremos pela perspectiva de Lacan, que
promoveu uma passagem para esta problemática ao retirá-la do campo da cultura para
considerá-la a partir do campo da estrutura. Em virtude deste giro, trataremos das
noções forjadas por Lacan para viabilizar esta passagem.
Depois, tendo estudado os desbobramentos teóricos da função paterna,
explicitaremos de que maneira estes acabaram por nos conduzir às veredas da
feminilidade. Neste enveredamento, continuaremos a consultar nossos batedores, Freud,
Lacan e o próprio Grande Sertão. Em Freud, constataremos que sua preocupação com o
18
feminino remonta aos escritos pré-psicanalíticos e se estende aos textos finais de sua
obra. Comentaremos alguns estudos de nosso particular interesse. Com Lacan, teremos
a oportunidade de alargar nossa compreensão sobre a diferença sexual e nos aproximar
dos impasses da feminilidade: a impossibilidade de nomeação que lhe é intrínseca e que
divide a mulher entre o nome e o gozo da feminilidade. Pelo Grande Sertão,
encontraremos vários aspectos relacionados ao feminino: conheceremos várias santas,
muitas putas, uma perversa, uma anoréxica e duas lésbicas.
Finalmente, tendo atravessado o Grande Sertão, investigaremos se as
veredas para a feminilidade implicam, ou não, numa encruzilhada com a função paterna.
Apesar do percurso realizado até agora, precisamos, no entanto, reconhecer
que estamos longe de saber a que descobertas ele nos convida. Teremos, portanto, de
continuar a girar em torno de nossa questão assim como ocorre no romance.
Neste, a história é contada e recontada, a cada vez de forma mais ampla.
Está-se sempre voltando ao ponto central. Por isso, comprometidos como pretendemos
nos manter com a inerência do texto literário, nos vemos na contingência de seguir com
o narrador que, tal qual Scheherazade7, conta e reconta, deixa a história em suspensão,
conta mil outras histórias, adia a revelação que lhe fará perder a cabeça ao vivenciar a
“doidagem” (GSV, p.455).
Apesar disto, o movimento avança e, ao final, depois que o encanto se desfaz
num encanto mais “terrível” (GSV, p.454), nos damos conta de que rodopiamos em
torno de questionamentos para os quais obtivemos muitas respostas, sendo que
nenhuma delas se apresenta como definitiva.
O Grande Sertão transmite um saber, mas um saber que não se fecha. Assim
usufruímos da abertura promovida por uma travessia que se dirige para o infinito. A
interrogação permanece.
7
Esta percepção nos foi transmitida por nossa orientadora, a Profª. Drª. Laéria Fontenele.
19
I
POR CAUSA DAS LACUNAS
1. 1 Introdução
Por que tratar da relação entre pai e filha? Acaso esta relação guardaria
alguma especificidade? Acaso a função paterna teria alguma influência sobre o advento
da feminilidade para uma filha? E mais, por que proceder a uma investigação sobre a
feminilidade a partir do estudo desta relação? Dito de outra forma: o que nos faria
interrogar se a função paterna tem alguma implicação sobre a constituição da
feminilidade?
Estas são as questões que animam nossa pesquisa cujo objetivo principal
consiste em identificar, a partir da análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa, as sendas que viabilizem um novo dizer no que concerne à relação
entre a função paterna e a feminilidade e que esteja alicerçado nas elaborações de
Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Tomamos como argumento inicial, em favor da relevância destas questões, o
fato de constatarmos que elas reiteradamente fazem suas aparições no espaço
privilegiado da escuta psicanalítica. De antemão, isto já nos leva a supor que a relação
entre pai e filha detém algumas peculiaridades. Além disto, como se não fora suficiente
justificar esta pesquisa por tal observação referente à prática clínica, contamos ainda
com o fato de estarmos lidando, no nível teórico, com noções que suscitam a
continuidade das reflexões sobre o tema, pois, tanto no que diz respeito ao que é uma
mulher, quanto ao que é um pai a questão continua em aberto.
Vale comentar que a constatação da existência de questões em aberto na
teoria psicanalítica, antes de indicar uma insuficiência, representa a expressiva
demonstração do compromisso da psicanálise com a manutenção de um rigor teórico
que, efetivamente, não se deixa seduzir pelos atrativos de teorias totalizantes que visam
à construção de uma “visão de mundo” (Weltanschauung). Segundo Freud (1980[1932],
v. XXII, p.193),
20
a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os
problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese
superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem
resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo.
Por conseguinte, verificamos que a abstinência freudiana em dar resposta a
todas as inquietantes perguntas da humanidade respalda-se na construção de um corpo
teórico sobre o qual Freud (1980[1932], vol. XXII, p.220) pôde sustentar uma
subordinação “à verdade” e à “rejeição das ilusões”.
Devemos ter em mente, além disso, que pretender realizar uma pesquisa em
psicanálise implica na consideração da metodologia empregada por Freud. Este, frente
ao inusitado, teve de forjar instrumentos de abordagem capazes de respeitar a
singularidade de um objeto até então inabordável, por se situar para além da
consciência: o inconsciente.
No entanto, não devemos considerar que, a partir disto, o inconsciente tenha
passado a ser um objeto abordável. Ele permanece, paradoxalmente, inabordável. Como
indica Corrêa (1993, p.14, grifo do autor) a partir do paradoxo de Russell, o
inconsciente é impredicável:
É bem conhecido o paradoxo de Russell. O conjunto de todos os conjuntos que
não contém a eles mesmos, deve ou não conter a ele mesmo? Se ele não se
contém, é incompleto. Se ele se contém, está em contradição com sua
definição, pois contém um conjunto que não se contém a ele, mesmo. [...]
Russell criou a noção de impredicável para demonstrar a inconsistência lógica
de seu paradoxo. [...] a noção de impredicável pode se aplicar ao inconsciente.
O impredicável é uma propriedade que não pode ser predicada dela mesma.
Assim, a propriedade de ser inconsciente é impredicável porque é uma idéia
consciente.
Abordar o inconsciente como uma totalidade suscetível de se tornar
consciente é atribuir-lhe predicados, atribuir-lhe uma lógica. Porém, como ainda
assinala Corrêa (1993, p.13), o inconsciente nos defronta não com uma lógica, mas com
uma “A-Lógica”, que é “incomensurável, inapreensível, inextinguível e indomável,
como o próprio inconsciente”.
Por conseguinte, não podemos presumir que exista uma “lógica do
inconsciente”, pois, como afirma Corrêa (1993, p.13), isto
faria supor que haveria uma lógica consciente e outra que é inconsciente. [...]
A lógica, como a “ciência da prova” (Stuart Mill), na qual o que é lógico
concerne à técnica do discurso correto, da expressão formal do pensamento, e
por isso, distingui-se do racional, que implica a ordem inteligível (não somente
21
das palavras, mas também das coisas), não comporta esses predicados de
Consciente/Inconsciente. [...] se digo “lógica do inconsciente”, com este
genitivo, sou conduzido a um impasse, fazendo do inconsciente uma
substância, da qual se pudesse predicar alguma coisa, um atributo.
Se assim procedêssemos, estaríamos restringindo nosso entendimento do
inconsciente à lógica da tradição filosófica grega sem levarmos em consideração que
esta incitou posteriores discussões no sentido de esclarecer se as relações entre a
linguagem e o discurso, entre o pensamento e o conhecimento, estariam ou não
submetidas a alguma lei de uso e funcionamento. Este problema - inaugurado pela
discussão entre Heráclito e Parmênides - foi abordado também por Platão e Aristóteles,
passou pelas reflexões filosóficas da Idade Média para enfim chegar ao entendimento
contemporâneo da lógica a partir da matemática. Seria supérfluo dizer que tal
preocupação da filosofia em relação à lógica decorre, é claro, de seu empenho em
encontrar algum acesso à verdade8 através de uma prática da linguagem.
O trabalho executado por Freud consistiu, portanto, na pesquisa de um
objeto a-lógico e sobre o qual nenhuma lei havia sido explicitada. Deste esforço, ele
8
Sobre os desdobramentos desta problemática na filosofia, podemos resumir que a discussão entre
Heráclito e Parmênedes consistiu no fato de que o primeiro considerava que os seres se encontram
submetidos ao perpétuo fluxo das mudanças, quer dizer, ao fluxo dos contrários, enquanto o segundo
acreditava que as contradições seriam meras aparências e que o real, o verdadeiro, nunca mudaria, seria
idêntico a si mesmo não comportando, portanto, qualquer contradição. O impasse foi retomado por
Platão, para quem o mundo das sensações seria uma aparência, uma sombra do mundo verdadeiro e, este
sim, conteria a essência imutável dos seres. Por isso, Platão propôs o método dialético através do qual se
realiza a separação dos opostos em pares e, então, se determina qual dos termos é aparência e qual é
verdade ou essência. Já para Aristóteles, o método dialético de Platão se presta bem para as disputas
retóricas onde o que impera é a persuasão e não a demonstração de uma verdade. Assim, Aristóteles criou
uma lógica, chamada por ele de “analítica”, que deve ser tomada enquanto instrumento do conhecimento.
Para Aristóteles, o raciocínio é uma operação do pensamento que consiste em inferir, isto é, tirar - de uma
ou mais premissas - uma conclusão. Ao encadeamento de premissas, Aristóteles, denominou de silogismo
e considerou que este pode ser de dois tipos: dialético ou científico. O silogismo dialético, característico
da retórica, é composto por premissas que podem ser apenas possíveis ou prováveis, quer dizer,
hipotéticas. Já o silogismo científico só pode conter premissas universais - cujos predicados se referem à
totalidade do sujeito - e premissas necessárias, isto é, aquelas em que o predicado faz parte,
necessariamente, da essência do sujeito. Este último não visa às premissas hipotéticas, mas às apodíticas,
àquelas premissas que se mostram irrefutáveis já que os predicados atribuídos ao sujeito são indubitáveis.
Com os filósofos da Idade Média, a questão se ampliou. Estes passaram a dar relevo não apenas ao sujeito
das premissas, mas também a seus predicados. Além disto, tornaram mais evidente o vínculo entre a
lógica e a linguagem e estabeleceram regras para as funções sintáticas e semânticas do latim. No século
XVII, Leibinz chegou a propor uma Arte Combinatória inspirada na álgebra com a finalidade de obter
uma linguagem perfeita, isenta das ambigüidades ou dos contra-sensos usuais na linguagem cotidiana.
Esta ambição por uma linguagem perfeita teve seu apogeu no século XIX com Boole e Morgan. Depois,
na passagem do século XIX ao XX, Frege, Peano, Bertrand Russell e Whitehead realizaram uma
profunda transformação da lógica que consistiu na formalização desta seguindo os moldes da
formalização matemática. Quer dizer, a partir de então os lógicos se mostraram cada vez menos
preocupados com o conteúdo das proposições e com as operações intelectuais do sujeito do
conhecimento. A lógica contemporânea formaliza-se, portanto, ao ponto de priorizar os símbolos
algébricos, a letra (ABBAGNANO, 2000).
22
pode demonstrar que as formações do inconsciente são regidas por uma lógica não
aristotélica e foi pela observação dos efeitos paradoxais desta outra lógica que Freud
identificou as regras do funcionamento inconsciente (CORRÊA, 1993).
Um dos paradoxos deste funcionamento diz respeito exatamente à relação
entre o inconsciente e o saber, pois, Corrêa (1993, p.11) faz notar que “[a]9 abertura do
inconsciente se produz num momento de exclusão do sujeito de seu próprio
pensamento. Para poder saber é necessário primeiro ser excluído do saber”. Temos uma
ilustração disto se observarmos que, quando cometemos, por exemplo, algum lapso de
linguagem, não sabemos de onde isso nos veio. Chegamos mesmo a considerar a
possibilidade de que se trata de algo inconsciente, no entanto, se nos pusermos a pensar
sobre a motivação inconsciente para tal lapso, tudo o que conseguirmos pensar daí em
diante não será inconsciente, mas consciente.
Por isso, como afirma Assoun (1996, p.42), o objeto da pesquisa freudiana
se mostra “ao mesmo tempo problemático e de uma imediatez ofuscante”. Mal aparece
já se desvanece.
Além disto, precisamos atentar para o fato de que a psicanálise - embora
enfrente um objeto a-lógico - lida, tal qual a lógica, com a linguagem, pois se ocupa
com o inconsciente. Contudo, sobre a relação do inconsciente com a linguagem,
lembremos a advertência de Lacan (2003, p.490), “o inconsciente é estruturado como
linguagem, eu não disse pela”. Portanto, segundo Lacan (2003, p.490) a linguagem “[...]
é a condição do inconsciente”. Como conseqüência disto, Corrêa (2003, p.19, grifos do
autor) considera que
[...] a Psicanálise é um lugar comum onde se imbricam a Tropologia, o lugar
dos “tropos” literários, da literatura, [...], da retórica, e da Topologia, o lugar
das relações, dos laços, da vizinhança, da continuidade e dos invariantes
instituídos e presentes na linguagem.
Em virtude destas particularidades do inconsciente, talvez se possa afirmar
com Assoun (1996, p.43) que, em psicanálise, “a pesquisa clínica não tem outra lei
senão a de seu objeto”.
Rematemos: em psicanálise, tratamos com um objeto ao qual - por ser alógico, evanescente e impredicável - não se pode atribuir valores tais como falso ou
verdadeiro. Podemos dizer que as formações do inconsciente mantêm uma afinidade
9
Cf. nota nº 2, p. VII.
23
com o tropos que, segundo Corrêa (2003, p.21, grifos do autor) é definido pelos gregos
como sendo “o desvio que se faz na linguagem para produzir uma figura retórica”, e
pelos estóicos “como sendo uma suspensão do julgamento”.
Como decorrência destas peculiaridades, encontramos entre os componentes
da lei do objeto que rege a pesquisa, um que requisita o exame mais detido de nossa
parte já que temos em perspectiva realizar uma investigação situada no campo de
interseção da psicanálise com a literatura. Este componente é a ficção.
1. 2 A ficção e a psicanálise
Se, por um lado, a ficção nos remete ao fingimento, à farsa, à criação
fantasiosa, por outro, é bem certo que ela nos remeta também, como no caso da criação
artística, a uma leitura particular e geralmente original da realidade. Desse modo, como
ressalta Assoun (1996, p.57), ao considerar a definição geral do termo “ficção” segundo
o Vocabulário de Lalande,
[u]ma ficção não é simplesmente o “não verdadeiro”, semblante ou aparência,
mas um construto portador de virtualidades de conhecimentos: se construímos
alguma coisa de que se sabe que “nada (lhe) corresponde na realidade”, é que,
por uma estratégia epistêmica deliberada, esperamos retirar disso um efeito
que, sem esse “ficcionamento”, seria impossível. Há aí a idéia de indiferença
metodológica pela “realidade” objetiva da “imagem” (fictícia).
Mas, então, em que medida a ficção estaria implicada na clínica
psicanalítica? Fontenele (2002-a, p.12) esclarece que “[...] o analista, [...] convoca um
sujeito particular a produzir um saber sobre sua verdade; saber que, por ser
absolutamente singular, tem nesse limite seu valor universal”. Desta tensão entre o
particular e o universal da verdade produzida pelo sujeito, Fontenele afirma que
resultarão “micronarrativas que não geram nenhuma cosmovisão [...]” Poderíamos
então, neste caso, inferir algo da ordem de “uma estratégia epistêmica” que favoreceria,
tal como é proposto por Assoun, o acesso a um efeito impossível de ser alcançado sem o
recurso ao “ficcionamento”?
Para respondermos a esta questão, retornemos à avaliação feita por
Fontenele (2002-a, p.34) sobre o caráter das micronarrativas produzidas pelo sujeito em
análise: Em primeiro lugar, a autora esclarece que o caráter das micronarrativas
“sustenta-se, ao feitio literário, na tessitura da verdade como ficção do sujeito, onde se
24
dão a ver as estratégias estilísticas pelas quais se diz o que não se pode por meios
usuais”. Em segundo lugar, Fontenele (2002-a, p.34) esclarece que este recurso ao
ficcionamento para se dizer o que não pode ser dito, promove a superação de obstáculos
decorrentes dos mecanismos de defesa do eu, constituindo-se, portanto, como “a forma
de lidar com o desconforto e o desprazer”.
Além disto, precisamos considerar que o material inconsciente se mostra
inacessível pela ação da censura que atua de maneira a produzir cortes sobre a narrativa.
A censura, portanto, deforma, produz falhas, espaços em branco, falta de trechos da
narrativa, torna a produção inconsciente ininteligível. Freud (1980[1892-99], v. I,
p.369) faz uma ilustrativa analogia deste processo à censura de cunho político numa
carta dirigida a seu amigo Fliess: “Você já viu alguma vez um jornal estrangeiro que
passou pela censura russa da fronteira? Palavras, cláusulas e frases inteiras estão
obliteradas, de modo que aquilo que restou se torna ininteligível”. A propósito desta
analogia feita por Freud, Assoun (1996, p.145) chama atenção para o fato de que
exatamente os espaços em branco do texto censurado é que dão a perceber ao leitor
“que o texto deve ser lido”.
Por conseguinte, frente à narrativa do sujeito, o analista dispõe de dois
recursos: a “interpretação” e a “construção”. Segundo Freud (1980[1937], v.XXIII,
p.295), a interpretação consiste na intervenção do analista sobre “algum elemento
isolado do material [narrativo], tal como uma associação [...]” ou um ato falho. Quanto
à “construção”, esta consiste no fornecimento, por parte do analista, de “um fragmento
da história” do sujeito. Como afirma Fontenele (2002-a, p.32), “[t]anto a interpretação
quanto a construção referem-se, de acordo com Freud, à reconstituição da história
daquele que se submete a uma análise”.
Sobre a “história do sujeito”, faz-se necessário lembrar ainda com Fontenele
(2002-a, p.33), que, para Freud, há uma distinção “entre o vivido e a realidade
psíquica”, pois, ele percebeu que “os eventos da vida do sujeito assumiam, em seu
discurso, uma forma fantasística”. Esta forma fantasística – inerente à realidade psíquica
- decorre do trabalho realizado pelo inconsciente, o qual consiste em transformar, ou
ainda, como afirmamos antes, em deformar, seus produtos. O trabalho do inconsciente
resulta, portanto, no que Assoun (1983, p.103) denomina por “Phantasieren”, ou seja,
fantasiar.
Ora, se o material produzido em análise traduz-se por um “fantasiar”, como
seria possível o acesso à verdade do sujeito? Seguimos com Assoun (1996, p.70, grifo
25
do autor) para afirmar que este acesso será viabilizado somente através do
reconhecimento ou mesmo da “sanção” dada pelo sujeito em análise às interpretações e
construções praticadas pelo analista. Como nos lembra este autor, em psicanálise, “o
objeto é... o sujeito” e este “é o único habilitado a legitimar as “ficções” interpretativas
do intérprete”.
Feitas estas breves considerações sobre o estatuto da ficção em psicanálise,
passemos agora a considerá-la no âmbito da criação literária a partir, justamente, do
entendimento do autor de Grande Sertão: Veredas.
1. 3 A ficção e a literatura
Em um dos quatro prefácios do seu livro de contos intitulado Tutaméia, Rosa
(2001, p.29) faz a contundente afirmação: “A estória não quer ser história. A estória, em
rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à
anedota”.
Partimos do pressuposto que esta contraposição do arcaísmo “estória” à
“História” feita por Guimarães Rosa, nos leva ao encontro de mais alguns aspectos da
ficção. Primeiro, explicita a diferença entre ambas no sentido de permitir entender a
“História” numa concepção geral que, segundo Abbagnano (2000, p.502), “indica a
resenha ou narração dos fatos humanos”, enquanto a “estória” nos remeteria à narrativa
de ficção. Segundo, apesar da explicitação da diferença entre estória e História, a
aparente oposição se desfaz quando Guimarães Rosa compara aquela à anedota.
Mais à frente, neste mesmo prefácio, veremos Rosa (2001, p.30) realizar
uma urdidura entre as anedotas e um elemento de grande interesse para nós, o “nãosenso”. Ouçamo-lo:
Talvez porque mais direto colidem [as anedotas] com o não-senso, a ele afins;
e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos
envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu
supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar
que se ri.
Ora, através desta relação estabelecida por Guimarães Rosa, somos levados a
considerar sua concordância com as observações feitas por Freud em alguns textos tais
como A interpretação dos sonhos (1900), Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os
chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Nestes, Freud elucida a relação das
26
manifestações do inconsciente - quais sejam os sonhos, os atos falhos e os sintomas com o não-senso. Especialmente no texto de 1905, Freud esclareceu também que os
chistes devem ser considerados como mais uma das manifestações do inconsciente,
pois, como estas, os chistes encontram-se submetidos às mesmas leis. Como as leis que
regem o inconsciente são leis da linguagem, todas as suas manifestações se organizam
através de metáforas e metonímias, de condensações e deslocamentos.
No entanto, lembremos que, embora Freud tenha elucidado estas leis, isso
não significa que o inconsciente possa ser apreendido. Tal eventualidade consistiria,
inclusive, num paradoxo, pois se o inconsciente pudesse ser apreendido pela
consciência, conseqüentemente perderia seu estatuto de não-consciência, o que
representa uma impossibilidade. Em relação ao inconsciente, lidamos sempre com uma
falta que lhe é constitutiva. Esta falta se manifesta no discurso e se mostra intimamente
relacionada ao não-senso. Como afirma Fontenele (2002-b, p.64),
[a] manifestação da falta no discurso é a instauração do sem-sentido, do
desconexo e do contraditório, como meios de produção de um sentido. Tais
procedimentos relacionam-se com a criação de neologismos, alterações na
lógica gramatical da língua, ou, ainda, com a utilização de uma palavra com o
sentido de outra. Quando a fala assim se manifesta, ocorre a quebra da relação
linear que os elementos da frase mantêm entre si; com isso, dá-se a alteração
ou suspensão do significado, que é subsumido por outra forma de significá-lo.
Sendo assim, acreditamos que nosso entendimento sobre a contraposição do
arcaísmo “estória” versus “História” possa ser um pouco mais ampliado se
considerarmos agora com Simões (ROSA apud SIMÕES, s/d, p.13-14) que Guimarães
Rosa busca, ao longo de toda sua produção artística, realizar um projeto de escritura
explicitado pelo próprio autor nos seguintes termos:
Molgável, moldável, dirigente assim – e não me refiro só à língua literária –
ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e
refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e
da cultura, vai-se desenrolando, se destorce, se enforja, malêia-se, faz mó do
monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugarescomuns, escapa á viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus
escritores não deixam.
Neste projeto de escritura - cuja proposta de fuga à “esclerose torpe dos
lugares-comuns” deve ser buscada apesar da “pressão da vida e da cultura” - pode-se
vislumbrar, para além do projeto literário, o posicionamento crítico que respalda a visão
do autor no referente à relação do homem com a cultura. Esta crítica que irmana a arte e
27
o espírito humano ao fazer a “mó do monótono” e virar “dinâmica”, virar “agente”,
fundamenta a produção literária de Guimarães Rosa, que libera uma saída “à
sonolência” e “à indigência”.
Mas de que maneira o texto literário promoveria escapes à sonolência? Para
tentarmos responder a esta questão, supomos ser interessante abordá-la a partir de duas
perspectivas: a do texto e a do leitor.
Na relação dialética entre um texto e seu leitor, ocorre o que Assoun (1996,
p.127) define como sendo um “teatro organizado pela leitura” onde se daria o “encontro
entre um sujeito e aquilo que se oferece ao ler”. Se deste teatro, resulta - como afirma
Guimarães Rosa - um despertar, uma saída da sonolência, esta se mostra
paradoxalmente precedida por um movimento semelhante ao adormecimento. Sobre
este movimento que deve ser entendido como inerente à leitura, citamos novamente
Assoun (1996, p.131):
Talvez não exista ingresso no devaneio induzido pela leitura sem uma
condição secretamente regressiva, aquela que, análoga ao adormecimento,
desliga o sujeito dos investimentos de realidade para orientá-lo em direção ao
signo verbal. [...] Deve-se saber, com o mesmo movimento, ausentar-se (do
real) e apresentar-se (à letra), o que é designado pelo próprio movimento de
abertura do livro. O sujeito deve fechar-se à realidade para abrir-se à letra.
Seguimos ainda com Assoun (1996, p.131) para esclarecermos que toda esta
“ritualização da leitura” tem por objetivo criar condições para que o leitor possa “seguir
o trem das associações posto nos trilhos por um outro”, o narrador, “aquele que dá a
ler”. Mas o que haveria de tão atrativo nisto que o narrador dá a ler? O que atrai é,
exatamente, a possibilidade de realizar um cruzamento da fantasia que é dada a ler pelo
narrador, com a fantasia do leitor. Citamos Assoun (1996, p.132):
Ler é realmente, neste sentido, subtratar a fantasia do “narrador” pela própria
fantasia. Longe de ser necessário postular uma transferência mecânica de
fantasias, o que o autor efetua por sua própria conta – a restituição, sob
pressão, de sua fantasia – é que funciona como distração para o leitor. A
operação de leitura tem, pois, isto de inesperado: ela deixa a fantasia exposta.
Convenhamos que tal exposição não se dá sem conseqüências. A
possibilidade de acesso à própria fantasia permite a alusão às duas faces de uma mesma
moeda. Por um lado, como foi percebido por Guimarães Rosa, a língua literária se
mostra capaz de fazer “mó do monótono”, o que nos remete a uma espécie de
mobilidade da fixidez. Por outro lado, Assoun (1996, p.130, grifo do autor) indica que a
28
leitura enquanto “ato ao mesmo tempo salutar e perigoso” – já que mobilizadora de
fantasias - promove uma mobilidade fixa do leitor: “Daí a móvel fixidez do leitor: se é o
desfile dos restos verbais que ele acompanha, tão literalmente, com o olhar, é a coisa
dita e jamais totalmente dita que ele fixa e que o obnubila [...]”.
Porém, será justamente neste ponto de obnubilação que poderemos localizar
o despertar promovido pela criação literária. Um despertar que se direciona para um
não-senso, para uma outra cena que não a cena da realidade consciente. Um despertar
que se dirige para a cena faltosa sobre a qual se constitui o inconsciente e que remete o
sujeito a um indizível. Como afirma Fontenele (2002-a, p.67),
A particularidade da expressão literária do inefável, [...], reside no fato de ele
referir-se a uma experiência na qual o sujeito vê-se, por um instante, tomado
por uma gama de sensações que carecem de expressão. Por se situarem fora da
linguagem, essas sensações são acolhidas, pelo corpo daquele que as
experimenta, através de uma forma particular de gozar o sentido, que a
linguagem ordinária não possibilita, exatamente porque estão, diretamente,
atreladas às dimensões imaginárias e simbólicas da pertença do sujeito no
mundo.
Além disto, através destas sensações que se encontram fora da linguagem, o
sujeito se depara com algo de real viabilizado pelo roteiro ficcional de sua própria
fantasia inconsciente. Sendo assim, como afirma Valas (2001, p.69), a fantasia
inconsciente “não é mais apenas uma ficção; ela se torna, [...] uma “fixão” do real”.
Desta forma, por nos encontrarmos imersos na linguagem, o que se engendra
entre o escritor e o leitor é uma mensagem com valor de verdade apesar de sua estrutura
ficcional. Como realça Ferreira (2005, p.17),
[o] ser humano, quando passa a habitar o mundo da linguagem e de suas leis, é
impelido por chamas que ardem, queimam e mantêm viva a falta que inflama o
desejo. Falar põe em cena a posição de um sujeito em relação ao Outro. Para o
escritor, o leitor passa a ocupar o lugar de representante desse Outro ao qual
toda fala se dirige. A literatura, como fala do desejo, é um discurso que
engendra uma mensagem com valor de verdade. A mensagem, como lugar do
sentido e da verdade, tem estrutura de ficção.
Por último, consideremos também que, sem pretender ser “História”, esta
que, segundo Lacan (2003, p.484), faz que os historiadores se deparem com a miséria de
“só poder ler o sentido, ali onde não lhes resta outro princípio senão valerem-se dos
documentos da significação”, a “estória” continua, por sua aproximação com a anedota,
a se dirigir ao sublime.
29
Em relação a este, se lembrarmos com Lacan (1985, p.23), que o sublime
representa “o ponto mais elevado do que está em baixo” – pois, segundo Houaiss10,
“sub” assinala um ponto hierarquicamente inferior e “lime” remete a “dano, ruína,
maus-tratos” -, poderemos, então, interrogar com Rosa (2001, p.39): “E não será esse
um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e
grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao
excelso”.
1. 4 As lacunas que motivam a caminhada
Tendo refletido sobre a interseção estabelecida entre o despertar promovido
pelas aberturas inerentes à obra literária e a questão do inconsciente estruturado como
um texto, resta-nos, agora, iniciar nossa reflexão sobre os caminhos passíveis de
conduzir à feminilidade a partir do estudo da relação entre pai e filha.
Como afirmamos anteriormente, quando nos voltamos para a teoria
psicanalítica, percebemos que tanto a feminilidade quanto as elaborações em torno do
pai se apresentam em aberto, o que nos incita a empreender uma investigação sobre tais
questões.
Desde os textos que compõem os primórdios da psicanálise - os manuscritos
e cartas de Freud endereçadas a Fliess, bem como n’O Projeto para uma psicologia
científica, de 1895 –, nos encontramos com as tentativas iniciais de Freud de fazer uma
esquematização da sexualidade. Destas, já podemos depreender antecipações sobre a
feminilidade de tal pertinência que as reencontramos, melhor formalizadas, não apenas
ao longo de toda a elaboração freudiana, como também na releitura do texto de Freud
empreendida por Jacques Lacan.
Então, da forma que percebemos, seria como se encontrássemos nos textos
de origem da psicanálise os elementos in germen da revelação freudiana sobre a
feminilidade. Vale, no entanto, ressaltar que, apesar dos inestimáveis esclarecimentos
fornecidos por Freud sobre a sexualidade feminina, ao final de sua obra ele se
confrontou com uma questão que reflete toda sua perplexidade frente à mulher.
Referimo-nos, obviamente, à interrogação feita por Freud à Marie Bonaparte quando
10
Por diversas vezes recorreremos ao Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Esclarecemos
que se trata da versão eletrônica do ano de 2001.
30
reconhece que, após trinta anos de exaustivos e esclarecedores estudos sobre o que
concerne ao feminino, persistia uma indagação: “O que quer uma mulher?”.
O desenvolvimento da elaboração freudiana sobre a mulher culmina,
portanto, numa revelação em seu sentido mais amplo, pois, demonstra o ponto em que
algo volta a se mostrar encoberto, ao mesmo tempo em que se descerra como
perspectiva de novos horizontes epistêmicos. Tanto é assim que foi pelas qualidades de
obstáculo e abertura deste ponto indicado por Freud na questão da feminilidade, que a
teoria psicanalítica veio a se enriquecer com os avanços promovidos por Lacan. Mais à
frente, teremos oportunidade de observar como este - ao tomar a lógica freudiana como
ponto de partida - franqueou o acesso a uma outra lógica para verificar mais
efetivamente as peculiaridades da feminilidade.
Num mesmo relevo teórico, vamos encontrar as elaborações freudianas
relativas ao pai, desde a teoria da sedução. Esta foi posteriormente questionada a partir
da próton pseudos, ou seja, das elaborações de Freud em torno da primeira mentira
histérica, e cujo mecanismo foi previsto por ele já no texto de 1895, conhecido
simplesmente por Projeto11. Depois, a teoria da sedução foi definitivamente abandonada
por ele em favor da teoria da causalidade psíquica. Podemos, então, afirmar que as
reflexões sobre o pai perpassam a obra freudiana desde seu início até um texto tardio
como Moisés e o monoteísmo, de 1939.
No tratamento destas, Freud manteve a mesma atitude epistêmica que
fundamentou, não apenas seu estudo sobre a sexualidade feminina, mas toda a
construção psicanalítica. Como já dissemos, Freud esteve votado ao entendimento do
inconsciente, quer dizer, ao estudo de um objeto inédito, frente ao qual ele teve de forjar
novos dispositivos de acesso a este objeto. Tais instrumentos preservam a própria
característica do objeto, e dão passagem a um saber inusitado e inesgotável que suscita,
por conseguinte, novas elaborações. É na perspectiva dessas novas elaborações que
recorremos mais uma vez a Lacan. Ao realizar uma minuciosa leitura dos textos
freudianos, ele destacou a importância de uma retomada da formalização feita por Freud
em torno do pai.
Parece-nos interessante ressaltar que, assim como encontramos no estudo
sobre a sexualidade feminina, a indicação de Freud da lacuna teórica relativa ao querer
11
Em Projeto para uma psicologia científica, texto elaborado em 1895 e publicado em 1950,
encontramos o item intitulado “A Proton Pseudos [Primeira Mentira] Histérica”. Neste Freud
(1980[1895], v.I, p.469) já começa a observar que “a liberação sexual provinha de uma lembrança e não
de uma experiência”.
31
feminino, no estudo sobre o pai, é Lacan quem nos indica uma outra questão lacunar:
para ele, Freud considera o pai pelo viés da sua primazia na constituição da realidade
psíquica o que não esgota a questão sobre o que vem a ser um pai. Como veremos,
Lacan parte da mesma concepção freudiana do pai enquanto incerto seguindo o
aforismo Mater certíssima. Pater incertus est.
Em decorrência de uma série de retomadas do texto de Freud, Lacan propôs,
então, que, para além do entendimento do pai como responsável pela constituição da
realidade psíquica, este devia ser entendido tal qual um termo de referência. Portanto, o
pai é aquele a quem se refere algo e este algo é da ordem do inconsciente.
Para dar conta desta ampliação do entendimento sobre a função paterna,
Lacan forjou a noção de Nome-do-Pai, pois, já que o pai é incerto, não há uma verdade
de experiência que possa nomeá-lo de maneira garantida. Daí a necessidade de que a
garantia se dê pela fé na nomeação, quer dizer, na denominação de algo que não tem
nome. Portanto, o Nome-do-Pai designa a função do pai, é a metáfora desta função.
Diante destas constatações, podemos dizer, grosso modo, que tomamos
como pano de fundo da nossa proposta realizar um cruzamento entre as lacunas
indicadas por Freud e Lacan para interrogarmos: o que é o pai no que diz respeito à
questão freudiana: “que quer uma mulher?”.
Na consecução deste intento, nos foi necessário restringir nossa pesquisa ao
estudo das implicações da função paterna sobre o devir da feminilidade de uma filha. É
neste sentido que a análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa, se nos apresenta como oportunidade ímpar de alargar nosso entendimento sobre o
tema.
1. 5 Em busca de um caminho
Através do Grande Sertão, ouviremos a estória12 - contada pelo jagunço
Riobaldo - de uma menina que, desde a infância, se faz passar por homem. Esta menina
adotou para si dois nomes: Reinaldo e, num outro momento, Diadorim. Vestia-se como
menino e, na vida adulta, entrou para a jagunçagem. Neste contexto, ela tomou para si a
obrigação de vingar a morte de seu pai, Joca Ramiro. Sublinhamos desde já que o
12
Especificamente sobre esta abordagem do romance rosiano enquanto uma “estória”, esclarecemos que
tal procedimento parece-nos autorizado pelo próprio Guimarães Rosa já que este considera relevante a
manutenção do arcaísmo “estória” ao qual contrapõe a “História”. Conseqüentemente, empregaremos o
termo “estória” quando nos referirmos ao relato realizado no Grande Sertão.
32
assassinato deste pai se constitui como o evento central da narrativa. A vingança de
Diadorim contra os assassinos de seu pai foi levada às últimas conseqüências, apesar do
amor que sentia por um outro homem, aquele que narra a sua estória, Riobaldo, e que
por várias vezes lhe pediu que desistisse da vendeta para acompanhá-lo e sair da
jagunçagem. Tudo isto se deu sem que Riobaldo soubesse que Diadorim era uma
mulher. Por isso lhe dedicou um tratamento de amigo perpassado por um intenso e
inexplicável amor, contra o qual se debatia.
Esclarecemos que nossa perspectiva metodológica pretende indicar, em
primeiro lugar, a coerência passível de ser apreciada no Grande Sertão em relação à
psicanálise, sendo este um dos pontos essenciais a nortear nossa abordagem deste
romance. Conseqüentemente, consideraremos o texto literário a partir da escuta de suas
ressonâncias em torno das questões aqui propostas para, desta forma, nos beneficiarmos
com as aberturas promovidas pela narrativa na medida em que estas ampliem nosso
entendimento sobre o vínculo entre pai e filha.
Em nossa articulação do texto literário com a psicanálise pretendemos nos
empenhar na elucidação dos desdobramentos realizados por Freud e Lacan em torno das
noções de função paterna e de feminilidade. Diante disto, tivemos de decidir por qual
destas noções iniciaríamos nosso estudo. Cabe frisar que esta decisão não se tratou de
uma livre escolha.
Na análise do Grande Sertão, identificamos que a narrativa nos apresenta, de
chofre, inusitadas interrogações referentes ao pai. Portanto, submetidos que estamos aos
elementos constitutivos do texto literário, nenhum outro caminho nos pareceu mais
adequado senão aquele que nos leva a iniciar nosso estudo pela elucidação da função
paterna neste relato. Assim, dedicamos nosso segundo capítulo ao estudo desta função.
Como já dissemos, a função paterna foi elaborada por Freud em vários textos
aos quais, evidentemente, recorremos. Além destes, e por levarmos em conta que a
função paterna se encontra intimamente relacionada à noção criada por Lacan de Nomedo-Pai, também recorremos a este referencial teórico para fundamentar nossa análise.
Assim procedendo, constatamos que a construção do conceito de Nome-doPai nos remete, como uma de suas conseqüências, à questão sobre o que quer a mulher.
Desta forma, na seqüência, dedicamos nosso terceiro capítulo ao estudo sobre a
feminilidade.
Neste desígnio, nos propomos a fazer ecoar a interrogação que tomamos
como fundamento de nossa investigação - o que é o pai no que diz respeito ao que quer
33
uma mulher – sobre uma outra interrogação, um tanto mais restrita e especifica e que
apresentamos sob o título desta pesquisa: “O Nome-do-Pai no Grande Sertão: Veredas
para a feminilidade?”.
34
II
UMA ESTÓRIA QUE NASCE DO CAOS PARA VIVER MUITAS GUERRAS
EM NOME-DO-PAI
2. 1 Introdução
Partimos, inicialmente, da hipótese de que, na apreciação do Grande Sertão:
Veredas, podemos vislumbrar uma notável representação da função paterna.
Assim, nos deparamos com um Grande Sertão, através do qual seremos
conduzidos pela fala do jagunço Riobaldo, que na velhice assume a condição de
barranqueiro, e por ocasião da chegada inesperada de um visitante, - “um moço de fora”
(GSV, p.10), “com carta de doutor” (GSV, p.22) -, inicia, de maneira surpreendente, seu
relato de uma longa, bela e instigante estória.
Visitante e leitor, somos todos subitamente introduzidos por um travessão,
na travessia de um mundo enigmático aberto por uma única palavra, “- Nonada”13
(GSV, p.9), que, paradoxalmente, remete a “tudo” - ao “não-nada”. Como argumenta
Francis Utéza (1994, p.66), desvela-se então o “caos telúrico conjugado ao caos
humano: nem barreira, nem medida, nem ordem social”.
É desta forma que, a partir do caos, portanto, emergindo do Nada, a fala de
Riobaldo inicia seu descortinamento de um lugar que se dá a conhecer por si mesmo,
“Lugar sertão se divulga” (GSV, p.9), em toda a sua infinitude, “Esses gerais são sem
tamanho” (GSV, p.9), e em sua onipresença, “O sertão está em toda parte” (GSV, p.9).
2.2 Do caos ao “homem dos avessos”
A que nos remete este sertão onipresente, infinito e que conhece a si mesmo?
A impressão que temos é a de iniciar uma caminhada rumo ao inefável de uma abertura
que também é como um abismo insondável:
13
Reproduzimos, para melhor entendimento, a explicação dada por Martins (2001, p.354, grifos da
autora) n’O Léxico de Guimarães Rosa, sobre a palavra “Nonada”: “Nada; coisa sem importância. //
Forma arcaica resultante da aglutinação de non + nada. É a palavra que abre o romance, constituindo
sozinha a primeira frase e a primeira estranheza e está também no último paráfrafo. Heloísa V. de Araújo
diz: “A palavra ‘nonada’, que inicia o livro, poderia, assim, ser indicação de que o mundo de Grande
Sertão: Veredas estaria, numa imitação da Criação, sendo criado ex-nihilo” (Roteiro de Deus, p.337)”.
35
- NONADA. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus
esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu
acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí vieram
me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem
ser – se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar.
Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo
feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo
prascóvio. Mataram (GSV, p.9).
Acontece então que, deste abismo insondável, que remete ao vazio
primordial, vem à luz o sertão como se fora uma primeira organização do caos, uma
espécie de saída do abismo, promovida pela fala de um narrador que se diferencia da
massa, não sendo ingênuo como o povo. Sua fala nos fará retornar a um determinado
tempo. Sobre este tempo, o tempo em que a estória é narrada, Roncari (2004), Bolle
(2004) afirmam, junto com Utéza (1994) que ele, o tempo, “adquire forma nos limites
históricos da República Velha e de suas lutas entre coronéis, que disputam o poder por
via dos jagunços” (UTÉZA, 1994, p.67).
O Grande Sertão é, portanto, uma estória que nasce do caos, para viver
várias guerras travadas por jagunços, um tipo de homem que “já é por alguma
competência entrante do demônio” (GSV, p.11). Daí as interrogações do narrador, ele
próprio um jagunço, sobre a existência do diabo - “O diabo existe e não existe?” (GSV,
p.11) - e sobre os procedimentos de Deus:
Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra que? Deixa:
bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes,
por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta... (GSV,
p.16).
Ora, adiantamos que o questionamento sobre Deus e o Diabo perpassará
todo o romance e isto procede de uma referência ao saber. Além disto, gostaríamos de
ressaltar que se constitui num ponto pacífico entre os diversos críticos do Grande Sertão
que o fio desta narrativa realiza um percurso labiríntico14. Esta observação nos permite
entender mais um aspecto original do romance de Guimarães Rosa: seu subtítulo: “O
diabo na rua, no meio do redemoinho...”. Este subtítulo se constituirá num dos
leitmotivs principais da obra. Nossa intenção ao sublinhar sua importância baseia-se em
algumas observações:
14
Sobre a apresentação labiríntica da narrativa deste romance, conferir Francis Utéza (1994), Antônio
Cândido (2000), Márcia Marques de Morais (2001), Willi Bolle (2004), dentre muitos outros.
36
Primeiro, este leitmotiv pode ser considerado em sua musicalidade: ele se
repete e se transmuta15 ao longo de todo o romance, vindo, por conseguinte, expor uma
diferença, uma alteridade, como se pode constatar, por exemplo, em sua primeira
aparição no corpo do romance: “... O diabo na rua, no meio do redemunho...” (GSV,
p.11, grifo nosso).
Com Utéza (1994, p.71, grifos do autor), consideramos que esta repetição
explicita de maneira surpreendente a alteridade, pois “[...] com esta pequena diferença:
o redemoinho meteorológico transforma-se no redemunho, com um eco sonoro em que
ressoa a referência demoníaca”.
Segundo, para tornar mais clara nossa intenção de articulação, afirmamos
que o interesse por este leitmotiv se dá pelo vislumbre de uma saída do caos - lugar da
indiferenciação -, o que nos parece ser endossado pelo narrador do Grande Sertão
quando, ainda na primeira página do romance, interroga abruptamente: “Do demo? Não
gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem
só: o Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evita, se convive” (GSV, p.9). Qual a
importância da aparição desta figura nomeada obliquamente - que requisita a simulação
de um receio e que se presentifica pela evitação?
Acreditamos, como Roudinesco (2003, p.21), que através do demônio
chegamos à figura do demiurgo, criador e organizador do Universo, o qual nos conduz
também a uma outra idéia, a idéia do pai dos tempos arcaicos que, “[h]eróico ou
guerreiro, [...]é a encarnação familiar de Deus, verdadeiro rei taumaturgo, senhor das
famílias. Herdeiro do monoteísmo, reina sobre o corpo das famílias e decide sobre os
castigos infligidos aos filhos”.
E de fato: no Grande Sertão, logo mais adiante, o narrador nos explica que
“o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o
homem dos avessos” (p.11) sendo que
[...] o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o
razoável sofrer. E a alegria de amor [...]. Família. Deveras? É e não é. [...].
Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom
marido, bom pai, e é bom amigo de seus amigos! [...] Só que tem os depois – e
Deus, junto. [...] Mas, em verdade, filho, também, abranda (GSV, p.12).
15
Sobre a repetição e as transmutações da apresentação deste leitmotiv ao longo do romance,
reproduzimos a percepção de Lauro Belchior Mendes (1998, p.56-57) no ensaio “Imagens visuais em
Grande Sertão: Veredas”, onde este autor indica as nove transformações sofridas por este leitmotv, e
argumenta que “a dimensão plástica colocada na folha de papel do livro se une a uma espécie de
caligrafia musical”.
37
Assim, saídos do caos, começamos a adentrar no mundo do “homem dos
avessos”, o mundo ainda regido por uma dualidade – Demo e Deus – que virá a ser
abrandada pelo filho.
Estas observações nos levam a propor que o fio narrativo do Grande Sertão
realiza um movimento espiralar. Parece-nos que o relato se contorce, gira, passa e
repassa pela questão sobre o pai, ampliando o entendimento da questão a cada retorno.
2. 3 O “redemunho” do Nome-do-Pai
Retornando ao leitmotiv “... O diabo na rua, no meio do redemunho...”, já
fizemos sobressair a percepção de Utéza (1994) do eco que nos remete do “redemunho”
ao demônio. Acontece, porém, que, por esta percepção, não podemos deixar de notar
um outro aspecto: esta frase nos depara com o demônio e com o diabo e o que é preciso
atentar nisto é que os dois não são a mesma coisa.
O termo Demônio, originário do grego, (daimónion), esclarece-nos Brandão
(1993, p.187) refere-se “a deus, divindade, deus de categoria inferior, destino, como por
vezes aparece em Homero. [...] Em princípio, portanto, demônio não tem conotação
alguma pejorativa”.
Por outro lado, o Diabo, etimologicamente também vindo do grego
Diaballein, significa, conforme Utéza (1994, p.57), a divisão e implica um movimento
que estabeleceria uma diferenciação numa massa amorfa, condensada, o que vai
conduzir Utéza a associá-lo ao redemoinho: “mostrando-se no centro do Turbilhão, na
origem das mutações, a besta multiforme aparece, pois, também como o animador
infatigável daquilo que, sem ele, seria apenas uma massa amorfa”.
Além disto, mostra-se oportuno lembrar que, apesar de misturados, a
aproximação entre Deus e o Demônio foi modificada, mas apenas posteriormente,
quando as concepções sobre o demônio passaram a associá-lo às divindades inferiores
ou subordinadas (ABBAGNANO,2000). Segundo Brandão (1993, p.187), o demônio,
na acepção de Satanás, “não é documentado no Antigo Testamento. Ao que parece, com
a acepção que hodiernamente se lhe atribui, o ‘demônio’ surgiu a partir dos
Septuaginta16 (Séc. III e II a.C.), generalizando-se depois no Novo Testamento”.
16
Septuaginta é denominação dada ao grupo 72 rabinos reunidos por Ptolomeu II que realizaram em
Alexandria nos séculos II e III a tradução grega da Bíblia Hebraica (PORGE: 1998, p.172).
38
Feitas estas considerações, observamos que o Grande Sertão se inicia pelo
relato de um assassinato: “[...] determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram”.
Este assassinato sucede à determinação de que se tratava do Demo, poderia, portanto,
também se tratar de Deus, se consideramos a afinidade primordial entre Deus e o Demo.
Desta forma, temos, logo nas primeiras linhas desta narrativa, o avesso do relato do
assassinato de Deus, do assassinato do Pai.
Ora, essas mesmas observações nos servem para abordar a questão em torno
do pai pelo viés da psicanálise. No texto de 1913, intitulado Totem e tabu, Freud se
utiliza da noção de complexo de Édipo para forjar o mito do pai da horda primitiva cuja
característica era a de poder gozar de todas as mulheres. Em decorrência desta
prerrogativa paterna, os filhos teriam se insurgido e assassinado o pai. No lugar deste,
Freud então argumenta que teria surgido Deus. Este seria, portanto, um substituto
nostálgico do pai assassinado e um recurso ao qual se recorreria na tentativa de expiação
da culpa pelo crime cometido.
Esta construção freudiana foi, no entanto, posteriormente criticada por
Lacan: para ele, no mito de Totem e tabu, Freud restringe o pai à potência do falo e isto
não exaure o que se pode dizer sobre o pai. É assim, que já no primeiro seminário
realizado por Lacan em sua própria residência no ano de 1951 - um seminário dedicado
ao estudo do caso relatado por Freud intitulado como o Homem dos lobos – ele irá
propor uma nova perspectiva ao entendimento do problema em torno do pai.
Segundo Porge (1998, p.26), que dispõe das notas inéditas deste seminário
de 1951, é nele que aparece pela primeira vez o termo Nome-do-Pai. Em relação a este,
Porge comenta inclusive que “Lacan não explica a introdução deste novo termo no
campo analítico. A única indicação que nos dá é a de sua proveniência, a religião, e
ainda por cima não precisa qual”. Além disto, ainda com Porge, na interpretação do
caso do Homem dos lobos, Lacan entende o termo Nome-do-Pai como um produto de
degradação do pai simbólico: “Ele [o homem dos lobos] nunca teve pai que simbolize e
encarne o pai, deu-se-lhe o Nome-do-Pai em lugar disso”.
Portanto,
parece-nos
essencial
tecer
uma
breve
apreciação
dos
desdobramentos desta noção dentro do corpo teórico modelado por Lacan.
Neste, a noção de Nome-do-Pai ganha um destaque especial: primeiro, tratase de um recurso teórico criado por Lacan. Isto implica em reconhecermos, junto com
Roudinesco e Plon (1998, p.541), que estamos diante de um conceito distinto dos
demais por não ter sido “retirado de um corpus” teórico pré-existente.
39
Segundo, apoiando-nos no minucioso estudo realizado por Porge (1998)
sobre a origem, incidências e repercussões deste termo - não apenas no plano teórico,
mas inclusive pessoal e institucional -, vamos constatar sua relevância ao longo de toda
a elaboração lacaniana.
Como já expusemos, a noção de Nome-do-Pai aparece pela primeira vez em
1951, no seminário sobre o Homem dos lobos. No ano seguinte, em um seminário
realizado ainda em sua residência, Lacan recorre às categorias de real, simbólico e
imaginário para estudar o caso do Homem dos ratos. Segundo Julien (1999, p.33),
Lacan inventou os três adjetivos, real, simbólico e imaginário, para promover a
passagem do Édipo freudiano “para algo de estrutural ao invés de cultural”. Desta
forma, inicialmente, estes três adjetivos “qualificavam o pai: o pai simbólico, o pai
imaginário e o pai real”. Mais à frente, retornaremos a estas categorias.
Por hora, gostaríamos de ressaltar que, no seminário de 1951, o Nome-doPai é, segundo Porge, mencionado de forma muito passageira. Este autor conjectura,
então, sobre a existência de um hiato inicial entre o Nome-do-Pai e os registros real,
simbólico e imaginário que, ao mesmo tempo, indica a íntima ligação tecida entre estes
no decorrer das ulteriores elaborações de Lacan. Porge demonstra inclusive a
alternância de aparição entre o Nome-do-Pai e o registro ternário nos seminários de
Lacan que resultará num entrelaçamento a uma outra noção introduzida por ele que é a
de sujeito suposto saber.
Terceiro, seguindo as indicações de Porge (1998, p.46), mostra-se
imprescindível frisar que pela concepção do Nome-do-Pai, Lacan realizou uma
“inversão metodológica” no que diz respeito à concepção freudiana do mito de Totem e
tabu: enquanto para Freud, Deus seria um substituto nostálgico do pai assassinado, para
Lacan, o que está em primeiro lugar é a questão de Deus. A partir da primazia desta
questão, Lacan realizou o esforço de apresentar cientificamente o Nome-do-Pai. Com
isto, ele visava substituir a teoria do complexo de Édipo segundo Freud, pela noção de
Nome-do-Pai que, segundo Porge (1998, p.41), “contém o germe de uma desconstrução
da teoria de Freud” sobre o Édipo. Assim é que, no seminário transcorrido entre os anos
de 1956 e 1957, intitulado A relação de objeto, Lacan (1995, p.215) justifica que Freud
teve de forjar o mito de Totem e tabu, “um mito moderno [...], para explicar o que
permanecia em hiância em sua doutrina, a saber – Onde está o pai?”.
Por último, temos de ressaltar que esta percepção de Lacan nos interessa
sobremaneira, pois, neste seminário de 1956, ele deixa evidente a lacuna teórica que é,
40
ao mesmo tempo, o ponto de orientação da pesquisa freudiana: “- toda a interrogação
freudiana se resume no seguinte: O que é ser um pai? Este foi para ele [Freud] o
problema central, o ponto fecundo a partir do qual toda sua pesquisa realmente se
orientou” (Lacan, 1995, p.209).
Daí parece-nos que, quando nos voltamos para o Grande Sertão, também
encontramos um narrador que tenta perscrutar os segredos de Deus, do Demo e, por
conseguinte, do Nome-do-Pai. A nosso ver, ele parte, tal como Freud e Lacan, da
incerteza sobre o pai, “pater incertus”, de forma que sua fala entretece certo discurso
sobre um lugar incerto: o Sertão17.
2. 4. O des-tino dos nomes
Ao continuar a caminhada pela incerteza deste sertão, onde “Viver é muito
perigoso” (GSV, p.16), vamos, então, encontrar a série dos nomes de homens que
“puxavam o mundo para si, para consertar o consertado”:
Montante, o mais supro, mais sério – foi Medeiro Vaz. [...] Seu Joãozinho
Bem-Bem, o mais bravo de todos [...]. Joca Ramiro – grande homem príncipe!
– era político. Zé-Bebelo quis ser político mas teve e não teve sorte [...]. Sô
Candelário se endiabrou [...]. Titão Passos era o pelo preço de amigos [...].
Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade [...]. Andalécio, no fundo, um
bom homem-de-bem, [...]. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para
isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre e assassim. E o
“Urutú-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que
era um pobre menino do destino... [...].
Esta série de nomes nos coloca diante de vários aspectos sobre os quais nos
parece importante tecer alguns comentários. Primeiro, sob o ponto de vista teórico, nos
deparamos com mais um ângulo de entendimento da questão sobre o pai, pois
17
Por termos em mente efetuar outras articulações a partir do termo “sertão”, reproduzimos a
esclarecedora investigação realizada por Gilberto Mendonça Teles (1996, p.137) no livro A escrituração
da escrita: teoria e prática do texto literário, onde o autor trata da origem desta palavra: “Embora em lat.
Clássico o conceito de SERTÃO tenha sido expresso por mediterrânea, -orum, ou seja, “as terras do
centro de um pais” [...] chamo a atenção para uma possível explicação etmológica por intermédio do
supino de sérere, sertum, com significado próprio de “trançado”, entrelaçamento”, e com o figurado de
“embrulhado”, “enredado”, “enfileirado”. Isto porque a raiz desta forma verbo-nominal é a mesma de
desertum, supino de désere. A forma desertum (de-sertum: o que sai da “fileira”) passou à linguagem
militar para indicar o “desertor”, aquele que sai (de-) da ordem e desaparece. Daí o substantivo
desertanum para o lugar desconhecido para onde foi o desertor, estabelecendo-se, ainda no lat. Clássico, a
oposição entre lócus certus e o “lugar incerto”, desconhecido e, figuradamente, impenetrável. As duas
formas verbais provêm da mesma raiz indo-européia, SER-, como no grego eirô (por seryô): “atar”,
“entrelaçar”, “tecer ou entretecer uma fala, um discurso”; e como no lat. sérere, “entrelaçar”[...]; e daí
também o lat. sermo, -onis, “conversa”, “sermão”, dissertatio, “dissertação” e desertum, “lugar
desconhecido e seco”, isto é, lugar fora do conhecimento (não entrelaçado nele).
41
acreditamos que a menção a cada um dos chefes jagunços nos permite dar continuidade
à reflexão sobre o Nome-do-Pai.
Ao fazermos tal articulação, baseamo-nos no seminário sobre A
identificação, proferido nos anos de 1961 e 1962, onde Lacan (2003, p.128) afirma: “O
que está em questão é que a ordem de função que introduzimos com o Nome-do-Pai é
essa alguma coisa que, ao mesmo tempo, tem seu valor de universal, mas que remete a
você, ao outro, o encargo de controlar se há um pai ou não dessa natureza”.
Ora, depreendemos daí que o Nome-do-Pai é da ordem de uma função e,
como tal, esta pode ser ou não preenchida. Assim sendo, uma vez que a função tenha
sido preenchida, este preenchimento pode se dar através de vários argumentos18. Desta
forma, deduzimos que o narrador persiste em sua interrogação sobre o pai, ao exclamar,
“Esses homens! Todos puxavam o mundo para si [...]” (GSV, p.16), pois eles mostramse passíveis de vir a preencher a função Nome-do-Pai ao ocuparem pelo menos uma das
faces implicadas no Nome-do-Pai: a das atribuições imaginárias, idealizadas.
Notamos que todos esses chefes de jagunços são, até certo ponto, idealizados
pelo narrador. Como observa Bolle (2004, p.286), esta idealização atinge seu auge até a
primeira metade do romance. Depois, “quando se inicia a segunda metade da história,
acentuam-se os sinais de desidealização e degradação do sistema [jagunço]” e, a nosso
ver, isto se estende de certa forma, a seus chefes.
Um segundo aspecto ao qual o rumo da narrativa conduz também nos leva a
propor mais uma articulação teórica. Ainda no seminário sobre A identificação, Lacan
definiu pela primeira vez o que caracteriza o nome próprio. Esta caracterização visa
justificar a importância do nome no Nome-do-Pai (PORGE, 1998).
Para Lacan (2003, p.90) o nome próprio “é da ordem da letra”. Assim
concebido, o nome próprio mantém uma afinidade com a marca que é “a designação
direta do significante como objeto”19 (p.94). Com isto, Lacan afirma que não se trata de
apreender o nome próprio como Russell, que o entende como “uma palavra para
designar as coisas particulares como tais” (p.85). Ao contrário deste, Lacan, “insere” na
questão do nome próprio “uma função que é a do sujeito, não do sujeito no sentido
psicológico, mas do sujeito no sentido estrutural” (p.94), pois, na seqüência, Lacan situa
18
Empregamos o termo “argumento” em sua acepção matemática de “elemento sobre o qual se aplica
uma operação, uma função etc” (Houaiss, Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa).
19
A noção de “significante” será tratada mais detalhadamente adiante.
42
o sujeito como sendo estruturalmente dividido entre aquilo que o nomeia e seu nome
próprio. Em relação a estas conclusões, Porge (1998, p.16) nos esclarece:
O nome próprio - [...] – divide o sujeito, pois, quando o sujeito quer agarrar
sua identidade através do seu nome próprio, ele aí encontra uma determinação
exterior que o ultrapassa e que faz obstáculo à auto-apreensão de sua
identidade. O nome e prenome que o identificam lhe vêm de seus pais e a
tomada da sua identificação, por este meio, confronta-o com o desejo do
Outro. É o que se traduz por nomen omen, o nome fixa o destino.
Então, a partir deste raciocínio, nos deteremos num comentário sobre a
aparição de dois, dos vários nomes de chefes citados pelo narrador:
O primeiro nome de que gostaríamos de tratar é o do chefe “Urutu-Branco”.
Ressalve-se que este não se trata de um nome, mas de um cognome. É uma alcunha que
associa este chefe à “urutú”, uma serpente. Conforme esclarece Utéza (1994, p.126),
[a] urutu – substantivo feminino em brasileiro – é negra, marcada com uma
cruz na cabeça; qualificada de branco esta serpente venenosa se torna
simbólica, portadora das duas cores iniciais da alquimia. Se a isto
acrescentarmos cobra voadeira, constata-se que pertence ao mundo aéreo.
Ctoniana por seu corpo, torna-se uraniana pelo alcance de sua picada.
Feminino-masculino, cruz na cabeça, preto-branco, terra-céu, é a união dos
contrários.
A importância deste cognome se dá pelo fato dele dissimular a apresentação
do narrador da estória cujo nome é Riobaldo. Além disto, “Urutu-Branco” é um
cognome que sucede a outro cognome: “Tatarana”. Este primeiro cognome foi dado a
Riobaldo em reconhecimento às suas habilidades com armas de fogo. Como afirma
Utéza (1994, p.201), seus sucessivos cognomes representam metamorfoses: “Tatarana, a
lagarta-de-fogo, se metamorfoseou: dos seus despojos surgiu a serpente mística,
erguendo-se da terra para o céu: Urutú-Branco, cobra voadeira”.
De fato, Riobaldo se transforma ao longo da estória. De raso jagunço, ele
chega a ocupar a posição de chefe da jagunçada. Isto se dá por uma espécie de
cerimônia de batismo oficiada por Zé Bebelo que diz a Riobaldo: “- [...] você é outro
homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...” (GSV, p.
331). E Riobaldo então reconhece este re-nome, como sendo um nome seu: “O nome
que ele me dava, era um nome, rebatismo desse nome, meu”.
Feitos estes esclarecimentos sobre os cognomes e renomes desta
personagem, cabe agora esclarecer que, ao seguirmos as elaborações de Lacan no
tocante à relação entre o nome próprio e o Nome-do-Pai, constataremos que ele amplia
43
a questão no seminário realizado entre os anos de 1964 e 1965, intitulado Problemas
cruciais da psicanálise.
Nesta oportunidade, como indica Porge (1998, p.96-99), a retomada feita por
Lacan sobre a problemática do nome próprio não será “mais ligada tão diretamente ao
Nome-do-Pai”. Logo, o nome próprio não é o Nome-do-Pai. Em contrapartida, segundo
a interpretação deste autor, no seminário de 1964, Lacan antecipa a problemática do
nome no nível do furo que será detalhada posteriormente no seminário intitulado RSI quer dizer, “Real, Simbólico, Imaginário” - ocorrido entre 1974 e 1975. Porge
fundamenta esta sua observação no seguinte esclarecimento dado por Lacan na aula de
6 de janeiro de1965: “O particular é denominado por um nome próprio, é neste sentido
que ele é insubstituível, isto é, que pode faltar, que ele sugere o nível da falta, o nível do
furo” (LACAN apud PORGE, 1998, p.180).
Ora, se considerarmos que este furo nos reenvia à divisão do sujeito naquilo
que ele não sabe sobre si mesmo e isto está relacionado ao desejo do Outro, entendemos
que daí decorra o reconhecimento de Riobaldo em relação àquilo que ele está
tristemente submetido: o “destino”. Neste, não podemos deixar de ouvir o eco daquilo
que não se sabe, daquilo com que não se atina, do não-tino, do des–tino do nome.
2. 5 Uma figura estonteante
Dentre tantos saberes com os quais, pelo menos até certo ponto da estória,
Riobaldo não atina, localizamos a questão em torno do outro chefe, aquele chamado
Joca Ramiro. É sobre as particularidades desta personagem que passaremos a tratar
agora.
“José Otávio Ramiro Bettancourt Marins”, conhecido simplesmente por Joca
Ramiro, é uma representação bastante instigante do pai. Reproduzimos a seguir a
análise deste nome feita por Utéza (1994, p.302):
Joca, hipocorístico de José, realça em primeiro lugar a relação afetuosa do pai
para com os filhos. O prenome desbobra-se em José Otávio: José é o nome de
um dos doze patriarcas chefes das tribos do Antigo Testamento; Otávio, o do
mais glorioso dos Imperadores romanos, igualmente sinônimo de plenitude e
harmonia. Ramiro, o primeiro patronímico, evoca a glória dos cavaleiros
germânicos – Mir: ilustre; Ran: nascimento, linhagem; e esta glória repercurte
também nos outros dois: Bettancourt Marins, onde as antigas famílias
portuguesas reúnem os filhos do mar - Marins - e os donos da terra – através
do germânico Betto: domínio, e do latim cohors: divisão do castro militar.
44
Portanto, a nobreza de José Otávio Ramiro Bettancourt Marins remonta às
origens, até o Pai.
Já sabemos que o nome próprio não é o Nome-do-Pai, no entanto, se nos
detivemos na análise esmiuçada de Utéza, foi apenas ao intuito de aproveitarmos a
oportunidade para refletir sobre uma das faces do pai implicada na construção da noção
de Nome-do-Pai. Refletiremos, portanto, sobre o pai pela perspectiva imaginária.
O nome Joca Ramiro nos põe diante do chefe maior da jagunçada. Ele é o
“grande homem príncipe” (GSV, p.16). Portanto, além de ser o maior, Joca Ramiro é
principal. Afirmamos isto não apenas porque ele comanda os demais chefes, mas
porque, em torno dele, gravitam questões essenciais ao entendimento do romance.
Como veremos, uma destas questões diz respeito à construção desta personagem que se
mostra tão relevante a ponto de influenciar a própria estruturação da narrativa.
Assim, no comando geral da jagunçada está Joca Ramiro. Porém o número
de comandados é tão grande e são tantas as empreitadas que estes se apresentam
divididos em subgrupos comandados por cinco lugar-tenentes de Joca Ramiro, quais
sejam: Titão Passos, Sô Candelário, João Goanhá, Hermógenes e Ricardão.
Dissemos que Riobaldo não lembrava quem era Joca Ramiro, mas eis que
chega o dia de reconhecê-lo: o dia em que os subgrupos se reúnem. A chegada de Joca
Ramiro se dá de maneira repentina e triunfal:
Antes foi uma coisa acontecida repentina: aquele alvoroço, na cavalhada geral.
Aí o mundo de homens anunciando de si e sobre o vasto chegando, da banda
do Norte. Joca Ramiro! – “Joca Ramiro!” – se gritava. [...] E, no abre-vento, a
toda cavaleirama chegando, empiquetados, com ferragem de cascos no
pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudo manos-velhos baianos,
gente nova trazida. Gritavam vivas para a gente, saudavam (GSV, p.189).
A descrição desta chegada nos leva a associá-la a um evento de ordem
apoteótica. Esta nossa impressão de uma espécie de deificação de Joca Ramiro é
compartilhada por Utéza (1994, p.303) nos seguintes termos:
Vindo das alturas – sobre o vasto, do Norte, de todos os altos – e tomando a
forma a partir do vazio – materialização que implicam as etimologias de vasto,
bem como de chegar -, a corte precede o Príncipe num redemoinho – no abrevento – que as ferraduras dos cavalos fincam na terra. No centro a imagem de
carne, a aparência humana do Pai – figura, de fingere, fictus: moldar na argila
– montado num corcel de luz.
45
Esta apresentação nos possibilita refletir sobre o pai como imagem. O pai
imaginário é, afirma Julien (1999, p.37), “uma imagem forte, majestosa, digna de ser
amada e estimada”. Além disto, ele remete à autoridade “enquanto imagem”. Segundo o
autor, “[é] isto que Freud explica como aquilo que permite deixar a mãe e receber do pai
ou bem o traço identificatório da virilidade, ou bem um filho como substituto do falo”.
Mais à frente, explicitaremos esta noção de falo.
Por hora, consideremos que na perspectiva de Lacan, o pai imaginário, é o
pai privador, pois, como explica Julien (1999, p.37), “[e]le priva a mãe no sentido de
que ele tem o que ela não tem; e ele dá isto a ela quando quer”.
Apreciemos então como Joca Ramiro viabiliza a identificação viril:
E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco – cavalo que me
olha de todos os altos. [...] E ele era um homem de largos ombros, a cara
grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os
cabelos pretos anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito.
Nem tinha mais outra coisa em que se reparar (GSV, p189-190).
Repara-se, inequivocamente, que Joca Ramiro era “um homem”, mas,
realmente, não havia mais outra coisa a se reparar, ou Riobaldo afirma isto porque,
como ele observa mais adiante, “[a] gente olhava, sem pousar os olhos” (GSV, p.190)
sobre aquela figura estonteante? Acaso haveria algo que se evitava olhar? E mais:
porque, logo em seguida, o narrador expressa um medo paradoxal quando reconhece
que “A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse
aquele homem maior, ferisse, cortasse” (GSV, p.190)?
Ora, o esperado seria que “um homem” assim “maior”, “bonito” e de “largos
ombros” antes machucasse a ser machucado. Mas deixaremos, por enquanto, estas
interrogações em suspensão, para nos determos na caracterização do pai imaginário feita
por Lacan.
Em A relação de objeto, Lacan (1995, p.225) esclarece que o pai imaginário
é o pai com que lidamos no dia a dia e a quem “se refere, mais comumente, toda a
dialética, a da agressividade, a da identificação, a da idealização pela qual o sujeito tem
acesso à identificação ao pai”. Ao considerar que a relação de identificação com o
semelhante se dá, por um lado, através da fascinação - que busca capturar o objeto
fascinante - e, por outro, através da agressividade incitada pela constatação de que a
total captura do objeto é impossível, Lacan (1995, p.225) especifica as características do
pai imaginário: ele “é o pai assustador que conhecemos no fundo de tantas experiências
46
neuróticas, e que não tem de forma alguma, obrigatoriamente, relação com o pai real da
criança”.
A partir deste esclarecimento não causará estranheza deduzir que a
fascinação inspirada pela figura de Joca Ramiro possa incitar o medo de que ele,
Ramiro, seja machucado. Afinal, o medo de que a “aspereza da vida, do sertão” o fira
implica na pressuposição de que ele é passível de vir a ser agredido. Ou seja, este medo
vela o pressentimento dos riscos a que Joca Ramiro se encontra exposto, ao mesmo
tempo em que os incita. Nossa compreensão se amplia ainda mais se considerarmos,
com Eric Porge (1998, p.38) que o pai imaginário “é o pai com o qual se está em
rivalidade fraterna”. Mais adiante voltaremos a tratar desta questão.
2. 6 Por causa de um olhar anterior ao olhar
A partir do medo manifestado por Riobaldo em relação ao que possa ferir
Joca Ramiro, nos surge ainda uma outra forma de apreensão do pai: a do pai real.
Na continuação do seminário A relação de objeto, Lacan (1995, p.226)
reconhece a dificuldade implicada na apreensão do pai enquanto real. Para ele, isto
decorre do “fato de que temos uma enorme dificuldade de apreender aquilo que há de
mais real em torno de nós, isto é, os seres humanos tais como são”.
Tal comentário decorre do fato ressaltado por Fontenele (2005)20 de que,
inicialmente, Lacan trata a noção de real como algo que se refere ao evanescente. Nesta
fase de suas elaborações, ainda existe uma confusão com a noção de realidade. Porém,
como indica Fontenele, esta concepção do real já remete a algo de ordem material e não
de ordem metafísica: “É algo que traz um elemento novo, algo que faz com que o
sujeito se remeta a ele mesmo”.
Somente a partir de 1964 é que Lacan desenvolverá a noção de real
diferenciando-a da realidade. Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Lacan (1985, p.57) conclui “que o sistema de realidade, por mais que se desenvolva,
deixa prisioneira das redes do princípio de prazer uma parte essencial que é, no entanto,
e muito bem, da ordem do real”. Mais à frente, ele argumenta que o real “pode ser
representado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca-realidade, que testemunha que não
estamos sonhando” (1985, p.61).
20
Comunicação oral proferida durante aula do curso de mestrado da UFC no dia 23 de setembro de 2005.
47
Retornemos ao paradoxo do que se passa com Riobaldo ao contemplar Joca
Ramiro: “Não tinha mais outra coisa em que se reparar” diz ele, no entanto, ele olhava
sem pousar os olhos, seu olhar vagueava. Entendemos que este olhar se dispersou, se
separou, da cena que o dominava - a figura fascinante de Joca Ramiro -, ao ter
percebido a “aspereza da vida, do sertão”.
Por considerar que o olhar está para além de uma fenomenologia do visual,
Lacan recorre a Maurice Merleau-Ponty para explicar que o visível depende de algo
anterior ao olhar daquele que vê. Este algo Lacan chama de empuxo. Ele fala, por
conseguinte, de algo que pré-existe ao olhar e que o empurra para este olhar que
antecede o olhar. Daí Lacan (1985, p.73) afirma: “- eu só vejo de um ponto, mas em
minha existência sou olhado de toda parte”.
Na cena em questão, encontramos um bom exemplo disto quando Riobaldo
diz: “E Joca Ramiro. A figura dele. Ele era num cavalo branco – cavalo que me olhava
de todos os lados” (GSV, p.189, grifos nossos). Sem nos atermos à ambigüidade deste
enunciado que funde a figura de Joca Ramiro a um cavalo branco, perguntamos: qual o
lugar ocupado por este cavalo que olha “de todos os lados” para o protagonista, senão o
de estar no lugar do olho que pré-existe ao olhar de Riobaldo e empurra seu olhar para
fora daquilo que lhe fascina?
É evidente que a aparição deslumbrante de Joca Ramiro captura o olhar de
Riobaldo, mas não completamente. Algo, da ordem do real, se impõe e favorece a
percepção de que a imagem magnífica do pai - portanto, o pai imaginário - pode ser
ferida.
Pensamos que se Riobaldo pode perceber isto foi porque, em alguma
medida, ele teve oportunidade de fazer o luto do pai ideal. Encontramos com Julien
(1999, p.38) uma explicação sobre a forma como o pai real se acha relacionado ao luto
do pai imaginário:
[...] é este pai real que permite à criança, ao menino ou à menina, à medida que
cresce, operar com o luto, isto é, operar o luto da grande imagem, que ela, a
criança, pede ao pai: fazer o luto do pai ideal. Isto é muito difícil: é impossível
para o neurótico – o neurótico não faz o luto do pai ideal, do pai privador. Só o
pai real permite ao adolescente ou à adolescente reconhecer que o pai ideal não
existe. Por quê? Porque o real do pai não é ideal e é isto que permite ao filho
ou à filha não procurar um líder na sociedade política ou religiosa, um grande
chefe, porque o papai, coitadinho, não está à altura. [...] O nascimento da
democracia é o luto do pai ideal.
48
Ao nosso argumento quanto à possibilidade de Riobaldo não se mostrar
completamente capturado pela teia da relação alienante com o pai ideal, acrescentamos
também a observação de Bolle (2004, p. 142) sobre esta personagem:
Enquanto jagunço letrado, o narrador rosiano pertence simultaneamente ao
universo da violência (no meio rural) e à classe culta (urbana). Ele realiza
assim o trabalho de mediação entre duas esferas culturais muito diferentes; ao
mesmo tempo é capaz de distanciar-se criticamente de cada uma delas.
Estas observações ampliam nosso entendimento em relação a Riobaldo e nos
permitem afirmar, então, que ele é capaz de se distanciar e não ficar submetido a um pai
despótico. Como indica Julien (1999, p.40), um pai que esteja “acima de todas as coisas
[...] é um pai que faz de seu filho o seu próprio gozo. O pai real, ao contrário, introduz a
diferença entre as gerações”. A introdução desta diferença se dá através da proibição do
incesto.
Sobre a questão do incesto, vários estudos antropológicos têm confirmado,
como assinala Roudinesco e Plon (1998, p.372) que “[n]a quase totalidade das
sociedades conhecidas, [...], o incesto sempre foi severamente castigado e, mais tarde,
proibido”. Tal proibição está no fundamento da regra que obriga à exogamia, portanto,
incita o estabelecimento de laços sociais que favorecem a passagem da natureza para a
cultura.
Em Totem e tabu, Freud considerou que a proibição do incesto está não
apenas na origem da cultura, mas também na origem da relação do sujeito com a lei e
com o desejo incestuoso recalcado de forma que daí resultará o horror ao incesto. Diz
Freud (1980[1912-13], v.XIII, p.37): “Somos levados a acreditar que essa rejeição é,
antes de tudo um produto da aversão que os seres humanos sentem pelos seus primitivos
desejos incestuosos”. Ora, a rejeição dos primitivos desejos incestuosos está
intrinsecamente ligada á construção de uma outra noção psicanalítica: o complexo de
castração. Assim, o abandono do desejo incestuoso decorre da ameaça de castração e o
agente desta ameaça é o pai. Apenas a título de exemplo daquilo que poderia equivaler a
uma reatualização desta ameaça: quem desconhece a advertência impingida com certa
freqüência por adultos às crianças de que “se você fizer isso vou cortar seu pinto”, ou
“vou cortar o seu dedinho”, ou “seu pinto vai cair”, etc?
Num entendimento mais amplo destas noções, Lacan (1995, p.226) pôde
enunciar no seminário A relação de objeto que “[s]e a castração merece efetivamente
ser isolada por um nome na história do sujeito, ela está sempre ligada à incidência, à
49
intervenção, do pai real”. Isto é o que fundamenta sua consideração de que o pai real é o
agente da castração que incide sobre o objeto imaginário. Daí Lacan (1995, p.224)
afirmar que a castração “atua sobre o sujeito sob a forma de uma ação incidindo sobre
um objeto imaginário”. Mas o que seria este objeto imaginário?
A castração não é uma operação que se refira ao órgão anatômico. É uma
operação subjetiva, pois, diz Lacan (1995, p.224), “[p]or definição o real é pleno”.
Sendo assim, fica fácil entender, por exemplo, que no real do corpo não falta nada, é
perfeito. Porém, subjetivamente, lidamos sempre com a idéia de que nos falta alguma
coisa, que fomos privados de algo. Passamos então a tentar simbolizar isto que falta.
Ocorre que, aquilo que simbolizamos como ausente, acaba por nos fazer
supor que é possível torná-lo presente. Lacan (1995, p.224) explica esta operação da
seguinte forma: “Indicar que alguma coisa não está ali é supor sua presença possível,
isto é, introduzir no real, para recobri-lo e perfurá-lo, a simples ordem simbólica”.
Interrogamos, então, a partir desta perspectiva: a que mais o medo sentido
por Riobaldo de que Joca Ramiro viesse a ser machucado, cortado, poderia estar
associado senão ao medo frente à ameaça de castração? Observemos que pela suposição
de que em relação a Joca Ramiro “[n]em tinha mais outra coisa em que se reparar”
(GSV, p.190), somos remetidos a algo perfeito, tanto no imaginário quanto no real.
Porém, ao reconhecer que Joca Ramiro não precisa de qualquer reparo, na acepção
mesma do conserto, Riobaldo não terá produzido um furo nesta perfeição no exato
momento em que tenta simbolizá-la?
Para tratarmos desta questão, necessário se faz esclarecer uma outra face do
pai, qual seja a do pai simbólico.
2. 7 Do vazio ao corte
Ainda no seminário A relação de objeto, Lacan (1995, p.225) afirma que a
noção de pai simbólico implica algumas dificuldades a mais que as noções de pai
imaginário e real, pois nos é necessário aceitar o pai simbólico “como um dado
irredutível do mundo do significante”, quer dizer, do mundo da linguagem no qual
estamos imersos. Procuremos, então, entender algumas destas dificuldades.
Ora, se a simbolização é uma operação significante, isto quer dizer que ela
presentifica algo ausente. Daí podemos entender que Lacan (1995, p.225) considere o
pai simbólico como uma construção mítica, pois esta representa algo que “não está
50
representado em parte alguma”. Além disto, é preciso considerar também que
representar algo que não existe produz, como veremos adiante, um efeito. Um exemplo
disto é o mito.
Sobre a função do mito podemos dizer, com Eric Porge (1998, p.76), que ele
desempenha o papel de fazer laço social uma vez que “permite à sociedade constituir-se
em universo ficcional”. Por conseguinte, o mito “assegura uma representação dos
fundamentos” e mais, “[o] que ele simboliza é o vazio, o nada da origem.”. Mas como
pode acontecer que o vazio, o nada, possa ser representado? Vamos encontrar uma
explicação disto junto a Corrêa (2001, p.55) que diz:
O vazio como tal é algo em torno do que eu também posso construir alguma
coisa. A metáfora é de Heidegger (1956), com a questão do oleiro. Heidegger
questiona qual é a matéria prima do oleiro. É o barro que ele vai utilizar ou é o
vazio? O barro para o oleiro vai ser a borda, mas o que vai fazer com que o
vaso, o pote, seja de determinada forma é o vazio que vai estar circundado por
esta argila. [...] Neste sentido a argila vai ser exatamente o limite ou a fronteira
do vaso, vai delimitá-lo.
Então, o vazio pode ser representado se, ao redor dele, traçarmos uma borda.
Por esta alusão, temos uma boa idéia do efeito produzido por uma borda: ela produz um
corte. Portanto, fica estabelecida uma diferença entre o que está de um lado e outro
daquilo que marca um limite.
Seguindo este raciocínio, podemos, então, entender que mesmo a
representação de algo que não existe é capaz de produzir um efeito, qual seja, o corte
que marca a diferença. Assim é que o pai simbólico, apesar de ser uma representação de
algo que não está em lugar nenhum, apesar de representar um vazio, ele produz o efeito
de corte e estabelece a diferença.
A propósito da noção de diferença, ela nos indica a existência de um
elemento que, exatamente por diferir quanto a sua posse, se mostra comum a dois
elementos postos em relação (ABBAGNANO, 2000). Exemplifiquemos: o branco e o
não-branco têm em comum aquilo que os difere: a peculiaridade de ter ou não a cor
branca. Logo, o “branco” é diferente do “não-branco”. A partir disto podemos então
perguntar: através de qual elemento o pai simbólico realiza o corte que estabelece a
diferença e a que diferença estamos nos referindo?
Já dissemos que o pai estabelece a diferença entre as gerações: “eu sou o pai,
você é o filho ou a filha”. Ele também estabelece a diferença entre os sexos: “você é um
menino ou uma menina”. Além disto, gostaríamos de acrescentar, com Lacan (1995,
51
p.233), que o pai simbólico introduz o “reino da lei”. Então, qual é o elemento que
marca todas estas diferenças? Aprendemos com Freud que este elemento é o falo.
O emprego deste termo antecede à psicanálise e, originalmente, designa o
pênis no sentido simbólico. Como ressalta Roudinesco e Plon (1998, p.221), “[o] termo
falo, [...], só muito raramente foi empregado por Freud, [...], e muitas vezes como
sinônimo de pênis”. Porém, é a partir desta concepção que Freud lança mão do adjetivo
“fálico” para tratar da diferença entre os sexos. Para ele, o falo é entendido enquanto
símbolo do sexo masculino e é em relação a este símbolo que se estabelece a diferença
entre os sexos.
Lacan esclareceu esta tese freudiana ao indicar que tal noção não se restringe
ao pênis. No texto intitulado “A significação do falo”, Lacan (1998, p.699) define que,
“[o] falo é o significante privilegiado [...] onde a parte do logos se conjuga com o
advento do desejo”.
O que podemos apreender desta afirmação? Em primeiro lugar que, para
Lacan, a noção de falo remete a algo que pode ser tanto consciente, o logos, quanto
inconsciente, o desejo. Além disto, a relação do sujeito com seu desejo inconsciente é
representada e determinada por este elemento do discurso denominado por Lacan como
“significante”. Portanto, o falo, enquanto significante, ocupa um lugar no discurso que
faz referência a um desejo. Com esta concepção do significante, Lacan reitera a relação
que Freud já havia exaustivamente ressaltado entre o inconsciente e a linguagem.
Se é a partir do falo que se estabelece a diferença sexual e se o falo é um
elemento do discurso, a diferença entre os sexos transcende à mera constatação
biológica e remete a diferença sexual ao que é da ordem da linguagem. Somos ditos
“homem” ou “mulher”, por essa ordem que nos é anterior e exterior. Por conseguinte,
isto nos conduz a um terceiro, a uma alteridade, a partir da qual somos denominados,
independentemente da anatomia. Lacan denominou esta alteridade da linguagem de
“Outro”.
Feitos estes esclarecimentos, voltemos ao Grande Sertão para entender
alguns eventos que giram em torno da figura de Joca Ramiro pela oportunidade que
estes nos dão de apreender a noção de pai simbólico no exercício da função de instaurar
“o reino da lei”.
2. 8 Um Juiz Supremo
52
Os eventos que antecedem à chegada majestosa de Joca Ramiro estão
relacionados à guerra motivada pelo antagonismo existente entre ele e um outro grande
chefe, Zé Bebelo. Precisamos esclarecer que o narrador, Riobaldo, inicia sua vida de
jagunço lutando do lado dos “bebelos” (GSV, p.183), no entanto, por um motivo que
indicaremos somente no próximo capítulo, ele se passa para o lado do bando de Joca
Ramiro. Sobre este contexto de sangrenta guerra, Riobaldo dá seu parecer: “Me pareceu
que daí adiante, a partir disso, o tudo era para só ser a desatinada doidice” (GSV,
p.185).
De fato, os eventos seguintes são conseqüência desta guerra e ensejam um
acontecimento que mudará o rumo da narrativa. Por este motivo, nos alongaremos um
pouco mais em sua análise. Além deste, temos ainda um outro motivo para adotarmos
tal procedimento: consideramos este julgamento uma das cenas-chave para o
entendimento do tema a que nos propomos investigar. No momento oportuno,
demonstraremos por quê.
Assim, ao final desta guerra, Joca Ramiro sai vencedor. Seu bando captura
Zé Bebelo que exige: “- Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento
correto legal!...e foi. Aí Joca Ramiro consentiu, [...], prometeu julgamento já...” (GSV,
p.194, grifos do autor).
Como ressalta Utéza (1994, p.308), ao consentir na instalação de um tribunal
em pleno sertão, “Joca Ramiro abre as portas do desconhecido”. Continuando, este
autor também faz ressaltar a incongruência do pedido de Zé Bebelo, pois, “[d]e acordo
com a lei antiga, o vencido não tem nenhum direito”.
Desta forma, a narrativa do julgamento de Zé Bebelo nos põe diante de uma
ocorrência inaudita. Neste aspecto, seu relato nos lembra a construção de um mito.
Encontramos apoio a esta nossa articulação na seguinte apreciação de Utéza (1994,
p.308):
In illo tempore, o acusado encarna a potência dionisíaca criadora frente à
medida apolínea simbolizada pelo vencedor. Opostas e complementares, as
duas faces do Pai estão encenando em duo o Mito Fundador. O
comportamento extravagante e provocador de Zé Bebelo encontra sempre na
tranqüila segurança de Joca Ramiro o contraponto adequado que permite o
desenvolvimento total do drama, em conformidade com um ritual cujo alcance
é globalmente percebido por todos os participantes.
Já comentamos a importância desta questão do mito em relação à lacuna
teórica identificada por Lacan (1995) no texto freudiano. Tal lacuna diz respeito à
53
impossibilidade de se responder o que é um pai. Segundo Lacan, foi em decorrência da
impossibilidade de se representar o pai das origens, que Freud forjou o mito de Totem e
tabu. Então, mostraremos a seguir que o julgamento narrado no Grande Sertão, um
evento cheio de simbologias, apresenta algumas semelhanças com o mito forjado por
Freud, no sentido de também tentar simbolizar o pai.
O lugar escolhido para o julgamento foi a Fazenda Sempre-Verde que,
segundo Utéza (1994, p.307), tem nome predestinado já que remete à “Vida Eterna”.
Neste lugar que eterniza, os jagunços todos começam a se reunir e era “aquele mundo
de gente, que fazia vulto. Parecia um mortório” (GSV, p.196). Isto já causa alguma
estranheza: porque a reunião parecia um “mortório”, quer dizer, um velório, um
funeral? Acaso reuniam-se para realizar algum sepultamento? Voltaremos a esta questão
adiante.
Os chefes todos também estavam lá: “Daí, Joca Ramiro, Sô Candelário, o
Hermógenes, o Ricardão, Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidos no meio do
eirado, numa confa” (GSV, p.197). Os chefes confabulavam. Porém, no decorrer do
julgamento, uma divisão vai se formar: de um lado, Sô Candelário, Titão Passos e João
Goanhá defendem a idéia de que a vida de Zé Bebelo deve ser poupada. De outro,
Hermógenes e Ricardão argumentam em favor da lei de jagunço que “é o momento, o
menos luxo” (GSV, p.204). Cabe a Joca Ramiro determinar a sentença final, pois “[e]le
mesmo, Joca Ramiro, como de lei, deixava para dar opinião no final, baixar sentença”
(GSV, p.200).
Convém chamar atenção para o fato de que, apesar deste julgamento ser uma
prática inusitada no sertão regido pela lei de jagunço, o lugar de Joca Ramiro já está
estabelecido: é o lugar do “Juiz Supremo”, como argumenta Utéza (1994, p.308):
“Pólos de expressão das energias da egrégora, os chefes se haviam repartido por
afinidades, de um lado e de outro do Juiz Supremo”. Mas, afinal, o que estava posto em
julgamento?
Hermógenes, o que “precisava de muitas vinganças” (GSV, p.200), foi o
primeiro a acusar Zé Bebelo: “ninguém não provocou, não era inimigo nosso, não se
buliu com ele. Assaz que veio, por si, para matar, para arrasar, [...]. Veio a pago do
Governo. [...]. Merece ter vida não” (GSV, p.201).
Sô Candelário, apesar de se dispor a sacrificar a própria vida num duelo com
Zé Bebelo, não indica crime neste homem que, segundo ele, “[v]eio guerrear, como nós
54
também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? [...] Crime que sei é fazer traição, ser
ladrão de cavalos ou de gado... não cumprir a palavra...” (GSV, p.203).
Já o “famoso Ricardão, [...]. Amigo acorçoado de importantes políticos”
(GSV, p.203), considera que Zé Bebelo “veio caçar a gente, no Norte do sertão, como
mandadeiro de políticos e do Governo, se diz até que a soldo...” (GSV, p.204). Com
este “razoado”, Ricardão vota com Hermógenes por considerar que “tem outro despacho
não, [...]; só um: é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e
acertada” (GSV, p.204).
Quanto a Titão Passos, este acha que Zé Bebelo “não tem crime constável.
[...] Ele quis vir guerrear, veio – achou guerreiros” (GSV, p.205). Por último, João
Goanhá vota com Sô Candelário e Titão Passos: “Tem crime não. Matar, não” (GSV,
p.206).
Na interpretação de Bolle (2004, p.125),
O julgamento na Fazenda Sempre-Verde visa muito além da pessoa empírica
de Zé Bebelo. Discute-se ali a instituição representada alegoricamente pelo seu
nome. “Bebelo” ou “Rebêlo” de re-bellum – aquele que sempre volta a praticar
a guerra, [...] – é uma figuração da própria guerra.
Valemo-nos da indicação de Bolle de que este julgamento visa algo mais
além, para aí acrescentarmos alguns esclarecimentos relativos à articulação que fizemos
anteriormente entre este evento e o mito de Totem e tabu.
Por um lado, teremos, paradoxalmente, que iniciar explicitando uma
divergência entre eles. No mito inventado por Freud, o pai é o pai original, antes dele
não havia nenhum outro. Aqui, no relato do julgamento de Zé Bebelo não se trata disto.
Além do que, contamos dois pais - Zé Bebelo e Joca Ramiro - encenando, como afirma
Utéza (1994, p. 308), o “duo do Mito Fundador”. Neste aspecto, a cena do julgamento
não apresenta afinidade alguma com o mito do pai da horda primitiva, senhor absoluto
de tudo e de todos. Como argumentamos anteriormente, se há algo no relato do Grande
Sertão que poderia nos remeter ao medonho pai da horda primitiva, este algo seria o
“bezerro branco, erroso, de olhos de nem ser”, cujo assassinato, praticado pelo “Povo
prascóvio”, foi relatado logo na abertura do romance.
O tribunal do Grande Sertão retrata antes, o pai pós-democrático que cede o
direito de fala aos filhos: “– Que tenha algum dos meus filhos com necessidade de
palavra para defesa ou acusação, que pode depor” (GSV, p.206, grifos nossos).
55
Por outro lado, a partir do que acabamos de expor, é na fala de um dos
filhos, Riobaldo, que encontramos nosso primeiro apoio ao que supomos deter certa
afinidade, senão com o mito, pelo menos com a intenção de se forjar um e que, na
seqüência, nos permitirá entender um dos aspectos implicados na construção do
conceito Nome-do-Pai.
Logo que Joca Ramiro concedeu a fala aos braços de arma - seus “filhos” -,
Riobaldo se armou “dum repente” (GSV, p.207) para falar, mas dois outros jagunços se
anteciparam a ele. Quando, enfim, toma a palavra, “feito menino em escola” (GSV,
p.208), anuncia que tem uma “verdade forte para dizer” (GSV, p.208). Lembra a todos
que já lutou ao lado de Zé Bebelo e isto lhe permite testemunhar que ele “é chefe
jagunço, de primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que
prende, nem consentir de com eles se judiar...” (GSV, p.208).
Contudo, o que, especificamente, pretendemos realçar na argumentação de
Riobaldo é o fato de que, a nosso ver, seu poder de persuasão derivou do apelo, feito
por ele, à possibilidade de que a estória desta guerra viesse a se eternizar através do
relato:
- “... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela
todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda,
constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas
façanhas... Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na Sempre-Verde
vieram se reunir os chefes todos de bandos, com seus cabras valentes,
montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro – só para, no fim,
fim, se acabar um homenzinho sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o
quanto fosse um boi de corte? Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...”
(GSV, p.209).
Desta forma, Riobaldo propõe uma simbolização não apenas da guerra, mas
dos feitos gloriosos do pai, aquele que está no “sobregoverno”. Com exceção de
Ricardão e Hermógenes, a proposta de Riobaldo empolga a todos. Sobre este aspecto é
que identificamos o desejo dos “filhos” de se forjar uma espécie de mito em torno do
pai Joca Ramiro.
Como já comentamos anteriormente, no ensino de Lacan, a construção do
mito não esgota a questão sobre o pai. Por conta disto, no seminário de 1957 a 1958,
intitulado As formações do inconsciente, Lacan retoma o termo Nome-do-Pai para
apresentá-lo de maneira científica. Segundo Porge (1998, p.41), tal procedimento “visa
substituir a teoria do Édipo segundo Freud, pretendendo reduzi-la ao que tem de
essencial e de estruturante”.
56
Ora, se por um lado, esta redução acarreta a explicitação da lógica implicada
no mito, por outro, ela promove uma desconstrução assinalada por Porge (1998, p.41):
“O Nome-do-Pai contém o germe de uma desconstrução da teoria de Freud”. Sendo
assim, neste seminário de 1957, Lacan faz interessantes observações sobre a lei
associando-a ao Nome-do-Pai. Na aula de 08 de janeiro de 1958, Lacan (1999, p.152)
afirma:
Aqui chamamos de lei aquilo que se articula propriamente no nível do
significante, ou seja, o texto da lei. [...] Com efeito, o que autoriza o texto da
lei se basta por estar, ele mesmo, no nível do significante. Trata-se do que
chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. Este é um termo que subsiste
no nível do significante, [...]. É o significante que dá esteio à lei, que promulga
a lei.
A partir destes esclarecimentos, Lacan nos faz observar ainda que, em
relação ao Édipo, enquanto um mito criado por Freud, há algo essencial, fornecido pelo
próprio Freud, no sentido de justificar que a lei seja fundada no pai. Acreditamos que
este “algo” também se encontra presente no relato do Grande Sertão. É sobre ele que
trataremos a seguir.
2. 9 Sobre a condição para que o pai funde a lei
Chegada a hora de Joca Ramiro baixar sentença, ele inicia sua fala
relembrando a força e amplitude de sua decisão: “– “O julgamento é meu, sentença que
dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. [...] A sentença vale [...]”” (GSV,
p.213). E a sentença estipulada por ele determinava que Zé Bebelo fosse embora para
Goiás. Além disto, ele também estipulou o prazo de validade desta resolução: “Até
enquanto vivo eu for, ou não der contra-ordem...” (GSV, p.214). Após o anúncio de tais
decretos, Joca Ramiro se levantou e
Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia – as pessoas, o
chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo – feito um
boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram campo.
Reinou zoeira de alegria.
No dia seguinte, Joca Ramiro deu partida “de volta para São João do
Paraíso” (GSV, p.217). Saiu ladeado por Sô Candelário e Ricardão. Para Riobaldo,
restou a incerteza quanto à legitimidade daquele julgamento:
57
O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e
destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão... [...]
Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas no centro do
sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!
(GSV, p.217).
Porém, como a incerteza engendra a fé, Riobaldo se apóia nesta para afirmar:
“Daquela hora em diante, eu cri em Joca Ramiro” (GSV, p.217). Riobaldo creu em Joca
Ramiro como o quê, senão como sendo um pai no exercício de sua função? Mas porque
recorrer à fé para crer no pai?
Ora, sabemos que o pai é sempre incerto. Mesmo quando o consideramos em
seus atos, não obtemos a certeza de uma verdade que possa nomeá-lo. Daí a necessidade
de que a garantia sobre o pai se dê pela fé na nominação deste, quer dizer, na
denominação de algo que não tem nome, já que é incerto. Foi a partir desta constatação
que Lacan forjou a noção de Nome-do-Pai. E foi pela fé neste nome que Riobaldo pode
se apaziguar: “Por isso, o julgamento tinha dado paz à minha idéia – por dizer bem: meu
coração” (GSV, p.217). Ele pôde também descansar e despedir-se da incerteza rogando
proteção a Deus, o pai: “Dormi, adeus disso” (GSV, p.217, grifo nosso).
Depois, o que reinou foram “bondosos dias” (GSV, p.218) durante os quais
Riobaldo lembrou do “não-saber” (GSV, p.218) até o dia em que tentou escapar saindo
em busca de “outra gente” (GSV, p.219). Nesta tentativa, constatou que “[o] mundo
estava vazio” (GSV, p.218) e que quanto mais andava “querendo pessoas” (GSV,
p.219), parecia, antes, que entrava “no sozinho do vago” (GSV, p.219). Tal pensamento
o levou a concluir: “Eu tinha a culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter”
(GSV, p.219). Assim, tomado por uma tristeza “da pior de todas, que é a sem razão de
motivo” (GSV, p.219), Riobaldo adormeceu.
Quando acordou, não acreditou que “tudo o que é bonito é absurdo – Deus
estável” (GSV, p.219). Na realidade, o absurdo da estabilidade perdurou apenas dois
meses (GSV, p.222). Riobaldo e uma parte do bando encontravam-se num lugar cujo
nome – Guararavacã do Guaicuí - não pode ser esquecido já que foi palco das “grandes
coisas, antes de acontecerem” (GSV, p.220). Neste lugar, onde a lógica do tempo se
encontra subvertida, Riobaldo teve acesso a uma revelação sobre si mesmo: “[...] foi
nesse lugar, no tempo dito” (GSV, p.220), ou seja, num tempo que se antecipa aos
acontecimentos por um dizer, “que meus destinos foram fechados” (GSV, p.220).
Tamanha predição, ou predestinação, levou o narrador a questionar: “Será que tem um
58
ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar atrás? Travessia de minha vida”
(GSV, p.220).
Trataremos mais adiante da revelação que provocou em Riobaldo o
questionamento sobre este ponto de sua travessia, pois agora, já sentindo “[q]ue jagunço
amolece, quando não padece” (GSV, p.223), ele e outros começavam a sentir falta dos
combates. Sobre este sentimento Bolle (2004, p.126) faz uma observação que corrobora
com a manifestação de incerteza de Riobaldo em relação à legitimidade daquele
julgamento que mais parecia “doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão”:
O julgamento do caçador de jagunços, absolvido por “jagunços
civilizados”,(GSV: 212) tem o mesmo valor desta expressão irônica: é apenas uma
encenação. Na verdade, trata-se de encobrir um acordo muito pouco civilizado
que se trata ali entre as partes envolvidas: a legitimação da guerra e do sistema
vigente. Com efeito, o julgamento controverso vai engendrar “outra guerra”
como constatam “aliviados” Riobaldo e seus companheiros de armas(GSV:226).
Constatamos, então, que naquele tempo de “[t]udo igual”, onde “às vezes é
uma sem-gracez” (GSV, p.224) e, apesar de se saber que “[...] não se deve de tentar o
tempo” (GSV, p.224), o céu começou a trovejar prenunciando a aproximação de “um
feio dia” (GSV, p.224). Este dia foi aquele da chegada ao acampamento de “um brabo
[...], de sonome Gavião-Cujo” (GSV, p.224), trazendo uma notícia “urgente”, “enorme”
(GSV, p.224): “- Mataram Joca Ramiro!...” (GSV, p.224).
Aqui encontramos nosso segundo apoio à aproximação entre o mito de
Totem e tabu e os eventos narrados no Grande Sertão, pois - tal como se tratasse de
uma reencenação do assassinato do pai primevo -, aconteceu do assassinato de Joca
Ramiro, assassinato de um pai, causar nos “filhos” o sentimento de que “[...] não havia
mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava” (GSV, p.225). Diante
disto, ficou então estabelecido que, de agora em diante, “[e]ra a outra guerra” (GSV,
p.226) contra aqueles que, apesar de também serem “filhos”, haviam assassinado o pai:
Joca Ramiro foi morto pelas mãos do Hermógenes, mas a traição era dele e de muitos:
“[...] Os homens do Ricardão... O Antenor... Muitos...” (GSV, p.225).
Dissemos anteriormente que o inaudito julgamento realizado no centro do
sertão pode ser entendido como prelúdio de um acontecimento que mudaria o rumo da
narrativa. Referíamo-nos exatamente a este evento do assassinato de Joca Ramiro - o
qual identificamos como cerne da narrativa. Nossa observação é endossada e ampliada
por vários críticos.
59
Constituindo não apenas o centro da narrativa, mas localizado nas páginas
centrais do livro, ao máximo de tensão em torno da questão do pai sobrevém uma
distensão, ou seja, um retesamento, um prolongamento, uma continuação, provocada
por sua morte. A narrativa continua, porém, o relato do evento da morte de Joca Ramiro
se distende de uma forma tal que o romance resta cortado em duas metades
quantitativamente iguais (ROSENFIELD apud DUARTE, 2001). Ainda apreciando os
efeitos de tal divisão mediana do romance, Duarte (2001, p.157) recorre a mais dois
críticos para afirma que, segundo Benedito Nunes, a divisão do romance promove uma
“recapitulação” e, segundo Walnice Galvão, conduz a uma “reformulação de tudo”.
Assim, temos de considerar que o alcance dos efeitos deste corte repercute
no próprio fio da narrativa. Esta, a partir daí, “se reescreve depois com outra ordem, que
se repete, depois da morte de um pai, do pai e chefe Joca Ramiro” (MORAIS apud
DUARTE, 2001, p.158, grifos da autora).
Parece-nos ainda importante ressaltar que esta repetição não se mostra
imobilizante, como ocorreria num movimento circular fechado. Como já argumentamos,
o percurso do fio narrativo descreve, antes, um movimento espiralar, promovendo assim
um deslocamento e uma abertura - um redemoinho - por onde o narrador busca um
saber sobre si e sobre o Outro.
Em apoio ao nosso entendimento quanto à abertura promovida pelo
movimento acima referido, ressaltamos ainda que, apesar das tentativas do narrador de
encerrar a estória, o movimento narrativo continua; passa por um ponto onde é
anunciado que “Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”
(GSV, p.454); e vai, paradoxalmente, manter uma travessia pelo avesso, prolongando a
narrativa por mais seis páginas. Ao final destas, constatamos que a travessia conduz a
uma abertura para o infinito, para a lemniscata (∞), símbolo que encerra o romance
(GSV, p.460).
A abertura promovida pela narrativa associada à questão do saber apresenta
uma significativa relação com o Nome-do-Pai. Mas, para avançarmos nesta articulação
precisamos, antes, retornar à questão deixada em aberto sobre o que condiciona o pai
enquanto fundador da lei.
Como dissemos, no seminário As formações do inconsciente (1957-1958),
Lacan (1999, p.152) estudou o mito do Édipo e observou que, através dele, Freud nos
forneceu algo essencial no sentido de justificar que a lei seja fundada no pai. Assim,
quando Lacan se referiu ao texto da lei, ele considerou que, neste, a lei se articula no
60
nível do significante. Além disto, fez observar também que não há necessidade da
presença de uma pessoa “para sustentar a autenticidade da fala e dizer que há alguma
coisa que autoriza o texto da lei”, pois, o que autoriza este texto “se basta por estar, ele
mesmo, no nível significante”. A isto que Lacan tratou como sendo o pai simbólico, ele
chamou de Nome-do-Pai.
Se retornarmos à descrição da figura grandiosa de Joca Ramiro feita pelo
narrador, teremos a oportunidade de perceber que ele atende à condição de pai
simbólico tal como acabamos de demonstrar a partir da perspectiva lacaniana, pois,
“quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz.
Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava” (GSV, p.190,
grifos nossos).
Ainda no seminário sobre As formações do inconsciente, Lacan (1999,
p.152) observou que existe uma outra condição a ser atendida para que a lei seja
fundada no pai: “é preciso haver o assassinato do pai”. Mas por que isto?
Consideremos, em primeiro lugar, que, tal como ocorreu com a concepção
de real – e com muitas outras noções que compõem o corpo teórico construído por
Lacan – a conceituação do simbólico passou por modificações. Assim, como ressalta
Fontenele (2005)21, na fase inicial de sua obra, Lacan se serve da noção de símbolo
segundo a concepção de Lévi Strauss. Nesta perspectiva, o símbolo é entendido como
uma realidade que antecede ao sujeito, pois, como indica Roudinesco e Plon (1998,
p.714) ao citar Levi Strauss, “[o]s símbolos são mais reais do que aquilo que
simbolizam. O significante precede e determina o significado”. Isto permitiu a Lacan
entender o mito de Totem e tabu de uma maneira diferente da concepção evolucionista
de Freud, para quem o mito do assassinato do pai primevo teria determinado a passagem
do caos para a sociedade. Segundo Freud (1980[1912-13], v.XIII, p.170):
O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada
um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação
com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição
totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma
repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o
começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da
religião.
21
Comunicação oral proferida pela Profª. Drª. Laéria Fontenele durante aula do curso de mestrado da
UFC no dia 23 de setembro de 2005.
61
Já para Lacan, ao entender, inicialmente, o símbolo tal como Levi Strauss, a
questão do assassinato do pai da horda primitiva - bem como a do complexo de Édipo será tratada a partir da noção de estrutura22. Desta forma, para Lacan, a neurose, a
psicose e a perversão são concebidas como estruturas e, conforme seja a estrutura do
sujeito, este manterá uma relação peculiar com o simbólico, ou seja, com a linguagem.
Nesta perspectiva, o assassinato do pai da horda primitiva deve ser entendido
como uma simbolização. Pode-se, então, dizer que é pelo simbólico, portanto, pela
linguagem, que o homem se humaniza. Não fosse este acesso ao simbólico, o filhote
humano permaneceria capturado numa relação desmedida com a imagem. O mito do pai
primevo tem, por conseguinte, a função de simbolizar o pai e favorecer que se escape da
alienação na imagem deste.
No seminário intitulado As psicoses (1955-1956), Lacan (1992, p.233)
esclarece o que pode acontecer no caso do sujeito permanecer capturado numa relação
desmedida com a imagem do pai:
Se a imagem capturadora é desmedida, se a personagem em questão se
manifesta simplesmente na ordem da potência, e não na do pacto, é uma
relação de rivalidade que aparece, a agressividade, o temor etc. [...] A relação
imaginária se instaura sozinha, num plano que não tem nada de típico, que é
desumanizante [...]. A alienação é aqui radical.
Esta alienação radical é a psicose e o que possibilita ao sujeito escapar de
uma relação imaginária exorbitante - conseqüentemente, desumanizante -, é o complexo
de Édipo que, afirma Lacan (1992, p.226), “é essencial para que o ser humano possa
aceder a uma estrutura humanizada do real”.
No que diz respeito ao acesso à realidade viabilizado pela vivência do
complexo de Édipo, Lacan (1992, p.226) acrescenta: “para que haja realidade, acesso
suficiente à realidade, para que o sentimento da realidade seja um justo guia, para que a
22
No seminário sobre as psicoses, Lacan (1992, p.210, grifos do autor) define a estrutura enquanto uma
concepção psicanalítica e a relaciona ao significante: “A estrutura é em primeiro lugar um grupo de
elementos formando um conjunto covariante. Eu disse um conjunto, e não uma totalidade. A estrutura se
estabelece sempre pela referência a algo que é coerente com algo diverso, que lhe é complementar. Mas a
noção de totalidade só intervém se lidamos com uma relação fechada com um correspondente, de que a
estrutura é solidária. Pode haver, ao contrário, uma relação aberta, que chamaremos suplementariedade.
[...] Interessar-se pela estrutura é não poder negligenciar o significante. Na análise estrutural,
encontramos, como na análise da relação entre significante e significado, relações de grupos fundadas em
conjuntos, abertos ou fechados, mas comportando essencialmente referências recíprocas. Na análise da
relação entre significante e significado, aprendemos a insistir na sincronia e na diacronia, e isso se acha na
análise estrutural”.
62
realidade não seja o que ela é na psicose, é preciso que o complexo de Édipo tenha sido
vivido”.
Assim sendo, a vivência do complexo de Édipo implica na articulação da
realidade com o que Lacan denomina de “simbólico” e ao qual ele relaciona uma parte
da realidade. Esta parte constitui a realidade psíquica. Ela não é homóloga à realidade
exterior, pois, como explica Lacan (1992, p.56): “No momento em que desencadeia sua
neurose, o sujeito elide, [...], uma parte de sua realidade psíquica, ou, numa outra
linguagem, de seu id. Essa parte é esquecida, mas continua a fazer-se ouvir. Como? [...]
– de uma forma simbólica”. Aqui temos mais um argumento que nos permite entender
que Joca Ramiro ocupa o lugar do pai simbólico: sua voz, ao veicular sua lei,
continuava a se fazer ouvir mesmo - e porque não dizer, sobretudo - após sua morte.
Precisamos, então, ressaltar que, tal como no mito do pai da horda primitiva,
o assassinato de Joca Ramiro instaura uma nova ordem: a partir deste evento, os filhos
estabelecem entre si um novo pacto, pois, segundo Freud (1980[1912-13], v.XIII,
p.172),
[o] pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo – pois os acontecimentos
tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos
humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi
doravante proibido pelos próprios filhos [...].
De fato, depois da morte de Joca Ramiro, vemos surgir no Grande Sertão
uma nova ordem, visto que, “agora, tudo principiava terminado” (GSV, p.227). Como
conseqüência, e endossando a observação comentada anteriormente, a narrativa
recomeça. Neste recomeço “só restava a guerra” (GSV, p.227) e todo o bando se uniu
na busca de “doçura de vingança” (GSV, p.227). É em decorrência disto que o narrador
afirma que “Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova” (GSV, p.227).
Acontece que, como percebemos em nossa primeira aproximação deste
relato com o mito de Totem e tabu, se, por um lado, eles de assemelham, por outro, eles
divergem, pois, como deixar de observar que a morte de Joca Ramiro estabelece uma lei
nova e, ao mesmo tempo, “o decreto de uma lei nova” morreu como ele?
Morto,
Joca Ramiro
“se
torna
mais
forte do
que fora vivo”
(FREUD,1980[1912-13],v.XIII,p.172), portanto, se eterniza. Em sua honra fica
estabelecida uma nova lei que, paradoxalmente, é velha pois se retorna à lei de talião.
Morta - como Joca Ramiro -, a lei nova também se eterniza, pois, “o que até
então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos”
63
(FREUD, 1980[1912-13],v.XIII,p.172). É assim que, anunciada aos demais a “notícia
de grande morte” (GSV, p.227), todos “[s]e aprontaram num átimo” (GSV, p.227).
Concluímos, então, que o lugar onde foi anunciada a morte do pai e de sua
lei – Guararavacã do Guaicuí - é um lugar memorável. É lugar de antecipação da
origem, lugar do acontecimento único das “grandes coisas, antes de acontecerem”
(GSV, p.220). É, ao mesmo tempo, lugar das coisas que “não acontecem mais” (GSV,
p.220) e cuja possibilidade de repetição do assassinato do pai evoca o fim de tudo, pois
“[s]e um dia acontecer, o mundo se acaba” (GSV, p.220). É o lugar simbólico e singular
da interdição: “[...] tão célebre – a Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais” (GSV,
p.228).
Em vista disto, não se poderá esquecer que Guararavacã é, sobretudo, o
lugar onde se fez ouvir o grande estrondo de trovões prenunciando a morte,
prenunciando o Guaicuí23.
2. 10 O Grande Sertão e a “excomunhão maior”
Até aqui, nosso estudo tem caminhado no sentido de entender a lacuna
indicada por Lacan na teoria freudiana no que diz respeito à questão sobre o pai. Além
disto, e principalmente, através desse procedimento, acreditamos vir a encontrar o
caminho que nos conduzirá à reflexão sobre a feminilidade e ao imbricamento desta
com a função do pai.
No entanto, antes de enveredarmos diretamente pelas reflexões sobre a
feminilidade,
parece-nos
interessante
comentar
que,
ao
acompanharmos
os
desdobramentos da noção de Nome-do-Pai, surgiu-nos a possibilidade de forjar uma
outra articulação. Esta, de cunho alegórico, nos permitirá apreciar mais um aspecto da
relevância e impacto do Nome-do-Pai na medida em que esse conceito se encontra
intimamente relacionado aos efeitos do ensino de Lacan no meio psicanalítico. Porém,
como nossa alegoria se relaciona à construção do Nome-do-Pai ao longo da elaboração
lacaniana, achamos por bem condicionar sua apresentação a uma exposição resumida do
recurso que temos empregado e das referências teóricas que nos têm apoiado.
23
Segundo o Diccionário Castellano-Guaraní de Antônio Guasch (1961, p.517,518,744), o termo
“Guarara” remete-nos àquilo que “produz grande estrondo”; “va” significa “o que”. Daí, Guararavacã é
“o que produz grande estrondo”. Quanto à “Guacuí”, este termo remete à “morte” e a “velha, anciã”.
64
Em linhas gerais, podemos então dizer que temos procurado identificar, no
Grande Sertão, os elementos constitutivos do texto passíveis de serem articulados à
concepção
psicanalítica do
Nome-do-Pai. Como
este conceito
se encontra
essencialmente ligado às noções de pai real, pai imaginário e pai simbólico, temos
procurado também depreender da narrativa um entendimento destas noções a partir da
análise do personagem Joca Ramiro.
Assim procedemos porque, como foi afirmado antes, Lacan criou o termo
Nome-do-Pai para responder à questão deixada em aberto na obra freudiana no que diz
respeito à função paterna. Foi também nesta perspectiva que ele criou a estrutura
tripartida composta pelo pai real, pai simbólico e pai imaginário. Com a criação de tais
conceitos, podemos afirmar com Jorge (2000, p.13) que
Lacan nos trouxe de volta àquelas regiões cruciais e problemáticas da obra
freudiana de uma maneira mais consistente, em que seus contornos estão mais
bem definidos e apresentando novas possibilidades de reflexão [de tal forma que]
Real-simbólico-imaginário constitui um novo nome, dado por Lacan, ao
inconsciente freudiano.
Retrospectivamente, seguimos ainda com Porge (1998) para ressaltar como o
estudo de Lacan sobre o pai, a partir da obra freudiana, baseou-se - desde seu primeiro
seminário que remonta ao ano de 195124 - numa aproximação entre a questão sobre o
que é o pai e a introdução das noções de real, simbólico e imaginário. Sobre esta
aproximação, Porge (1998, p.29) afirma também que a função paterna é introduzida a
partir de dois eixos: “Aquele que vai ser suportado pelo termo, ainda opaco, de Nomedo-Pai e aquele do pai repartido no ternário pai simbólico, pai real, pai imaginário, mais
explícito”.
Gostaríamos de fazer observar que, na construção de sua teoria, Lacan
realizou uma espécie de alternância entre a elaboração dos conceitos de Nome-do-Pai e
do ternário Real, Simbólico e Imaginário (PORGE, 1998). Além disto, assinalemos que,
depois do seminário de 1957 a 1958 intitulado As formações do inconsciente, até o ano
de 1963, são proferidos cinco seminários nos quais nem o Nome-do-Pai, nem o ternário,
são abordados diretamente por Lacan25 (PORGE, 1998).
24
Referimo-nos ao seminário sobre O homem dos lobos realizado durante os anos de 1951 e 1952 na
residência de Lacan.
25
Citamos Porge (1998, p.45): “Cinco seminários separam As formações do inconsciente do seminário de
20 de novembro de 1963: O desejo e sua interpretação, A ética da psicanálise, A transferência, a
indentificação, A angústia. [...] Nenhum destes seminários aborda de frente o Nome-do-Pai (a não ser por
algumas poucas exceções) ou o ternário pai simbólico, imaginário e real. [...] Aparentemente o Nome-do-
65
Ora, nosso empenho em ressaltar o estudo de Porge (1998, p.87-88) sobre as
incidências do Nome-do-Pai na teoria lacaniana decorre da explicitação feita por este
autor do relevo que tal conceito ganhou no ensino de Lacan: “O Nome-do-Pai não é
somente um tema de exposição, ele produz efeitos, no retorno, de contagem e de
escansão sobre o ensino de Lacan”. Tal afirmação se fundamenta na possibilidade
vislumbrada pelo autor de sugerir uma periodização na seqüência dos seminários
proferidos por Lacan e na interpretação dos efeitos deste ensino no meio psicanalítico.
Em conseqüência, consideramos, como Porge, que estes efeitos detêm certa
relação, justamente com a elaboração do conceito Nome-do-Pai, uma vez que foi a
partir dele que Lacan questionou e reformulou a teoria freudiana sobre o Édipo. Como
afirma Roudinesco e Plon (1998, p.448), Lacan propôs “uma releitura universalista da
interdição do incesto e do complexo de Édipo”. Assim, o ensino de Lacan repercutiu no
meio psicanalítico de tal forma que a reação por parte de alguns psicanalistas não tardou
em se fazer ouvir.
Se levarmos em conta que a reação ao ensino de Lacan está relacionada à
elaboração do termo Nome-do-Pai, parece-nos imprescindível nos reportarmos a alguns
eventos que a marcaram, ainda mais quando consideramos que tal reação se deu de
forma dramática e determinou uma mudança na seqüência dos seminários de Lacan.
Em 1963, ano em que Lacan iniciaria o seminário intitulado Os nomes do
pai, vários acontecimentos, decorrentes da crise gerada em torno do seu ensino, se
fizeram notar. Tal crise teve inicio no ano de 1959 quando a Sociedade Francesa de
Psicanálise (SFP) fez o pedido de adesão à International Psychoanalytical Association
(IPA). Como afirma Porge (1998, p.60), “[n]o centro do que toma ares de uma
negociação [...] encontra-se J. Lacan, a duração de suas sessões de análise, o número
dos seus analisandos, a presença destes no seu seminário”. A aceitação do pedido de
adesão da SFP à IPA fora, então, condicionada ao afastamento de dois psicanalistas da
SFP: Lacan e Fraçoise Dolto.
Reproduzimos a seguir um trecho da Recomendação de Edimburgo, citado
por Porge (1998, p.61): “13.a – Que os doutores Dolto e Lacan tomem distância
progressivamente do programa de formação, e que não se lhes envie novos casos de
análises didáticas ou de supervisão”.
Pai não está no centro das preocupações de Lacan. E no entanto... As abordagens laterais, ou sob a forma
de incisões destes seminários, que sobrevêm importam muito”.
66
A querela se acirrou a ponto de, no dia 19 de novembro de 1963, Lacan
receber a notícia da perda de sua função de analista didata, ou seja, Lacan perdeu o
direito de participar da formação de novos analistas. Porge (1998, p.64) assinala que
logo “[n]a manhã seguinte ele suspende seu seminário Os nomes do pai” após
pronunciar a primeira e última aula deste seminário.
Até então, os seminários de Lacan eram realizados nas dependências do
Hospital Sainte-Anne. Depois do acontecimento acima descrito, Lacan deu continuidade
a seu ensino em outro local. Porge (1998, p.65) nos fornece mais detalhes sobre as
mudanças que se seguiram:
Lacan retoma um outro seminário, num outro local, o da Escola Normal
Superior (ENS), obtido graças aos cuidados de L. Althusser, a quem ele
escrevera na noite de 20 de novembro de 1963 solicitando um encontro. Esta
mudança de lugar modifica o público do seminário, notadamente ao abri-lo aos
universitários e outros não-analistas. Por outro lado, o título e o tema do
seminário também mudam: Lacan anuncia que tratará dos fundamentos da
psicanálise. O ato de parar seu seminário sobre os nomes do pai toma então sódepois o sentido não de renunciar a manter um ensino, mas de renunciar a
fazer um ensino sobre os nomes do pai, contanto que a questão dos
fundamentos fosse, senão asseguradas, pelo menos um pouco mais
destrinchada.
Temos, portanto, que o seminário sobre Os nomes do pai, resumiu-se a única
aula do dia 20 de novembro de 1963. No preâmbulo à recente publicação traduzida para
o português desta aula de Lacan (2005, p.8), Jacques-Alain Miller comenta:
Lacan sempre se recusou a retomar o tema do seminário subitamente abortado,
e até mesmo em publicar em vida o texto da única lição pronunciada. Ao
concluir, em função de seus dissabores, que o credenciamento do “discurso
psicanalítico” não lhe havia sido dado para erguer, como tinha a intenção, o
véu com que Freud recobrira o verdadeiro fundamento da psicanálise, e que
tinha sido punido por se mostrar sacrílego, assinalou, para bom entendedor sobretudo com o título irônico que deu a um Seminário posterior, Les nondupes errent26 -, que manteria mão de ferro sobre verdades por demais
intempestivas.
Assim, após o que Lacan (1988, p.11) denominou - no seminário intitulado
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise - de “excomunhão maior”27, isto se
26
Literalmente, “Os não-tolos erram” (Les non-dupes errent), expressão que em francês faz homofonia
com “Os nomes do pai” (Les nom du père).
27
“Excomunhão” foi o termo empregado por Lacan para designar sua demissão da IPA. Citamos
Roudinesco e Plon (1998, p.118): “Com isso, [Lacan] inscreveu sua ruptura com a legitimidade freudiana
na linha direta do herem de Baruch Spinoza (1632-1677), que era um castigo de caráter leigo, e não
religioso. Lacan, aliás, comportou-se diante da IPA da mesma maneira que o filósofo frente à sua
comunidade: ele mesmo providenciou sua exclusão. E o emprego desta palavra traduz perfeitamente bem
67
referindo a sua saída da IPA, Lacan (1985, p.19) resolveu recomeçar seus seminários
procedendo ao que nos parece apropriado considerar como uma “recapitulação” de
conceitos fundamentais à psicanálise. Ouçamo-lo:
Retornar a esta origem [ou seja, retornar ao desejo de Freud] é absolutamente
essencial se queremos colocar a análise de pé.
O que quer que ele seja, tal modo de interrogar o campo da experiência, [...],
vai ser guiado pela referência seguinte – que estatuto conceitual devemos dar a
quatro dos termos introduzidos por Freud como conceitos fundamentais,
nominalmente o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão?.
Desta forma, ao realizar um “retorno” que, a nosso ver, pode também ser
entendido como uma “recapitulação” da teoria freudiana, Lacan reavivou os
fundamentos do ensino de Freud e travou, então, uma luta, ainda mais determinada,
contra os desvirtuamentos de que este ensino vinha sendo vítima.
Por outro lado, ao criar um “lacanismo”, ou seja, ao propor um movimento
de retorno a Freud que, ao mesmo tempo, veio prenhe de elaborações inovadoras, bem
como de críticas à teoria freudiana, Lacan correu o risco de provocar uma opinião
equivocada a seu respeito. Como ressalta Porge (1998, p.72),
[s]eu passo pode ser interpretado – e é isto que não deixa ainda hoje de se
produzir – como uma espécie de tentativa metafórica de assassinato do pai
(Freud) de acordo com o esquema edipiano, no momento em que justamente
ele tenta fazer passar uma mensagem – o Nome-do-Pai – que recoloca em
questão o esquema edipiano.
Ora, diante de tais acontecimentos, como poderíamos deixar de nos remeter,
alegoricamente, ao Grande Sertão? Acaso, neste, assim como na história da psicanálise,
depois do que foi entendido, mesmo que equivocadamente, como uma tentativa de
assassinato do pai, não se efetivou um corte, uma cisão? Além disto, como deixar de
observar que, como efeito deste corte, no meio do Grande Sertão a narrativa recomeça,
recapitula, enquanto que no meio psicanalítico a cisão teve como efeito a retomada, ou
recapitulação, por parte de Lacan dos conceitos fundamentais da psicanálise? Desta
forma, podemos dizer que no caso dos jagunços a narrativa passou a ser “recontada”,
assim como no caso dos psicanalistas, a teoria foi “recapitulada”, criticada e ampliada
pelo ensino de Lacan.
a posição particular ocupada pelo lacanismo na história do freudismo. Ao contrário das outras correntes,
que procuravam ultrapassar o freudismo, Lacan instaurou, com efeito, uma retomada ortodoxa dos textos
freudianos”.
68
E mais, quando a estória é recontada no Grande Sertão, ficamos sabendo
que Zé Bebelo, aquele que foi exilado para Goiás, retornou e se engajou na luta de
vingança pela morte de Joca Ramiro. Zé Bebelo lutou, então, ao lado dos guerreiros de
um outro grande chefe, Medeiro Vaz, e seu empenho foi tal que ele passou a ser visto
como aquele que “herdou brioso comando” (GSV, p.234). Assim, tal como Joca Ramiro
e Medeiro Vaz, ele foi capaz de reunir tantos sob seu comando que passou a ser
nomeado por Zé Bebelo Vaz Ramiro (GSV, p.238).
Quanto aos rumos da história da psicanálise, podemos dizer que Lacan,
aquele que foi “excomungado”, retornou ao texto de Freud para dar continuidade a seu
ensino e o fez com tal empenho que afirmamos, como Porge (1998, p.75), que “[e]m
nenhum momento tratou-se para Lacan de encabeçar um movimento lacaniano que não
procederia de uma relação com a letra do texto freudiano”. Assim, o ensino de Lacan se
reúne tanto ao ensino de Freud que podemos mais uma vez afirmar, com Porge (1998,
p.75), que “[d]e fato, hoje, pode-se dizer que se lê Freud com Lacan, mas não se diz que
se lê Freud com Melanie Klein28, por exemplo. Lê-se Freud e Melanie Klein”, lê-se
Freud Lacan.
Assim, ao nos voltarmos para a leitura de Freud com Lacan, podemos agora
interrogar: Afinal, o que Lacan pretendia revelar como tendo sido encoberto por Freud?
Para respondermos a esta questão, ouçamos o que diz o próprio Lacan (1985, p.19):
[...] a histérica nos põe, eu diria, na pista de um certo pecado original da
análise. É preciso mesmo que haja um. O verdadeiro é talvez apenas uma
coisa, é o desejo do próprio Freud, isto é, o fato de que algo, em Freud, não foi
jamais analisado.
Era exatamente aí que eu estava no momento em que, por uma singular
coincidência, fui posto em posição de ter que me demitir do meu seminário.
O que eu tinha a dizer sobre os Nomes-do-Pai não visava outra coisa, com
efeito, senão pôr em questão a origem, isto é, por qual privilégio o desejo de
Freud tinha podido encontrar, no campo da experiência que ele designa como
o inconsciente, a porta de entrada.
Enfim, chegamos ao ponto em que Lacan começa a explicitar sua indicação
de que existe uma questão deixada em aberto na teoria de Freud sobre o pai e não é sem
28
Sobre Melanie Klein reproduzimos o comentário de Roudinesco e Plon (1998, p.430): “Melanie Klein
foi o principal expoente do pensamento da segunda geração psicanalítica mundial. Deu origem a uma das
grandes correntes do freudismo, o kleinismo, e [...] contribuiu para o desenvolvimento considerável da
escola inglesa de psicanálise. Transformou totalmente a doutrina freudiana clássica e criou não só a
psicanálise de crianças, mas também uma nova técnica de tratamento e de análise didática, o que fizera
dela uma chefa de escola”.
69
surpresa que vemo-lo, então, entrelaçá-la a uma outra - reconhecida pelo próprio Freud
como uma questão em aberto -, que é a interrogação sobre “O que quer uma mulher?”.
Na aula de 22 de janeiro de 1964 do seminário Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Lacan (1985, p.32) fez referência a este entrelaçamento
afirmando que “[q]uanto a Freud e à sua relação ao pai, não esqueçamos que todo o seu
esforço só o levou a confessar que, para ele, esta questão permanecia inteira, ele disse a
uma de suas interlocutoras - O que quer uma mulher?”.
Mas por que Lacan entrelaçou estas duas questões? Que afinidade ele
identificou entre elas? Adiante, neste mesmo seminário, quando Lacan aborda o
primeiro dos quatro conceitos elaborados por Freud, o conceito de inconsciente, ele
relembra que no último capítulo d’A Interpretação dos Sonhos, Freud estabelece a
relação entre o inconsciente e o sonho partindo da premissa de que este é a
representação de um desejo. Lacan chama a atenção para o fato de que Freud toma,
como exemplo desta relação, o sonho de um pai cujo filho acabara de falecer.
Este pai, cansado das noites passadas em claro devido aos cuidados
prestados anteriormente ao enfermo, adormeceu durante o velório e sonhou, como relata
Freud (1980[1900], v.V, p.543), que “seu filho estava de pé ao lado de seu leito, que o
apanhou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: ‘Pai, não vê que estou
queimando?’”. O pai então é despertado pela luz de labaredas que, efetivamente, se
formavam na sala onde o corpo do filho estava sendo velado, pois, na realidade,
aconteceu de uma das velas cair e queimar “as roupas e um dos braços do cadáver”.
Segundo Freud, este sonho realiza o desejo do pai de voltar a ver seu filho vivo,
tomando-lhe pelo braço e falando-lhe, mesmo que em tom de recriminação.
A propósito desta interpretação, Lacan (1985, p.38), no entanto, se pergunta
por que Freud escolheu justamente este sonho para exemplificar a realização de um
desejo inconsciente quando o que chama mais atenção é a realidade do corpo do filho
sendo queimado. Ele então argumenta que este exemplo fornecido por Freud evoca algo
mais, pois, “[d]o que é que ele [o filho] queima? – senão do que vemos desenhar-se em
outros pontos designados pela topologia freudiana – do peso dos pecados do pai, que
carrega o fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo”.
Para entendermos este questionamento de Lacan precisamos considerar com
ele que, inicialmente, Freud concebeu a noção de desejo a partir de suas descobertas
sobre o desejo da histérica. Porém, Lacan assinala ainda que tal concepção só pode ser
sustentada por Freud até determinado ponto: aquele em que a própria histérica lhe
70
demonstrou que ele, Freud, não havia formulado corretamente qual é o objeto do seu
desejo (LACAN,1985). Daí a interrogação freudiana: “O que quer uma mulher?”.
Então, em relação ao desejo, há algo que Freud não pôde ter acesso. Por isso,
Lacan (1985, p.41) voltou-se para o estudo do relato de Freud sobre o Caso Dora,
publicado em 1905 e de seu artigo “Sobre a psicogênese de um caso de
homossexualidade feminina”, publicado quinze anos depois, e observou que, na
condução destes tratamentos, “Freud ainda não podia ver – na falta de referenciais de
estrutura [...] – ver que o desejo da histérica – [...] – é sustentar o desejo do pai [...]”,
enquanto que no caso da homossexual, a solução que ela encontra para esse desejo do
pai é desafiá-lo.
Aí está! As observações de Lacan sobre a afinidade entre o desejo do pai e a
questão incitada pela histérica e pela homossexual, parecem-nos contribuir
enormemente para a exeqüibilidade deste estudo que visa, em última instância, elucidar
as implicações da função paterna sobre a constituição da feminilidade.
Como resultado, acreditamos ter alcançado um ponto onde a vereda traçada
por nosso estudo sobre o pai se conjuga com a vereda de um estudo sobre a filha. Por
isso, no próximo capítulo, nos empenharemos na caminhada por esta segunda vereda
que implica em passarmos pela análise de uma filha e pelas questões da histérica e da
homossexual para enfim chegarmos às questões que dizem respeito à mulher.
71
III
VESTÍGIOS DE MULHER
3. 1. Introdução
Se, ao avançarmos no entendimento da função paterna, acabamos por
adentrar as veredas do desejo de uma filha – quer este desejo se manifeste pela via da
histeria ou da homossexualidade feminina em suas indagações sobre a função do pai -,
resta-nos ir, “sem volvência” (GSV, p.39), de “[v]ereda em vereda, como os buritis
ensinam” (GSV, p.46).
É certo que esta travessia se dá através de algo bastante intrincado, algo
como uma brenha, uma mata brava, emaranhada. No entanto, se, por um lado e apesar
das dificuldades, não podemos nos esquivar deste percurso - já que será através dele que
encontraremos algum acesso à questão da feminilidade -, por outro, quando recorremos
a Freud e a Lacan, constatamos que nosso embrenhamento pode ser enormemente
facilitado pela ação destes batedores. Além destes, é claro, continuamos a recorrer à
perspicácia ficcional do Grande Sertão, que, tal qual um mateiro, também nos guia
pelos cerrados e terrenos alagadiços da caatinga: Veredas.
“Constante que com a gente [estão] três bons rastreadores” (GSV, p.39),
vejamos de que maneira estes nos guiam e até onde conseguimos chegar nesta busca de
um entendimento sobre as veredas para a feminilidade.
3. 2 Torções
Na última vez que nos referimos ao texto de Guimarães Rosa, estávamos no
ponto central do livro, no meio da estória, no meio do Grande Sertão. Estávamos em
Guararavacã do Guaicuí, nome de um lugar que “não tem mais” (GSV, p.220). Logo, é
daí que devemos retomar nossa caminhada.
Além disto, apesar de Guararavacã se tratar de uma localidade que não existe
mais, precisamos considerar o fato de ter sido a partir dela que Riobaldo fez uma
importante constatação: “[...] foi neste lugar, no tempo dito, que meus destinos foram
fechados” (GSV, p.220). O que teria, então, fechado os destinos de Riobaldo?
72
Dissemos que, depois do julgamento de Zé Bebelo, uma parte do bando
passou dois meses acampada em Guararavacã sem travar guerra. Aí os jagunços
viveram num “[m]adrugar vagaroso, vadiado” (GSV, p.218). Foi neste espaço de tempo
que Riobaldo “sozinho, num repartimento dum rancho, rancho velho de tropeiro” (GSV,
p.220), fez a “[t]ravessia de [sua] vida” (GSV,p.220). Esta travessia ocorreu na
intimidade de uma borda, num rancho que “era na borda-da-mata” (GSV, p.220).
Arranchemos, pois, também nós, na “borda-da-mata”.
A mata representa uma área coberta por plantas silvestres. Forma-se na zona
entre a orla marítima e o agreste. Uma mata representa, portanto, um limite. Afora isto,
uma segunda acepção de “mata” nos remete a “matadura”, quer dizer, ferida, defeito,
fato censurável, etc. Então, podemos dizer que Riobaldo estava provisoriamente alojado
numa borda, numa extremidade, numa área confinante com algo. De fato, vemos nossa
interpretação ser reforçada pelo termo “borda” que significa extremidade de uma
superfície, beira. Ora, assim como acontece com o termo “mata”, este segundo termo,
“borda”, propicia, outrossim, mais um sentido, pois “borda” é também uma espécie de
arma de combate, é uma clava29.
Feitas estas considerações, apreciemos o momento em que Riobaldo,
flanqueado por suas armas, fez a travessia de sua vida. Diz ele:
[...] eu estava deitado numa esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas
armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a
morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo
jeito, se podia mandar o amor? (GSV, p.220).
Ponderemos: Riobaldo, armado como estava com clava ou com armas
reluzentes nos canos capazes de mandar “a morte em outros”, interroga-se de que jeito
poderia mandar a morte ao amor. Isto - parece-nos – indica claramente que a travessia
de Riobaldo envolve uma passagem pelo amor. Indica-nos também que mandar a morte
a outros, àqueles que estão à distância de “tantas braças”, não é o mesmo que mandar a
morte àquilo que amamos. E mais, o dito de Riobaldo nos conduz por uma superfície
que não se mostra plana, pois, nesta, a borda é capaz de marcar um direito e um avesso
bem delimitados. Entendemos, por conseguinte, que o dito de Riobaldo percorre, antes,
uma superfície em que direito e avesso se confundem e só um acontecimento temporal
pode diferenciá-los.
29
Lembramos que todas estas sinonímias podem ser conferidas no Dicionário eletrônico Houaiss da
língua portuguesa, versão 2001.
73
Em relação aos efeitos de um acontecimento temporal, lembremos que em
Guararavacã o tempo se mostra subvertido. Lá é o lugar das “grandes coisas antes de
acontecerem” (GSV, p.220). Lá é o lugar em que, depois da notícia do assassinato de
Joca Ramiro, “tudo principiava terminado” (GSV, p.227). Além disto - ou ainda, como
decorrência desta subversão do tempo -, em Guararavacã um certo espaço também se
encontra subvertido. Referimo-nos, justamente, ao espaço percorrido por Riobaldo.
Sobre este espaço, ele mesmo interroga: “Será que tem um ponto certo, dele a gente não
podendo mais voltar para trás?” (GSV, p.220). Mas o que produziria um ponto assim,
do qual não se pode mais voltar para trás?
Partiremos da premissa de que o que se mostra capaz de impedir um retorno
deve ser algo da ordem de um obstáculo, uma interrupção, um corte. Pois bem, se
estivéssemos acompanhando Riobaldo através de um percurso sobre uma superfície
plana, este corte impediria o retorno da narrativa. Porém, sabemos que a estória, depois
da morte de Joca Ramiro, paradoxalmente continua, é recontada, e recontada de forma
ampliada. Por isso, pensamos poder dizer que no meio do Grande Sertão, nos
deparamos com muitos elementos que indicam uma subversão no sentido mesmo da
“revolta30”, da transformação decorrente de um retorno que se dá pelo avesso do
percurso realizado até então, e de onde ecoam outras verdades.
Para visualizarmos como isto é possível, basta que tomemos uma faixa de
papel e efetuemos sobre ela uma torção no sentido de seu eixo vertical. Feito isto, se
juntarmos as duas extremidades da faixa, teremos transformado uma superfície plana,
numa superfície torcida. Ao percorrer esta superfície, podemos observar que um mesmo
ponto pertence tanto ao direito quanto ao avesso da faixa. Este artifício foi descoberto
em 1861 por Mœbius e se mostra bastante eficiente para representar uma superfície
unilátera, quer dizer, sem direito nem avesso, ou ainda, uma superfície onde direito e
avesso se apresentam em continuidade. Esta superfície recebeu o nome de seu
descobridor, denomina-se “faixa de Mœbius” (GRANON-LAFONT,1996). Abaixo, as
figuras 1 e 2 procuram ilustrá-la:
30
Lacan (1992, p.52) nos lembra que, pelos ensinamentos da mecânica celeste, a “revolução” consiste
num “retorno ao ponto de partida”. Esclarecemos que nosso emprego do termo “revolta” deve ser
entendido com um retorno ao ponto de partida, pois de fato a narrativa volta a este, depois do evento da
morte de Joca Ramiro. Entretanto, este retorno nos dá a ver outras verdades. Ele se dá pelo avesso
ampliando nosso entendimento sobre fatos já narrados, mas narrados de forma condensada e até mesmo
aparentemente caótica. Agora, com este retorno pelo avesso, acreditamos que ele nos permite ouvir os
ecos da verdade, pois, como ainda afirma Lacan (1992, p.52), “Avesso é assonante com verdade”, já que
em francês, conta-se com assonância entre envers e verité.
74
Fig.1
Fig. 2
Faixa de Mœbius
Então, retornando à travessia realizada no rancho da borda-da-mata,
descobrimos que ela se deu pelo acesso a um saber sobre o amor. Diz-nos Riobaldo:
“Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal
encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei
comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora” (GSV, p.220).
Que meandro mais curioso este que envolve um amor distorcido e destorcido em
amizade e que se apresenta, de repente, de “Me a mim”! Torções...
Até aqui, tendo nos detido na questão da função paterna, vimo-nos na
contingência de ter de adiar a apreciação desta personagem instigante que é Diadorim,
apesar de sua inesgotável importância para o prosseguimento deste estudo. Eis que nos
chega o momento de iniciar nossa passagem por esta vereda.
3. 3 “Um Diadorim assim meio singular”
Por que o esclarecimento sobre o amor que sentia por Diadorim - um amor
que se disfarçava mal em amizade – consistiu numa travessia para Riobaldo? Por que,
pelo menos na hora desta descoberta, ele não achou ruim, não se reprovou? Acaso este
saber estaria limitado por alguma borda com tendência à matadura, quer dizer, com
tendência a ser um fato censurável? Ouçamo-lo mais:
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei
com ele. Mel se sente é todo lambente – “Diadorim, meu amor...” Como era
que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não
ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava
diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo
do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como
quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem
seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu
corpo aquele Diadorim – que não era de verdade. Não era? (GSV, p.221).
75
Era. Diadorim era de “carne e osso” (GSV, p.222). E isto foi o que, em
seguida, levou Riobaldo a decidir entre alguns caminhos:
Acertei minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia,
por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não,
pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! –
com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo.
Ou eu fugia – virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as
estradas. Rangi nisso – consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio
salvo! (GSV, p.222).
A título de curiosidade, informamos que no Grande Sertão, a “regra do rei”
é a seguinte: “A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio” (GSV, p.20).
Por procurar se fundamentar nisto é que Riobaldo estava “meio” salvo. Mas meio salvo,
de quê, senão do amor? E mais: assim, salvo pela metade, persistia todo o seu dilema.
Um dilema tão profundo que o levou, naquele momento a fazer de conta que olhava
para Diadorim e dizer para si mesmo: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só
como amigo!...” (GSV, p.222).
Daí por diante Riobaldo se acostumou a dizer isto sempre que se encontrava
perto de Diadorim e chegou mesmo a acreditar neste dizer. Porém, havia aí uma
contradição que ele próprio veio a constatar, “Ah, meu senhor! – como se o obedecer do
amor não fosse sempre ao contrário...” (GSV, p.222).
Na verdade, o amor entre Riobaldo e Diadorim não continha apenas uma
contradição, mas várias. Para começar a tratar de algumas delas, precisamos, no entanto,
percorrer outras torções do fio da narrativa e então apreciarmos, não apenas o início
deste relacionamento amoroso, mas, Diadorim.
Como é o tempo que nos fornece o recurso para deslindar algum verso e
anverso deste amor, precisamos considerar que ele nasceu num “outro tempo” (GSV,
p.80). É a este tempo, o tempo do primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim, que
iremos nos reportar agora.
Riobaldo contava por esta época “uns quatorze anos, se” (GSV, p.79).
Diadorim tinha um “pouco menos [...], ou devia de regular” (GSV, p.80) a mesma idade
que Riobaldo. O encontro ocorreu num local repleto de ambigüidades: eles se
encontraram às margens de um dos afluentes do São Francisco, no porto do Rio-deJaneiro que, diga-se de passagem, nos remete às faces opostas do deus Janus, o deus
bifronte. Lá é “uma beira de barranco”, lugar de precipício, obstáculo. É lugar de
impasse, de encruzilhada: “O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São
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Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria” (GSV, p.79). Além de tudo, é local
iniciático, de introdução a um conhecimento sobre algo misterioso ou desconhecido,
onde “também principia ali a viagem” (GSV, p.79).
Esta viagem do menino Riobaldo o conduziu a um outro menino que ele viu
“encostado numa árvore, pitando cigarro” (GSV, p.80). Este menino veio de um outro
lado do mundo, “um-meio mundo diverso” (GSV, p.80). O aparecimento deste menino
introduziu, portanto, algo “meio” da ordem de uma diversidade.
De fato, apesar de Riobaldo ter olhado para ele “com um prazer de
companhia” (GSV, p.81), com um deleite capaz de estabelecer uma coexistência
harmoniosa, ainda assim, este prazer não deixou de ser inusitado nem impediu que
Riobaldo achasse que o menino “era muito diferente” (GSV, p.81). Por conseguinte, o
menino representava também uma diferença. Mas, uma diferença que não os afastava.
Pelo contrário, em relação ao menino, Riobaldo teve foi o “desejo de que ele não fosse
mais embora” e, sobretudo, observou que era correspondido: “Senti, modo meu de
menino, que ele também se simpatizava a já comigo” (GSV, p.80).
Partiremos, então, da percepção de que o menino - vindo de “um-meio
mundo diverso” e sendo “muito diferente” – nos permite sugerir que nesta narrativa, a
alteridade31 tem vários nomes. Se esta idéia se mostra precisa, propomos também que
um dos nomes da alteridade seja, justamente, o nome atribuído por Riobaldo àquele que
ele acabara de conhecer: “Menino”.
Contudo, antes de nos determos sobre a noção de alteridade, precisamos
antecipar que, só depois, ficaremos sabendo que o menino com quem Riobaldo se
encontra às margens do de-Janeiro é Diadorim. Nenhuma menção é feita a este nome ao
longo do encontro que finaliza com a chegada da mãe do protagonista: “Minha mãe
estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me despedir direito do
Menino. [...] Nem sabia o nome dele. Mas não carecia” (GSV, p.86).
Ora, o que tornava desnecessário saber o nome daquele que tanto
impressionara a Riobaldo senão o fato deste desconhecido lhe ser, ao mesmo tempo,
familiar, ao mesmo tempo, desejado e evitado? Mal acabara de ir para perto do menino
e Riobaldo já foi “recebendo [...] um desejo de que ele não fosse embora, mas ficasse,
31
Adiantamos que a alteridade será tratada aqui enquanto determinante simbólico do sujeito em relação a
seu desejo. Ao longo deste capítulo, tornaremos a considerar o alcance desta premissa explicitada pela
psicanálise. Mas antes disto, consideraremos a noção de alteridade em seu aspecto radical que nos remete
a um além e a um aquém, pois, no que tange à narrativa rosiana, parece-nos patente que o romance
oferece uma fonte abundante de inauditos sobre a alteridade.
77
sobre as horas, e assim como estava sendo, [...] – só meu companheiro amigo
desconhecido” (GSV, p.81).
Com este “companheiro amigo desconhecido”, Riobaldo realizou, então,
uma dupla travessia: a do rio São Francisco, feita numa pequena canoa onde sentaram
“virados um para o outro” (GSV, p.81), portanto, submetidos ao fascínio da imagem
especular; e a travessia maior, essência de todo o romance, que resultou “[s]ó uma
transformação, pesável” (GSV, p.86) e impossível de nomear, já que “[m]uita coisa
importante falta nome” (GSV, p.86).
Atentemos para o fato de que esta transformação também nos remete a uma
torção através da qual podemos ter acesso a elementos substanciais de nossa
investigação. Para nós, trata-se de uma torção passível de revelar aquilo que está em
hipóstase, quer dizer, aquilo que está por baixo determinando os desdobramentos do
romance. Porém, como diz Riobaldo, falta nome para nomear “[m]uita coisa
importante”. Muita coisa que, a nosso ver, compõe o sedimento da trama narrativa.
Cabe então interrogar: o que pode ser tão inominável? O que é isso que resta
fora da linguagem? O que pode ser, assim, tão diferente, tão diverso, sem semelhante,
tão outro?
3. 3 Um Menino “Dessemelhante”
Apesar do fascínio da imagem do Menino “que era um menino bonito, claro,
com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes” (GSV, p.80) - um fascínio que seduz,
aproxima, atrai -, apesar da identificação decorrente desta fascinação, Riobaldo percebe
ainda que, “[e]le, o menino, era dessemelhante” (GSV, p.82).
Temos em mente que esta oportunidade nos permite abordar a noção de
alteridade a partir de sua relação com as noções de “diversidade”, “diferença” e com o
que não é semelhante, aqui representado por um termo inusitado: “dessemelhante”.
Ou seja: levamos em conta que a alteridade faz interseção com a diferença e
que esta se mostra aquém daquela (ABBAGNANO, 2000). Neste espaço de interseção,
a alteridade é determinada pela diferença. Esta dá a conhecer, nos objetos postos em
comparação, a diferença que eles têm em comum.
Já num além, ela, a alteridade, também faz interseção com a diversidade que
pode ser puramente numérica (ABBAGNANO, 2000). Neste caso, ressaltamos que a
78
alteridade está para além das identificações imaginárias que regulam a relação do sujeito
com o outro, seu parceiro, seu semelhante.
Por esta última perspectiva, a alteridade nos remete não apenas ao diverso,
mas também ao dessemelhante. Ela está para além da relação dual e para além da
diferença. A alteridade nos remete, conseqüentemente, a um terceiro. Ela ocupa um
outro lugar, uma outra cena que escapa à consciência e constitui o inconsciente.
Tratemos um pouco mais da noção de diversidade. Para Abbagnano (2000,
p.291), a diversidade indica “a simples distinção numérica quando duas coisas não
diferem em nada, exceto por serem numericamente distintas. Neste sentido, a
diversidade é a negação pura e simples da identidade”.
Assim, postos frente a frente, Riobaldo e o Menino não diferem em nada,
são dois meninos: têm a mesma idade, ambos se vestem como é usual aos meninos, etc.
O Menino usava, por exemplo, “um chapéu-de-couro, de sujigola abaixada” (GSV,
p.80). Além disto, quando embarcaram na canoa para realizar a travessia do de-Janeiro,
eles o fizeram na companhia de mais um menino, “[o] remador, um menino também”
(GSV, p.81). O número de meninos, então, aumenta, agora são três, porém todos da
mesma “laia” (GSV, p.81).
No entanto, alguns elementos se interpõem negando a identidade entre eles.
A procedência de cada um, por exemplo: O menino canoeiro era habitante ribeirinho do
São Francisco: “ “Sou barranqeuiro!” – o canoeirinho tresdisse, repontando de seu
orgulho” (GSV, p.84). O menino Riobaldo veio do “baixo da ponta da Serra das
Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo,
atrás das fontes do Verde, o Verde, que verte no Paracatu” (GSV, p.35). Já o Menino aquele de “esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas” (GSV,
p.81), olhos que eram fontes do verde para Riobaldo, posto que estes olhos “produziam
uma luz” (GSV, p.83) -, veio de “Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha
nascido. [...] esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de
Lassance” (GSV, p.80, grifo do autor).
Assim, como foi dito, o Menino veio de um mundo diverso. Sobre ele e
Riobaldo podemos dizer que um não pode, simplesmente, ser substituído pelo outro o
que, de certa forma, permitiria fazer dos dois, inteiramente identificados, um só.
Cogitamos, que na canoa, “virados um para o outro” (GSV, p.81), o que temos é um
“menino” e “mais um menino”, diverso do primeiro. Podemos dizer que este outro
menino é um “não-menino”, pois introduzimos a negativa para indicar que, apesar de
79
ambos serem meninos, o segundo não é igual ao primeiro. Esta negativa estabelece,
conseqüentemente, um desequilíbrio que não passou despercebido por Riobaldo: “Notei
que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio” (GSV, p.81).
Tratemos agora da noção de alteridade posta em relação com a
surpreendente concepção do dessemelhante, pois, “[e]le, o menino, era dessemelhante,
[...], não dava minúcia de pessoa outra nenhuma” (GSV, p.82).
Propomos que o dessemelhante possa ser entendido a partir de sua oposição
com o que é semelhante. Segundo Abbagnano (2000, p.869) o conceito de semelhante
representa “aquilo que tem qualquer determinação em comum com uma ou mais
coisas”. Este autor nos dá ainda mais algumas definições bastante esclarecedoras sobre
o que é considerado semelhante. Citamo-lo:
Mais genericamente, Wolff dizia que “são semelhantes as coisas que são
idênticas naquilo em que deveriam distinguir-se uma da outra” (Ont.,§ 195).
[...] Foi só na matemática moderna que a noção de semelhança recebeu
definição diferente, graças à teoria dos conjuntos. São considerados
semelhantes os conjuntos que apresentem relação de termo a termo. Russell,
por exemplo, diz: “Diz-se que uma classe é semelhante à outra quando existe
uma relação de termo a termo, em que uma classe é dominante enquanto a
outra é o dominante inverso (Introduction to Mathematical Philosophy, cap.II,
trad.it., p.27). Esta noção tem grande importância para a definição matemática
do infinito (ABBAGNANO, 2000, p.870, grifos do autor).
Pois bem, se o Menino era “dessemelhante” podemos depreender que ele
não tinha qualquer determinação em comum com Riobaldo. Tampouco tinha algo em
comum com qualquer outra pessoa. Se considerarmos, além disto, as outras definições
de semelhante explicitadas acima, podemos também afirmar que o Menino era
dessemelhante de Riobaldo, pois, naquilo em que eles deveriam se distinguir, de fato, o
Menino não era idêntico a ele. Enfim, podemos dizer que não havia uma relação de
termo a termo entre eles. Observemos que, apesar de ambos serem meninos,
Ele, o Menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra
nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte – assim se fosse
um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível [...]. As roupas mesmas não
tinham nódoa nem amarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele
pouco falasse. Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado sabido, e
tudo nele era segurança de si (GSV, p.82).
Então, se por um lado, o Menino se distinguia - apesar de podermos
compará-lo por meio de suas roupas sem nódoas nem amarrotados -, por outro, ele era
incomparável ou comparável apenas a um cheiro bom, mas, paradoxalmente,
80
insensível! Desta forma os termos postos em comparação relacionam-se um a um, até
certo ponto, até o ponto em que o Menino se mostra excepcional. A partir deste ponto,
instaura-se a dessemelhança, pois a correspondência se perde no infinito.
Consideremos com Abbagnano (2000, p.562) que o infinito “é aquilo que
pode ser percorrido mas não todo, pois não tem fim”. Sendo neste sentido que a
matemática entende a noção de infinito, deparamo-nos, então, como algo que não
conseguimos exaurir. Portanto, infinito é aquilo que não se mostra completo, o que
não impede que daí se possa tirar algo de novo. Este algo de novo será, no entanto,
finito, e sempre diferente.
3. 5 Um menino “diferente, muito diferente...”
Desta forma, adentramos a noção de diferença. Ela determina a alteridade,
pois a alteridade, em si, não envolve qualquer determinação (ABBAGNANO, 2000).
Nos termos da alteridade, podemos dizer, por exemplo, que o Menino é outra coisa que
não Riobaldo. Todavia, se implicarmos aí a noção de diferença, poderemos então
determinar que o Menino seja diferente de Riobaldo por isso, por aquilo, ou por aquilo
outro.
Levemos em conta que a noção de diferença se estende a um domínio
comum à noção de alteridade. Em nosso segundo capítulo, já comentamos que entre
uma e outra é possível estabelecer um campo de interseção o qual se constitui através da
indicação de um elemento que difere quanto a sua posse. Ou seja: podemos identificar
os elementos que compõem o campo de interseção entre a alteridade e a diferença pelo
fato destes elementos possuírem, ou não, determinada propriedade.
No encontro de Riobaldo com o Menino, pensamos ter identificado uma
cena bastante expressiva para exemplificar como a posse ou a não-posse de determinado
elemento participa da interseção entre a alteridade e a diferença.
A travessia do de-Janeiro levou os meninos ao “do-Chico”, quer dizer, ao rio
São Francisco. Este surge “é de repentemente, aquela terrível água de largura:
imensidade” (GSV, p.82). Riobaldo sentiu, então, o “[m]edo maior” (GSV, p.82), sentiu
“[m]edo e vergonha” (GSV, p.83), sentiu “o medo imediato” (GSV, p.83). O menino,
ao contrário, mostrou-se foi “[q]uieto, composto, confronte” e proferiu um veemente
ensinamento: “Carece de ter coragem...” (GSV, p.83).
81
O que tomamos desta passagem como exemplo da posse e da não-posse de
algo é, justamente, a coragem ou, se quisermos, seu contrário, o medo. É indiferente. Se
Riobaldo possui o medo, o Menino não o possui, ou ainda, se o Menino possui a
coragem, Riobaldo não. Vejamos:
- “Carece de ter coragem...” ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas?
Doí de responder: - “Eu não sei nadar...” O menino sorriu bonito. Afiançou: “Eu também não sei.” Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele,
produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele
indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve
medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: “Costumo não...” (GSV,
p.83).
Marcada esta diferença, interrogamos agora, como Riobaldo: “Mais, que
coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo?” (GSV, p.86).
Que coragem era essa, ainda não podemos responder, todavia, pasmamos
com Riobaldo ao saber o que a determinou, quer dizer, ao saber qual foi diferença que
determinou tal alteridade. Foi, justamente, um dito ouvido pelo Menino sobre a questão
do medo: “[...] - “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao que meio pasmei. Ainda
ele terminou: - “Meu pai é o homem mais valente deste mundo.” [...]” (GSV, p.84).
Assim ficamos como Riobaldo, na condição de ter de continuar a travessia
junto com o Menino. Sobre esta travessia já sabemos que ela foi determinada por um
dito paterno. Já sabemos que ela implica numa passagem pelas confluências da
alteridade com a diversidade, a dessemelhança e a diferença. Sabemos, portanto, que ela
conduz ao Outro. Acontece que sobre o Outro - isso que não se exaure, que se perde no
infinito -, não podemos dizer tudo.
Desse modo, tantas vezes, diante do inaudito, resta-nos a poesia, o verbo em
sua plena ação de sonhar, abrindo novas interrogações tal como Riobaldo teve de
aprender neste encontro: “Sonhação – acho que eu tinha de aprender a estar alegre e
triste juntamente, depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para
que? por quê?” (GS:V, p.86).
3. 6 Um Menino-Moço e o amor vindo “de um-que-não-existe”
Deixemos as margens do de-Janeiro. Ainda mais que depois deste encontro
de Riobaldo com o Menino, a vida daquele e, por conseguinte seu relato, “mudou para
uma segunda parte” (GSV, p.87).
82
Muitos eventos marcam esta mudança. Citamos alguns: A mãe de Riobaldo que se chamava apenas “Bigrí” (GSV, p.87, grifo do autor) -, morreu. Desta morte
Riobaldo herdou umas “miserinhas – miséria quase inocente” (GSV, p.87). Como ele
não soubesse quem era seu pai e não conhecesse nenhum outro parente, um dia, um
“vizinho caridoso” (GSV, p.87) o levou “para a Fazenda de São Gregório” (GSV, p.87).
Esta fazenda era de seu padrinho Selorico Mendes, que o recebeu com “grandes
bondades” (GSV, p.87) dizendo-lhe: “De não ter conhecido você, estes anos todos,
purgo arrependimentos...” (GSV, p.87).
Sob sua tutela, Riobaldo freqüentou escola, tornou-se “rapazinho” (GSV,
p.89), urdiu os primeiros namoricos com “meninas por nomes de flores” (GSV, p.89) e
aprendeu com Rosa’uarda, “moça feita” (GSV, p.89) mais velha que ele, “as primeiras
bandalheiras, e as completas” (GSV, p.90) que juntos fizeram com “anseio e deleite [...]
no fundo do quintal” (GSV, p.90).
Riobaldo “não gostava [...], nem desgostava” (GSV, p.90) de Selorico
Mendes. Porém, como “não soubesse [se] acostumar” (GSV, p.90) com ele, um dia
fugiu da fazenda.
Todavia, antes disto, ainda na São Gregório, “um grande fato se deu” (GSV,
p.90): durante uma madrugada chegaram uns homens que “não eram caçadores” (GSV,
p.90), mas jagunços. Vinham pedir a Selorico Mendes “recanto oculto” (GSV, p.91)
para suas tropas. Entre eles havia um que “[s]ó de ouvir o nome, [Riobaldo] parou, na
maior suspensão” (GSV, p.91). Tratava-se de Joca Ramiro, “chefe dos jagunços, o
principal” (GSV, p.91). Dias depois, “[s]e foram” (GSV, p.94). Com a partida do bando,
Riobaldo achou que “tudo tinha perdido a graça, o de se ver” (GSV, p.94), mas guardou
“no giro da memória [...] aquela madrugada dobrada inteira” (GSV, p.95).
Num outro dia, alguém disse a Riobaldo “que não era à-toa que [suas]
feições copiavam retrato de Selorico Mendes” (GSV, p.95). Ao ouvir isto, e apesar “de
algum encoberto jeito” (GSV, p.95) ele já saber que Selorico Mendes era seu pai,
Riobaldo achou que “o mundo todo [lhe] produzia desonra” (GSV, p.95), e fugiu da São
Gregório. Tornou-se jagunço (GSV. 90).
Conheceu o bando de Zé Bebelo. Aí chegou como professor pensando que
iria dar aulas “para os filhos dum fazendeiro” (GSV, p.100). Engano. Era ao próprio Zé
Bebelo que ele teria de ajudar a “botar na cabeça o que os livros dão e não” (GSV,
p.100). Assim ele desempenhou esta tarefa tal como Lacan (1997, p.212) nos faz notar:
“o professor se define como aquele que ensina sobre os ensinamentos: ele recorta nos
83
ensinamentos”. Deste contexto, vivendo junto com o bando de Zé Bebelo - que por esse
tempo lutava contra o bando de Joca Ramiro -, Riobaldo mais uma vez fugiu. Foi parar
na casa de um tal “Manoel Inácio, Malinácio dito” (GSV, p.106).
Nesta casa se deu um encontro que muito nos interessa: chegaram três
homens, três tropeiros. Depois destes, mais um. Ao avistar este último, Riobaldo
“agüentou aquele nos [...] olhos, e [recebeu] um estremecer, um susto desfechado. Mas
era um susto de coração alto, parecia a maior alegria” (GSV, p.107). De imediato
Riobaldo conheceu:
O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem,
mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro,
[...], o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se
chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o
lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino,
afiladinho. Arvoramento desses, a gente estatela e não entende [...]. Eu queria
ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou
com o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os
olhos nossos donos de nós dois. [...] O Menino me deu a mão [...]. E ele como
sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava
o Reinaldo (GSV, p.107-108).
Então era isto: o Menino do de-Janeiro se chamava Reinaldo. Este, agora, era um
“Menino-Moço” (GSV, p.109). Sua aparição teve o poder de reacender o amor e os dilemas
de Riobaldo: “o amor assim pode vir do demo? [...] Pode vir de um-que-não-existe?” (GSV:
p.108).
Assim, refletindo sobre as procedências do amor, Riobaldo teceu comparações
entre algumas mulheres que passaram por sua vida: uma, Otacília, aquela que depois veio a
ser sua esposa, tinha “estilo dela, era toda exata, cinturas de belezas” (GSV, p.109). Outra, a
mocinha Nhorinhá, uma prostituta por quem Riobaldo não supriu “outro amor, nenhum”
(GSV, p.109). Feitos estes breves esclarecimentos sobre a posição de Riobaldo frente a seus
objetos de amor, podemos prosseguir dizendo que, apesar dos dilemas, o fato é que Riobaldo
deixou seu bando de origem e seguiu o de Reinaldo. Na companhia deste, as surpresas: o
jagunço Reinaldo apreciava as belezas e para ele “o passarim mais bonito e engraçadinho”
era “o que se chama o manuelzinho-da-crôa” que anda “sempre em casal” (GSV p.111).
Ora, comentário como este, “botava surpresa” (GSV, p.111) e não era para
menos. Saído da boca de uma menina-moça estaria bem de acordo, porém, dito por um
“Menino-Moço”, composição substantiva inusual referida a alguém que, além do mais, era
jagunço, sinalizava um inaudito. Tanto é assim que Riobaldo não entende, porém, aprecia e
sente seu amor redobrar:
84
E a maciez da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser – e tudo num
homem-d’armas, brabo bem jagunço – eu não entendia! Dum outro, que eu
ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do
Reinaldo, não. O que houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas
palavras. Achando que eu podia gostar mais dele (GSV, p.111-112).
Aqui estamos diante de um paradoxo, pois se acontece de, por um lado, Reinaldo
culhar, quer dizer, “ter coragem, ser macho, ter culhões” (MARTINS, 2001, p.143), por
outro, não é bem certo afirmarmos que ele não empulhe, que não haja aí algo da ordem de
uma tapeação.
E realmente há: ao final do romance, ficamos sabendo que Reinaldo, também
chamado Diadorim, na verdade era uma mulher e tinha como nome de batismo “Maria
Deodorina da Fé Bettancourt Marins” (GSV, p.458).
Perplexidade: é isso que o Grande Sertão nos faz vivenciar! Como pode esta
Maria Deodorina ter sido, quando menina, um “Menino” e, quando moça, um “MeninoMoço”? O que poderia justificar tal trajetória? Sobre este Menino-Moço sabemos ainda que,
além de apreciar “passarim”, ele também apreciava um homem tanto que pode afirmar:
“Riobaldo, você é valente... Você é um homem pelo homem...” (GSV, p.112).
Em contrapartida, ser “um homem pelo homem”, quer dizer, ser algo que equivale
a si próprio, ser, portanto, capaz de manter certa identidade, é tudo o que Reinaldo não era.
Mas, apesar disto, ele almejava uma equiparação a ponto de dizer: “Riobaldo... Reinaldo...
[...] Dão par, os nomes de nós dois” (GSV, p.112). Assim, o emparelhamento que Reinaldo
consegue realizar é o da poesia, fonte do par possível das rimas, dos simulacros do “um”, do
amor.
Acreditamos que neste par formado por Reinaldo e Riobaldo, o que se mostra
muito bem ilustrado é o sucesso e, ao mesmo tempo, o fracasso das palavras em realizar o
objetivo do amor que é o de unir dois num só. Desta forma é que Riobaldo concorda que os
nomes dos dois “dão par”, apesar de, ao mesmo tempo, perceber o malogro precipitado pela
rima: “A de dar, palavras essas que se repartiram: para mim, pincho no que já estava, de
alegria; para ele, um vice-versa de tristeza. Que por que? Assim eu ainda não sabia” (GSV,
p.112).
Arriscamos dizer que uma das coisas que Riobaldo ainda não sabia é que o amor
vem realmente do “um-que-não-existe”, pois no “um” do amor, apesar da unidade que ele
promove no sentido de não comportar a falta, ainda assim esta se presentifica.
85
Já no que diz respeito a Reinaldo, arriscamos dizer que seu “vice-versa de
tristeza” decorria justamente de certo saber que ele detinha sobre o vice-versa do amor, no
qual, pelo avesso do sentimento de completude, o amante se depara com sua própria falta.
Se, em relação a Reinaldo, argumentamos que, de alguma maneira, ele detinha
este saber sobre o amor, é porque Reinaldo era, assim como Riobaldo, um Menino-Moço,
mas, para além deste, era também algo mais. Reinaldo era uma mulher.
Sendo assim, é evidente que o homem e a mulher mantêm, cada um, suas
peculiaridades em relação ao amor, porém, sem adentrarmos o que consistiria a diferença
entre o amor masculino e o amor feminino, uma outra questão se impõe: afinal, o que é ser
uma mulher?
Demonstrar certas sensibilidades, apresentar “a maciez da voz, o bem-querer sem
propósito, o caprichado ser” (GSV, p.111) como observou Riobaldo, poderiam ter sido
interpretadas como indicações precisas de que Reinaldo era mulher?
Por outro lado, se ele, Reinaldo - conforme os costumes dos que nascem com uma
anatomia feminina -, ao invés de vestir-se de jagunço, fosse como Otacília que em suas
“cinturas de belezas” usava saias, perfumes e adereços; ou como Nhorinha que não supria
amor, mas inspirava desejo; isto seria suficiente para dizer o que é ser uma mulher?
Até este ponto, temos seguido quase que, exclusivamente, as indicações do
Grande Sertão e é bem certo que, fundamentalmente, continuaremos a fazê-lo. Todavia, para
respondermos às interrogações aqui levantadas, doravante se mostra indispensável
recorrermos mais à miúde ao auxílio de nossos outros dois batedores: Freud e Lacan.
Aprendemos com Freud que as posições masculina e feminina podem ser
freqüentadas por ambos os sexos, isto independendo da anatomia. O fato de Maria Deodorina
se portar como um “homem-d’armas”, ocupar, portanto, uma posição masculina - assim
como o fazem hoje em dia tantas mulheres - não torna patente se ela é ou não uma mulher.
Tampouco as manifestações do feminino, seu vestuário, habilidades etc. são capazes de
evidenciar o que é uma mulher. Tanto é assim que em meio às guerras do Grande Sertão,
Reinaldo, um “brabo bem jagunço”, num momento de baixar a guarda, mostrou a Riobaldo o
conteúdo inesperado de sua “capanga”, palavra que nos remete tanto a uma “pequena bolsa”,
quanto à “guarda-costas, homem de confiança, jagunço”.
[...] rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscar
uma capanga bonita que tinha, com lavores e três botõezinhos de abotoar. O que
nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e
navalha (GSV, p.113).
86
Sem nos determos em maiores comentários quanto ao luxo e à futilidade de tais
objetos para um guerreiro, acrescentemos apenas que, não satisfeito em mostrar, Reinaldo
deu sua pequena bolsa a Riobaldo: “O Reinaldo mesmo, no mais tempo, comprou de alguém
uma outra navalha e pincel, me deu, naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha de
que me vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com muita estima” (GSV,
p.113).
Portanto Reinaldo dá a Riobaldo um objeto bastante sugestivo: presenteia-lhe com
uma peça que sinaliza o lugar freqüentado pelo feminino. Além de ser uma peça bordada é,
além do mais, “historienta”, comportando, por isso, muitas exigências e dificuldades.
Podemos dizer que uma destas dificuldades consiste no fato de que não importam as roupas,
os pequenos bens, as atividades, as maneiras, preferências e até mesmo os nomes – Menino,
Reinaldo, Diadorim, Maria Deodorina... -, para definirmos o que procura se mostrar, ou tenta
se oferecer, a Riobaldo.
Afirmamos isto porque nos surge como hipótese que Diadorim, apesar de viver
como jagunço, como um homem, procurou caminhar em direção à feminilidade. A propósito
do jagunço Diadorim, assim como a propósito de qualquer mulher, os índices de feminilidade
acima enumerados não se mostram suficientes para responder o que é uma mulher. Mas por
que isto acontece?
3. 7 Mulheres belas e instigantes
Recorramos em primeiro lugar a Freud. Apesar de ele ter chegado ao final de sua
obra com a curiosa interrogação sobre a mulher, sobre seu querer, concordamos com Assoun
(1993, p.20, grifos do autor) quando este nos faz notar que “[a] mulher é aquela que Freud
suspeita, lucidamente, de ter permanecido como uma verdade impermeável ao saber que ele
produziu a seu respeito”. Contudo, ao longo de todo o seu trabalho investigativo, Freud foi
extraordinariamente perspicaz para perceber a contraditória identidade existente entre a
psicanálise e mulher (ASSOUN, 1993).
Retornaremos a este assunto mais adiante, pois gostaríamos de chamar mais
atenção para esta “verdade impermeável ao saber”. Pensamos como Assoun (1993, p.23) que
a interrogação freudiana sobre o querer da mulher denota antes uma perplexidade que uma
ignorância e, sobre àquela, a perplexidade de Freud, é possível destacar seus efeitos:
87
Através de sua pergunta, Freud lança uma pavorosa suspeita de escárnio sobre os que
sabem bem demais o que quer a Mulher, ou por entronizá-la como gerenciadora da
Natureza ou da Família, ou até por erigi-la como ideal de gozo. Não se deve
confundir o Que quer a mulher? com alguma versão atualizada da ideologia do
eterno feminino, eco do famoso “nunca entenderei nada sobre as mulheres”,
linguagem do poder decaído. Freud não se ajoelha diante do Eterno feminino, nem
tampouco sustenta a linguagem do desprezo: ele avalia a feminilidade a partir do
saber analítico e confessa que, no cômputo geral, não consegue descobrir-lhe as
cartas – embora, ocasionalmente, decifre muito bem o seu jogo.
Então, a partir de que Freud pode muitas vezes decifrar o jogo do inconsciente,
bem como o da mulher? Essas possibilidades tiveram seu ponto de partida na escuta que ele
dedicou à fala da histérica. Como mencionamos em nosso primeiro capítulo, deste as
primeiras publicações psicanalíticas - até mesmo desde as pré-psicanalíticas e as cartas
endereçadas a Fliess -, já é possível identificar o interesse de Freud pela questão da
feminilidade.
Nos seus Estudos sobre a histeria (1893-1894), trabalho realizado em conjunto
com Josef Breuer, Freud inicia a descrição do mecanismo psíquico das manifestações
histéricas. Estes estudos foram viabilizados pela análise de relatos feitos por mulheres. A
respeito disto, vale ressaltar que o saber depreendido por Freud a partir destes relatos detém o
caráter peculiar de nos remeter a um estilo, o romanceado: “o que os Estudos sobre a histeria
transformam em saber é precisamente a história que é a histeria” (ASSOUN, 1993, p.52,
grifo do autor).
Desde estas histórias, como o próprio Freud (1980[1905], v.VII, p.5) chegou a
registrar, “muitos anos se passaram” até que, em 1905, ele propôs uma maior fundamentação
para os conceitos emitidos nos Estudos. Os novos alicerces lançados sobre a construção
clínica e teórica em torno da histeria foram obtidos através da apresentação de um caso que
recebeu o título de Fragmento da análise de um caso de histeria, conhecido também,
simplesmente, como “Caso Dora”. Mencionamos anteriormente a importância deste caso
para nossa própria investigação. Devemos, agora, especificá-la um pouco melhor.
Na abertura do relato sobre o caso, um comentário de Freud (1908[1905], v. VII,
p.14) chama atenção por nos dar a ver a perseverança de seu interesse sobre o que lhe foi
apresentado pela histeria:
Não mais preciso desculpar-me pela extensão [deste relato de caso], já que se está de
pleno acordo de que as severas exigências que a histeria faz ao médico e ao
investigador só podem ser satisfeitas pelo espírito de pesquisa mais compreensivo e
não por uma atitude de superioridade e desprezo. Pois “Nem só a Arte e a Ciência
servem; No trabalho deve ser mostrada paciência” [Goethe, Fausto, Parte I (Cena
6)].
88
Assim - como resultado desta paciência -, apresentamos a história de Dora, que na
verdade chamava-se Ida Bauer:
Dora era uma jovem inteligente e espirituosa, filha de um grande industrial.
Admirava seu pai e expressava um amor preferencial por ele enquanto mantinha uma relação
bastante conflituosa com sua mãe. Aos dezoito anos, Dora iniciou seu tratamento com Freud
por apresentar, dentre outros, sintomas de depressão, irritabilidade e idéias de suicídio.
Apesar de ter manifestado desde a infância alguns outros sintomas, o pai de Dora decidira
levá-la a Freud por considerar que suas manifestações psíquicas se agravavam. O motivo
alegado pelo pai de Dora para este agravamento relacionava-se ao fato da jovem ter revelado
a sua mãe que havia sido alvo do assédio de um amigo de seu pai, o Sr. K.
Acontece que se Dora fez tal revelação a sua mãe foi na expectativa de que ela
participasse o ocorrido a seu marido - pai de Dora -, e este tomasse as devidas providências.
Uma destas providências consistia, justamente, no corte de relações com o Sr. K e sua
esposa, a Sra. K. Ao contrário do que Dora esperava, quando seu pai foi inteirado dos fatos
mostrou-se incrédulo, considerou que tudo não passava de uma fantasia da moça e a
conduziu ao tratamento com Freud.
Ora, com os desdobramentos do caso, ficamos sabendo que o pai de Dora
mantinha um relacionamento extraconjugal com a Sra. K e em virtude disto fez com que sua
filha fosse considerada como uma simuladora.
Sobre a condução deste caso, ressaltamos, com Roudinesco (1998, p.51), que o
tratamento realizado por Freud foi capaz de “restituir a Dora uma verdade que sua família lhe
roubara”. Contudo, precisamos ainda considerá-lo no que este comportou de dificuldades
para Freud.
Uma das dificuldades refere-se, exatamente, ao relacionamento que a própria
Dora mantinha com a Sra. K, a amante de seu pai. Dora não apenas sabia, mas, até certo
ponto, acobertou a aventura amorosa dos dois. Além disto, Dora costumava elogiar a Sra. K e
sustentou, também até certo ponto, um vínculo bastante afetuoso com esta e com seu marido.
O ponto em que tudo isso se mostrou insustentável foi exatamente aquele em que o Sr. K
declarou sua paixão a Dora argumentando que não sentia qualquer interesse por sua esposa.
Para Freud, estes eventos podiam ser entendidos a partir da paixão de Dora por
seu pai (FREUD,1980[1905]) que, numa formação reativa, teria se transmutado numa paixão
pelo Sr. K, já que ela não o rechaçou até o momento em que ele se declarou explicitamente.
Freud ainda argumentou junto à Dora que sua excessiva afeição pela Sra. K detinha um
89
caráter homossexual. Apesar da precisão de grande parte dessas interpretações, conseqüentes
de um estudo minucioso, a análise de Dora foi interrompida... por ela!
A propósito do caráter homossexual da relação de Dora com a Sra. K, Freud
(1980[1905], v. VII, p.58), chegou a comentar: “Neste ponto não abordarei mais este
importante assunto, que é especialmente indispensável ao entendimento da histeria nos
homens, porque a análise de Dora terminou antes que pudesse esclarecer este lado de sua
vida mental”.
Notemos que esta análise não terminou em conseqüência da questão sobre a
homossexualidade que, por sinal, foi apenas aventada. Notemos também que se Freud
lamentou seu fim precipitado foi, pelo menos neste momento, por não ter podido avançar no
entendimento da histeria “nos homens”. Parece-nos que, de certa forma, Freud não se
apercebeu do que lhe dizia a histeria em “uma mulher”. Além disto, precisamos considerar
com Assoun (1993, p.74) que:
Convém prestar atenção ao fato de que a subestimação desse fato – o apego à Sra. K
-, por mais decisivo que fosse, não deve mascarar o que constituiu o problema maior
para Freud: foi menos o ter-se esquecido de algo que houvesse por saber do que o
não “ter sabido ser hábil”. Ele descobriu não estar longe do sedutor fracassado, o
próprio Sr. K., cujo destino evocou logo depois. Mas, finalmente, Freud aceitou
sofrer a vingança merecida pelo homem que desperta os demônios e não se esquiva
deles: grandeza e limitações da tarefa analítica.
Contudo, mesmo não tendo sido hábil, Freud não se esquivou do que lhe dizia
esta mulher histérica e, mesmo que de passagem, pôde ainda despertar o demônio 32 da
homossexualidade. Precisamos, então, destacar que, já na época deste tratamento, a
homossexualidade era entendida por Freud (1980[1905], v.VII, p.57-58) como uma
manifestação latente tanto em “casos normais” como em heterossexuais “neuróticos”. Por
isso ressaltamos com Roudinesco e Plon (1998, p.352) que o que interessava a Freud “em
termos imediatos não era valorizar, inferiorizar ou julgar a homossexualidade, porém
compreender suas causas, sua gênese e sua estrutura, do ponto de vista de sua nova doutrina
do inconsciente”.
Podemos dizer, ainda, que Freud não foi hábil para perceber que Dora fora
surpreendida pela falta de desejo do Sr. K pela Sra. K. Isto a colocou de frente com a outra
questão, a questão da impotência sexual de seu próprio pai. Então, pode-se dizer que, a todo
32
Segundo Roudinesco e Plon (1998, p.350) a tradição judaico-cristã teve sua cota de participação “na
longa história das perseguições físicas e morais infligidas durante séculos aos que eram acusados de
transgredir as leis da família e se entregar a práticas sexuais anormais, demoníacas, desviantes, bárbaras e
altamente reprovadas pela Bíblia, por Deus, pelos profetas, pela Igreja e pela justiça dos homens”.
90
custo, ela tentou sustentar o desejo destes homens, através de uma outra mulher, a Sra. K.
Assim, e principalmente, como é característica da histeria, Dora se empenhara em sustentar o
desejo do pai (LACAN: 1985).
Mas, pela continuidade do paciente trabalho de Freud podemos observar que, se
neste “Caso Dora”, ele não pode perceber o caráter homossexual da relação dela com a Sra
K, a questão acabou por ressurgir quinze anos depois no texto Sobre a psicogênese de um
caso de homossexualismo feminino (1920). Este texto se reveste de importância por
evidenciar o aprofundamento do estudo de Freud sobre a sexualidade nas mulheres.
Passemos então à história da jovem homossexual. Freud (1980[1920], v.VIII,
p.185- 186) nos conta que uma “bela e inteligente jovem de dezoito anos” tornou-se motivo
de grandes preocupações para seus pais por ter demonstrado vivo interesse por “certa ‘dama
da sociedade’ cerca de dez anos mais velha que ela própria”. Esta dama, uma cocotte, de
comportamento promíscuo tanto com homens quanto com mulheres, não incentivava, mas
também não rechaçava a amorosa dedicação da jovem. Um dia, o pai da jovem as encontrou
passeando pelas ruas e lançou-lhes “um olhar irado”. Neste instante a moça saiu correndo e
se atirou de uma amurada da linha ferroviária. Ela sobreviveu à tentativa de suicídio e ficou
apenas com poucas seqüelas. Depois deste evento, os pais se mostraram mais
condescendentes com a paixão da filha, mas procuraram Freud na expectativa de que este a
curasse de um comportamento assim tão vicioso.
Sobre os pais desta jovem, Freud observou que o pai, apesar de nutrir ternura por
seus filhos, matinha-se numa rígida distância em relação a eles e repugnava-lhe as atitudes da
filha. A mãe era uma mulher jovem e atraente. Freud percebeu que ela não dava o mesmo
relevo que o pai ao comportamento da filha e por vezes prestou-se ao papel de confidente da
filha. Além disto, tratava os filhos de maneira desigual, sendo áspera com a filha e indulgente
com os filhos.
Até os dezesseis anos, a jovem não havia manifestado sua preferência por pessoas
do mesmo sexo. Porém nesta idade foi surpreendida pelo nascimento de mais um irmão. Em
decorrência disto, Freud (1980[1920], v. VIII, p.196) relata que a jovem mostrou-se então
“furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens”. Por
considerar que a dama fora tomada pela jovem como uma substituta de sua mãe, Freud
(1980[1920], v. VIII, p.197) argumentou ainda que a moça “se transformou em homem e
tomou a mãe, em lugar do pai, como objeto de seu amor”. Assim, ao preferir às mulheres, ela
criava a possibilidade de agradar à sua mãe uma vez que abria mão dos homens “em
benefício” dela. Colocava-se desta forma, a serviço da mãe tal qual se disponha estar a
91
serviço da dama (ASSOUN, 1993). Portanto, através de seus procedimentos, a jovem
pretendia aplacar a antipatia materna e vingar-se do pai.
Na escolha de objeto homossexual realizada pela jovem, Freud identificou ainda
que ela detinha as características das escolhas de objeto realizadas pelos homens, quais
sejam: que o objeto fosse um derivado da mãe para poder ser amado, quer dizer, que fosse
uma mulher passível de ser identificada à mãe, mas que, ao mesmo tempo, se diferenciasse
desta ao se apresentar como um objeto de má reputação, para que pudesse ser desejado.
Freud (1980[1920], v. VIII, p.202) entendeu que, apesar de a moça ter consentido
em realizar o tratamento demandado por seus pais, esta persistia numa resistência que ele
atribuiu à “atitude de desafio e vingança contra o pai”. Ele ainda incluiu nos termos da
resistência, os sonhos relatados pela jovem - cujos conteúdos expressavam uma escolha
heterossexual de objeto - e os considerou como sonhos enganadores que visavam um duplo
objetivo: enganar ao pai e enganar a ele próprio, Freud. Apesar disto, Freud (1980[1920], v.
VIII, p.204) soube ressaltar estes sonhos “como uma revivescência [...] do original e
apaixonado amor da jovem pelo pai”.
Contudo, este tratamento também conheceu um fim precipitado. Desta vez, um
fim precipitado... por ele! Freud encaminhou a paciente para uma médica. Ora, o que
determinou este procedimento foi a atitude de desafio ao pai sustentada pela jovem. Segundo
Freud, a moça sentia-se traída pelo pai que dera um filho à mãe e não a ela. Este pai merecia,
portanto, também ser traído. Considerando-se como um sucedâneo do pai da jovem, Freud
(1980[1920], v. VIII, p.204) interpretou que a traição estendia-se até ele por meio dos sonhos
enganadores e chegou mesmo a afirmar: “ela pretendia enganar-me, tal como habitualmente
enganava o pai”.
Apesar das dificuldades na condução desta análise, ressaltamos com Roudinesco e
Plon (1998, p.352) que o estudo deste caso detém o mérito de nos fornecer uma reflexão
sobre a homossexualidade rejeitando “todas as teses sexológicas sobre o ‘estado
intermediário’, o ‘terceiro sexo’ ou a ‘alma feminina num corpo de homem’”, como podemos
constatar ao ler as considerações finais de Freud sobre este caso.
Além disto, ressaltamos também, agora com Assoun (1993, p.120), que através
deste texto, “Freud forneceu os elementos para a análise da perversão feminina”, forneceu os
instrumentos de estudo da atitude típica da perversão: desafiar ao pai.
Não podemos, agora, deixar passar a oportunidade de apreciar a amplitude e a
antecedência da investigação freudiana em torno da mulher voltando-nos para um de seus
92
textos que compõem os primórdios da psicanálise. Referimo-nos ao texto intitulado Novos
comentários sobre as neuropsicoses de defesa, de 1896.
Neste texto, Freud (1980[1896], v. III, p.202) aborda um caso de paranóia crônica
em uma jovem de 32 anos, casada e mãe de uma criança de dois anos. Após o nascimento de
seu filho, esta mulher passou a apresentar sintomas iniciais que se agravaram a ponto dela
acreditar “que estava sendo observada, [...] que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam
tudo que se passava em sua casa. Uma tarde, repentinamente, ocorreu-lhe que estava sendo
observada enquanto se despia, à noite”.
Freud (1980[1896], v.III, p.202) recebeu esta paciente durante o inverno de 1985.
Ela mesma forneceu-lhe as informações que transcreveremos em alguns trechos a seguir:
Já na primavera daquele ano, um dia em que se encontrava sozinha com sua criada,
tivera repentinamente uma sensação em seu baixo abdome, e pensara consigo mesma
que a garota tivera, naquele momento, uma idéia imprópria. Essa sensação tornou-se
mais freqüente durante o verão, [...]. Ela sentia seus genitais como ‘se sente uma mão
pesada’. Começou a ver coisas que a horrorizavam – alucinações de mulheres nuas,
especialmente da parte inferior do abdome feminino com os pelos púbicos e,
ocasionalmente, de genitais masculinos também. [...] Ao mesmo tempo que tinha
essas alucinações visuais [...], começou a ser importunada por vozes que não
reconhecia nem podia explicar. [...] ouvia às vezes ameaças e censuras. Todos esses
sintomas pioravam quando ela estava acompanhada ou na rua. Por essa razão,
recusava-se a sair; dizia que comer a nauseava; e seu estado de saúde deteriorou-se
rapidamente.
Ora, nosso interesse em reproduzir trechos deste relato decorre da importância
ressaltada por Assoun (1993, p.122) de que através do estudo realizado por Freud, já nos
primeiros tempos da psicanálise, ele foi capaz de nos fornecer as “indicações sobre a ligação
do delírio paranóico feminino com a nudez feminina”.
Assoun (1993) ressalta ainda o tom exclamativo com que Freud expressou o que
assinalaria para ele “o essencial da mulher” (p.122). O autor refere-se especificamente ao
seguinte trecho do relato de Freud (1980[1896], v. III, p.202) sobre este caso:
As imagens tornaram-se muito atormentadoras, pois ocorriam regularmente quando
ela estava em companhia feminina e a faziam pensar que estava vendo a mulher em
um indecente estado de nudez, mas que, simultaneamente, a mulher estava tendo
dela o mesmo quadro!
A perplexidade de Freud se evidencia diante deste delírio onde a paciente se
identifica a muitos outros corpos de mulheres nuas e consegue, por este meio, significar, ao
mesmo tempo, a vergonha e a exibição de um corpo renegado (ASSOUN, 1993).
93
Num outro caso de psicose - relatado por Freud (1980) em 1915 no texto
intitulado Comunicação de um caso de paranóia contrário à teoria psicanalítica da doença vemo-lo fazer mais alguns avanços nas elaborações sobre a psicose em mulheres.
A história desta mulher - também “[m]uito atraente e bela, [que] contava trinta
anos de idade e parecia muito mais jovem do que na verdade era, possuindo um tipo
marcadamente feminino” (FREUD, 1980[1915], v. XIV, p.297) - chegou ao conhecimento de
Freud por intermédio de um advogado contratado por ela. Este advogado procurou a Freud
por suspeitar que a demanda de sua cliente pudesse ser motivada por algum distúrbio
psíquico. Ela o constituíra como advogado por sentir-se perseguida por um colega de
trabalho que teria abusado de sua confiança ao conseguir que terceiros fotografassem aos
dois enquanto faziam amor. Detentor destas provas, o colega a denegriria moralmente e a
forçaria a demitir-se do emprego.
A mulher foi conduzida a Freud para avaliação e durante esta ficamos sabendo
que, no dia seguinte a um dos encontros amorosos dela com seu colega de trabalho, este
conversou com a diretora de ambos - uma senhora que, segundo a paciente, lembrava-lhe sua
própria mãe. Ela interpretou, então, que o objetivo do rapaz nesta conversa seria o de falar à
diretora sobre seus encontros amorosos com a paciente.
Não nos deteremos sobre os desdobramentos deste caso. Porém, precisamos fazer
notar que foi através deste estudo que Freud teve acesso à importância da relação entre mãe e
filha e foi perspicaz o suficiente para perceber o papel da “Mãe persecutória [...] na gênese da
paranóia feminina” (ASSOUN, 1993, p.123-124).
Para finalizar esta nossa tentativa de familiarização com os caminhos indicados
por Freud através de relatos de casos - que tomamos como rastreamentos sobre as veredas
para a feminilidade -, comentaremos apenas que desde textos pré-psicanalíticos tais como o
Rascunho G, de 7 de janeiro de 1895; passando pelo estudo dos casos de Emmy von N. e de
Anna O., realizados durante o período de 1893 a 1895; e, posteriormente, no texto de 1917
intitulado Luto e melancolia, Freud teve oportunidade de esclarecer o que quer uma mulher,
pois se deparou com mulheres que sabiam o que queriam: as anoréxicas (ASSOUN, 1993).
Estas, sabendo sobre seu querer, qual seja, justamente, o de se alimentar de nada,
mantinham o próprio corpo num subjugo tal que impedia a expressão de seu desejo pelo
outro, numa manobra que, em muito, se aproxima da transgressão (ASSOUN, 1993).
94
Como observa Fontenele (2005)33, a anorexia, a bulimia, bem como seu avesso, a
obesidade mórbida, ostentam um corpo transgressor no sentido de renegar a diferença sexual,
pois nestes corpos se promove um apagamento das formas que remeteriam a uma
identificação com o masculino ou com o feminino.
Com o desbastamento iniciado por Freud, conseguimos avançar pelo cerrado,
rumo às veredas. Estas, por se mostrarem mais férteis, nos permitem prosseguir no sentido de
entender que a feminilidade deixa suas pegadas de maneira peculiar em cada um dos
caminhos traçados pelas estruturas: neurose, psicose e perversão.
Desta forma, os vestígios da feminilidade nos trajetos das três estruturas nos dão a
ver como ela consegue, aí, imprimir seu estilo (ASSOUN, 1993).
Se - mesmo tendo descoberto os caminhos da neurose, da psicose e da perversão,
e ainda perseguido com afinco o entendimento da feminilidade - Freud esbarrou numa
interrogação sobre a mulher, isto lhe ocorreu pela falta de alguns recursos. Mas, como
sabemos, estes recursos encontram-se com nosso outro batedor, Lacan.
3. 8 Os batedores investigam os vestígios de mulher
Lembremos que, enquanto percorríamos as sendas da função paterna, fomos,
gradativamente, nos aproximando de um ponto onde esta vereda se confunde com as veredas
do desejo da filha em relação ao pai.
Confundem-se, com já dissemos, pelo fato observado por Lacan (1985, p.40) de
que “Freud, nesta ocasião, deixou de formular corretamente o que era o objeto tanto do
desejo da histérica quanto do desejo da homossexual”. O que teria, então, impedido Freud de
formular mais amplamente a questão do desejo destas mulheres?
Precisamos levar em conta que, apesar de ter escrito a maior parte do “Caso
Dora” no final do ano de 1900 e início de 1901, sua escrita e sua publicação, ocorrida em
1905, se deram entre a redação de dois outros grandes textos de Freud: A interpretação dos
sonhos (1900) e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Estes textos são
testemunhas expressivas dos progressos de Freud tanto na elucidação do desejo quanto da
sexualidade humana.
Sobre o primeiro, podemos dizer, grosso modo, que nele, Freud deslindou
magistralmente o mecanismo dos sonhos, o qual consiste na realização de um desejo
33
Comunicação oral proferida no dia 31 de outubro de 2005, durante o curso de mestrado em psicologia
da UFC.
95
inconsciente. Quanto aos Três ensaios, podemos tomá-los como marco da superação
realizada por Freud das concepções sexológicas da sexualidade que, até então,
fundamentavam-se numa visão descritiva e preconceituosa das “aberrações” ou
“degenerações” da atividade sexual.
Neste texto, pela primeira vez, Freud empregou o termo “pulsão” com o intuito de
definir a carga de energia que rege o funcionamento psíquico e que se diferencia do instinto
por estar para além da mera satisfação das necessidades. A partir desta diferenciação,
mostrou-se possível entender que a sexualidade humana não se encontra submetida a leis
biológicas que determinariam a atração de um sexo pelo seu oposto por ter, como fim
exclusivo, a reprodução da espécie.
Ao contrário. O que muito freqüentemente se observa na sexualidade humana são
formas, as mais variadas, de busca de satisfação, não das necessidades, mas do desejo. Com
estas observações, Freud descobriu a importância das chamadas pulsões parciais - quais
sejam as pulsões oral, anal e fálica -, na escolha do objeto do desejo.
Além disto, Freud também descobriu que, em relação à escolha amorosa, esta se
dá a partir do primeiro objeto de amor de toda criança - seja ela menino ou menina - que é,
especificamente, a mãe.
Ora, se as relações entre os humanos não seguem as regras da natureza que se
fundamentam na satisfação dos instintos; se os humanos são regidos pela satisfação das
pulsões; se, além disto, observamos que apesar da diferenças, homens e mulheres, têm o
mesmo objeto primordial de amor que é a mãe; o que poderia garantir que grande parte das
relações entre os humanos se empenhe numa prática heterossexual e se disponha a realizar os
fins reprodutivos? (SOLLER, 2005).
Perguntamos de uma forma mais direta: se o primeiro objeto de amor de meninos
e meninas é a mãe, e isto norteará as futuras escolhas amorosas de ambos, o que poderia
levar a menina a se voltar para o homem e tomá-lo como objeto de amor?
Observamos, então, que o mito do complexo de Édipo foi forjado por Freud para
elucidar a estas questões. Este mito prestou-se para elucidar a escolha do objeto sexual para o
homem, mas, em contrapartida, a questão se mostrou bem mais complicada de se resolver em
relação à escolha de objeto da mulher.
A pertinácia de Freud para responder esta questão pode ser constatada na leitura
de importantes trabalhos: A organização genital infantil (1923), A dissolução do complexo de
Édipo (1924), Algumas conseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica (1925),
Sexualidade feminina (1931) e a conferência XXXIII, intitulada “Feminilidade” (1932).
96
Em A organização genital infantil (1923), vemo-lo, por exemplo, esclarecer que
esta organização se dá a partir da consideração de um único órgão sexual, qual seja, o
masculino. Porém, Freud (1980[1923], v.XIX, p.180) deixou claro neste texto que a primazia
que se faz presente não é a do órgão, “mas uma primazia do falo”. Desta forma, inicialmente,
a criança considera que todos os seres têm o falo. Por conseguinte, a mãe é fálica. Diz Freud
(1980[1923], v. XIX, p.183):
Mulheres a quem ela [a criança] respeita, como sua mãe, retêm o pênis por longo
tempo. Para ela ser mulher ainda não é sinônimo de não ter o pênis. Mais tarde,
quando a criança retoma os problemas da origem e nascimento dos bebês, e adivinha
que apenas as mulheres podem dar-lhes nascimento, somente então também a mãe
perde seu pênis. E, justamente, são construídas teorias bastante complicadas para
explicar a troca do pênis por um bebê.
As teorias tecidas pelas crianças para explicar a origem e a sexualidade humana,
foram abordadas por Freud em 1908 no texto Sobre as teorias sexuais das crianças.
No ano de 1924, Freud publicou um outro trabalho onde tratou especificamente
do processo que conduziria a criança a resolver sua relação com cada um dos pais. Neste
texto, que recebeu o título de A dissolução do complexo de Édipo, Freud (1980[1924], v
XIX, p.217) o inicia lançando a hipótese de que o que determinaria a saída da criança da
relação edipiana com os pais poderia ser atribuído a alguma experiência de decepção em
relação a estes: “As análises parecem demonstrar que é a experiência de desapontamentos
penosos. [...] O menino encara a mãe como sua propriedade, mas um dia descobre que ela
transferiu seu amor e sua solicitude para um recém-chegado”.
Já ao considerar a decepção que levaria a menina a sair da relação edipiana, a
hipótese de Freud (1980[1924], v. XIX, p.217) nos parece bastante interessante. Citamo-la:
A menina gosta de considerar-se como aquilo que seu pai ama acima de tudo o mais,
porém chega a ocasião em que tem de sofrer da parte dele uma dura punição e é
atirada para fora de seu paraíso ingênuo.
Esclarecemos que, para Freud, o que determina a dissolução do complexo de
Édipo é um outro complexo, o de castração. É pela articulação entre esses dois complexos
que se processa a dissolução da relação edipiana: em decorrência da ameaça de castração, o
menino sai de sua relação edípica com a mãe e se volta para o pai, de quem recebe, através
do processo de identificação, as insígnias da virilidade. A partir disto o menino amará à mãe,
porém saberá que lhe é proibido desejá-la.
97
Com a menina o percurso é o mesmo, mas até certo ponto: ela sai da relação
amorosa com a mãe, volta-se para o pai, o constitui como objeto substituto do amor dedicado
à mãe e se apega a ele de maneira idealizada. Contudo, ao contrário do que acontece com o
menino, ao voltar-se para o pai, a menina não encontrará junto a ele as insígnias da
feminilidade, pois o pai não é uma mulher.
Ressaltamos, com Assoun (1993, prefácio, p.VIII), toda a relevância desta
travessia realizada pela menina e que é exatamente o objeto de nossa investigação:
Será esse pai, então, substitutiva e como que “tacitamente” “escolhido”, como
substituto da mãe e refúgio de uma paixão vacante? Visto em sua aridez cínica de
processo, parece realmente ser assim. Mas isso não diz tudo sobre a qualidade, o
valor ou a autenticidade do amor da filha pelo pai. O paradoxo da tese freudiana é
que ela revela, no avesso da paixão materna, essa força pungente da demanda de
amor dirigida ao pai, na trilha, justamente, desse amor despedaçado – e despedaçado
por iniciativa própria. Ele herda a força do desespero e “aposta” numa esperança, por
sua vez, encarnada pelo pai. Neste ponto, é com a vasta questão da relação entre a
filha e o pai que nos deparamos, uma das mais importantes e menos exploradas,
talvez, da clínica psicanalítica.
No ano seguinte, 1925, Freud tratou de Algumas conseqüências psíquicas da
diferença sexual anatômica. Neste trabalho, ele realizou avanços inestimáveis. Apontou
divergências entre a constituição da masculinidade e a da feminilidade; indicou as questões
insolúveis até então e ressaltou a característica intrínseca do complexo de castração, qual seja
a de estimular a feminilidade em ambos os sexos. Freud (1980[1925], v. XIX, p.319-319)
esclareceu tal paradoxo da seguinte forma:
Essa contradição se esclarece se refletirmos que o complexo de castração sempre
opera no sentido implícito em seu conteúdo: ele inibe e limita a masculinidade e
incentiva a feminilidade. A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos
dos sexos masculino e feminino [...], é uma conseqüência inteligível da distinção
anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida; corresponde
à diferença entre uma castração que foi executada e outra que simplesmente foi
ameaçada.
Dito de outra forma: em referência ao falo, podemos dizer que o menino o tem
enquanto a menina, não. Ela não tem o falo. Ela é castrada. Castrada, mas não no que diz
respeito a seu órgão genital. Este é completo: tem clitóris, vagina, etc., pois como foi
elucidado, o pênis é apenas um dos avatares, uma espécie de materialização, do falo. Em
contrapartida - se levarmos em conta a possibilidade do pênis, de certa forma, materializar o
falo – podemos dizer que o menino tem o falo e vivencia o medo de vir a perdê-lo, o que o
conduziria então à feminilidade.
Lembramos com Tomaz (2001, p.65) que,
98
é apenas no século XVIII que o discurso da diferença sexual se constitui, forjado a
partir de um conjunto de saberes – médico, filosófico e moral – que intentam
delinear uma diferença de “essência” entre o masculino e o feminino. O próprio
Freud, que constata tardiamente que ninguém nasce mulher – esta condição é
construída -, no início de suas pesquisas acredita no dogma da posição masculina.
Contudo, os desdobramentos das elaborações de Freud nos permitem perceber
que, apesar de, inicialmente, ele ter tentado fazer uma equivalência entre o desenvolvimento
sexual de meninos e meninas, ao longo de suas elaborações, Freud soube reconhecer seu
equívoco. Isto lhe permitiu avançar e reformular a questão sobre a mulher, porém, como
sabemos, esta questão permaneceu em aberto. Ao constatar a incompletude de suas
elaborações sobre a sexualidade feminina, Freud teve a sutileza de nos sugerir que
aguardássemos os avanços da ciência (FREUD, 1980[1932]).
Os avanços nos chegaram através de Lacan, que lançou mão de vários recursos.
Dentre eles, a lógica, mais especificamente, a lógica dos conjuntos. Foi com o auxílio desta
lógica que Lacan pôde avançar no entendimento da relação entre homens e mulheres, uma
relação marcada originalmente pela diferença.
É fácil percebermos que, enquanto componentes do conjunto da humanidade, não
há diferença entre homem e mulher, todos são humanos (CORRÊA, 2004)34. Porém,
Sabemos que, já no ato do nascimento, somos confrontados com a alteridade: “Menino ou
menina?”, eis a questão imposta desde a origem ao filhote humano.
A resposta a esta questão pode ser simples e objetivamente formulada a partir dos
dados anatômicos: aquele que portar o pênis será considerado menino, enquanto aquele que
não portar o pênis será considerado menina.
Somos, por conseguinte, desde o nascimento, também confrontados com o campo
da diferença. A começar neste, temos a indicação de um elemento que, exatamente por diferir
quanto a sua posse, se mostra comum a dois elementos postos em relação. Logo, o menino é
diferente da menina, e a alteridade aí implicada se dá a ver pela indicação da posse do pênis
como elemento diferencial entre eles, pois o menino é aquele que porta o pênis, enquanto a
menina, não.
Ora, acontece que, em relação à sexualidade humana, a diferença indicada a partir
do dado anatômico – e, hoje em dia, até mesmo a partir das indicações biológicas mais
refinadas tais como as decodificações genéticas - não consegue dar conta de toda a
complexidade envolvida na diferença sexual. Sabemos que “menino” é diferente de
34
Comunicação oral proferida durante seminário realizado em Fortaleza no mês de maio de 2004.
99
“menina”. Mas o que é ser menina? O fato de não portar o pênis diz tudo sobre esta em
relação à constituição de uma feminilidade? Certamente que não. No que diz respeito à
sexualidade, podemos então argumentar que a diferença determina uma alteridade sem
esgotá-la, no entanto.
Já sabemos, ao observar que a diferença meramente anatômica entre homem e
mulher não responde à questão de saber o que é ser mulher, que Freud lançou mão de uma
noção central em sua teoria: a noção de falo. Para ele, o falo é entendido enquanto símbolo
do sexo masculino, e é também o que caracteriza intrinsecamente a libido. Isto significa que
é em relação ao falo que podemos estabelecer a diferença entre os sexos. Então, contamos
com apenas um símbolo para estabelecermos a diferença entre dois sexos.
Abrindo um pequeno parêntese, gostaríamos de comentar o impacto causado
pelas averiguações freudianas. Ao formular a diferença entre os sexos a partir da posse do
falo – ter ou não ter o falo –, Freud foi criticado por ter forjado uma teoria falocentrista em
plena efervescência de um feminismo aparentemente esquecido de que - muito antes dessa
concepção de Freud - nossos registros civis já se baseavam na lógica falocentrista (SOLLER,
2005). Além disto, como ressalta Soler (2005, p.26), os protestos feministas dirigidos à
psicanálise decorrem do entendimento de que sua definição da feminilidade estabelece uma
hierarquização entre os sexos. Citamos a autora:
Sua definição freudiana é clara e simples. [...] a mulher é aquela cuja falta fálica a
incita a se voltar para o amor de um homem. Primeiro é o pai, ele próprio herdeiro
de uma transferência de amor primordialmente dirigido à mãe, e depois o cônjuge.
Em resumo: ao se descobrir privada do pênis, a menina torna-se mulher quando
espera o falo – ou seja, o pênis simbolizado – daquele que o tem.
Esse entendimento freudiano da feminilidade foi posteriormente retomado por
Lacan, que num primeiro momento ratificou a tese de Freud e, num segundo momento,
inovou-a. Detendo-nos nesta primeira fase das elaborações de Lacan, vemo-lo esclarecer a
tese freudiana sobre o falo indicando que, nesta, a noção de falo não se restringe ao pênis.
Segundo Lacan (1998, 699), “O falo é o significante privilegiado [...] onde a parte do logos
se conjuga com o advento do desejo”.
O que podemos compreender desta afirmação? Em primeiro lugar que, para
Lacan, a noção de falo remete a algo que pode ser tanto consciente, o logos, quanto
inconsciente, o desejo. Além disto, a relação do sujeito com seu desejo inconsciente é
representada e determinada por este elemento do discurso denominado por Lacan como
“significante”. Portanto, o falo, enquanto significante, ocupa um lugar no discurso que faz
100
referência a um desejo. Com esta concepção do significante, Lacan reitera a relação que
Freud já havia exaustivamente ressaltado entre o inconsciente e a linguagem.
Se é a partir do falo que se estabelece a diferença sexual e se o falo é um elemento
do discurso, a resposta à questão “menino ou menina?” transcende à mera constatação
biológica e remete à diferença sexual ao que é da ordem da linguagem. Somos ditos por essa
ordem que nos é anterior e exterior. Por conseguinte, isto nos conduz a um terceiro, a uma
alteridade, a partir da qual somos denominados meninos ou meninas, independentemente da
anatomia. Lacan denominou a alteridade da linguagem de “Outro”.
Assim, a questão da diferença sexual é determinada pela linguagem, pelo Outro,
quer dizer, pelo simbólico e a propósito da relação deste com o inconsciente, acrescentamos
com Coutinho Jorge (2000, p.99) que:
O simbólico é essencialmente bífido, bipartido e sua figuração mais lídima é a
cabeça do deus romano bifrontino Janus, possuidora de duas faces opostas, cada
uma delas representando um lado de um par de opostos. O mês de janeiro,
chamado de Januarius mensis (mês de Janus) pelos romanos, deve seu nome a
essa divindade dos pórticos: [...] Janus é, sem dúvida, o melhor representante do
sujeito do inconsciente que, embora representado entre os significantes, é no
fundo, avesso a toda e qualquer possibilidade de representação, e, nesse sentido, se
identifica como o objeto “negativo” causa do desejo: o sujeito é esse entre.
Por esta articulação do sujeito do inconsciente com o simbólico - que, por sinal,
fora indicada amplamente por Freud ao demonstrar que as manifestações do inconsciente
seguem as leis da linguagem, quais sejam as da metáfora e da metonímia -, deparamo-nos
com a impossibilidade do inconsciente representar a diferença sexual. Mas por quê?
Para dar conta desta impossibilidade, Lacan recorreu à lógica e pôde esclarecer
que, enquanto podemos afirmar sobre o homem que ele se encontra sob a égide da ordem
fálica - homem é aquele que tem o falo -, sobre a mulher podemos dizer, que ela não é toda
submetida a esta mesma ordem.
Ou seja: com a introdução desta partícula negativa podemos entender que a
mulher é fálica, mas não toda fálica. Ela é aquela que não tem o falo e, sobre ela resta algo
que não é possível nomear, por isso não é possível dizer “tudo” sobre a mulher. Mas citemos
Lacan (1985, p.15):
[...] a mulher não é toda – o sexo da mulher não lhe diz nada, a não ser por
intermédio do gozo do corpo. [...] Que tudo gira em torno do gozo fálico, é
precisamente o de que dá testemunho a experiência analítica, e testemunho de que
a mulher se define por uma posição que apontei com o não-todo no que se refere
ao gozo fálico.
101
Neste ponto nos deparamos com uma noção bastante complexa, a noção de gozo,
através da qual, Lacan indica que o sujeito mantém diferentes relações com a satisfação.
Na verdade este termo não foi introduzido por Lacan. Freud já o empregara.
Contudo, ressaltamos com Valas (2001, p.7) o alargamento - a conceitualização – da noção
de gozo realizada por Lacan:
Durante os primeiros anos de seu ensino, Lacan usou o termo gozo (Lust ou Genuss)
como Freud, no sentido que esse vocábulo tem na língua corrente, na qual é
sinônimo de alegria, prazer, mas principalmente de prazer extremo, êxtase, beatitude
ou volúpia, quando se trata de satisfação sexual. [...] Freud não conceituou o gozo,
mas definiu seu campo (que ele situa mais-além do princípio de prazer, regulando o
funcionamento do aparelho psíquico), no qual se manifestam, como prazer na dor,
fenômenos repetitivos que podem ser remetidos à pulsão de morte.
Além deste esclarecimento, seguimos ainda com Valas (2001, p.7) para ressaltar
um outro alargamento conceitual promovido pelas elaborações de Lacan:
A pulsão de morte seria redefinida por Lacan como sendo uma pulsação de gozo que
insiste na repetição da cadeia significante inconsciente. O prazer e o gozo não
pertencem ao mesmo registro. O prazer é uma barreira contra o gozo, que se
manifesta sempre como excesso em relação ao prazer, confinando com a dor.
Por conseguinte temos que o gozo se opõe ao prazer. Desta forma, enquanto o
prazer visa à satisfação obtida através da diminuição das tensões do aparelho psíquico, o
gozo pulsa, se dá a ver através da repetição na linguagem, se mostra excessivo em sua busca
de sentido, tanto, que pode conduzir à morte.
Mas qual é o sentido que o gozo busca com tamanha avidez? Grosso modo,
podemos dizer que o sentido que ele busca é o sentido para aquilo que falta e que é
representado pelo falo. Tornemos um pouco mais claro. Em A significação do falo, Lacan
(1998, p.696) esclareceu o que é o falo:
Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um
efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau
etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa
relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem
razão que Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os antigos.
Logo em seguida, Lacan esclareceu (1998, p.697) também sua função: “Pois o
falo é um significante, um significante cuja função, na economia intra-subjetiva da análise,
levanta o véu daquela que ele mantinha envolta em mistérios. Pois ele é o significado [...]”.
102
Quem é esta a que Lacan faz referência como estando envolta em mistérios?
Propomos que esta é a “Mulher”, mais especificamente a Mulher enquanto Mãe, que, para a
criança, se mostra como algo a ser desvendado: - Por que ela não se faz presente o tempo
todo? Interroga a criança. E mais: - Para o que ela se volta? O que conquista o seu olhar? O
que atrai seu interesse a ponto de fazê-la ausentar-se?
A mãe interessa-se por aquilo que lhe falta, o falo. O falo tem, portanto, a função
de dar significado àquilo que atrai o interesse da mãe. Além disso, não basta que a mãe
apenas alterne sua presença e ausência. Como afirma Ferreira (2005, p.39), “[é] preciso que a
mãe se apresente como porta-voz do Não-do-Pai”. Será isto que permitirá à criança vir a
desejar. Caso a mãe se mostre sempre presente, caso tome o próprio filho como único objeto
se seu desejo, caso desautorize o pai, as conseqüências serão sempre devastadoras para a
criança. Se a mãe não lhe faltar em alguma medida, a criança enfrentará grande dificuldade
para diferenciar-se dela e, conseqüentemente, para alcançar uma singularidade e tornar-se um
sujeito de seu próprio desejo.
Mas, para termos uma idéia do mistério envolvido nas ausências da mãe e que
tanto incita as interrogações infantis, recorramos à exatidão da poesia:
Para quem você tem olhos azuis
E com a manhã remoça?
E à noite, para quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga, que horas, me diga
Que horas você volta?
(“Você, você – uma canção edipiana”, Guinga – Chico Buarque,
CD As cidades).
Então, Lacan nos ensinou que o falo comparece para dar significado àquilo que
vai e vem, que se faz presente e ausente e que, ao ausentar-se, cava a falta. Mas o que é que
falta? No real, nada. No real do corpo, por exemplo, tanto aos meninos quanto às meninas,
não lhes falta nada, cada um tem seu órgão genital. Mas também podemos responder a esta
questão de uma outra forma dizendo que o que falta é o falo. Contudo, precisamos ter sempre
em mente que o falo não é um objeto da realidade.
O falo não é algo de que necessitamos. Via de regra, nossas necessidades podem
ser satisfeitas e ainda assim continuamos a ter de lidar com a falta. Daí continuarmos, a vida
inteira, a demandar por algo. Demandamos amor, por exemplo. Este, bem que se mostra
103
capaz de preencher a falta, mas não de forma completa, definitiva. Se assim o conseguisse,
realizaríamos o ideal de dois formarem uma só carne.
É em virtude destas impossibilidades que nos vemos divididos - ao mesmo tempo
em que constituídos - por algo que está para além da necessidade e aquém da demanda de
amor: o desejo. Como afirma Lacan (1998, p.698), “O desejo não é, portanto, nem apetite de
satisfação, nem demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à
segunda, o próprio fenômeno de sua fenda (Spaltung)”.
Assim divididos, meninos e meninas, homens e mulheres, encontram-se
submetidos ao desejo e ao gozo, os quais, mesmo estando em oposição, visam àquilo que
preencheria a falta. No entanto, o percurso realizado por cada um através da via do desejo e
do gozo será diferente. Por quê?
Retornemos à lógica dos conjuntos35 implicada no ensino de Lacan. Se tomarmos
a humanidade como um conjunto universo, não teremos dificuldade em perceber que este se
mostra dividido em dois subconjuntos: o subconjunto formado por homens e o subconjunto
formado por mulheres. O que caracteriza o subconjunto que pode também ser chamado de
masculino é o fato de seus elementos portarem o falo. Já em relação ao subconjunto dito
feminino, o que o caracteriza é o fato de seus componentes não portarem o falo. Então, o que
marca a diferença entre um e outro é o falo. Este pertence ao subconjunto dito masculino.
Isto implica que podemos dizer que o subconjunto masculino é um conjunto fechado. Ora, o
falo, também marca a diferença em relação ao subconjunto dito feminino, mas o faz,
justamente, através de sua ausência. Falta, portanto, o elemento que fecharia este conjunto.
Em decorrência disto, podemos dizer que o subconjunto feminino é um conjunto aberto.
Gostaríamos de chamar mais atenção para este fato do conjunto formado pelo que
é feminino ser aberto: assim sendo, ele não é um conjunto finito. Como já tratamos
anteriormente, sobre o que se perde no infinito, não se pode dizer tudo, mas sempre se pode
descobrir algo de novo.
É por isso que sobre o gozo masculino podemos falar que ele é fálico. É um gozo
finito, tem começo, meio e fim. É um gozo significante, porta algum sentido e este sentido
vai em direção ao desejo. Além disto, no que diz respeito ao desejo masculino, o órgão
sexual se encontra bastante implicado. Desta forma, podemos afirmar com Soler (2005, p.29)
que
35
A explicação que se segue nos foi fornecida por Ivan Corrêa através de comunicação oral proferida
durante o seminário ocorrido em maio de 2004.
104
no corpo a corpo sexual, o desejo do homem, indicado pela ereção, é condição
necessária [...]. Neste sentido, a chamada relação sexual coloca o órgão ereto do
desejo masculino na posição dominante e, com isso, a mulher só pode inscrever-se
nessa relação no lugar do correlato desse desejo. Não admira, portanto, que tudo o
que se diz da mulher seja enunciado do ponto de vista do Outro e mais se refira a
sua aparência que a seu próprio ser [...].
Também podemos ter uma idéia da diferença implicada no corpo a corpo sexual
através da espirituosa reflexão do humorista Diogo Portugal36 que constata: “Homens e
mulheres são diferentes. Até naquele momento da relação sexual se pode ver: as mulheres
estão o tempo todo tentando ter o orgasmo enquanto os homens estão tentando não tê-lo!”.
Esta observação nos parece muito feliz - no sentido de representar as repercussões da
diferença sexual - e oportuna - no sentido de ensejar a distinção entre gozo sexual e orgasmo.
Primeiro, nem o gozo, nem o orgasmo são inerências da conjunção carnal. O
orgasmo pode ser atingido através da masturbação e o gozo pode emergir sob variadas
formas, como no sintoma, por exemplo. No entanto, no que diz respeito, especificamente ao
gozo sexual, este só se manifesta a partir da conjunção dos corpos.
Segundo, o orgasmo emerge como ponto de culminância da satisfação.
Ultrapassado determinado ponto, a tensão começa a baixar proporcionando a sensação de
prazer. Somente após essa ultrapassagem do limite do princípio do prazer é que o gozo se
manifesta.
Terceiro, estas manifestações se dão de formas diferentes para homens e
mulheres: nos homens, é a detumescência do órgão que marca a emergência do orgasmo ao
qual se seguem algumas pulsações de gozo. O gozo masculino é um gozo do órgão sexual é,
portanto, fálico. Sobre este Lacan (1985, p.15) faz notar que “o gozo fálico é o obstáculo pelo
qual o homem não chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que
ele goza é do gozo do órgão”. Este tem curta duração e está vinculado ao entibiamento do
órgão o que nos leva justamente a ressaltar que o gozo masculino é um gozo fora do corpo.
Trata-se de um gozo subjetivo uma vez que o pênis não é um órgão que simplesmente
responde a estímulos reflexos. Seu funcionamento encontra-se, antes, regulado pela fantasia
(VALAS, 2001).
Já no que diz respeito à mulher, sabemos que ela também participa do gozo fálico
uma vez que também possui um órgão passível de incorporá-lo, o clitóris. Entretanto, para
além deste, quer dizer, para além do falo, a mulher pode ter acesso a um suplemento de gozo.
Este suplemento de gozo emerge no próprio corpo. Produz um desnorteamento, uma perda da
36
Este dito chistoso foi proferido por Diogo Portugal durante o programa de entrevista “Jô Soares onze e
meia” emitido ao ar em 14 de julho de 2006.
105
capacidade de simbolização, pois está fora da linguagem. É indizível. Pode mesmo ser um
êxtase. Segundo Lacan (1985, p.49), é um gozo que faz da mulher “não-toda, quer dizer, que
a faz em algum lugar ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito”. Neste lugar, falta o
nome, não é possível nomear nada, a mulher não pode nomear a si mesma. Tampouco pode
nomear seu gozo. Em alguns casos, o gozo suplementar pode conduzir até à beatitude, à
contemplação de Deus, como é o caso do gozo místico (LACAN, 1985).
Assim, dizemos, com Lacan (2003, p.467), que o gozo produzido durante o coito
representa para a mulher que ela pode “ser ultrapassada por seu próprio gozo”. Neste
momento, o gozo a divide de tal forma que ela perde-se de si mesma... e do parceiro. Faz
uma travessia que a torna, como afirma Lacan (2003, p.467), “parceira de sua solidão”. É, em
virtude desta divisão, que ela espera do parceiro a re-união, que ele a reconheça como única.
Se voltarmos ao dito espirituoso de Diogo Portugal, poderemos então apreciar sua
exatidão em representar o melhor serviço que um homem pode prestar à sua parceira: ao
retardar o próprio orgasmo, o homem suscita o gozo suplementar da parceira, um gozo que
não é limitado como o gozo fálico ao qual ele está restrito. Mesmo sem ter acesso a um gozo
suplementar - que, por sinal, o homem também gostaria de ter -, ao retardar o orgasmo, ele
suscita e ressuscita o gozo que faz de sua parceira não-toda dele. Como interroga Lacan
(2003, p.467), “em que se confessaria o homem servir melhor à mulher de quem quer gozar
senão para tornar seu esse gozo que não a faz toda dele; para nela o re-suscitar?”.
Então, na relação sexual o que ocorre é um desencontro, uma descontinuidade,
uma falha que Lacan (1985, p.17) definiu como sendo uma compacidade: “se é bem claro
que a interseção de tudo que se fecha sendo admitida como existente num número infinito de
conjuntos, daí resulta que a interseção implica esse número infinito. É a definição mesma da
compacidade”.
Isto quer dizer que, na relação sexual, entre o homem e a mulher, o que há é uma
descontinuidade entre o gozo de cada um. O que determina esta falta de continuidade é
aquilo que marca a interseção entre eles, isto é, o falo. O gozo do homem é fálico, o da
mulher é um outro gozo.
E mais, mesmo quando estamos diante de uma continuidade, a descontinuidade se
faz presente. Isso pode ser apreendido se considerarmos, com a ajuda de Abbagnano (2000),
a explicação de Russell sobre a noção de continuidade:
O intervalo entre dois instantes quaisquer ou duas posições quaisquer é sempre
finito, mas a continuidade do movimento nasce do fato de que, por mais próximas
que estejam as duas posições consideradas, ou dois instantes, há uma infinidade de
106
posições ainda mais próximas, ocupadas por instantes que são igualmente mais
próximos (Scientific Method in Philosophy, 1926, V; trad. Fr., p.111) (RUSSELL
apud ABBAGNANO, 2000, p.202)
Foi por esta ocorrência que Lacan (1985, p.16) buscou apoio no paradoxo de
Zenão para ilustrar o esquema do gozo. Citamo-lo:
Aquiles e a tartaruga, tal é o esquema do gozar de um lado do ser sexuado. Quando
Aquiles dá um passo, estica seu lance para junto de Briseida, esta, tal como a
tartaruga, adiantou-se um pouco, porque ela é não toda, não toda dele. Ainda falta. E
é preciso que Aquiles dê o segundo passo, e assim por diante. [...] a tartaruga,
também ela, não está preservada da fatalidade que pesa sobre Aquiles – o passo dela,
também, é cada vez menor, e não chegará jamais ao limite. [...] Aquiles, é bem claro,
só pode ultrapassar a tartaruga, não pode juntar-se a ela. Ele só se junta a ela na
infinitude.
Portanto, entre Aquiles e Briseida, entre o homem e a mulher, assim como entre
dois pontos, não há continuidade. O que há entre estes é o movimento de uma infinidade de
pontos. Entre o homem e a mulher o que há é um movimento infinito: travessia.
Mas lembremos que a mulher - tal como o homem - também se encontra inscrita
na ordem fálica, na ordem do significante, logo, na ordem da linguagem. Isto se mostra
óbvio, visto que a mulher também fala, e sua fala, obviamente, busca um sentido. Contudo,
apesar de a linguagem nos fornecer diversos significantes para representar o feminino, ainda
assim, resta sempre algo a se dizer. Através da linguagem, podemos enumerar uma série de
atributos que se prestam muito bem para caracterizar o feminino. Porém, mesmo assim, não
conseguimos exauri-lo. Existe uma impossibilidade lógica de se definir o que constitui a
essência do feminino: a feminilidade. Esta não pode ser dita inclusive pelas próprias
mulheres.
Logo, no que diz respeito ao gozo, a mulher se encontra inscrita no gozo fálico,
mas também se encontra inscrita numa outra ordem, num Outro gozo, sobre o qual, por não
ser fálico, não possui um significante que lhe seja específico.
No campo deste Outro gozo, falta o nome, aquilo que poderia particularizar,
definir, identificar. Instaura-se, portanto, uma problemática para a mulher na medida em que
isto implica uma divisão, pois, como afirma Pommier (1987, p.35), a mulher tem de escolher
entre o nome que a identifica e “o gozo que lhe é próprio”.
Sobre a questão do gozo propriamente feminino, lembramos com Lacan (1985,
p.118) que “[a] questão é, com efeito, saber no que consiste o gozo feminino, na medida em
que ele não está todo ocupado com o homem, e mesmo, eu diria que, enquanto tal, não se
ocupa dele de modo algum, a questão é saber o que é do seu saber”.
107
Agora, de posse destas informações fornecidas por nossos batedores, podemos
retomar a travessia pelo Grande Sertão.
3. 9 Amor de ouro
Dissemos que Riobaldo reencontrou o Menino. Ele se apresentou como
sendo o jagunço Reinaldo. Mas, “[p]ara que referir tudo no narrar, por menos e menor?
Aquele encontro [entre eles] se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que
só em jornal e livro é que se lê” (GSV, p.108). Reinaldo e os outros aportaram
brevemente na casa de Malinácio apenas para apanhar os animais e a munição guardada
por este. Dali, partiram para o Norte. Riobaldo foi com eles.
Na companhia de Reinaldo, Riobaldo aprendeu a apreciar as belezas do
sertão e foi vivendo “[a]quela mandante amizade” (GSV, p.114). Ele gostava de
Reinaldo, “dia mais dia, mais gostava” (GSV, p.114). Este sentimento era para Riobaldo
como um feitiço: “Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava.
[...] Era ele estar longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que
aquilo era? Sei que sim. Mas não. Eu mesmo entender não queria. Acho que” (GSV,
p.114).
Mas como Riobaldo poderia entender? Afinal, por um lado, Reinaldo era
“[a]quela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre” (GSV, p.114).
Mas uma meiguice que, apesar de escondida, se mostrava em “[m]uitos momentos.
Conforme, por exemplo, quando [Riobaldo se] lembrava daquelas mãos, do jeito como
se encostavam em [seu] rosto” (GSV, p.114) quando Reinaldo cortou seu cabelo.
Por outro lado, Reinaldo “sabia ser homem terrível” (GSV, p.122). Um
exemplo disto foi quando ele “se fez em fúria” (GSV, p.124) ante a provocação de um
jagunço conhecido como Fancho-Bode. Este, por não achar “jeito de macheza” em
Reinaldo, resolveu provocá-lo chamando-o de “delicado” (GSV, p.123). Resultado:
Reinaldo entrou
de encontro no Fancho-Bode, arrumou mão nele, meteu um sopapo: - um
safano nas queixadas e uma sobarbada – e calçou o pé, se fez em fúria. Deu
com o Fancho-Bode todo no chão, e já se curvou em cima: e o punhal parou
ponta diantinho da goela do dito, bem encostado no gogó, [...], para se cravar
deslizado com bom apôio, e o pico em pele, de belisco, para avisar do gosto de
uma boa morte (GSV, p.124).
108
Além de eventos desta natureza, precisamos destacar que entre Riobaldo e
Reinaldo se deu um outro evento ainda mais intrigante. Um dia, Riobaldo sentiu-se
atravessado por uma tristeza que vinha do medo e das incertezas de sua vida. Vendo-o
neste estado, Reinaldo se aproximou e lhe fez uma grande revelação:
Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo veio. [...] o que ele falou foi
com a sucinta voz: - “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar
a você, e que esconder mais não posso... Escuta: eu não me chamo Reinaldo,
de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de
você não perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas
– se diz. A vida nem é da gente...” [...] – “Pois então: o meu nome, verdadeiro,
é Diadorim... Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente
estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...”
(GSV,p.120-121, grifos do autor).
Pareceu a Riobaldo que, através desta revelação “tão singular” (GSV,p.121),
Reinaldo lhe presenteava com “certezas” (GSV,p.121). Pareceu-lhe também que por
isto, algo lhe pertencia: “Diadorim. Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali, para o Canabrava
e o Barra. Aquele dia fora meu, me pertencia” (GSV, p.121). Então indagamos: o que
pertencera a Riobaldo, o dia ou Diadorim?
Ao refletir sobre o que lhe foi dado, Riobaldo se perguntou - “Que é que é
um nome?” (GSV, p.121) e, logo em seguida, muito acertadamente, ele mesmo
respondeu: “Nome não dá: nome recebe” (GSV, p.121). De fato, o nome nos vem de
outros, geralmente, de nossos pais. Quando tentamos nos identificar a este nome que
nos foi dado, na verdade não recebemos, damos. Ou melhor, nos confrontamos é com o
desejo do Outro, um desejo capaz de prescrever nosso destino.
E, realmente, Diadorim nos disse que tinha seus “fados”, que cumpria um
decreto de destino, mas qual seria este vaticínio e quem o teria determinado? Por hora,
precisamos deixar esta interrogação em aberto.
No entanto, já podemos refletir que se Reinaldo não é um nome verdadeiro,
encontramos aí algo com uma falsificação. Isto é endossado pelo próprio Diadorim ao
afirmar que Reinaldo é “nome apelativo”, quer dizer que denomina, mas, ao mesmo
tempo, implica em alguma transgressão, pois, apelativo é também aquilo que chama
atenção por recorrer a meios excessivos. É um nome inventado e sobre o qual não se
pode perguntar “por quê”. Logo, trata-se de uma falsificação que envolve um segredo.
No entanto, este nome falso é divulgado, usado no meio jagunço. Portanto, Reinaldo é
um nome de guerra.
109
Mas atentemos para um fato ainda mais curioso: Diadorim é tido pelo
próprio personagem como sendo seu nome “verdadeiro”. Ora, sabemos que o nome de
batismo, o nome dado a Diadorim por seus pais, é outro, é Maria Deodorina da Fé
Bettancourt Marins. Sob esta perspectiva, nos deparamos com mais uma complicação:
quem teria escolhido o nome Diadorim? Tudo nos leva a crer que tenha sido o próprio
Diadorim. E mais, foi exatamente isto que, pela revelação, ele deu a Riobaldo: seu nome
próprio. À frente esclareceremos por quê.
Agora, perguntamos com Lacan (2003, p.95): “O que é o nome próprio?”.
Para ele, o nome designa um traço especial e uma função na linguagem que é
justamente a de nomear. Por esta função foi que Lacan (2003, p.109) definiu o
nascimento do sujeito: “o sujeito é o que se nomeia”. Este sujeito que se nomeia
designa, portanto, uma diferença absoluta (LACAN, 2005). Propomos que, ao nomearse Diadorim, assistimos ao nascimento de um sujeito em toda a sua singularidade. Um
sujeito inusitado, não dito nem ditado por outros.
Sabemos que o nome Reinaldo surgiu em substituição ao nome Maria
Deodorina. Foi-nos esclarecido que esta substituição decorreu de uma necessidade.
Então cabe agora perguntar: E o nome Diadorim, em decorrência de que este teria
surgido? Por que, novamente, Maria Deodorina teria seu nome próprio substituído,
mudado?
É interessante notar as hipóteses levantadas por Riobaldo sobre as razões que
Diadorim teria para manter este seu nome encoberto pelo nome de guerra Reinaldo:
“Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um
santo-forte” (GSV, p.121). Transgressão ou devoção? Não se sabe.
Porém, o fato de Diadorim “querer que só [Riobaldo] soubesse, e que só
[ele] esse nome verdadeiro pronunciasse” (GSV, p.121) demonstra a Riobaldo - e a nós
– o valor desta revelação: “Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no
comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor” (GSV,
p.121).
Logo, a amizade dada a Riobaldo não se queria sem encalço, sem pista, sem
pegada. Ela revela uma verdade sobre Diadorim ao desvelar a falsidade do nome
Reinaldo, contudo, ainda deixa rastros que velam algo. Rastros de quê? Segundo
percebemos, rastros de outras verdades. Da verdade do amor, por exemplo. De amor,
sem dúvida. Mas que tipo de amor? O amor da amizade? Aquele que segundo Julien
110
(1996, p.128) reduz “o Outro em sua alteridade ao semelhante, tomando-o por sua alma,
por sua própria psyché”?
Podemos dizer que, até certo ponto, a revelação do nome Diadorim permitiu
a Riobaldo guiar-se por este amor que é amizade e sobre o qual, ainda com Julien (1996,
p.129), podemos dizer que “é o amor da alma, compartilhamento desse egoísmo
virtuoso em que cada um ama seu semelhante como ama a si mesmo... e rejeita o
dessemelhante!”. Este é um amor que visa à igualdade, rejeita a diferença, rejeita o
héteros. É um amor que visa ao homólogo.
Mas, para além disso, podemos também dizer que ao revelar seu nome
secreto, Diadorim deu a Riobaldo a possibilidade da relação entre eles vir a se guiar por
um outro tipo de amor. Um amor no qual o nome secreto participa enquanto uma
estratégia. Referimo-nos ao amor cortês. Sobre este, Lacan (1985, p.115) comenta: “O
amor cortês brilhou na história como um meteoro [...]. O amor cortês restou
enigmático”.
Ao seguir por esta via, podemos dizer que Diadorim revelou e ofereceu a
Riobaldo uma estratégia. De acordo com Porge (1998, p.20), lembramos que
[a] estratégia do nome escondido ou secreto governa também a relação do
amante com seu objeto de amor, em nome do objeto de amor que lhe é próprio.
Isto foi elevado ao estado de regra na poesia cortesã. Como diz J. Roubaud:
“Não é somente porque deve ser escondido que o nome da dama é secreto. Ele
o é porque o nome secreto é mais revelador que o próprio nome da verdade da
dama, por seu ser único. [...] o “senhal” [nome secreto] é um dos nomes do
amor. Ele diz, quando é escolhido por um mestre trovador, ao mesmo tempo a
essência da dama concreta e a essência da canção que a canta. Ele tende à
evidência rígida do concreto e ao universal da qualidade que nomeia”. Há um
laço entre a forma do canto e o nome próprio, que é característico do “canso”
[cantar-d’amico].
Ao escolher seu nome verdadeiro, Diadorim portou-se como um mestre
trovador e ofereceu a Riobaldo uma estratégia que poderia ter viabilizado seu acesso às
essências. Deu-lhe o “senhal”, deu-lhe a chave do enigma, deu-lhe a senha.
Até certo ponto do romance parece-nos possível seguir o rastro deste amor
cortês estimulado por Diadorim. Não foi mesmo ele - o “Diadorim belo feroz! Ah, ele
conhecia os caminhares” (GSV, p.65) - que reavivou em Riobaldo seu antigo gosto pela
canção de Siruiz37, o jagunço trovador que “cantava cousas que a sombra delas [no
coração de Riobaldo] decerto já estava” (GSV, p.136)?
37
Siruiz foi o jagunço que inspirou em Riobaldo o gosto pelas canções. Ele cantava “palavras diversas”
(GSV, p.93). Riobaldo sempre lembrava de uma, em especial, a canção que para ele soava como “a toada
111
E mais, podemos ter a ingenuidade de pensar que estas mudanças de nome
sejam sem conseqüências para o próprio Diadorim? Como nos lembra Porge (1998,
p.10),
[a] experiência está aí para nos lembrar de que toda modificação que fira a
literalidade do nome próprio (desde a mudança de nome, de prenome, até a
mudança de uma letra) inscreve-se na história do sujeito e traz conseqüências
que podem se refletir sobre várias gerações.
Por isso, para termos uma idéia sobre a amplitude destas conseqüências,
examinemos as origens dos nomes que compõem a estória desta que nasceu Maria
Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Que recebeu, portanto, como afirma Utéza (1994,
p.365) um nome iluminado pelo Espírito e cercado pelas águas e terras de referências ao
feminino:
[...] do lado da Água: Maria, Marins, e do lado da Terra: Bettancourt, onde se
encontra a raiz francesa court, isto é, cercado, jardim – enquadram o núcleo
luminoso Deodorina da Fé, cuja etimologia revela o Espírito Santo [...]. O que
equivale a interpretar seu prenome a partir do grego Deo Doron: dom de Deus
e votado a Deus, expressão que é aplicada ao Espírito Santo no Veni Creator,
nos atos dos apóstolos [...] ou ainda no Evangelho de Lucas [...], e que
qualifica a Sabedoria [...].
Esta Maria destinada, votada a Deus, mudou de nome, porém manteve a
majestade e continuou conduzindo a um saber: metamorfoseou-se em Reinaldo, que,
segundo Bolle (2004, p.200), designa o “o rei que conduz”.
Este rei conduziu Riobaldo e a nós mesmos por inúmeros caminhos.
Conduziu-nos ao Diadorim, ao “Diá, Di” (GSV, p.445). Conduziu-nos pela claridade do
dia e pela obscuridade do diabo “feito um mau amor oculto” (GSV, p.65). Guiou-nos
pelo “Sertão: [que] é dentro da gente” (GSV, p.235). Fez-nos atravessar o “escampo dos
infernos” (GSV, p.29), um lugar que “concebia silêncio” (GSV, p.42).
E, se “o ódio - é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente
querendo achar o que é da gente’ (GSV, p.273), o fato é que, por um lado, “Diadorim
queria sangues fora de veias”. Mas, por outro, “era boca de amor” (GSV, p.380).
Sabia cuidar de Riobaldo: lavava suas roupas, pois “praticava com mais
jeito, mão melhor” (GSV, p.30). Sabia presenteá-lo, tratá-lo e desanuviar-lhe o
toda estranha” (GSV, p.93): Urubú é vila alta,/ mais idosa do sertão:/padroeira, minha vida - / vim de lá,
volto mais não.../Vim de lá volto mais não?Corro os dias nesses verdes,/ meu boi mocho baetão:/ burutí –
água azulada,/ carnaúba – sal do chão.../ Remanso de rio largo,/ viola da solidão:/ quando vou p’ra dar
batalha,/ convido meu coração... (GSV, p.93).
112
pensamento: “[...] doutras viagens, me deu outros presentes: camisa de riscado fino,
lenço e par de meia, essas coisas todas. [...] até hoje sou homem tratado. Pessoa limpa,
pensa limpo. Eu acho” (GSV, p.113). Sabia curar seus ferimentos: “Retém as forças,
Riobaldo. Vou campear remédio, nesses matos...- Diadorim falou” (GSV, p.244).
Destas, e de muitas outras formas, foi que Diadorim soube nos guiar em
belas “Travessias... Diadorim, os rios verdes” (GSV, p.235), “Dindurinh’... Boa
apelidação... Falava feito fosse um pássaro” (GSV, p.429) e cantava, “cantarolava, fio
que com boa voz” (GSV, p.186). Um Diadorim que também dançava - que era “pé de
salão” (GSV, p.135) - e “raiava, o todo alegre, às quase danças” (GSV, p.194).
Diadorim, dia d’ouro... Brilhava como o dia de um “amor de ouro” (GSV,
p.42)...
3. 10 Amor de prata, outros amores e outros casos
Aconteceu ainda de Riobaldo ter a oportunidade de provar de “outra água”
(GSV, p.42). Um dia, tendo aportado na Fazenda Santa Catarina, conheceu uma moça
chamada Otacília. “[Airou-se nela], como a denguice de uma música” (GSV, p.42).
Otacília lhe inspirou a pensar nuns versos que falavam em olhos, “[m]as os olhos verdes
sendo os de Diadorim” (GSV, p.42). Aí restou Riobaldo entre dois amores: “Meu amor
de prata e meu amor de ouro” (GSV, p.42).
Riobaldo levou a vida a comparar estes dois amores. E, convicto,
perguntava: “Todo amor não é uma espécie de comparação?” (GSV, p.122).
Mas como foi que este amor por Otacília se lhe despontou? Chegados à
Fazenda Santa Catarina, Riobaldo
[divulgou], qual que uma luz de candeia mal deixava, a doçura de uma moça,
no enquadro da janela, lá dentro. Moça de carinha redonda, entre compridos
cabelos. E, o que mais foi, foi um sorriso. Isso chegasse? Às vezes chega, às
vezes” (GSV, p.122).
Esta paixão por Otacília lhe parecia oportuna ainda mais que ao comparar
seus amores, Riobaldo constatou que Diadorim gostava dele “com a alma [pois ele,
Diadorim] sabia ser homem terrível” (GSV, p.122). Nestes momentos, Riobaldo
lançava mão do amor enquanto amizade, enquanto amor da alma, a tranqüilizadora
philia.
113
Sobre o retorno da philia na modernidade através de sua aplicação no amor
conjugal, Julien (1996, p.130), comenta:
Contenção na sexualidade, moderação nos sentimentos, serenidade na ternura
e cuidado com o interesse pessoal definem o laço conjugal, bem mais que o
amor-paixão, que, muito pelo contrário, põe todo mundo na dependência do
outro e expõe à decepção, ao pedir ao outro o que ele não pode dar.
Contudo, paradoxalmente, nos amores de Riobaldo postos em comparação, o
que percebemos é sua paixão por Otacília se transmutar em philia38, e o amor da alma
por Diadorim crescer como um vertiginoso amor-paixão, pois, Diadorim, “[e]le era
irrevogável” (GSV, p.141).
Foi assim que Riobaldo, em meio aos sofrimentos de uma penosa travessia, a
travessia do Liso Sussuarão, fez um juramento: “No escaldado... “Saio daqui com vida,
deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília” – eu jurei, do proposto de meus
todos sofrimentos” (GSV, p.43). Riobaldo saiu com vida, mas ainda não foi desta vez
que cumpriu sua jura: não desertou, nem desposou Otacília.
Riobaldo - aquele que é um rio carente, desprovido de algo, um rio falho -,
ele sempre foi também “um fugidor” (GSV, p.142). Apesar de várias vezes pensar em
desertar, a verdade é que nunca o fez, pois ele tanto fugia “que [fugiu] até da precisão
de fuga” (GSV, p.142).
Quanto à jura de casar-se com Otacília, esta ele cumpriu, mas só depois,
“quando deu o verde nos campos” (GSV, p.457). Antes, ele teve de realizar outras
travessias e, principalmente, a travessia maior.
Por estas travessias, Riobaldo um dia fez paragem na “Aroeirinha” (GSV,
p.28). Desta vez quem ele viu destacada pela moldura, não de uma janela, mas de um
portal, foi Nhorinhá, “mulher moça, vestida de vermelho, se ria” (GSV, p.28). Diante
desta pintura em encarnado, Riobaldo “nem tinha começado a conversar com aquela
moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou [os dois], num grosso rojo avermelhado”
(GSV, p.28). Aí neste arrojar-se Nhorinhá recebeu de Riobaldo o “carinho no cetim do
pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal” (GSV, p.28).
38
Ainda sobre a philia, citamos Julien (1996, p.120-130): “Aristóteles mostrou isso admiravelmente em
suas páginas sobre a philia na Ética a Nicômaco, especialmente no livro IX, capítulo 4: “O homem de
bem está com seu amigo numa relação semelhante à que mantém consigo mesmo, pois o amigo é um
outro de si mesmo” (1166 a 31). [...] Em todos os casos, o amor ao outro (a philia) e o amor-próprio (a
philautia) estão ligados, na medida em que “as diversas amizades realmente parecem derivar das relações
que são mantidas consigo mesmo” (1166a2), isto é, desse cuidado consigo que é a arte de viver na
sabedoria e no justo uso dos prazeres compartilhados”.
114
Nhorinhá era “nhô” e “nhá”. Era ioiô e iaiá39. Ioiô é senhor, senhora, mas
também é brinquedo que seguro apenas por um fio, vai e vem escapando das mãos. Iaiá
é moça. Nhorinhá era moça de se brincar, era para o afago de várias mãos, “era meretriz
[...] para os homens de fora do lugarejo, jagunços, tropeiros” (GSV, p.29).
Riobaldo gostou de Nhorinhá só o “trivial momento” (GSV, p. 78), no
entanto - quando já casado, tendo se passado oito anos, enfim lhe chegou às mãos uma
carta de Nhorinhá escrita logo depois do trivial momento deles dois -, Riobaldo viu
então que “[...] estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando em
todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela [esteve]” (GSV, p.78).
É que Riobaldo achava que “[b]om, quando há leal, é amor de militriz”
(GSV, p.397). Assim, em suas travessias e travessuras, conheceu mais duas: Maria-daLuz e Hortência. Elas “não se comparavam com Nhorinhá, não davam nem para lavar
os pés dela. [...], porém, beleza a elas também não faltava [...]” (GSV, p.397). Com
estas, “[n]o meio delas duas, juntamente, [ele descobriu] que até mesmo [seu] corpo
tinha duros e macios. Aí eu era jacaré, fui, seja o que sei” (GSV, p.398) - comentou
Riobaldo.
O encontro dele com as prostitutas lésbicas “que, nas horas vagas, no
lambarar, as duas viviam amigadas, uma com a outra” (GSV, p.400), nos remete a um
tema bastante pertinente: a bissexualidade.
Porém, sem nos aprofundarmos, podemos dizer que para a psicanálise o
termo bissexualidade designa uma determinação psíquica inconsciente na medida em
que, frente à diferença sexual, o sujeito deverá proceder a uma escolha. Esta escolha
sexual se dará ou pelo recalque de um dos dois componentes da sexualidade - masculino
ou feminino -, ou pela aceitação dos dois, como é o caso das práticas bissexuais, ou
ainda pela renegação da realidade da diferença sexual (ROUDINESCO e PLON, 1998).
Chamamos atenção para este encontro, apenas pela possibilidade de ele
ilustrar com grande precisão como na vida adulta pode se dar a reatualização deste
processo de escolha: Mesmo se sabendo como um “jacaré”, quer dizer, um indivíduo
paquerador, coisa que de fato Riobaldo o era, reza a crendice popular que “homem com
homem é lobisomem e mulher com mulher é jacaré”. Ora, seguida a descrição da cena
de amor a três, Riobaldo foi solicitado a atender o chamado de seu guarda-costas
Felisberto que vigiava a casa das “mulheres-damas” (GSV, p.397). Como Riobaldo
39
Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 2001, ‘nhô’ e ‘nhá’ têm como
respectivos sinônimos: ‘ioiô’ e ‘iaiá’.
115
estava “perfeito descomposto nú” (GSV, p.398) uma das mulheres lhe trouxe uma das
roupas dela para que ele amarrasse à cintura, “tapando as partes” (GSV, p.399). Ao
fazê-lo, Riobaldo, o “jacaré”, experimentou a possibilidade de freqüentar a posição
feminina e, súbito, reafirmar sua escolha:
Experimentei. Daí, entendi o desplante, me brabeei, com um repelão arredei a
mulher, e desatei aquilo, joguei longe. Tornei a vestir minhas roupas, botei até
jaleco. Elas melhor me riam. Eu era algum saranga? Eu podia dar bofetadas –
não fosse a só beleza e a denguice delas, e a estrôina alegria mesma, que meio
me encantava (GSV, p.399).
Então, era assim, a leviandade da alegria das mulheres encantava Riobaldo.
No entanto, num “repelão” ele afastou a mulher. Qual? A que lhe cedera as roupas ou a
que ele mesmo incorporara?
Além do mais, o tema da possibilidade de mudança entre as posições
feminina e masculina não lhe era desconhecido. Tanto que um dia, ao atravessar “o
miolo mau do sertão, era o sol em vazios” (GSV, p.40), enfrentando sede, cansaço e
uma tonteira que “provinha de excessos de idéia” (GSV, p.41), Riobaldo - quando pode
descansar - “teve uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu
pudesse mesmo gostar dele – os gostares...” (GSV, p.41).
Sabemos que o sonho é a realização de um desejo. Ao sonhar com Diadorim
passando por debaixo do arco-íris, realizava-se, então, o desejo de Riobaldo de que
Diadorim deixasse de ser homem e passasse a ser uma mulher. Por aí se abriria, então, a
possibilidade de ele poder gostar de Diadorim.
Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo, citado por
Utéza (1994, p.88), sabe-se que “quem passa por debaixo do arco-íris muda de sexo e o
recobrará, se o repassar em sentido contrário”. O sonho viabilizava, por conseguinte,
uma solução para que Riobaldo se permitisse gostar de Diadorim. Neste caso, seria
preciso que cada um deles se fixasse em lados opostos do arco-íris.
Ora, não é isto que acontece geralmente. Tanto homens quanto mulheres
podem vir a freqüentar cada uma das duas posições, masculina e feminina. Diadorim é o
exemplo mor. Riobaldo também. Mesmo que por um lapso de tempo, não lhe foi
possível vestir-se de mulher?
E mais, em relação a Diadorim - mesmo sendo “guapo tão aposto – surgido
sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de
veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre” (GSV, p.135) -, mesmo com toda
116
esta elegância guerreira, talvez, ainda assim, possamos imaginar, como sugere
poeticamente Hollanda (1989, p.211) que “A menina que passou o arco era o menino
que passou no arco e vai virar menina, imagina”. Assim, na presença-ausência do arcoíris - por sua evanescência -, a própria evanescência do falo... imagina!
Voltando-nos para Riobaldo, podemos afirmar que ele percorreu muitos
amores, dentre os quais ele próprio destacou três: “Otacília, era como se para mim ela
estivesse no camarim do Santíssimo [...]. Nhorinhá puta bela. [...] Diadorim – eu
adivinhava. Sonhei mal?” (GSV, p.236).
Acreditamos que não. Riobaldo, o “jacaré”, o paquerador, se não foi um Don
Juan, de certa forma, sonhou e se empenhou, tanto quanto este, em adivinhar uma
resposta para o que é uma mulher. A diferença entre eles foi que Riobaldo esmerou-se
em suas intermináveis elucubrações, enquanto Don Juan, não interrogava: simplesmente
tentava alcançar a Mulher, aquela que ele desejava suscetível de apreender
completamente.
Sobre o mito de Don Juan, podemos dizer que ele persegue a Mulher,
percorrendo, numa velocidade alucinante, o infinito que se abre entre aquilo que marca
a diferença da posição masculina, da posição feminina. Ele tenta apreender a marca
evanescente desta diferença, o falo. Tenta corrigir qualquer falha, busca o compacto.
Porém, como já falamos, o compacto é constituído por uma infinidade de
pontos, a compacidade. É por isso que não é possível alcançar a Mulher. Pode-se ter
acesso apenas a uma mulher. E, como ressalta Lacan (1992, p.117), “já é muito dar
conta de uma”.
Mas, para Don Juan, foi uma após outra e outras tantas. Até mil e três – ou
mais. Desta forma, ao percorrer o infinito, pela infinidade de mulheres que seduz, ele
desafia o limite, a lei, pois Don Juan visa à completude, ao gozo absoluto. E sabemos
que no final ele alcança este gozo absoluto. Contudo, aí ele não encontra a completude
da mulher, mas a morte.
Retornemos a Riobaldo. Dissemos que ele se interrogava sobre as mulheres.
Afirmamos isto por notarmos seu empenho em relatar vários casos. Apresentaremos
dois destes com exemplo. Um, é o caso da moça do Barreiro-Novo:
essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia
benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou,
trouxe os praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o
hospício de dôidos, na capital, diz até que lá ela foi cativa de comer, por
armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? (GSV, p.48).
117
A moça do Barreiro-Novo era uma moça que sabia o que queria: ela queria
“só o Céu” (GSV, p.48). E sobre os procedimentos tomados em relação a ela, chega a
causar espanto a atualidade das interrogações de Riobaldo40.
Outro, é o caso de Maria Mutema. Ela era uma “senhora vivida, mulher em
preceito sertanejo” (GSV, p.170). Uma madrugada, seu marido amanheceu morto. Deste
então Maria Mutema passou a freqüentar diariamente a igreja e a confessar-se de três
em três dias com o Padre Ponte. Este, um “vigário de mão cheia, cumpridor e caridoso”
(GSV, p.171), tinha uma pecha: “ele relaxava” (GSV, p.170). Tivera três filhos com sua
governanta que passou a ser conhecida como Maria do Padre. As freqüentes confissões
de Maria Mutema acabaram por adoecer o Padre Ponte até a morte. Os anos se
passaram. Ela não voltou mais à igreja. Porém, durante uma missa celebrada por um
novo missionário, Maria Mutema reapareceu. Ao vê-la entrar, o missionário a expulsou
bradando que ela confessasse seus crimes. Ela, então, confessou chorando que, “sem
motivo nenhum” (GSV, p.173), havia matado o marido derramando-lhe chumbo
derretido no ouvido enquanto dormia. Reconheceu também que havia levado o Padre
Ponte à morte, pois lhe dizia em confissão que matara o marido por que gostava do
padre “em fogo de amores, e queria ser concubina amásia...” (GSV, p.173). Disse ainda
que tinha mentido sobre este sentimento pelo padre. Não gostava dele, mas sentia prazer
em atormentá-lo. Maria Mutema foi presa. Logo depois, profundamente arrependida, ela
mesma suplicava por castigo. Passados alguns dias o povo, a Maria do Padre e os
meninos da Maria do Padre, todos, perdoaram Maria Mutema e chegaram mesmo a
achar que ela “estava ficando santa” (GSV, p.174).
O soturno caso de Maria Mutema nos leva a interrogar e sugerir algumas
respostas: seria realmente tão sem motivo o crime que ela praticara contra o marido? E
por que deste gosto em atormentar o padre com uma paixão fictícia? Convenhamos que
o Padre Ponte fazia uma ligação entre a piedade e os apelos da carne. O padre era um
pai que relaxava, pecava. Talvez, Maria Mutema tenha despejado no ouvido do marido
o peso de chumbo de uma vida a seu lado. Talvez não erremos ao afirmar que ela não
gostava do homem. Depois, talvez sua intenção tenha sido a de soprar no ouvido do
40
Fazemos este comentário a partir de nossa experiência, pois certa vez, chegou a nosso conhecimento a
conduta de algumas pessoas que ofereceram um presente aos familiares pobres de uma adolescente
anoréxica a fim de que estes a convencessem a realizar tratamento hospitalar. O presente sendo,
ironicamente, uma geladeira!
118
padre o peso dos pecados deste, queimando-o até a morte. Talvez, as confissões de
Maria Mutema possam ser entendidas como um desafio ao padre, ao pai. Talvez, para
Maria Mutema, as coisas se misturassem: padre – ou seja, pai - e marido, todos
pecadores, todos abomináveis por seus atos. Não sabemos ao certo. Esta é apenas uma
interpretação. Muitas outras podem se apresentar.
Contudo, as histórias de tantas mulheres que atravessaram a vida de
Riobaldo – assim como as histórias de tantas mulheres relatadas por Freud em seus
estudos de caso, alguns dos quais fizemos referência anteriormente41 - nos servem para
apreciar o entrelaçamento das questões sobre a santa, a puta, as lésbicas, a anoréxica e a
perversa, com as questões sobre o pai.
Acreditamos que estes questionamentos inauguraram-se para Riobaldo
através de sua própria mãe, a Bigri. Segundo Bolle (2004), por este nome “repercute a
estrutura consonantal de bugre, [...]. Parece que nas veias de Riobaldo corre certa dose
de “sangue de gentio” (GSV, p.20), de “raça de bugre” (GSV, p.20), raça considerada
pelos europeus como sodomita. Além disto, ela, a Bigri, era devota do “Santo Senhor
Bom-Jesus da Lapa” (GSV, p. 80), ela era “por [Riobaldo]” (GSV, p. 86). Ela era,
também, uma amásia pobre de Selorico Mendes, fazendeiro “rico e somítico” (GSV,
p.87), homem “muito medroso. [...] tinha sido valente, se gabava, goga” (GSV, p.88).
Este era o pai de Riobaldo, um pai cheio de faltas, um pai sem glórias.
Além deste, Riobaldo conheceu outros pais na travessia do Grande Sertão.
Já sabemos da profusão de referências a chefes valorosos e ao chefe maior - o glorioso
Joca Ramiro. Sabemos ainda da inquietação de Riobaldo em relação ao pai supremo, ao
demo e ao Deus Pai.
Sendo assim, suas perquirições dirigidas a tantas mulheres santas e putas;
aos chefes jagunços; à existência, ou não, do Diabo; e aos procedimentos de Deus, nos
levam a crer que Riobaldo buscava aprofundar seu conhecimento, buscava certa
mestria. Inclusive tivemos oportunidade de vê-lo prestar-se ao serviço de ensinar
quando foi convocado a ocupar a posição de professor de um de seus futuros mestres,
Zé Bebêlo. Contudo – parece-nos - a mestria de Riobaldo foi uma mestria advertida,
41
Concordamos plenamente com a indicação dada pela Profª Drª Nadiá Paulo Ferreira durante o Exame
Geral de Conhecimento - realizado em 22 de setembro de 2006 -, de que a “articulação entre as mulheres
de Freud (Dora, Sra. K, a Jovem homossexual, a paranóica crônica, Emmy von N.) e as mulheres do
Grande Sertão dariam panos para manga”. Na verdade, tivemos mesmo a intenção de sinalizar esta
possibilidade. No entanto, considerando a extensão desta pesquisa, vimo-nos na contingência de adiar tal
percurso.
119
pois ele sabia que “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”
(GSV, p.235).
Foi a partir disto que ele insistiu – na forma do querer e requerer - em
compor uma trajetória, um traçado capaz de dar a ver a diferença entre conhecer e saber.
Fez um apanhado de seu conhecimento sobre outros e concluiu que este lhe propiciava
um não-saber sobre si mesmo:
Medeiro Vaz reinou, depois [...] morreu em pedra. [...] Zé Bebelo me alumiou.
[...] Joca Ramiro, tão diverso e reinante, era como se já estivesse constando
falecido. [...] Sô Candelário se desesperou por forma. Meu coração é que
entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou
que se desfez, enterrado no meio dos carnaùbais, em chão arenoso salgado.
[...]. Diadorim me veio, de meu não-saber e querer (GSV, p.235-236).
Portanto, de um pai desfeito, morto e enterrado, de um querer sem saber, ou
melhor, de um não-saber que ainda assim insiste em querer, lhe veio Diadorim.
E Diadorim, o que queria?
Feita esta indagação, consideramos que, enfim, nos aproximamos do
cruzamento entre os caminhos do pai com as veredas para a feminilidade de uma filha.
Será neste sentido que caminharemos a partir de agora.
120
IV
UMA MULHER
4. 1 Introdução
Deixamos explícita nossa hipótese de que no Grande Sertão as questões
sobre a feminilidade de uma filha giram em torno da questão sobre a função do pai.
Cabe-nos agora verificá-la.
Neste intento, julgamos necessário relembrar que partimos da idéia de que a
problemática sobre o pai compõe o centro do redemoinho narrativo. Exerce, portanto,
uma força centrípeta capaz de atrair, para o ponto central do romance, - qual seja o
relato do assassinato do pai - quase todas as outras interrogações feitas pelo narrador.
Evidentemente, dentre estas, prepondera nosso interesse pelas interrogações sobre o
instigante Diadorim.
Tomamos como apoio a esta nossa decisão de retornar aos eventos centrais
do romance o fato de aí nos ser revelado o parentesco existente entre Diadorim e Joca
Ramiro. É também a partir deste ponto que o destino de Diadorim se mostra
expressamente vinculado ao encargo de vingar o assassinato daquele. Assim, para
resumir, consideramos que nossa tarefa, neste capítulo, consiste exatamente em verificar
as seguintes possibilidades:
Ou Diadorim levou às últimas conseqüências a obrigação de vingar a morte
de Joca Ramiro e com isso se manteve preso a este desígnio, por não conseguir superar
os obstáculos que se interpuseram impedindo seu acesso a um destino que lhe fosse
próprio; ou Diadorim conseguiu superar este desígnio de vingança e realizou uma
travessia em conformidade com suas próprias determinações.
Sendo assim, no que diz respeito à primeira possibilidade, cabe-nos apenas
averiguar de que maneira a morte de Joca Ramiro se constituiu como evento suficiente
para impedir Diadorim de seguir a singularidade de seu desejo.
Já em relação à segunda suposição, teremos de verificar até que ponto se
estendeu a relevância da morte de Joca Ramiro sobre a vida de Diadorim, além de
termos ainda que apurar se algum outro evento contribuiu no sentido de favorecer sua
caminhada rumo a um destino sui generis.
121
À primeira vista, estas duas possibilidades são mutuamente excludentes.
Neste caso, para chegarmos ao ponto de exclusão de uma delas, precisaremos antes
buscar um entendimento razoável sobre cada uma. Por isso, procuraremos identificar as
precedências do vínculo construído entre Diadorim e Joca Ramiro.
Feito isto, é possível que nos surja um complicador inesperado: é possível
que as hipóteses acima levantadas não sejam apenas excludentes. Devemos, então,
contar com a possibilidade de elas serem, ao mesmo tempo, exclusivas e inclusivas.
Neste caso, e por considerar de antemão que esta possibilidade deve ser
apreciada com cuidado, refazemos agora mesmo nossa formulação: Será que a relação
entre Joca Ramiro e Diadorim excluiu - até certo ponto - a possibilidade de este último
escolher as veredas que desejaria percorrer de tal forma que - a partir deste mesmo
ponto - tenha sido justamente esta relação que incluiu, ou seja, que implicou na escolha
singular de Diadorim?
Voltemos então ao momento retentivo em que foi anunciado: - “Mataram
Joca Ramiro!...” (GSV, p.224). Este momento, sendo o do referido fundo da questão, foi
aquele em que “[a]í estralasse tudo” (GSV, p.224) e no qual, pelo meio, se ouviu o
“uivo dôido de Diadorim” (GSV, p.224).
4. 2 “um feio dia”
Quando tudo estralou com a notícia do assassinato de Joca Ramiro,
Diadorim “[c]aiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava” (GSV, p.225).
Assim, tendo adquirido a cor de cera dos três reinos42 - mineral, vegetal e animal -,
Diadorim assumiu a coloração de tudo e depois amorteceu. Quando voltou a si, “[n]ão
quis apôio de ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais
vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam
lágrimas” (GSV, p.225).
Depois desta quase defunção, Diadorim, ressuscitado, teve um pensamento
aflito: “- “E enterraram o corpo?” – Diadorim perguntou, numa voz de mais dor, como
saía ansiada” (GSV, p.226). Porém, com a resposta de que não se sabia se Joca Ramiro
tivera sepultura, Diadorim tornou a empalidecer, tomou cachaça e falou sobre a
42
Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, a cera dos três reinos é uma mistura de
parafina (hidrocarboneto de origem mineral) com ceras de carnaúba (vegetal) e de abelhas (animal).
122
ruindade humana de um “modo que parecia ele não fosse jagunço, como era de se ser”
(GSV, p.227). De fato veremos que ele não o era.
Diadorim “fervia ali assim no pego do parado” (GSV, p.227), “engulia
palavras” (GSV, p.227) e foi tomado por uma outra preocupação: - “De tudo nesta vida
a gente esquece, Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra dele?” (GSV,
p.227).
Diadorim viveu então, a “misturação de carinho e raiva” (GSV, p.227) num
desespero que nunca se viu. Andou “sem governar os passos” (GSV, p.227) até que
Riobaldo o avistou “no chão, deitado de bruços. Soluçava e mordia o capim do campo.
A doideira” (GSV, p.227).
Foi ao ver Diadorim neste estado de profunda tribulação que Riobaldo amargurado pelo sofrimento que esmagava o amigo - perguntou: - “Joca Ramiro era seu
parente, Diadorim?” (GSV, p.227) Ao que ele respondeu “com uma voz de pouco
corpo” (GSV, p.227): - “Ah, era, sim...” (GSV, p.227).
Joca Ramiro era pai de Diadorim.
Contudo, ainda não foi em meio ao intenso padecimento que ele revelou a
Riobaldo o grau de seu parentesco com Joca Ramiro. Isto se deu depois, quando os
jagunços partiram para “a outra guerra” (GSV, p.226), a da vingança da morte do pai.
Partiram movidos pela “[...] tristeza em cru – sem se saber por que, mas que era de
todos, unidos malaventurados” (GSV, p.225).
Partiram sob o comando de Medeiro Vaz que “era homem de outras idades”
(GSV, p.30) e que “só guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. Joca Ramiro tinha
sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do
Rio” (GSV, p.30).
Assim é que são as coisas no Grande Sertão: “a gente quer passar um rio a
nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto mais em baixo, bem diverso do
em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?” (GSV, p.30).
É. Perigoso, e surpreendente, em suas torções. Tanto que não foi no calor do
sofrimento pela morte de seu pai que Diadorim, tão desfalecido, fraquejou revelando
sua filiação. A revelação sucedeu no ardor do ciúme, este que “é mais custoso de se
sopitar do que o amor” (GSV, p.30).
No dia seguinte à morte de Joca Ramiro, Diadorim estava “mudado triste,
muito branco, os olhos pisados, a boca vencida” (GSV, p.228). Num outro dia, comprou
“um grande lenço preto: que era para ter luto manejável, funo guardado em sobre seu
123
coração” (GSV, p.234). Depois, quando encontrou Medeiro Vaz, ele e o restante do
bando sentiram novo alento. Por isso Diadorim disse a Riobaldo “com um ar quase de
meninozinho, em suas miúdas feições. – ‘Riobaldo, eu estou feliz...’” (GSV,p.234).
Feliz porque lá iriam eles, comandados por Medeiro Vaz, atravessar o Liso
do Sussuarão, um lugar que “não concedia passagem a gente viva, era o raso pior
havente, era um escampo dos infernos” (GSV, p.29, grifo do autor). Iam atravessar este
lugar horrendo porque “pra por lá do Sussuarão, [...], um dos dois Judas possuía a sua
maior fazenda, [...], e lá morava sua família dele legítima de raça – mulher e filhos”
(GSV, p.31).
O projeto de atravessar o Liso do Sussuarão foi mantido em segredo:
somente Medeiro Vaz e Diadorim o sabiam. Aliás, a idéia - que se mostrou desastrosa
por ter causado muitas baixas no bando - partiu de Diadorim. Motivou-o a determinação
de matar os assassinos do pai: Hermógenes e Ricardão.
Para Diadorim, segundo ele próprio, era assim:
- “Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto
aqueles dois monstros não forem bem acabados...” E ele suspirava de ódio,
como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele
não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com
paciência [...] (GSV, p.26).
Acontece que o projeto secreto da travessia do Sussuarão foi revelado a
Riobaldo por Ana Duzuza, “uma velha arregalada, [...], dona adivinhadora da boa e má
sorte da gente” (GSV, p.29) e mãe de Nhorinhá, aquela mocinha meretriz com quem
Riobaldo esteve uma única vez.
Estando a par dos riscos que todo o bando correria ao enfrentar esta
travessia, Riobaldo procurou Diadorim para compartilhar com ele o desatino daquela
ação. Para sua surpresa, Diadorim não apenas já sabia como apoiava o projeto atribuído
a Medeiro Vaz. Aí foi o ciúme, “um ciúme amargoso” (GSV, p.30), pois pareceu a
Riobaldo que Medeiro Vaz tratava Diadorim de maneira diferenciada, confidenciava-lhe
projetos, compartilhava estratégias.
Se esta surpresa levou Riobaldo a vivenciar o ciúme amargoso, surpresa
ainda maior ele teve ao constatar o que provocou em Diadorim o desejo de matar Ana
Duzuza argumentando que ela era uma traidora: apesar do ódio sossegado, Diadorim
sentia por ele, Riobaldo, um ciúme de cobra:
124
Diadorim me adivinhava: - “Já sei que você esteve com a moça filha dela...” –
ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra
verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim
também se alteava (GSV, p.32).
Riobaldo insistiu em proteger Ana Duzuza, pois temia, cada vez mais, que
Diadorim resolvesse matar Nhorinhá também. Ameaçou largar o bando. Diadorim
apelou para o compromisso de vingar a honra de Joca Ramiro. Riobaldo se rebelou:
“todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo
Nosso Senhor, o exato?!” (GSV, p.32).
Diante da possibilidade da ruptura entre eles, Diadorim lançou mão de um
recurso extremo: revelou a Riobaldo o segredo a tanto ocultado: “– “Riobaldo, escuta,
pois então: Joca Ramiro era o meu pai...” – ele disse – não sei se estava pálido muito, e
depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim”
(GSV, p.32).
Neste ponto, algumas questões se impõem:
Primeiro, por que deste tropismo de Diadorim em relação à Riobaldo?
Segundo, por que Diadorim desejava que Riobaldo se mantivesse
empenhado na vingança por Joca Ramiro?
Terceiro, por quê, justamente ao destilar o veneno do ciúme, Diadorim, que
sabia cultivar um ódio paciente, revelou o segredo guardado a sete chaves sobre sua
filiação? Como sabemos, esta informação foi escondida - inclusive para nós, leitores deste a adolescência de Riobaldo e Diadorim. Não foi nesta época que eles se
encontraram pela primeira vez, às margens do de-Janeiro, e conversaram sobre os
ensinamentos do pai de Diadorim sobre a coragem? Por que Joca Ramiro não foi
mencionado deste então?
Quarto e mais importante, pelo menos para este momento: por que esta
paternidade foi mantida em segredo?
Tentaremos responder às questões acima levantadas, começando por esta
última. Acreditamos que por ela chegaremos à resolução das demais. Além do que,
acreditamos também que ela nos conduzirá ao entendimento da manutenção de um
outro segredo: aquele que envolve o fato de Diadorim ser uma mulher.
4. 3 Uma música inaudível
125
Ao compartilhar nossas reflexões com outras pessoas, nos tem sido freqüente
ouvi-las conjecturar que a paternidade de Joca Ramiro foi mantida em segredo porque,
sendo este um grande líder guerreiro, tanto ele quanto sua prole estariam sempre sob a
constante ameaça dos inimigos. De fato, já sabemos que a figura fascinante de Joca
Ramiro incitava não apenas amor e admiração, mas ódio. Faz bastante sentido, portanto,
nos contentarmos com o raciocínio de que, para proteger Diadorim das retaliações dos
inimigos, o parentesco entre eles tenha se mantido incógnito.
Contudo, nenhuma passagem do romance nos revela tal motivação. Mas,
ainda assim, esta argumentação pode se sustentar, pois o narrador deixa explícito que
realmente faz parte da lei do sertão que a pena de talião estenda sua escrita punitiva
geração após geração. Não foi aparentemente isto que motivou o próprio Diadorim a
planejar a travessia do Sussuarão a fim se ter acesso à fazenda onde se encontrava a
família “legítima de raça – mulher e filhos” (GSV, p.31) de um dos assassinos de Joca
Ramiro, o Hermógenes?
Porém, como dissemos, esta possibilidade se sustenta apenas aparentemente,
pois, ante a ameaça de ruptura feita por Riobaldo, Diadorim esclareceu sua conduta
diferenciada do que é um costume numa parte do meio jagunço:
- “Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não é preciso se haver
cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem nós vamos com Medeiro Vaz
para fazer barbaridade com a mulher e filhos pequenos daquele pior dos dois
Judas, tão bem que mereciam, porque ele e os da laia dele têm costumes de
proceder assim. Mas o que a gente quer é só pegar a família conosco
prisioneira; então ele vem, se vem! E vem obrigado para combates... Mas, se
você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza
mortal...” (GSV, p.34).
Sentimo-nos enormemente tentados a refletir sobre esta jura de Diadorim.
No entanto, a tarefa de entender o mistério que envolve sua filiação nos obriga a
suspender nosso ímpeto, até porque a veemência destas palavras de Diadorim ressoará
para nós num momento posterior.
Então, como vemos, é coerente supor que Joca Ramiro tenha escondido seu
vínculo com Diadorim para proteger este que - até onde se sabe - era seu único herdeiro.
A coerência desta premissa também nos serve para justificar que foi por
precaução que Joca Ramiro transmitiu a Diadorim seus maiores ensinamentos. Ensinoulhe sobre a coragem: - “Carece de ter coragem...” (GSV, p.83). Ensinou-lhe sobre o
medo: - “Meu pai me disse que não se deve de ter... ” (GSV, p.83). Foi modelo de
126
virilidade para Diadorim: - “Meu pai é o homem mais valente deste mundo...” (GSV, p.
83). E mais, Joca Ramiro soube marcar a importância da singularidade e da falta em
Diadorim: “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente,
muito diferente...” (GSV, p.86).
Como poderia ser de outra forma para uma menina, filha do “grande homem
príncipe” (GSV, p.16), nascida num meio onde o que impera “é a misericórdia duma
boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada” (GSV, p.204)?
Que mais restaria a ela senão ser diferente já que fora criada sob a “Lei de
jagunço [que] é o momento, o menos luxos” (GSV, p.204)? Que outro caminho poderia
haver para uma menina que era filha de um chefe jagunço, que conviveu com muitos
outros jagunços, senão tornar-se ela própria um deles, tornar-se jagunço, este que “já é
por alguma competência entrante do demônio” (GSV, p.11)?
Portanto, toda esta argumentação de que as medidas protetoras paternas eram
inevitáveis se mostra perfeitamente plausível e coerente... Mas não o suficiente.
Na verdade, se insistirmos em defender a tese de que os rumos adotados por
Diadorim resultam, de maneira simples e direta, da atitude diligente de seu pai,
esbarraremos na constatação de que este não era o único, tampouco o melhor, recurso de
que ele dispunha para resguardar a filha dos perigos do sertão.
Joca Ramiro era valente. Poderia defendê-la bravamente e sem ter de
recorrer ao expediente de camuflar seu parentesco.
Além disto, era poderoso. Participava - como muito bem percebeu Bolle
(2004, p.286) -, da rede dos abastados fazendeiros e políticos locais e mantinha
“conexões [que alcançavam] o nível nacional”. Suas campanhas eram financiadas por
aqueles que Bolle (2004, p.286, grifo do autor) descreve como sendo os ““verdadeiros
donos do Brasil”, isto é, de senhores sobre a vida e a morte das pessoas comuns. Seu
poder é poder de matar”.
Sendo assim, Joca Ramiro poderia, por exemplo, ter patrocinado para a filha
uma vida confortável e segura em qualquer outra localidade. Poderia, simplesmente, têla afastado da ambiência inóspita do sertão, ao invés de, paradoxalmente, introduzi-la
no meio jagunço. Aí está o principal indicativo de que a atitude deste pai contradiz a
tese discutida até agora.
Parece-nos bastante claro que os atos de Joca Ramiro em relação a Diadorim
não se fundamentaram na evitação dos riscos a que a filha estaria exposta. Muito ao
contrário. Joca Ramiro foi tomado por Diadorim como o modelo a ser seguido e assim,
127
ela viveu - como ele e com o consentimento dele - as guerras do sertão. Se estivermos
corretos, Diadorim identificou-se ao pai e o fez de forma apaixonada.
Já foi expresso que a menina realmente se identifica ao pai. Não há nada de
extraordinário nisto, pois, como argumenta Freud (1980 [1923], v.XIX, p.45), a
propósito da constituição do ideal do eu, por trás desta idealização “jaz oculta a primeira
e mais importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai em sua
própria pré-história pessoal”.
Vale ressaltar também o comentário de Freud (1980 [1923], v. XIX, p.45)
feito em nota de rodapé sobre essa identificação com o pai: “Talvez fosse mais seguro
dizer ‘com os pais’, pois antes de uma criança ter chegado ao conhecimento definitivo
da diferença entre os sexos, a falta de um pênis, ela não faz distinção de valor entre o
pai a e a mãe”.
Posteriormente, ao reconhecer que o primeiro objeto de amor, tanto de
meninos quanto de meninas, era a mãe e também ao reconhecer as conseqüências
psíquicas da diferença sexual, Freud (1980 [1925], v. XIX, p.312) levantou um
importante questionamento: “Em ambos os casos, a mãe é o objeto original, e não
constitui causa de surpresa que os meninos retenham esse objeto no complexo de Édipo.
Como ocorre, então, que as meninas o abandonem e, ao invés, tomem o pai como
objeto?”.
Neste ponto, antes de podemos avançar na busca de resposta para esta
questão, nos surge uma grande complicação: o que sabemos sobre a mãe de Diadorim?
Sob certa perspectiva, sabemos praticamente nada. Porém, esta mesma
perspectiva de não saber pode nos levar a saber muito.
Ao longo das quatrocentos e sessenta páginas do Grande Sertão, apenas por
uma única vez se fala – de forma absolutamente lacônica - sobre a mãe de Diadorim.
Isto se deu exatamente no seguimento daquela cena de ciúmes desenrolada entre
Riobaldo e Diadorim. O caráter aparentemente incidental desta revelação denuncia sua
importância.
Voltemos então à cena de ciúme:
Dissemos que este foi o momento em que, ante o risco de se ver abandonado
por Riobaldo, Diadorim revelou o segredo guardado a sete chaves de seu parentesco
com Joca Ramiro. Esta revelação teve o efeito de favorecer Riobaldo com um
esclarecimento e, como que em retribuição, ele também fez, mentalmente, uma jura:
“Coração – isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro. O amor, já de si, é algum
128
arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de
seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem” (GSV, p.34).
Acontece que Diadorim não poderia prever que Riobaldo se determinava
desta forma. Por isso, “quem sabe para deduzir da conversa” (GSV, p.34), perguntoulhe: - “Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que
era a dela...” (GSV, p.34). Contudo, Riobaldo, incomodado com pergunta tão direta, não
precisou se esquivar de respondê-la já que Diadorim foi logo lhe presenteando com uma
nova revelação: - “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim prosseguiu no dizer. E
disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse
cego de nascença” (GSV, p.34,35, grifos do autor).
Como lidar com tamanha vaguidade? A saída que nos foi possível encontrar
é a que se segue:
A “curteza simples” com que Diadorim se refere à mãe, nos dá a entender
que o fato de não tê-la conhecido é, ou tornou-se, para ela, um fato trivial. Tanto quanto
se tivesse apenas pronunciado palavras quaisquer, desconexas: “barra – beiras –
cabeceiras...”.
No entanto apreciemos algumas particularidades desta passagem:
A propósito dos caracteres em itálico aí utilizados julgamos com Mendes
(1998, p.53-54) que este
[t]exto escrito sob o signo da dor, da morte, da falta, Grande Sertão: Veredas
traz marcas visuais tão expressivas e portadoras de significados quanto as
palavras escritas; se colocam aos olhos do leitor, convidando-o a considerar o
livro como um precioso objeto, que, além de lido, deverá ser contemplado.
Produzido segundo leis próprias, imporá um outro caminho de percepção e de
leitura, pela bordadura das marcas autorais, dos ornamentos, da imposição de
uma determinada respiração, ao executar o ato físico de ler.
Assim, resta-nos tentar percorrer algum outro caminho de percepção e
leitura.
Especificamente em relação às três palavras grifadas pelo autor nesta
passagem do texto escrito, Mendes (1998, p.59) ainda interpreta que elas compõem o
conjunto de “determinadas frases, que são mais desenhos decorativos de fragmentos de
outras frases ou de possíveis poemas que propriamente simples frases prosaicas”.
A partir desta percepção, sentimo-nos à vontade para reconhecer que este
bordado, inquestionavelmente, ressalta a informação. Não fosse a presença dos
ornamentos, talvez incorrêssemos no equívoco de deixar a informação passar
129
despercebida ou nos contentássemos em achá-la corriqueira. No entanto, por conta dos
adornos, permitimo-nos fazer algumas associações.
Trataremos a insólita eloqüência deste trecho dividindo-o em três partes
conforme sua musicalidade. Seria como se cada uma das partes aí estivesse com o único
intuito de se reforçarem mutuamente, ligando, mas também recobrindo, uma inerente
insensatez. Para nós, as tais palavras que inicialmente nos soavam desconexas,
funcionariam antes, como elos que ligam uma música inaudível.
Primeiro, temos o inesperado prelúdio: - “Pois a minha eu não conheci...”.
Depois, temos o enigmático interlúdio que deixa em suspenso nossa expectativa por
maiores detalhes: “barra – beiras – cabeceiras...”. Assim, nos interrompendo com os
limites da “barra” e das “beiras”, este interregno nos conduz, simultaneamente, ao topo,
às “cabeceiras”, à extremidade mais alta de algo. Sustenidos - com o sentido alterado
pela elevação -, caímos, finalmente, no poslúdio que encerra a música mais importante:
“Fosse cego de nascença”.
Que música mais importante seria esta senão a música da pretérita relação de
Diadorim com sua mãe? Uma música inaudível, posto que inescrutável?
O que poderia ter determinado este desconhecimento não temos como saber.
Talvez a mãe de Diadorim tenha morrido. Talvez simplesmente tenha ido embora. Não
sabemos. E, de certa forma, não importa. Podemos prever que o resultado de qualquer
uma destas possibilidades será o mesmo: um lugar vazio. É justamente disto que
deduzimos a culminância da mãe de Diadorim em sua vida, apesar de ela ter sido, desde
o nascimento, nunca vista.
Interrogamos: uma falta assim tão precoce e definitiva do primeiro objeto de
amor, não teria como conseqüência, justamente, favorecer a eleição, também precoce,
do pai como objeto de amor?
Acaso não será possível depreender que o olhar cegado de Diadorim em
relação à mãe tenha sido substituído pelo olhar fascinado dirigido ao pai?
Sabemos que a menina sai da relação pré-edipiana com a mãe ao perceber
que este vínculo se mostra sem futuro: a mãe lhe é interditada. Além disto, mantendo-se
nesta relação, a filha não terá acesso à feminilidade, mas sim, como afirma Freud (1980
[1931], v.XXI, p.275), “à catástrofe”, quer dizer, a conseqüências graves e até mesmo
funestas de um aprisionamento ao desejo materno.
Por isso a menina se volta para o pai, de quem espera receber o que lhe falta,
o falo. O pai então passa a ocupar o lugar vacante da mãe, quer esta - ou qualquer outra
130
pessoa que faça as vezes de mãe - esteja viva ou morta, quer continue presente, ou
simplesmente tenha se ido.
A partir disto, argumentamos que a medida da paixão de Diadorim por Joca
Ramiro tem uma magnitude tão significativa quanto teria seu apego à mãe faltante, a
este objeto que, por estar tão irremediavelmente perdido, suscita reiteradamente, um
substituto à altura.
Acontece que, ao entrar na relação edipiana com o pai, - cedo algumas vezes,
tarde outras, e, não raro nunca - a filha talvez reconheça, dependendo do caso, que mais
uma vez entrou numa relação sem futuro. O pai também lhe é interditado e, junto a ele,
ela encontrará as insígnias fálicas, mas não a feminilidade.
4. 4 Joca Ramiro: um sol de alegria para Diadorim
O movimento de voltar-se para o pai e tomá-lo como objeto de amor
desempenha um papel fundamental na constituição do sujeito. É este movimento que
permitirá tanto a meninos quanto a meninas saírem da relação fechada com a mãe.
No caso do menino, ao voltar-se para o pai, ele sai da relação edipiana com a
mãe. Suas tendências libidinais em relação a ela são, como afirma Freud (1980 [1924],
v. XIX, p.221), “em parte dessexualizadas e sublimadas [...] e em parte são inibidas em
seu objetivo e transformadas em impulsos de afeição”. O menino passa então a nutrir
sentimentos de ternura pela mãe ao mesmo tempo em que encontra, através da
identificação com o pai, sua via de acesso à masculinidade.
A menina realiza este mesmo percurso de afastamento da mãe com a
diferença de que, ao voltar-se para o pai ela entra na relação edipiana com este.
Segundo Freud (1980 [1932], v.XXII, p.150),
[o] afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade;
a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio desta espécie pode tornar-se
muito influente e durar toda a vida; pode ser muito cuidadosamente supercompensado, posteriormente; geralmente, uma parte dele é superada, ao passo
que a parte restante persiste.
Partindo desta constatação, Freud então enumerou a série de argumentos
forjados pela menina no sentido de justificar seu afastamento da mãe. Acontece que
Freud (1980 [1932], v. XXII, p.150) foi perspicaz o suficiente para perceber que a
maioria destes argumentos, ou mesmo queixas contra a mãe, “são evidentes
131
racionalizações e as verdadeiras origens da hostilidade restam por ser encontradas”. A
mãe não a amamentou de maneira adequada ou por tempo suficiente, a substituiu por
outro filho, os cuidados maternos por vezes se assemelhavam a atos sedutores, a mãe
mostrou-se severa em relação às descobertas da sexualidade por parte da filha, etc, etc...
Não obstante, Freud (1980 [1932], v.XXII, p.153, grifo do autor) foi ainda
mais longe: “Todos esses fatores – as desfeitas, os desapontamentos no amor, o ciúme, a
sedução seguida da proibição – afinal também estão atuantes na relação do menino com
sua mãe e, ainda assim, não são capazes de afastá-lo do objeto materno”.
Por isso Freud (1980 [1932], v.XXII, p.153) localizou a problemática
relação entre mãe e filha no complexo de castração: “as meninas responsabilizam sua
mãe pela falta de pênis nelas e não perdoam por terem sido, desse modo, colocadas em
desvantagem”. Portanto, a filha sempre se mostrará queixosa em relação à mãe. Esta apesar de muito amada e mesmo se mostrando amorosa para com a filha - será sempre
considerada como insuficiente. A demanda de amor, por parte da filha, é inesgotável.
A partir disto, Freud (1980 [1932], v.XXII, p.155) demarcou três vias para o
desenvolvimento de uma menina: “uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à
modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira,
finalmente, à feminilidade normal”.
Deste estudo do processo de identificação de uma mulher com sua mãe
Freud (1980 [1932], v. XXII, p.164) concluiu, além do que foi exposto, que nos é
permitido
distinguir duas camadas: a pré-edipiana, sobre a qual se apóia a vinculação
afetuosa com a mãe e esta é tomada como modelo, e a camada subseqüente,
advinda do complexo de Édipo, que procura eliminar a mãe e tomar-lhe o
lugar junto ao pai. Sem dúvida justifica-se dizermos que muita coisa de ambas
subsiste no futuro e que nenhuma das duas é adequadamente superada no curso
do desenvolvimento.
Ora, fundamentados nestes esclarecimentos, o que podemos inferir sobre
Diadorim?
Apenas um fugaz comentário nos permite identificar alguma figura feminina
que possa, talvez, ter ocupado o lugar esvaziado de sua mãe. De resto, e ao que tudo
indica, desde a infância, sua vida girou principalmente em torno do pai e em meio aos
irmãos e amigos deste - todos homens, a maioria jagunços.
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Foi na companhia de um tio que Riobaldo o encontrou pela primeira vez no
porto do de-Janeiro onde primeiro avistou “dois ou três homens de fora” (GSV, p.80)
comprando alqueires de arroz. Depois, viu Diadorim, o Menino:
Ali estava, com chapéu-de-couro, de sujigola abaixada, e se ria para mim. Não
se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, com
voz muito natural, que aquele comprador era tio dele, e que moravam num
lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha nascido (GSV,
p.80).
O mundo diverso em que Diadorim morava era bom? “– “Demais...” – ele
me respondeu; e continuou explicando: - “Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano
não plantou, porque enviuvou de morte de minha tia...”” (GSV, p.80,81).
Teria, então, cabido a essa tia fazer as vezes de mãe de Diadorim? Não
podemos responder ao certo. De qualquer forma, esta também logo desapareceu de sua
vida. Além do que, mesmo que esta tia tenha influenciado de alguma maneira no
desenvolvimento de Diadorim, pelo visto não o fez a ponto de servi-lhe como modelo
feminino. Desde então Diadorim não já se portava e vestia tal qual um menino?
Não sabemos o que motivou a separação de Diadorim de sua mãe.
Tampouco sabemos a partir de qual idade este evento ocorreu. O fato é que, como toda
criança, Diadorim enfrentou a questão da separação da figura materna. Como
decorrência, teve de partir em busca de um objeto que se mostrasse capaz de preencher
o lugar vazio deixado por ela.
Lembremos que a questão da função, paterna ou materna, é uma questão de
lugar. Um lugar vazio na função. Este pode ser preenchido por vários argumentos. O
lugar vazio da função paterna pode vir a ser preenchido, inclusive, pelo pai da criança,
mas também pela mãe, por um outro parente, tio, avô, avó etc. O mesmo acontece com
a função materna (CORRÊA, 2005)43.
No caso de Diadorim, parece-nos bastante evidente que a função paterna foi
preenchida, realmente, por Joca Ramiro, seu pai. Já em relação à função materna apesar de Diadorim não ter conhecido a mãe -, não nos parece que esta tenha sido
preenchida, por exemplo, pela tal tia de que falamos. Acreditamos que para Diadorim a
função materna foi preenchida mesmo pela própria mãe desconhecida.
Diadorim sabia que tivera mãe e sabia, seja lá por qual motivo, que a havia
perdido. Não aprendemos com Lacan que indicar a ausência de alguma coisa já é tornar
43
Comunicação oral proferida por Ivan Corrêa durante seminário ocorrido em Fortaleza em abril de 2005.
133
possível sua presença pela simbolização? (LACAN,1995). A partir da simbolização da
ausência da mãe, Diadorim teve de buscar um substituto, no sentido de ser aquele que
supre, mas não na acepção que esta mesma palavra tem de remeter àquele que exerce as
funções de outrem em sua ausência.
Defendemos que, neste movimento, a menina realiza mais que uma
substituição. O pai não substitui a mãe no sentido de passar a exercer a função desta. Ele
continua na função de pai, o que conduz a filha a enfrentar uma transformação.
Voltando-se para o pai, ela se vê na contingência de tomar nova feição, de mudar.
Além disto, se considerarmos que, por um lado, a relação da criança com a
mãe origina-se em meio à coisas preestabelecidas - já que a mãe é o objeto primordial
de amor de toda criança -, por outro, sua relação com o pai advém de uma escolha mesmo que forçada -, pois a mãe é interditada.
Ao lado disto, se considerarmos que enquanto para o menino esta escolha
resolve o problema da identificação sexual - ele encontra um caminho para a
masculinidade -, para a menina o problema persiste. Ao se identificar ao pai, ela percebe
que é possível se transformar num menino, mas, então, como se transformar numa
mulher? Para resolver este impasse, ela se volta novamente para a mãe, aquela que
ocupa o lugar do feminino.
No caso de Diadorim, sabemos que sua mãe lhe é desconhecida. Seguindo
este raciocínio, dissemos que o olhar cegado de Diadorim se transformou num olhar
fascinado.
O objeto de fascinação do olhar de Diadorim foi, inquestionavelmente, o pai.
Quando Riobaldo o encontrou pela primeira vez, ele já exaltava a valentia do pai.
Depois, na mocidade, quando se reencontraram e Diadorim se apresentou como sendo
Reinaldo, a profunda admiração continuava ampliada:
- “Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo...” – o Reinaldo veio
dizendo. – “Vai ver que ele é o homem que existe mais valente! Me olhou,
com aqueles olhos quando doces. E perfez: - “Não sabe que quem é mesmo
inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!” Isto
ele falou” (GSV, p.116).
Para ele, “Joca Ramiro era um imperador em três alturas! Joca Ramiro sabia
o se ser, governava; nem o nome dele não podia atôa se bajular” (GSV, p.138).
Quando enfim chegou o dia de Riobaldo conhecer Joca Ramiro, os olhos de
Diadorim ganharam um brilho especial:
134
Vi um sol de alegria tanta, nos olhos de Diadorim, até me apoquentou. Eu
tinha ciúme? – “Riobaldo, tu vai ver como ele é!” – Diadorim exclamou, se
abraçou comigo. Parecia uma criança pequena, naquela bela resumida
satisfação. Como era que eu ia poder raivar com aquilo? (GSV, p.189).
Este era, mesmo na vida adulta, o resultado da fascinação de Diadorim por
Joca Ramiro: uma bela satisfação de criança.
E Joca Ramiro, como é que ele se comportava frente a Diadorim?
O andar dele – vi certo: alteado e imponente, como o de ninguém. Diadorim
olhava; e também tinha lágrimas vindo por caso. Decidido, deu um passo àfrente, pegou a mão de Joca Ramiro, beijou. Joca Ramiro, que firme
contemplando, só um instante, seja, mas o docemente achável, com um calor
diferente de amizade. A quantia que ele gostava de Diadorim! – e pousou nas
costas dele um abraço (GSV, p.190).
Poderíamos ir muito mais longe enumerando as referências que nos
permitem apreciar a relação fascinada estabelecida entre Diadorim e Joca Ramiro. No
entanto, prestemos mais atenção a esta cena, pois ela é também o relato do último
encontro de Diadorim com seu pai. Depois disto, Joca Ramiro foi assassinado.
Reproduzimos, a seguir, o momento em que eles se despedem:
Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete – ladeado por Sô Candelário
e o Ricardão, igual iguais galopavam. Saíam os chefes todos – assim o
desenrolar dos bandos, em caracol, aos gritos de vozear. Ao que reluzia o bem
belo. Diadorim olhou, e fez o sinal-da-cruz, cordial. – “Assim, ele me botou a
benção...” – foi o que disse (GSV, p.217).
Assim o pai se foi, para sempre, rodeado por um caracol... Estendeu,
ampliou o vórtice. Produziu redemoinho!
Assim restou Diadorim, abençoado pelo pai e pondo, ele próprio, sobre si o
sinal de uma cruz...
4. 5 As roupas de Diadorim
Mas não foram apenas a benção do pai e o sinal de uma cruz as únicas coisas
postas sobre Diadorim.
Para Freud (1980 [1931], v.XXI, p.260) a sucessão de camadas que
recobrem a mulher se mostra tão surpreendente que revela-las seria “tal como a
135
descoberta, em outro campo, da civilização mino-miceniana por detrás da civilização da
Grécia”.
A partir desta surpreendente descoberta, ele observou que uma mulher
persiste recoberta, pelo resto da vida, por duas camadas: aquela composta pelo vínculo
pré-edipiano com a mãe e a advinda do complexo de Édipo com o pai. Mas com
Diadorim aconteceu ainda de a mulher ter sido recoberta por roupas masculinas.
Estas teriam sido suas primeiras roupas? Podemos, com certeza, afirmar que
não.
A primeira roupa que vestiu Diadorim foi aquela que veste qualquer pessoa:
a linguagem. Esta mesma que, segundo Dias (1997, p.22), “preexiste à existência de
cada um, e, por isso mesmo, é condição de nossa constituição”.
Antes mesmo de nascer, somos vestidos pela linguagem que veicula o desejo
de outros, dos pais: o filho, ou a filha, será isso, será aquilo, deverá não sentir medo,
terá coragem, usará roupas tais...
Assim, da linguagem à roupa consideramos com Dias (1997, p.30) que
[...] uma vez que a linguagem não é inefável, e sim material, a materialidade
da roupa traz de volta a própria condição do ser sexuado. Incapaz de
sobreviver só, ele se funda numa relação constitutiva aonde seu semelhante
possui papel destacado. Destaque que vai desde a pregnância da imagem até o
caráter de fascinação como unidade que ela promove em seu devir como
humano. Voltado a sustentar uma imagem própria, condição de sua
estruturação, ele se interessará pelas roupas como recurso que lhe reenvia ao
eixo com o semelhante.
Sabemos que Diadorim parecia um cego de nascença em relação à mãe.
Como poderia, então, ter se interessado pelas roupas ostentadas por ela? E mais, o que
nós – e talvez Diadorim! - sabemos sobre as roupas usadas por esta mãe? Nada.
Portanto, não podemos inferir de maneira leviana que ela, a mãe de Diadorim,
necessariamente usasse roupas femininas.
Em contrapartida, sabemos do destaque da figura paterna no olhar de
Diadorim. Não era ele “um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito,
aqueles olhos. [...] Os cabelos pretos anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem.
Liso bonito” (GSV, p.189,190).
Lembrar de Joca Ramiro é nos deparar com
um porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar
bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando.
136
Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os
homens, ele tinha uma luz, rei da natureza (GSV, p.32).
Joca Ramiro era elegante, “era lorde” (GSV, p.197). Tinha nobreza no
aspecto: “[...] o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a
lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. [...]
era homem bonito, caprichado em tudo. [...] era homem gentil” (GSV, p.91).
Portanto, a própria imagem de Diadorim sustentava também ela, desde
menino, roupas “que não tinham nódoa nem amarrotado nenhum, não fuxicavam”
(GSV, p.82) e “chapéu-de-couro, de sujigola abaixada” (GSV, p.80). Lembremos que o
regionalismo brasileiro permite associar o chapéu-de-couro ao recruta. Assim, por volta
dos quatorze anos, Diadorim já era como que um novato, um recém introduzido nas
artes da guerra.
Diadorim era, desde a infância, “asseado e forte” (GSV, p.82), e quando
moço, era “variado e vistoso” (GSV, p.107). Costumava acertar o cabelo “que já estava
cortado baixo” (GSV, p.113). Portava “colete-jaleco” (GSV, p.225). “Diadorim, todo
formosura” (GSV, p.385) era “tão galante moço, as feições finas caprichadas” (GSV,
p.123).
Assim, no começo, Diadorim portava camadas, uma cruz e roupas
masculinas. Depois, mas só bem depois, veremos Diadorim “nú de tudo” (GSV, p.453).
Neste momento teremos conhecimento de tudo o que estava escondido deste então?
Podemos ser veementes ao responder com Lacan (1997, p.277) que não, pois a nudez,
“[o] que ela tem de particularmente exaltante, significante por si mesma, é que ainda há
um para-além dela que ela esconde”.
Por isso retornamos a Dias (1997, p.72) para fazer ressaltar que
[a] nudez está para além do corpo desnudo. É uma redução acentuada
confundir o que há de verdade na sexualidade com a sensação de vergonha,
prazer, ou liberdade de estar sem roupa. A nudez diz respeito a esse sentimento
profundo de não ser por inteiro. Para tanto, não é preciso confundir não ser por
inteiro com a vivência da falta de algum objeto em particular. Pelo contrário, a
falta, tal como ela é evocada pela nudez, tem a ver com a impossibilidade de
que haja uma roupa, um artefato simbólico, que cubra o ser por inteiro. A
nudez remete a um ser que não se cobre definitivamente. Neste sentido,
tampouco haverá uma roupa que satisfaça totalmente o sujeito.
Tal observação nos dá oportunidade de lançarmos como hipótese que as
roupas masculinas de Diadorim recobriam, mas não definitivamente, a mulher. Parecenos que, mesmo se apresentando sempre de maneira tão caprichada quanto Joca Ramiro,
137
o capricho de Diadorim deixa escapar algo que veicula uma singularidade. Neste
sentido, acreditamos também que, mesmo tendo adotado para si o que lhe fora instituído
por outrem, as roupas de Diadorim demonstram, ao mesmo tempo, o sucesso e o
fracasso da roupa em velar uma mulher, pois, como afirma Dias (1997, p.114), “uma
mulher não se deixa vestir pelos limites do que existe como instituído”.
Para entendermos a extraordinária relação da roupa com a mulher,
precisamos considerar, como Dias (1997, p.115) que a vestimenta reenvia o ser à
linguagem, e, justamente em decorrência disto, é possível supor que o campo do
feminino não seja “vestido inteiramente por linguagem”.
Tendo esta premissa como ponto de partida, seguiremos agora com o estudo
realizado pelo autor sobre a função do véu nos países islâmicos por acreditarmos que ele
nos fornece uma bela via de acesso ao entendimento da função das roupas de Diadorim.
Segundo Dias (1997, p.118), o véu não é um mero elemento decorativo,
“[m]ais do que isso, ele assume uma função bastante precisa – neutralizar a presença da
mulher”. Tal asserção se fundamenta no fato observado por Dias de
[a]inda que em muitos países mulçumanos a desobediência ao uso do véu varie
do espancamento à morte, há, para as mulheres que o adotam, um detalhe que
escapa ao controle da tirania – a incandescência do olhar. Através dele, elas
deixam transparecer que não estão totalmente vestidas, mesmo que cobertas
com roupas. Nesse caso, o olhar está para além da visibilidade dos olhos. Faz
constar um desejo que é dirigido ao Outro a quem se procura enfeitiçar (DIAS,
1997, p.118).
Podemos estender esta percepção a Diadorim? Verifiquemos.
Observando Diadorim, Riobaldo comenta: “Guardei os olhos, meio
momento, na beleza dele; guapo tão aposto – surgido sempre com jaleco, que ele tirava
nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho44, curtido com aroeirabrava e campestre” (GSV, p.135).
A incandescência dos olhos de Diadorim pode ser percebida desde a
infância, quando já “era um menino bonito, claro, com testa alta e os olhos aos-grandes,
verdes” (GSV, p.80).
44
Apenas para não perdermos o lirismo das referências aos olhos de Diadorim não nos deteremos - pelo
menos não agora -, na ambivalência do couro que vestia Diadorim: um “couro de veado macho”, de um
cervídeo, mas que também nos remete ao homossexual, ao homem efeminado, aqui, paradoxalmente,
macho.
138
Impossíveis olhos de beleza verde que adoeciam, que cegavam, pois, como
afirma Lacan (1997, p.340), “[o] efeito da beleza é um efeito de cegamento. Ainda
ocorre algo para além dela, que não pode ser olhado”. Este efeito não deixou de se
manifestar sobre Riobaldo:
Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele,
ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses
olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível
(GSV, p.38).
Riobaldo foi cativado pelos olhos de Diadorim: “Mas, Diadorim? De olhos
os olhos agarrados: nós dois” (GSV, p.65).
Olhos cuja opacidade - causada pela cegueira da orfandade materna - reluzia
e transformava, adotando o brilho dos olhos de outra mãe: “Doçura do olhar dele me
transformou para os olhos de velhice da minha mãe” (GSV, p.115).
“Diadorim, com as pestanas compridas, os moços olhos” (GSV, p.305), ao
mesmo tempo, envelhecidos por velhos segredos querendo se revelar, e pelos quais até
se morre:
Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de
todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão
moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a
idéia da gente não dá para entender – e acho que é por isso que a gente morre
(GSV, p.219).
No desamparo, “os olhos de Diadorim me pediam muito socorro” (GSV,
p.345). No vislumbre, “[o]s olhos – vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum
verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto” (GSV, p.374).
Diadorim - “[o]s olhos dele ficados para a gente ver” (GSV, p.453) –, “assim
se desencantava, num encanto tão terrível” (GSV, p.454). Olhos estupeficados na
exibição do estupendo... Veremos.
Por ora, fixemos os olhos de Diadorim que enfeitiçavam. Sempre.
Foi assim que, encantados, o vimos - até ele se desencantar num encanto
ainda maior - atravessar todo o Grande Sertão portando suas roupas masculinas com um
brio excepcional.
139
Por conta disto, defendemos a idéia de que suas roupas têm a mesma função
do véu mulçumano. Porém, a condição de Diadorim difere, ao nosso ver, em muito, da
condição das mulheres mulçumanas.
Suas roupas têm, como o véu, a função de neutralizar a presença feminina no
meio jagunço. Podemos dizer que elas foram mesmo usadas enquanto expediente capaz
de anular o poder de sedução da mulher. Mas, como vimos, seu êxito foi parcial. Apesar
das roupas, brilhava e enfeitiçava o capricho, a vontade livre, dos olhos de Diadorim:
“Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz” (GSV, p.308).
Além disto, como afirma Dias (1997, p.119,120), o véu iguala todas as
mulheres. É, portanto, um “[r]ecurso secular de masculinização” que tem como fim
último a segregação da mulher e a preservação da “servidão como meio de relação entre
os sexos”.
Ora, não observamos que tenha acontecido nada desta ordem com Diadorim.
Mesmo “semelhasse maninel” (GSV, p.324), como esclarece Martins (2001, p.319),
“mocinho delicado, gentil, homem efeminado”, ele “guerreava delicado e terrível nas
batalhas. [...] diabrável sempre assim, [...]: o único homem que a coragem dele nunca
piscava; [...]. Aquilo era de chumbo ferro” (GSV, p.324).
Ele era aquele que, desde menino, tinha muita coragem. Tanta que, já no
primeiro encontro com Riobaldo no de-Janeiro, não relutou em esfaquear um homem,
um mulato que, ao vê-los sozinhos, quis assediá-los:
- “Vocês dois, uê, hem? Que é que estão fazendo?... [...] Hem, hem? E eu?
Também quero!”. [...] Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do
menino dizer: - “Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeito
dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou
para se sentar juntinho dele. [...] Só foi assim. Mulato pulou para trás, ô de um
grito, gemido urro. Varou o mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O
menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na
coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue
ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo
capricho. – “Quicé que corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr
na bainha (GSV, p.85).
Todavia, para sermos rigorosos, precisamos reconhecer que Diadorim viveu
de certa forma a servidão. Viveu, na verdade, a desobediente escravidão que imortaliza:
“[...] senti que Diadorim não era mortal. E que a presença dele não me obedecia. Eu sei:
quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade...” (GSV,
p.418).
140
Já dissemos: Diadorim tinha seus caprichos, “pertencia a sina diferente”
(GSV, p.323).
Assim como as mulçumanas, viveu sob o peso de um véu masculinizante.
Mas, ao contrário destas, este mesmo véu lhe deu acesso a um caminho singular. Se
Diadorim não foi igual aos outros - seus companheiros de jagunçagem -, muito menos
foi forçado a igualar-se a todas as outras. Diadorim era “dessemelhante, já disse, não
dava minúcia de pessoa outra nenhuma” (GSV, p.82).
Diadorim tinha o olhar caprichoso, esmerado, “esmartes olhos, botados
verdes” (GSV, p.81). E, mesmo que tenha sido cegado, não foi emudecido. Jamais foi
ingnóbil: “ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse
obedecido, com as sete pedras. [...] E ele, [...], era tão galhardo garboso, tão governador
[...]” (GSV, p.116).
É bem verdade que teve de percorrer a vereda da masculinização. Diadorim
“[t]inha [seus] fados” (GSV, p.120) e sabia que “[a] vida da gente faz sete voltas – se
diz. A vida nem é da gente... Ele falava aquilo sem rompante e sem entornos, mais antes
com pressa, quem sabe se com tico de pesar e vergonhosa suspensão” (GSV, p.120).
Cabe-nos, então, tentar entender a pressa, o pesar e a vergonhosa suspensão
de Diadorim. Sobretudo por termos em perspectiva que estes são indícios de um
capricho especial, um capricho, sem dúvida, “diferente, muito diferente...” (GSV, p.86).
4. 6 Em nome do pai
Mesmo que a função desempenhada pelas roupas de Diadorim seja
inteligível, persiste a questão: por que Diadorim vestia-se com roupas masculinas?
Tentar respondê-la melhor é sair no encalço de algumas outras questões: por que
Diadorim freqüentou tão assídua e acirradamente a posição masculina e assumiu um
nome falso, Reinaldo? E mais: por que Diadorim, depois, nomeou-se Diadorim?
Sobre o nome falso ele é claro: “[...] eu não me chamo Reinaldo, de verdade.
Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me
perguntar por quê. Tenho meus fados” (GSV, p.120, grifo do autor).
Não somos Riobaldo. Tampouco nos convém deixar de perguntar o porquê.
Ainda mais quando Diadorim nos diz que isso decorre do peso de seus fados. O fado é
141
um decreto do destino, um vaticínio, algo predito. No caso, quem lhe teria predito esse
falso nome?
É difícil perceber a coerência de nome, roupas e coragem, todos masculinos,
de Diadorim? É temerário afirmar que tal destino esteja relacionado ao desejo de seu
pai? Não fosse a idade, até mesmo uma criança o perceberia como Riobaldo notou
depois, ao relembrar o encontro do de-Janeiro: “Mais, que coragem inteirada em peça
era aquela, a dele? De Deus, do demo? [...] E o que era que o pai dele tencionava? Na
ocasião, idade minha sendo aquela, não dei de mim esse indagado” (GSV, p.86). Mas
agora, recontando a estória, Riobaldo nos dá a dica: Fala logo em seguida do caso de
um filho que matou um homem e correu a comunicar o fato ao pai que remediou: “–
“Filho, isso é a tua maioridade. Na velhice, já tenho defesa, de quem me vingue...””
(GSV, p.86).
Seria isso? Seria essa a intenção de Joca Ramiro? Sabendo que o “[s]ertão é
o penal, criminal” (GSV, p.86) e que Diadorim, “[i]rmã nem irmão ele não tinha”
(GSV, p.140), parece fazer sentido pensarmos como Riobaldo que Diadorim tenha sido
forjado para defender e vingar o pai.
Mas não nos contentemos com esta que pode ser uma resposta qualquer,
pois, como diz Riobaldo, “onde é a bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se
pergunta” (GSV, p.86).
Portanto, deixemos a pergunta ressoar: tomar esta como sendo a possível
intenção de Joca Ramiro responde à questão sobre o desejo do pai de Diadorim? Não.
Temos bons motivos para argumentar que a intensão, até mesmo o
forçamento, que se evidencia na relação entre Diadorim e seu pai, é muito de outra
ordem. Uma ordem que, é claro, não invalida a tese da obrigação de vingança do nome
do pai.
Diadorim mesmo o confirma. Quando se fazia qualquer referência ao
assassinato de Joca Ramiro, “Diadorim só falava nos extremos do assunto. Matar,
matar, sangue manda sangue” (GSV, p.26). Enquanto os assassinos “vivessem, simples
Diadorim não vivia. Até que viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele
tresvariava” (GSV, p.26). Sem vida, tresloucado, três vezes, ou mais, variado. Ao que
nos parece, era esta sua sina.
Diadorim sofreu o abandono da mãe e procurou desvencilhar-se do vínculo
amoroso que o ligava a ela. Pela primeira vez, variou: tomou a vereda diversa que
conduziu ao pai. Muito antes da realidade da morte deste, a vereda diversa deve ter se
142
mostrado também adversa. Pela segunda vez, Diadorim variou, voltou-se para outro
homem, Leopoldo. Mas, na verdade, esta variação não era assim tão diversa, pois
continuou conduzindo ao pai. Diadorim teria variado uma terceira vez?
Desviar-nos-emos, rapidamente, destas nossas interrogações já que
inesperadamente surge esse Leopoldo. Quem era ele? Um dos jagunços nos dirá: - “Eh,
esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase
morreu também, dos demorados pesares...” (GSV, p.133).
A partir daí, “esse nome de um Leopoldo” (GSV, p.133) tornou-se uma
história que Riobaldo “[...], persistentemente, [...] remoía” (GSV, p.133). Enfim, sem
nem saber por quê, ele indagou:
- “Diadorim, então quem foi esse moço Leopoldo, que morreu seu amigo?” –
eu indaguei, de sem-tempo, nem sei porque; eu não estava pensando naquilo.
Antes eu já estava para trás de ter perguntado, palavras fora da boca. –
“Leopoldo? Um amigo meu, Riobaldo, de correta amizade...” – e Diadorim
desfez assoprado um suspiro, o que muda melhor. – “Até te falaram nele
Riobaldo? Leopoldo era o irmão mais novo de Joca Ramiro...” Aquilo eu já
soubesse demais – que Joca Ramiro se realçasse por riba de tudo, reinante
(GSV, p.140).
Então Leopoldo era tio de Diadorim. Já que mais novo, talvez tenha sido
também - mais que um “bom amigo” -, uma espécie de irmão para ele. Que fosse. A
segunda variação de Diadorim, seu amor por Leopoldo, nada mais é que a repetição do
mesmo tema: o amor por Joca Ramiro.
Escutemos Freud (1980 [1932], v. XXII, p.162):
Os fatores determinantes da escolha objetal da mulher muitas vezes se tornam
irreconhecíveis devido a condições sociais. Onde a escolha pode mostrar-se
livremente, ela se faz, frequentemente, em conformidade com o ideal narcisista
do homem que a menina quisera tornar-se. Se a menina permaneceu vinculada
a seu pai – isto é, no complexo de Édipo - , sua escolha se faz segundo o tipo
paterno.
Quem, melhor que um irmão de Joca Ramiro, poderia incitar a segunda
variação de Diadorim? Uma variação que na verdade apenas realçava “por riba de tudo”
(GSV, p.140) a soberania do pai?
Por isso, como ilustração, articulamos as variações de Diadorim ao conceito
de “variação” segundo a rubrica da música sobre a qual Sinzig (1976, p.593, grifos do
autor) esclarece:
143
Variação, metamorfose dum tema expressivo que, no entanto, com as maiores
variantes, deve continuar bem reconhecível. É variado geralmente apenas um
de seus elementos, ou alguns, como sejam o ritmo, a harmonia, o tom maior ou
menor, a melodia, enquanto os antigos doubles conservam o tema,
apresentando-o apenas com novos ornamentos e figurações. [...] Não há nada
que não se possa fazer com o tema, desde que continue reconhecível.
Assim é que Diadorim variava. Fazia de quase tudo com o tema do pai.
Voltou-se para Leopoldo, dublê de Joca Ramiro, que, no entanto, continuava
reconhecível.
Mas existe aí um complicador ainda maior. Talvez possamos dizer que esta
variação de Diadorim se assemelhe também a um rondó, pois faz reaparecer um tema
que, para Diadorim, permanecerá inaudito.
Vejamos antes com Sinzig (1976, p.513, grifos do autor) o que é um rondó:
“O característico de todos os rondós, rondels, rondelli e radels é o reaparecimento
duma idéia bem definida, [...]. [...] no rondó o tema principal volta algumas vezes e [...]
é respondido por mais de um contra-tema”.
Afinal, que tema é esse que acreditamos voltar algumas vezes a Diadorim e
frente ao qual Joca Ramiro é um dos que responde como contra-tema?
Consideramos, com Freud (1980 [1932], v. XXII, p.162,163), que a relação
de Diadorim com o pai se mantém e influencia suas escolhas amorosas tal qual acontece
com toda mulher que permanece vinculada ao pai,
[d]e vez que, quando se afastou da mãe e se voltou para o pai, permaneceu a
hostilidade de sua relação ambivalente com a mãe, uma escolha desse tipo
asseguraria um casamento feliz. Muito frequentemente, porém, o resultado é
de molde a representar uma ameaça geral à solução do conflito devido à
ambivalência. A hostilidade que ficou para trás segue na trilha da vinculação
positiva e se alastra ao novo objeto. O marido da mulher, inicialmente herdado
por ela, do pai, após algum tempo se torna também o herdeiro da mãe.
Estaríamos com isso insinuando que a relação de Diadorim com Leopoldo
visava o casamento? Certamente que não. Leopoldo era seu tio. Diadorim mesmo nos
diz que o vínculo entre eles era de “correta amizade”, não podemos, portanto, pensar na
possibilidade de um casamento assim tão flagrantemente incestuoso. Entretanto, esta
amizade nos dá uma boa idéia do que norteava as escolhas amorosas de Diadorim: em
primeiro lugar, o pai. Em segundo - compondo aquela camada minóico-miceniana mais
arcaica de que falava Freud -, a música imemorável, a mãe.
144
Sobre esta sabemos quase tão pouco quanto Diadorim. No entanto, mesmo
que não tenhamos ouvido uma única queixa sua contra a mãe, nada nos impede de
compreender que também para Diadorim
[é] como se, na verdade, a referência ao pai viesse alimentar a energia da
“conversão”, reforçá-la como que de fora: “Se você vai me abandonar”, diz o
desejo da filha à Mãe – entendendo-se que a traição tem que se dar, para que
ela saia da relação descrita como sem futuro -, “que pelo menos reine o Pai”.
Por conseguinte ela tem de se dedicar ao falo, embora não tenha para isso
uma... vocação (ASSOUN, 1993, p.106, grifos do autor).
Consideramos que foi exatamente a isso que Diadorim se dedicou. Para ele,
Joca Ramiro reinou. Não lembrava da mãe. Lembrava do pai, seu destino de glória: “–
“Olha Riobaldo” – me disse – “nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você
lembra de sua mãe; eu lembro do meu pai”” (GSV, p.38).
Preocupava-lhe e indignava-lhe a traição que o pai sofrera. Mas será que era
somente esta traição que o dividia, já que se dedicar ao pai implica, como Freud
observou, em trair a exclusividade do amor à mãe? Será que Diadorim sabia que
“[q]uase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?” (GSV, p.139).
O fato é que para Diadorim o pai tinha de ser vingado. Que mais restaria
àquele que fora abandonado pela mãe e agora via o abandono reatualizado pelo pai,
senão a vingança que “é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais” (GSV,
p.74)?
Por isso é que “[...] Diadorim sabia era a guerra” (GSV, p.238) que lhe fez
tirar, do amor a Joca Ramiro, o ódio pelo abandono daquela que Diadorim não devia
mais lembrar, a mãe. Pois o ódio “é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a
gente querendo achar o que é da gente” (GSV, p.273).
Assim, pelo amor e apesar do amor, Diadorim queria “sangues fora de veias”
(GSV, p.237). O ódio que sentia pelos assassinos de seu pai crescia de todos os lados.
Vinha do amor ao pai e... do amor à mãe. Pois, como diz Riobaldo,
[d]o ódio sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma
pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo
lado. [...] Coração mistura amores. Tudo cabe (GSV, p.145).
Então, para nós, Diadorim amava tão intensamente ao pai quanto à mãe.
Sendo mais precisos, consideramos que a intensidade de seu amor por Joca Ramiro nos
dá exatamente a medida de seu amor pela mãe desconhecida. Parecerá tão improvável
145
que, mesmo sem tê-la conhecido, Diadorim supusesse o prazer propiciado por uma
mãe? E, insistindo nesta suposição: o fato de não ter podido nutrir qualquer esperança
de desfrutar deste prazer não poderia ter sido fonte de ódio e desespero que depois virou
saudade? Se assim tiver ocorrido, consideramos legítimo adotar a seguinte equação
para a travessia realizada por Diadorim:
O prazer vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? –
desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para o um amor –
quanta saudade... -; aí, outra esperança já vem... Mas a brasinha de tudo, é só o
mesmo carvão só (GSV, p.178).
Partindo das premissas apresentadas acima por Riobaldo, consideramos Joca
Ramiro como a “outra esperança” de Diadorim. Para compreendermos toda a relevância
dele neste sentido, recorremos mais uma vez a Assoun (1993, p.105, grifos do autor):
Compreende-se, finalmente, o papel do Pai, como substituto e alternativa: ele
tem que existir, para que seja possível a alternância... com o Paraíso! Papel
simultaneamente salutar e ingrato, que cabe tanto ao Pai quanto a seu herdeiro,
o homem amado. É por isso que Freud indica o vestígio insistente da antiga
demanda materna no próprio cerne da escolha do objeto masculino pela
mulher. [...] Não é apenas que a mulher continue a querê-la [a mãe] ao desejálo [o pai]; é que, estruturalmente, o desejo deslancha a partir de a demanda ser
recusada. Que vontade não há de ser necessária à menina para empreender esse
esforço – [...]! Tanta energia por querer deixar de amar a mãe quanto por tê-la
amado. O desejo que brota daí fica marcado por essa provação.
Provação, isto mesmo. Esta nos parece a palavra mais exata para descrever a
travessia de Diadorim no Grande Sertão. Uma travessia feita, sem dúvida, às custa de
muita, muita coragem. Que requereu, também sem dúvida, todo aquele capricho, aquela
vontade livre de Diadorim.
“Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no
dentro do ferro de grandes prisões” (GSV, p.233). Então, que ferro agriolhoava
Diadorim e de que pobre caminhozinho lhe foi possível retirar alguma alegria?
4. 7 Grilhão de elos imponderáveis
“Tem uma verdade que se carece aprender, do encoberto, e que ninguém não
ensina: o beco para a liberdade se fazer” (GSV, p.233).
Argumentamos que a provação de Diadorim consistiu, justamente, em
aprender a fazer esse caminho estreito - por vezes sem saída - para alguma liberdade.
146
Argumentamos também, que Diadorim tentou percorrer esse bequinho sem transgredir.
Procurou saída. Procurou entrada. Procurou também manter-se dentro da lei. Por isso,
sobre Diadorim, dizemos com Lacan (1992, p.17) que “[e]ntrar de fininho não é
transgredir. Ver uma porta entreaberta não é transpô-la”.
Procuremos, então, agora nós, esclarecer estes argumentos.
Sabemos que Diadorim converteu-se ao reinado do pai desde a infância.
Mas, se Joca Ramiro era senhor, Diadorim seria escravo do seu querer? Recorramos a
Lacan (1992, p.28) para entender a dialética aí implicada:
Nada indica, com efeito, de que modo o senhor imporia sua vontade. Não há
dúvida de que aí é preciso um consentimento, e o fato de que Hegel não possa
referir-se nessa ocasião, como significante do senhor absoluto, senão à morte,
é, por ora, um sinal – um sinal de que nada é resolvido por essa pseudoorigem. Com efeito, para que isso continue, não ficaria demonstrado que o
senhor é o senhor a menos que ele ressuscitasse, isto é, que tivesse passado
efetivamente pela prova. Quanto ao escravo, é a mesma coisa – ele renunciou
precisamente a se confrontar com ela.
Joca Ramiro confrontou-se com a morte e não passou pela prova. Morreu e
não ressuscitou. No entanto, isto não o impossibilitou de imperar, governar e saber “se
ser” (GSV,p.138). Apesar disto, não podemos dizer – e, pelo visto, tampouco Joca
Ramiro - o que é que ele queria. Não é exatamente essa uma das interrogações de
Riobaldo? “[...] o que é que o pai [de Diadorim] tencionava?” (GSV, p.86).
Sendo assim, o que é que sobra? Temos com Lacan (1992, p.30) que
[o] que sobra é exatamente, com efeito, a essência do senhor – a saber, o fato
de que ele não sabe o que quer. Eis o que constitui a verdadeira estrutura do
discurso do senhor. O escravo sabe muitas coisas, mas o que ele sabe muito
mais ainda é o que o senhor quer, mesmo que este não o saiba, o que é o caso
mais comum, pois sem isto ele não seria um senhor. O escravo o sabe, e é isto
sua função de escravo.
A partir de toda esta articulação da dialética do saber entre o senhor e o
escravo, Lacan (1992, p.31) demonstrou a afinidade deste “saber que não se sabe” com
a observação de que o saber inconsciente não é totalizante. Nele, há algo que não se
sabe. Este algo relaciona-se justamente com a sexualidade. Não existe, no inconsciente,
um significante que represente a diferença sexual.
Existe um significante para
representar o campo do masculino - o falo -, mas não existe um significante específico
para representar o campo do feminino. Com isto, fica impossível eleger um significante
que dê conta da relação entre um e outro. Por isso também, Lacan relembra o que está
147
implicado no querer da histérica, frente ao qual, como tratamos antes, Freud não pode
perceber o que quer uma mulher.
Ouçamos Lacan (1992, p.32):
O que a histérica quer que se saiba é, indo a um extremo, que a linguagem
derrapa na amplidão daquilo que ela, como mulher, pode abrir para o gozo.
Mas não é isso o que importa para a histérica. O que lhe importa é que o outro
chamado homem saiba que objeto precioso ela se torna nesse contexto de
discurso.
Então, o que a histérica quer exibir é que ela é preciosa justamente por saber
que a linguagem não diz tudo sobre o gozo específico da mulher. Ora, convenhamos, o
que é que isto pode ter a ver com Diadorim e Joca Ramiro, quer dizer, com a
problemática entre pai e filha?
Freud já nos fez notar que ao cabo de algum tempo, o homem escolhido por
uma mulher se mostra como herdeiro do pai e da mãe desta mulher. No entanto, vale
ressaltar que é a partir da identificação da mulher com seu pai que ela poderá encontrar
condições de continuar seu caminho – geralmente estreito e complexo -, rumo à
feminilidade. Para usar a expressão de Assoun (1993, p.10), será a “boa utilização” do
pai que favorecerá essa caminhada:
Desse pai, certamente é delicado definir a “boa utilização”. Digamos que é
preciso que a filha veja ser-lhe devolvida sua imagem – como promessa de
mulher – pelo olhar do pai. Basta esse olhar ser insistente demais para que a
histérica ateste, por sua perseguição de uma “hiperfeminilidade”, os efeitos da
sedução paterna (a qual a fará, paradoxalmente, duvidar de seu sexo!). Basta
faltar esse mesmo olhar para que a filha se abstraia perigosamente do “quadro”
- como o provam o sentimento de dolorosa “invisibilidade” atestado na
anoréxica, na bulímica ou na toxicômona, e os esforços da homossexual, para
tornar a existir, de desafiar o olhar do pai, condição da encarnação de um
“desejo” -, ao preço de uma manutenção do objeto na linhagem das mulheres...
Como podemos entrever, é a questão da (pré-)adolescência, em sua versão
feminina, que se desenha aqui, pois é por emergir sob o olhar do pai que a filha
sai do amor “sem objetivo” e “desmedido” pela Mãe, para aceder às “razões”
do desejo.
Tivemos oportunidade de apreciar o esplendor dos olhos e do olhar de
Diadorim. Mas, que cores irradiavam do quadro composto pelo olhar que Joca Ramiro
lhe dirigia? Acaso seriam as cores quentes da volúpia ou as frias da indiferença? Não.
Seu olhar foi pintado com aquelas melhores tintas: “Ele era um homem de largos
ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos” (GSV, p.189). Olhos que
refratavam, contemplavam sem insistência, mas, ainda assim, refletiam firmemente a
luz dos olhos de Diadorim: “Joca Ramiro, que firme contemplando, só um instante, seja,
148
mas o docemente achável, com um calor diferente de amizade” (GSV, p.190). O
encantamento do olhar que Joca Ramiro dirigia a Diadorim emitia a calorosa cor da
afabilidade.
Portanto, “mesmo sendo assim querido e escolhido de Joca Ramiro” (GSV,
p.190), Diadorim ficava “de longe, por ninguém se queixar, não acharem que ali havia
afilhadagem” (GSV, p.190). Contemplado à boa distância, Diadorim recebia sua
imagem refletida pelo terno olhar paterno. Não precisava lançar mão de uma
feminilidade excessiva. Não lhe encandeava, nem atordoava o brilho de écran dos olhos
do pai. A admiração daqueles olhos não se expressava através de enganos, de artifícios
de perspectiva, de trompe l’oeil. Diadorim não precisava mostrar-se com ostentação,
desafiá-lo, pois tinha seu lugar precioso no enquadro dos olhos do pai, olhos caçadores
de tesouros. Mesmo distante, Diadorim não era invisível, ao contrário, brilhava como
pigmento de ouro. Na despedida, era com os olhos que Joca Ramiro lhe buscava: “Vi
que ele com os olhos caçou Diadorim” (GSV, p.191).
Esmiuçando: em primeiro lugar, é preciso relembrar que o efeito do olhar de
Joca Ramiro sobre Diadorim não redundou, como é óbvio, em nenhuma
“hiperfeminilidade”. Ocupar a posição feminina era exercício que Diadorim praticava
com a mais absoluta discrição e apenas quando estava a sós ou na companhia de
Riobaldo: “Só, por acostumação, ele [Diadorim] tomava banho era sozinho no escuro,
[...], no sinal da madrugada” (GSV, p.113). Mandava “comprar um quilo grande de
sabão de coco de macaúba, para se lavar corpo” (GSV, p.223). Reparemos a
superfluidade de tal cuidado para quem vivia em meio a jagunços que chegavam ao
cúmulo de ter como “uso correntio, apontar os dentes de diante, a poder de gume de
ferramenta, por amor de remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São
Francisco” (GSV, p.127).
Sob o mesmo prisma, mostramos anteriormente o quanto Diadorim
preocupava-se com a própria aparência - “Diadorim, todo formosura” (GSV, p.385) -, e
com a aparência de Riobaldo: presenteou-lhe com “camisa de riscado fino, lenço e par
de meia, essas coisas todas” (GSV, p.113). Já foi expresso o quanto ele cuidava da
saúde e bem-estar de ambos; o quanto apreciava a beleza: “Quem me ensinou a apreciar
essas belezas sem dono foi Diadorim...” (GSV, p.23).
Além disto, Diadorim tinha a meiguice e sabia exercitar a maternação.
Gostava de crianças: “Diadorim gostava deles, pegava um por cada mão, até carregava
os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio. – “Olha, vigia:
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o manuelzinho-da-crôa já acabou de fazer a muda...”” (GSV, p.223). Diadorim chegou
mesmo a adotar um filho, apadrinhando-o junto com Riobaldo: “Pois lá um geralista me
pediu para ser padrinho de filho. O menino recebeu o nome de Diadorim também”
(GSV, p.47).
Mas é preciso dizer que ser mãe não implica necessariamente na
feminilidade, pois, como Freud observou, para a criança, não há, de início, distinção
entre os pais, a mãe também é fálica. Então, junto à mãe, a menina poderá ter a idéia do
que é a maternidade - o que implica que a posição feminina seja ocupada. Contudo,
permanece a incógnita do que é a feminilidade já que a posição feminina, como
sabemos, pode ser ocupada por homens ou mulheres.
Já o caminho para a feminilidade... Eis o enigma! Este ninguém ensina. Nem
mesmo a mãe. Pois, mesmo que ela o percorra, este caminho será dela, da mãe, e não da
filha. Portanto, resta à filha criar seu próprio caminhozinho.
Em segundo lugar, é dispensável comentar que Diadorim não tinha nada em
comum com a anoréxica, com a bulímica ou com a toxicômana. Diadorim tinha
visibilidade garantida no olhar do pai.
Terceiro, é preciso deixar bem claro que, em momento algum, constatamos
qualquer atitude de desafio dirigida ao pai. Para Diadorim, Joca Ramiro era quase “a
única pessoa que ele bastantemente prezava [...]” (GSV, p.176). Tampouco Diadorim
seguiu o caminho daquela jovem homossexual atendida por Freud (1980[1920],
v.XVIII, p.202) que “[p]or trás de sua pretensa consideração pelos genitores, [...], jazia
escondida sua atitude de desafio e vingança contra o pai, atitude que a fizera aferrar-se
ao homossexualismo”.
Diadorim importava-se com as mulheres: - “Mulher é gente tão infeliz...”
(GSV, p.133), disse certa vez, ao ouvir estórias de mocinhas prostituídas por jagunços.
Era capaz de protegê-las ferozmente: “ - “Quem quiser bulir com ela que me venha!” –
Diadorim garantiu” (GSV, p.45) Mas Diadorim não se interessava sexualmente pelas
mulheres, “[...] não se fornecia com mulher nenhuma, sempre sério, só se em sonhos” .
(GSV, p.232). Seguia a “regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem – o sempre sem mulher,
mas valente em qualquer praça” (GSV, p.147).
Indo direto ao ponto, podemos dizer que Diadorim gostava de homem.
Gostava de Joca Ramiro, seu pai. Gostava de Leopoldo, seu tio. Gostava em especial de
Riobaldo: “Ele gostava, destinado de mim” (GSV, p.148), reconhecia Riobaldo. Tanto
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que, diante do “fogo bandoleiro” (GSV,p.148) deste, Diadorim tinha reações
imprevisíveis descritas por Riobaldo da seguinte forma:
[à]s vezes, Diadorim me olhasse com desdém, fosse eu caso perdido de lei,
descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas
pesadas. – “Não sou o nenhum, não sou frio, não... Tenho minha força de
homem!” Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saiu para longe de mim;
desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para ter pena? Homem não
chora! – eu pensei, para formas. [...] Diadorim firme triste, apartado da gente,
naquele arraial, me lembro. Saí alegre do bordel, acinte (GSV, p.148).
Estes eram os amores de Diadorim, amores únicos, visto que Diadorim podia
declarar: - “Só tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo...” (GSV, p.140). Daí o
tropismo de que falamos antes de Diadorim em relação à Riobaldo. Daí aquela sua jura
de “ter a tristeza mortal” (GSV, p.34) caso ele deixasse de vir junto.
Então era isto: Diadorim gostava de Riobaldo, e gostava “destinado” (GSV,
p.148). Destinado por quem? Por Joca Ramiro? Por Deus?
Sem dúvida a aquiescência de Joca Ramiro no que dizia respeito à estima de
Diadorim por Riobaldo importava muito. Quando Diadorim apresentou Riobaldo a Joca
Ramiro este o avaliou com especial cuidado. Ao final, Riobaldo viu-se perfilhado e
agrilhoado pela amarra da gratidão por um obséquio:
- “Este aqui é o Riobaldo, o senhor sabe? Meu amigo. A alcunha que alguns
dizem é Tatarana...” Isto Diadorim disse. A tento, Joca Ramiro, tornando a me
ver, fraseou: - “Tatarana, pêlos bravos... Meu filho, você tem as marcas de
conciso valente. Riobaldo... Riobaldo...” Disse mais: - “Espera. Acho que
tenho um trem, para você...” Mandou vir o dito, e um cabra chamado João Frio
foi lá nos cargueiros, e trouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão de
cavalaria. Com aquilo, Joca Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor: minha
satisfação não teve beiras. Pudessem afiar inveja em mim, pudessem.
Diadorim me olhava, com um contentamento (GSV, p.190, grifos do autor).
Apesar de o presente ter sido um rifle reiúno, quer dizer, uma arma de baixa
qualidade extraviada do arsenal do Estado, isto não reduz o valor da agraciação de
Riobaldo. Ser reconhecido e presenteado por Joca Ramiro prestigiava, pois sabemos que
a pregnância dele se manifestava fortemente em Diadorim e estendia-se a quase todos
os outros:
[...] perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom. Titão Passos regulou um
espanto: uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que
nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo
de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi
quem disse, risonho bobeento: - “Bom? Um messias!...” (GSV, p.115).
151
Um “messias”!... Quer dizer, um salvador, um daqueles que, para os judeus,
por exemplo, seria um redentor prometido por Deus, capaz de estabelecer nova ordem,
justiça, paz e liberdade. Tanto foi assim que, naquele julgamento no meio do sertão,
quando no final Joca Ramiro baixou sentença, suas palavras e gestos produziram
novamente um vórtice, pois, “quando ele se levantava, puxava as coisas consigo, [...]. E
todos também, ao em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, [...].
Levantaram campo” (GSV, p.214). As palavras de Joca Ramiro no centro do
redemoinho e as palavras de Diadorim girando em torno, dizendo: - “Deus é servido...”
(GSV, p.214).
Um messias, um servidor de Deus... Tratava-se, portanto, de um grande
homem. Mas o que fazia de Joca Ramiro um grande homem?
Em Moisés e o monoteísmo, um dos últimos textos de Freud (1980[1939],
v.XXIII, p.129), vemo-lo comentar que “[f]icaremos surpresos em descobrir que nunca
é muito fácil dar uma resposta a essa questão”. Talvez um grande homem se distinga
dos demais por suas qualidades psíquicas e intelectuais. Talvez pela grandeza de seus
atos. De qualquer forma, decidimos com Freud (1980 [1939], v. XXIII, p.130) “que não
vale a pena procurar uma conotação do conceito de ‘grande homem’ que não seja
ambiguamente determinada”. Por isso, Freud seguiu no sentido de tomar o que é certo
sobre este tipo de homem; sua influência:
[...] um grande homem influencia seus semelhantes por duas maneiras: por sua
personalidade e pela idéia que ele apresenta. Essa idéia pode acentuar alguma
antiga imagem do desejo das massas, ou apontar um novo objetivo de desejo
para elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas.
[...] Sabemos que na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma
autoridade que possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem
sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados (Freud, 1980 [1939], v. XXIII,
p.131).
A massa requer, portanto, um senhor. Especificamente sobre a história da
massa humana do Grande Sertão, podemos dizer com Bolle (2004, p.303) que as
[...] cenas de Grande Sertão: Veredas relembram a história do país, desde a
colonização. A “empresa Brasil” como máquina de gastar gente. Uma máquina
que tem sua lógica própria. De um lado, os poucos que dela se aproveitavam,
do outro, o “material humano” sendo queimado aos montes: bugre matando
bugre, escravo matando escravo, sertanejo matando sertanejo. É a história de
uma nação se dilacerando.
152
Não admira, portanto, que, em tal contexto de dilaceramento, a massa - o
“material humano” - rodopiasse em torno de um líder como Joca Ramiro. Um homem
como ele, capaz de conduzir o gado humano a outra razão, era a encarnação da
esperança de justiça e união. Contudo - temos de ponderar -, esta ainda não é a causa
mais premente que impulsiona toda e qualquer massa a necessitar do líder. Freud (1980
[1939], v. XXIII, p.131) nos indicou onde a origem dessa necessidade deve ser
localizada
[...] no anseio pelo pai que é sentido por todos, da infância em diante, do
mesmo pai a quem o herói da lenda se gaba de ter derrotado. E pode então
começar a raiar em nós que todas as características com que aparelhamos os
grandes homens são características paternas, e que a essência dos grandes
homens, pela qual em vão buscamos, reside nessa conformidade. A decisão de
pensamento, a força de vontade, a energia da ação fazem parte do retrato de
um pai – mas, acima de tudo, a autonomia e a independência do grande
homem, sua indiferença divina que pode transformar-se em crueldade. Tem-se
de admirá-lo, pode-se confiar nele, mas não se pode deixar de temê-lo,
também.
Esclarecemos que estas observações de Freud foram feitas em seu estudo
sobre a representação messiânica de Moisés para o povo judeu. Moisés e o monoteísmo
é, segundo Roudinesco e Plon (1998, p.518), o “[l]ivro do exílio, simultaneamente
publicado em Amesterdam e Londres no mesmo ano da morte do autor”. Neste trabalho
Freud procurou explicar a origem do monoteísmo na crença judaica. Freud (1980
[1939], v. XXIII, p.134) também tentou justificar os efeitos de uma religião forjada
numa “concepção muito mais grandiosa de Deus” e a conseqüência da proibição judaica
de se fabricar imagens do divino: “um triunfo da intelectualidade sobre a sensualidade”
(v. XXIII,p.135). Com a proibição da iconolatria, Freud (1980 [1939], v. XXIII, p.137)
avalia que
[a] proibição mosaica elevou Deus a um grau superior de intelectualidade;
abriu-se então o caminho para novas alterações na idéia de Deus, as quais
ainda temos de descrever. Mas podemos considerar primeiro outro efeito da
proibição. Todos os avanços desse tipo têm, como conseqüência, ser
aumentada a auto-estima do indivíduo, tornar-se ele orgulhoso, de maneira que
se sente superior a outras pessoas que permanecem sob o encantamento da
sensualidade. Moisés, como sabemos, transmitiu aos judeus um exaltado
sentimento de serem um povo escolhido. A desmaterialização de Deus trouxe
uma nova e valiosa contribuição para o secreto tesouro desse povo. Os judeus
retiveram sua inclinação para interesses intelectuais. [...] a Escritura Sagrada e
o interesse intelectual por ela mantiveram reunido o povo dispersado.
153
Portanto, para Freud (1980 [1939], v. XXIII, p.141) o avanço na
intelectualidade implicou também no recalcamento da sexualidade em decorrência do
que a religião exerce “uma acentuada restrição da liberdade sexual; Deus, contudo,
afasta-se inteiramente da sexualidade e eleva-se para o ideal de perfeição ética”. Esta
nova concepção de Deus, um Deus cujo nome é inclusive impronunciável, levou Freud
(1980 [1939], v. XXIII, p.134) a afirmar ainda sobre o povo judeu que, “[t]odo aquele
que acreditasse nesse Deus possuía algum tipo de parte em sua grandeza, ele próprio
poderia sentir-se exalçado”.
Guardada as devidas proporções, podemos dizer que Joca Ramiro também
era um líder grandioso e, como tal, incitava o orgulho de muitos que o seguiam. Isto, no
entanto, não impediu que Riobaldo interrogasse: “Por que era que todos davam assim
tantas honras a Joca Ramiro, esse louvo sereno, com doado?” (GSV, p.177). Até mesmo
o Hermógenes - seu assassino - o admirava e temia. Para ele, Joca Ramiro “era maludo
capitão, vero, no real” (GSV, p.177). Para o Hermógenes, um capitão maludo - quer
dizer, assim valente, bravo, exato, verdadeiro - era, como se podia esperar, também
perigoso. Carecia, eliminá-lo, portanto.
Apesar disto, mesmo depois de morto, o lugar de Joca Ramiro se sustentava.
Podemos mesmo observá-lo ainda mais elevado, pois a ele se suponha um saber
inigualável: - “Agora, da gente não sei o que vai ser... Para guerra grande, eu acho que
só Joca Ramiro é que era capaz...” (GSV, p.54), reconheceu um de seus lugarestenentes.
Mas, como Freud (1980[1939], v. XXIII, p.140) pode perceber, “o grande
homem é exatamente a autoridade por cujo amor a realização é levada a cabo”. Daí a
empreitada rumo ao grande combate em nome de Joca Ramiro ter sido levada à diante.
Daí o avanço na intelectualidade que, segundo o exemplo fornecido por Freud,
“[c]onsiste, [...], em decidir que a paternidade é mais importante do que a maternidade,
embora não possa, como esta última, ser estabelecida pela prova dos sentidos, e que, por
essa razão, a criança deve usar o nome do pai e ser herdeira dele”.
Em síntese, Freud considerou que o avanço da intelectualidade se deu à custa
do recalcamento das pulsões sexuais. Atribuiu-se ao Deus da tradição judaica uma
posição superior a dos deuses das outras religiões. O monoteísmo gerou um Deus
apartado da sexualidade. Por isso, Lacan (1992, p.128) afirmou que “[a] característica
de Yahvé, [...], é [ignorar] ferozmente tudo o que existe, [...], de certas práticas
154
religiosas que então proliferavam, fundadas sobre um certo tipo de saber – de saber
sexual”.
Então chegamos ao ponto em torno do pai no qual Freud e Lacan encontramse, ao mesmo tempo, em concordância e discordância: Para ambos a mãe é certa, é algo
da ordem dos sentidos. Para ambos o pai é incerto, trata-se de uma suposição. O pai real
é uma construção da linguagem. Nem mesmo os métodos científicos mais refinados de
determinação da paternidade conseguem dar conta do que é ser pai. Como esclarece
Lacan (1992, p.120):
O pai real nada mais é que um efeito da linguagem, e não tem outro real. Não
digo outra realidade, pois a realidade é uma outra coisa. [...]. [...] a noção de
pai é cientificamente insustentável. Só há um pai real, é o espermatozóide, e,
até segunda ordem, ninguém jamais pensou em dizer que é filho de um
espermatozóide. Naturalmente, pode-se fazer objeções, com a ajuda de um
certo número de exames de grupos sangüíneos, de fatores Rh. Mas isso é
completamente novo, e não tem absolutamente nada a ver com tudo que se
enunciou até aqui como sendo a função do pai.
Tanto Freud quanto Lacan fazem referência ao uso do nome do pai: o pai
nomeia. O pai reconhece (LACAN, 1997): – És meu filho. É através deste
reconhecimento, desta nomeação, que ele representa a lei de proibição do incesto. Para
explicar esta proibição, Freud forjou o mito do pai primevo de Totem e tabu e o mito de
Édipo.
Até aí Freud e Lacan caminham pari passu, no entanto, como já vimos o
nome do pai conduziu Lacan a um avanço teórico. Conduziu-o ao Nome-do-Pai. Se para
Freud a lei de proibição do incesto se instaura após a morte do pai da horda primitiva de
Totem e tabu, quer dizer, se a função paterna está condicionada à morte do pai a partir
do que os filhos - em reverência ao nome do pai - se absterão das relações incestuosas,
isto implica, como ressalta Lacan (1997, p.370), que “[a] única função do pai, [...], é a
de ser um mito, sempre e unicamente o Nome-do-Pai, isto é, nada mais que o pai
morto”.
Assim, o pai enquanto função - enquanto nome, enquanto verbo - encontrase, também ele agrilhoado à morte. Até mesmo o Pai, o Deus-Pai. Como esclarece
Julien (1996, p.97, grifos do autor),
[p]ara os antigos, antes da revelação judaico-cristã, não era preciso inventar. O
homem estava submetido ao Deus do destino, segundo o qual tinha que pagar
uma dívida cujo preço era fixado de antemão, fizesse ele o que fizesse. E se a
155
fatalidade, a Até, o destinasse ao infortúnio, ele poderia justificadamente
maldizer o Deus do destino por sua maldade, sem maldizer a si mesmo.
Porém, o advento do judaico-cristianismo marca a morte do Deus do destino.
A partir de então o destino não é mais nada. Não se tem mais uma dívida para com ele.
Não há mais como maldizer a Deus, ao Outro. Resta ao homem - fruto do pecado
original - maldizer a si mesmo (JULIEN, 1996). Se antes o destino dava um sentido aos
infortúnios da existência, agora resta a busca de algum sentido para o absurdo da
travessia humana. Por isso a volta ao Pai enquanto tentativa de se restaurar sua
autoridade, pois como remata Julien (1996, p.98, grifos do autor)
[...] é exatamente nesse momento de desarvoramento e desespero que a
tentação se apresenta: tomar a si o encargo de restaurar e salvar a figura da
autoridade, para que assim determinado grupo, sociedade ou família recupere a
força e a coesão. É esse o trágico moderno.
Um trágico que tenta encobrir a morte de Deus, o Pai, enquanto destino.
Porém, frente ao fracasso de encobrir a falta do destino, o homem depara-se com o sem
sentido. Resta-lhe, portanto, inventar um sentido para o desatino que é o contra-senso
tentando encobrir a falta de “a” do destino.
O Nome-do-Pai tem esta função. Dá um sentido ao desvario, forma cadeia,
une os elos. Constitui assim um grilhão de elos imponderáveis que tem o efeito de
submeter os filhos à Lei, ao mesmo tempo, em que lhes permite aquela entrada de
fininho pela porta do desejo de que Lacan fala e aquela liberdade “de um pobre
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões” (GSV, p.233) de que fala
Riobaldo.
Será por aí - e em decorrência da amarração ou, melhor ainda, da enodação
do grilhão feita pelo Nome-do-Pai – que o sujeito buscará, então, algum sentido que lhe
dê acesso a seu desejo.
Mas, façamos antes um esforço para entender como, afinal, o acesso ao
desejo também leva o sujeito a se deparar com a Lei cujo efeito é, paradoxalmente, o
recalcamento do desejo: o que a realização do desejo visa é a completude. Deseja-se o
que falta. A isto que falta, Lacan deu o nome de “objeto a”, quer dizer, objeto causa do
desejo (LACAN,1998). Este objeto não é um objeto da realidade. Ele não pode ser
representado. Deseja-se o que falta no sentido mais amplo da falta. Deseja-se o que está
ausente e o pecado, o proibido, o interditado pela Lei. Como conseqüência, o sujeito é
156
conduzido ao inescrutável, ao que se encontra sob a ação do recalque não podendo,
portanto, manisfestar-se de forma consciente. O objeto causa do desejo divide o sujeito.
Por isso o desejo é sempre um desejo inconsciente. Assim, antípoda da Lei, o desejo
implica – sempre - em alguma transgressão, apesar de estar agrilhoado à Lei.
Por conseguinte, como esclarece Lacan (1997, p.370),
[...] é claro que para que isto seja plenamente desenvolvido, é preciso que a
aventura humana, nem que seja em esboço, seja levada a seu termo, ou seja,
que seja explorada a zona em que Édipo avança após ter-se dilacerado os
olhos.
É sempre por meio de algum ultrapassamento do limite, benéfico, que o
homem faz a experiência de seu desejo. O desejo de Édipo é o desejo de saber
a chave do enigma do desejo.
Quando lhes digo que o desejo do homem é o desejo do Outro, algo me vem à
mente que soa em Paul Eluard como o duro desejo de durar. Isso nada mais é
do que o desejo de desejar.
O que Lacan nos faz ver é que, depois de ter ultrapassado o limite da
proibição do incesto, Édipo, que fora edipiano justamente por não saber que o estava
sendo, arrancou os próprios olhos e adquiriu uma maior acuidade. Podemos dizer que o
desejo incestuoso de Édipo era um desejo em potência, tanto que ele fugira da casa
daqueles que acreditava ser seus verdadeiros pais. Édipo matou Laio e dormiu com
Jocasta justamente quando percorria a estrada que suponha afastá-lo da realização do
destino predito pelo oráculo de que ele mataria o pai e dormiria com a própria mãe.
Por isso dissemos que a aventura de Édipo consistiu na realização do desejo
que até então se mostrava em potencial, pois, como esclarece Corrêa (2006)45, para
sabermos se algo é potencial, faz-se necessário realizar todas as potencialidades deste
algo. Contudo, quando realizamos todas as potencialidades de alguma coisa, esta coisa
deixa de ser potencial, deixa de ser possível, perde a característica de vir a ser, já
aconteceu, realizou-se. Desta forma, realizar todas as potências de algo é sair da
potencialidade e entrar na contingência.
A partir disto, se considerarmos que Édipo realizou todas as potencialidades
de seu desejo, poderemos, então, concluir que ele ficou esvaziado de qualquer desejo?
Não. Muito ao contrário, pois o desejo é duro, resistente e persistente. Cego e exilado,
Édipo, enfim, saiu da contingência e pode caminhar rumo a seu próprio desejo, um
45
Comunicação oral proferida durante seminário ministrado por Ivan Corrêa em Fortaleza no dia 13 de
maio de 2006.
157
desejo de saber sobre o desejo. Édipo fez uma ultrapassagem. Cego, pôde ver melhor.
Exilado, encontrou alguma liberdade.
Depois de Lacan, podemos dizer coisas deste tipo sobre Édipo. E a propósito
de Diadorim, o que podemos dizer?
4. 8 Para além do traje, o ultraje de Diadorim
Mesmo trajando-se como homem, acreditamos que a travessia realizada por
Diadorim foi um ultraje que buscava o sentido de alguma feminilidade. Afirmamos isto
porque lembramos, com Lacan (1997, p.340) que “o ultraje, é passar além de,
ultrapassar o direito que se tem de baratear o que ocorre, na maior desgraça”.
Mesmo sem poder desfrutar das graças femininas, e depois, mesmo sob o
peso da desgraça do assassinato do pai, Diadorim tentou fazer a travessia, a passagem,
rumo à feminilidade. É o quê pensamos.
Todavia, é preciso reconhecer que, ao final, ele não barateou na desgraça.
Ultrajou. Assim como Édipo, Diadorim tentou percorrer uma vereda que o afastasse, ou
melhor, o liberasse de seus fados, do Deus destino. Fez travessia. Mas, “[t]ravessia,
Deus no meio” (GSV, p.235) de forma que assim o circuito, paradoxalmente, sofreu
suas torções.
Apesar disto, sustentamos a idéia de que Diadorim tentou se desviar das
veredas que impediam seu acesso à feminilidade. Por isso, concordamos com Utéza
(1994, p.93) quando este observa que “Diadorim tem consciência de que suas
motivações evoluem. [...] A idéia fixa da vingança, [evoluiu] para uma nova solução em
que o amor que ele tem por Riobaldo ocupa um lugar primordial [...]”.
Todavia, divergimos de Utéza quanto à indicação de que o amor de
Diadorim por Riobaldo tenha evoluído a partir da idéia fixa de vingança pela morte de
Joca Ramiro. A nosso ver, antes mesmo da morte do pai, Diadorim já havia se voltado
para Riobaldo, já buscava uma nova solução, já tentava percorrer novas veredas.
Consideramos que Diadorim elegera Riobaldo como um substituto do amor
paterno muito antes da morte do pai, mas, para comprovar esta argumentação, teremos
novamente de rodopiar em volta dos eventos centrais do Grande Sertão.
Ao final do julgamento de Zé Bebelo - portanto antes do assassinato de Joca
Ramiro - quase todos festejaram o veredicto. Dissemos quase todos porque sabemos que
para Hermógenes, Ricardão e alguns outros, aquele julgamento fora “...Mamãezada...”
158
(GSV, p.215). Mas, como dizíamos para todo o restante dos jagunços, a ocasião era de
festa. Assim, estavam “desagasalhados na alegria, feito meninos” (GSV, p.215). Entre
estes, Riobaldo e Diadorim.
Aconteceu então que, enquanto Riobaldo relembrava para si e para Diadorim
as palavras de Zé Bebelo ao afirmar “que agora era “o mundo à revelia...”” (GSV,
p.215, grifos do autor), Diadorim
[a]o dar, que falou: - “Riobaldo, você prezava de ir viver n’Os-Porcos, que lá é
bonito sempre – com as estrelas tão reluzidas?...” Dei que sim. Como ia querer
dizer diferente: pois lá n’Os-Porcos não era a terra de Diadorim própria, lugar
dele de crescimento? Mas mesmo enquanto que essas palavras, eu pensasse
que Diadorim podia ter me respondido, assim nestas fações: - “...Mundo à
revelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo sempre esteve...”
Toleima, sei, bobeia disso, a basba do basbaque. Que eu dizia e pensava numa
coisa, mas Diadorim recruzava com outras (GSV, p.216).
Que melhor exemplo poderíamos ter daquilo que pode se apresentar como
desconhecido exatamente para o revel, para a parte interessada, do que este diálogo
entre Riobaldo e Diadorim? Aquele pensando e esperando que Diadorim tivesse a
mesma fação46 - a mesma acepção, o mesmo sentido do mundo, talvez o mesmo sentido
masculino -, enquanto este recruzava o sentido.
Ora, “recruzar” não significa, necessariamente, como entendeu - ou quis dar
a entender – Riobaldo, cortar, atravessar, ir noutro sentido, passar em direção contrária.
Talvez aqui, “recruzar” possa também querer dizer “cruzar reciprocamente, entrecruzarse”. Neste caso, não haveria equívoco. Riobaldo acreditava que o mundo é à revelia e
Diadorim também. Por isso mesmo o convida a sair da jagunçagem. Pensamos que
Diadorim recruza, e assim dispõe os pontos de interseção do mundo à revelia de um,
com o mundo à revelia do outro: viver com Riobaldo n’Os Porcos... Voltar às origens,
ao lugar onde Diadorim cresceu, e ter, enfim, oportunidade de conhecer o que tanto lhes
interessava!
Mas como Riobaldo poderia saber que, por esta proposta, Diadorim abria um
caminho à revelia de ambos? Mal-entendido, sempre o mal-entendido. Sempre as
equivocações produzidas pela linguagem. Sempre a falta de proporção exata entre os
46
Segundo Martins (2001, p.219, grifos da autora), ‘fação’ é um termo “não dicionarizado proveniente da
adaptação do francês façon, possível arcaísmo, visto que na língua arcaica eram numerosos os
galicismos”. Aparentemente, foi empregado pelo autor do Grande Sertão no sentido de “acepção”. No
entanto, encontramos no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 2001, o mesmo
termo, “fação”, sendo remetido ao termo “facção” que tem, dentre outras, as seguintes acepções: feito de
armas heróico; bando ou partido insurrecto; fração dissidente de um partido.
159
sexos. Assim é o mundo entre o homem e a mulher: desencontrado. Mundo onde não há
relação sexual. Mundo revel, insurgente. Desarmonia.
Verificando um pouco mais nossa argumentação, parece-nos que desde o
primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim às margens do de-Janeiro, este já se voltara
para o outro. Mesmo percebendo todo o medo que consternava Riobaldo durante a
travessia do de-Janeiro, Diadorim - tido então como sendo o Menino - soube dar a
Riobaldo algum valor. Moveu-se em sua direção, aproximou-se e aprofundou-se em seu
corpo:
E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da
minha pele, no profundo, désse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão
branca, com os dedos dela delicados. – “Você é animoso...” – me disse.
Amanheci minha aurora (GSV, p.84).
Parece-nos claro que, por volta dos quatorze anos, quer dizer, já na
adolescência, mesmo amando e admirando profundamente um pai tido como “o homem
mais valente deste mundo” (GSV, p.83), Diadorim iniciou sua travessia no sentido de
encontrar veredas que lhe possibilitassem separar-se dele.
Mas notemos que, aparentemente, nada obriga uma filha a separa-se do pai.
Ao contrário do filho que - em decorrência da proibição do incesto e da ameaça de
castração - sabe exatamente qual é a única mulher que lhe é proibida e da qual precisa
separar-se, a filha, como afirma Assoun (1993, p.16, grifos do autor), se encontra
diante de uma “encruzilhada” que parece por em jogo, de certa maneira, toda a
“arbitrariedade” de uma escolha”. Nada a obriga a isso, literalmente, senão ela
mesma, na medida em que não está a seu dispor nenhum imperativo de
“renúncia simbolizável” situado fora dela. [...] A esse objeto paterno,
entretanto, é preciso renunciar, de conformidade com a proibição do incesto –
impedimento mais real do que simbólico -, mas é concebível que a escolha do
“homem de sua vida” fique sujeita à mesma lógica: não será aquele que não
deveria ser escolhido, mas, apesar disso... ele só será escolhido entre todos [...]
na medida em que trouxer a marca, misteriosamente materializada pela história
singular e suas tramas fantasísticas, daquele “um” que já foi amado no lugar da
“Uma” – no que o circuito se fecha e, felizmente, fecha-se mal, já que é
justamente em virtude de o homem amado ser outro que não o pai (embora se
pareça com ele) e diferente da mãe (embora faça lembrar sua promessa) que
ele é desejado e amado, [...], “por ele mesmo”!
Portanto, pensamos que, para Diadorim, desde o primeiro encontro com
Riobaldo, foi a encruzilhada de uma vereda conduzindo ao pai e outra ao homem
amado, Riobaldo - aquele que materializava a história e a urdidura da fantasia paterna.
160
Mas, para além disto, questionamos: Diadorim teria amado Riobaldo por ele
mesmo? Acreditamos que sim, pelo menos até o ponto onde lhe foi possível nesta
travessia.
Desde o início, Diadorim deve ter identificado em Riobaldo algum traço que
lhe possibilitou revesti-lo com as qualidades do pai: - “Você é animoso” (GSV, p.84),
dissera-lhe já no primeiro encontro. – “[...] você é leal” (GSV, p.214), disse-lhe depois o que nos leva a crer que para Diadorim, Riobaldo era a esperança de cumprimento da
promessa.
Diríamos que até aí Diadorim amou Riobaldo segundo a identificação de
vestígios deixados na vereda que conduzia ao pai. Porém, mais adiante, na iminência do
combate final pela vingança da morte do pai, quando Riobaldo tornara-se, então, chefe
de toda a jagunçada, Diadorim lhe confessou abertamente sua motivação para aquela
guerra: - “Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do
que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir...” (GSV, p.404).
Eis aí uma sensacional torção da travessia! Encruzilhada: O pai, um dever,
uma obrigação. O homem amado: um serviço, algo que se faz de graça, uma escolha,
um querer, um realizar-se, um suceder... Uma ultrapassagem.
Enfim Riobaldo foi posto adiante do pai. Com este raciocínio, parece-nos
valer a pena continuar caminhando no sentido desta nova vereda para verificar se
Diadorim realmente mostrava alguma pretensão de abrir mão da posição masculina
desvencilhando-se do traje viril para seguir no ultraje feminino:
Um dia, Riobaldo trouxe um mimo para Diadorim, uma pedra de safira.
Porém, Diadorim estabeleceu um prazo para aceitar o presente:
- “Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de aceitar um presente
assim, agora. Aí guarda outra vez, por um tempo. Até em quando se tenha
terminado de cumprir a vingança por Joca Ramiro. Neste dia, então, eu
recebo...” (GSV, p.283).
Em seguida, foi a vez de Riobaldo insistir na saída da jagunçagem: - “Escuta
Diadorim: Vamos embora da jagunçagem, que já é depois-de-véspera, que os vivos
também têm de viver por si, e vingança não é promessa a Deus [...]” (GSV, p.238).
Novo desencontro, nova desarmonia: “Diadorim respirava muito” (GSV,
p.283), e Riobaldo, magoado com a recusa do presente, diz que vai embora: - “Vou e
vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre” (GSV, p.284). Antecipamos que ele
161
não foi, e que realmente acompanhou Diadorim até o curral, o redil, o lugar de
aprisionamento do padre, do pai.
Diadorim não se calou diante da ameaça de Riobaldo: - “Então, que quer
mesmo ir, vai. Riobaldo eu sei que você vai para onde: relembrado de rever a moça
clara [....]. Com ela, tu casa. Cês dois assentam bem, como se combinam... (GSV,
p.285). Diadorim referia-se a Otacília. Avançou um pouco mais na fala e sugeriu um
futuro para o presente que acabara de lhe ser ofertado: “[...] pega essa prenda jóia, leva
dá para ela, de presente de noivado...” (GSV, p.285).
Não obstante, é na continuação deste falar incontido que podemos apreciar
de que maneira Diadorim ensaiou uma mudança de seus trajes ultrapassando-se na
identificação à outra mulher. Acreditamos que neste momento, esta foi a única vereda
encontrada por Diadorim para ir em direção à feminilidade. Uma vereda fantasiada.
Uma fantasia compartilhada com Riobaldo. Um partilhar viabilizando a realização de
um desejo:
- “... Você casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei
de mim, se sei; [...] ... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos
cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem:
camisa de cassa branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de
filó...”
Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. [...] Agora falava
devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória
recontasse. [...] Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília.
Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos
cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos
gostassem dele mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que
decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante da imagem, e já
pronta para a noite, em camisola de fina ló. Otacília indo por meu braço às
festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol
(GSV, p.286).
Fantasia, cassa branca, rendas, véu de filó, ló de lã ou seda, vestido de
molmol... Tecidos finos, esvoaçantes... Transparências cumprindo a função de velar e
revelar um desejo: o desejo de saber sobre o enigma da feminilidade.
Riobaldo com uma outra mulher é fantasia, cortina tecida por fios de textura
simbólica e imaginária para recobrir o real. Pelos fios do simbólico, é “estória” que se
reconta. Pelos fios do imaginário, é reencenação que faz a cena cintilar:
Ele, herdeiro das insígnias paternas, é neste devanear compartilhado não
apenas o pai, mas, principalmente o olhar do pai.
162
Ela, a outra mulher, santamente pronta para a noite, é aquela que “vai e vem
com os cabelos”47 compridos e perfumados de sete amores. A outra é a mulher e a mãe.
Ao mesmo tempo mulher que inspira o desejo e mãe perfeita, sem falta, posto que
velada.
E Diadorim, no entrever da transparência de tantos véus, é aquele que
desponta no ideal de si mesmo, um ideal que o divide. Além disto, é também o olho que
vislumbra a representação, os contornos do objeto, também idealizado, de seu desejo.
Logo, por trás da cortina, o objeto. Um objeto perdido de si e do outro – já
que o que se procura é um objeto absoluto, sem falta -, e cuja ausência o véu tenta
dissimular.
Ao compartilhar desta fantasia com Riobaldo, Diadorim não o identifica
como objeto de seu desejo, não o vê. É como se ele “nem estivesse ali ao pé” (GSV,
p.286). O que acontece é que Diadorim se identifica ao objeto da fantasia dele e, por
conseguinte, àquilo que falta.
Mas não pensemos que isto invalide o amor de Diadorim por Riobaldo. Ele é
o objeto de seu amor. Sustenta-se pela idealização, pela identificação narcísica: “Cês
dois assentam bem, como se combinam...” (GSV, p.285) o que resulta, pelo amor, em
uma mulher “vaidosa de se feliz e de tudo” (GSV, p.286).
Quanto ao objeto da fantasia, já que ele é aquilo que falta, temos que este
objeto é o falo. Ora, deparar-se com a falta do falo, remete à castração e é justamente
isso que a fantasia cobre e descobre.
Por essa discordância entre o objeto do amor e o objeto da fantasia é que
surge a discordância entre os casais. Por isso, depois da “sonhice” (GSV, p.286), o
coração de Diadorim “batia ligeiro” (GSV, p.286) porque o falo falta a todos e o amor
tenta dar isto que ninguém tem, visando a completude. Daí o súbito desamparo: “Mas
me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma
causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito
definitiva” (GSV, p.286).
Os dias se passaram. Riobaldo “levava Diadorim...” (GSV, p.297). Assim
continuaram, lado a lado, por veredas que os conduziram ao “lugar demarcado, começo
de um grande penar em grandes pecados terríveis” (GSV, p.303), novas veredas
encruzilhadas, sendo que “[e]las tinham um nome em conjunto – que eram as Veredas-
47
Alusão à canção “Você, você” de Chico Buarque, CD As cidades, citada no capítulo anterior.
163
Mortas. [...] por uma ou por outra, se via uma encruzilhada. Agouro?” (GSV, p.304).
Talvez não. Talvez apenas um lugar em que se pode reconhecer junto com Riobaldo que
“Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar” (GSV, p.249).
Riobaldo e Diadorim encaminharam-se, desta forma, em direção a um lugar
decisivo: para um, o limite: “as Veredas Mortas... Ali eu tive limite certo (GSV, p.304,
grifos do autor). Para o outro, lugar de ultrapassagem.
4. 9 A pedra começa a rolar
A pedra de safira recusada rolou e atrapalhou o caminho. Como objeto
perdido, ganhou vários nomes, pulverizou-se. No começo, era um topázio: “eu trouxe a
pedra de topázio para dar a Diadorim” (GSV, p.49). Depois, conforme observa Utéza
(1994, p.121) a pedra muda de nome ao longo da narrativa: “[...] de safira (p.283), volta
a ser topázio (p.334) [...], depois ametista-topázio (p.430), para finalmente fixar-se no
estado de ametista [...] (p.454) [...]”.
A pedra metamorfoseou-se com o desenrolar. Assim como ocorreu com ela,
outras metamorfoses foram observadas.
De raso jagunço, Riobaldo passou a chefe do bando, numa ascensão
incentivada e celebrada por Diadorim. De aprendiz, passou a fazer discípulo e a
arregimentar homens e, qual um pai, quis definir-lhes o mundo: “- “O mundo, meus
filhos, é longe daqui!” – eu defini” (GSV, p.336).
O discípulo de Riobaldo foi o pretinho Guirigó “[u]m rapazola retinto, mal
aperfeiçoado; por dizer, um menino” (GSV, p.299). Prestemos atenção a este menino,
pois ele não é um menino qualquer: “Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino
já devia de ter prática de todos os sofrimentos. Olhos dele eram extremados, [...]”
(GSV, p.299). Estes olhos, veremos, testemunharam uma interessante metamorfose.
Depois de Diadorim ter deixado patente que se encontrava na encruzilhada
da vereda do dever em relação ao pai e da vereda do querer em relação à Riobaldo, e
que tendia mais a seguir por esta última, Riobaldo nem considerou esta declaração:
“Nem considerei. “– “É, o Hermógenes tem de acabar!” – eu disse” (GSV, p.404). Aí,
para Diadorim, foi um desmoronar de esperança e o rolar de lágrimas pela pobreza
feminina: “Diadorim, ia ter certas lágrimas nos olhos, de esperança empobrecida. Me
mirava, e não atinei. Será que até eu achasse uma devoção dele merecida trivial?”
(GSV, p.404).
164
Era o precipício do mal-entendido. Diadorim mirava Riobaldo, ele era alvo
de seu amor. Riobaldo não percebeu. Ele agora queria glórias. Diadorim, amor. Ele
agora, herdeiro do pai, ocupava o lugar do líder, era o portador do falo. Enquanto isto,
Diadorim, o legítimo herdeiro, bravo guerreiro, abriu mão de sua herança, abriu mão de
ter o falo. Não o queria e foi bem longe na disposição de pagar o preço pela perda da
herança. Queria antes receber o falo de Riobaldo ou ser o falo para este. Como ressalta
Soler (2005, p.100),
[j]ustamente na medida em que seu desejo diverge para o homem, é mais a ser
ou a receber esse falo que a mulher aspira: a sê-lo, através do amor que
faliciza, e a recebê-lo, por intermédio do órgão com que ela goza, mas, nos
dois casos, ao preço de não o ter. Pobreza feminina!
Foi exatamente nesse momento de divergência que irrompeu, como
considera Utèza (1994, p.91), um “fenômeno grandioso”, o “desvôo de tanajuras”
(GSV, p.404), um exemplo extraordinário do saber dos instintos, um saber tão certo, tão
distinto do saber do desejo, sempre tão incerto e desencontrado. Riobaldo, cego de
mestria, chamou o menino Guirigó para apreciar e “saber do mundo” (GSV, p.404).
Fascinado pela metamorfose das tanajuras, Riobaldo não viu a mudança ao seu redor.
Não viu mais Diadorim: “Mas, então, quando mirei e não vi, Diadorim se desarpartou
de meus olhos. Afundou no grosso dos outros. Ai-de! hei: e eu tinha mal entendido”
(GSV, p.405). Assim é o desentendido mundo dos homens.
A esta altura, o bando já havia capturado a mulher do Hermógenes. Um dia
esta pediu para falar em particular com o jagunço Reinaldo, que era Diadorim. Sobre
essa conversa, Diadorim “não me contou nada” (GSV, p. 407). Mesmo assim não
esqueçamos que houve uma conversa entre a mulher do Hermógenes e Diadorim.
Dissemos anteriormente que Riobaldo passou a arregimentar homens “para
obrar vingança pela morte atraiçoada de Joca Ramiro” (GSV, p.337). Pois bem, agora é
ele que forma anéis convocando “todos nas armas” (GSV, p.337). Agora, a vingança em
nome do pai agrilhoa Riobaldo. Os elos se enodam e formam uma cadeia de homens
prontos para o combate. Entre estes, o Borromeu:
Quem era esse Borromeu? Mandei vir. Um cego; ele era muito amarelo,
escreiento, transformado. – “Responde, tu velho, Borromeu: que é que tu faz?”
“- Estou no meu canto, cá, meu senhor... Estou me acostumando com o
momentinho de minha morte...” Cego, por ser cego, ele tinha o direito de não
tremer. – “Tu é devoto?” “– Pecador pior. Pecador sem o que fazer, pede preto,
pede padre...” Apontou com o dedo. Levei os olhos. Não vi nada. É assim, a
esmo, que os cegos fazem. Aquele era o bom rumo do Norte. – “Ah, meu
165
senhor, eu sei é pedir muitas esmolas...” Pois, então, que viesse também o
Borromeu, viesse (GSV, p.337).
Foi assim que nos veio o cego Borromeu e com sua vinda tivemos - também
nós - a indicação de um sentido, de um norte, da amarração de uma cadeia. Mesmo que
indicando a esmo, o que a aparição do velho Borromeu faz é nos dá a oportunidade de
entender um pouco mais sobre o Nome-do-Pai no Grande Sertão.
Borromeu é um nó. Ele agrilhoa elos, enoda-os, sendo que ele mesmo é
incorporado aos elos enodados. Mas, expliquemos isso melhor:
Em 1956, Lacan (1992) já afirmava que o Nome-do-Pai é o anel que faz tudo
se manter junto. Vimos no segundo capítulo deste trabalho que para Lacan o pai
imaginário, o pai simbólico e o pai real mantém relação entre si. Estão enodados. O que
amarra todos estes pais é o Nome-do-Pai. Posteriormente, em 1975, no seminário
intitulado simplesmente por R,S,I, quer dizer, Real, Simbólico, Imaginário, Lacan
articulou o nó Borromeu ao conceito de Nome-do-Pai, introduzido na teoria em 1956.
Através deste recurso da topologia – pois, o nó Borromeu, assim como a faixa de
Mœbius que tratamos anteriormente, são estruturas topológicas -, ele pode resolver a
questão deixada em aberto naquele seminário do ano de 1963, intitulado Nomes-do-Pai.
Foi justamente o emprego do nó borromeano que possibilitou a articulação deste
conceito aos registros do real, simbólico e imaginário (PORGE,1998).
Então o Nome-do-Pai amarra todos os nomes do pai – o pai imaginário, o pai
simbólico e o pai real – ao mesmo tempo em que ele próprio faz parte de cada um
destes. É uma quarta consistência e tem uma função suplementar: a função paterna.
Como afirma Porge (1998, p.154), “[o] quarto elo explicita o Nome-do-Pai implícito
nos três”. E o autor vai ainda mais longe para afirma, a partir do ensino de Lacan, que
“[o] quarto anel é o Nome-do-Pai, o pai como nome, nome inominável, cujo turbilhão
cospe os nomes do pai R, S, I” (1998, p.186).
Portanto, mais uma vez podemos dizer que o Nome-do-Pai é voragem,
vórtice, turbilhão. Ele exerce uma força centrípeta que faz convergir. Ele une. Todavia,
ao mesmo tempo, ele também exerce uma força centrífuga, pois separa, diferencia,
espalha, expele pais e pedras pelo caminho. É redemoinho.
Além disso, precisamos ainda esclarecer que se o velho Borromeu nos serviu
como mote para tratarmos do nó borromeano, este, por sua vez, não é um nó cego como
o velho. Apesar de o nó Borromeu manter os elos amarrados entre si, todo o grilhão
166
pode se desfazer com um simples corte aplicado a qualquer ponto da cadeia. A seguir,
apresentamos uma ilustração do nó Borromeu:
Fig. 3 - nó Borromeu
Já dissemos antes: o Nome-do-Pai é metáfora da função paterna. Esta separa
o ser humano da coisa em si, pois o introduz na linguagem. Porque falamos, não temos
acesso direto às coisas48. Usamos metáforas e metonímias para nos referir a elas. O
Nome-do-Pai amarra os elos da cadeia da linguagem. Dá-lhe um sentido e um limite.
Favorece que se diga muito, mas não que se diga tudo. Sempre falta algo. Como o
Nome-do-Pai se confunde com a própria cadeia que ele amarra, um corte em qualquer
um dos pontos da cadeia desamarra tudo. Daí a fala sem sentido e sem limite da psicose.
Mas, prossigamos, pois muita coisa foi ficando diferente. Daí em diante,
Riobaldo manteve sempre ao seu lado aqueles dois, o “menino e o cego Borromeu –
aqueles olhos perguntados” (GSV, p.343). Ele próprio, Riobaldo, andava diferente.
Diadorim não aceitava:
- “Repugno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você quer
dansação e desordem...”
Mexi meu cuspe dentro da boca.
- “... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o que está demudado,
em você, é o cômpito da alma – não é razão de autoridade de chefias...”
[...]
Dizendo, Diadorim se arredou de mim, com uma decisão de silêncio (GSV, p.
353, 354).
Acontecia que, depois da passagem pelas Veredas Mortas, Riobaldo tornarase pactário com o demônio. Agora, quem mandava nele eram seus “avessos”
(GSV,p.355) e ele se encaminhava para o combate final. Enquanto isso, Otacília
tornara-se sua noiva e o esperava “guardada protegida, na casa alta da Fazenda Santa
Catarina” (GSV, p.369). No entanto, apesar de ter assumido este compromisso,
48
Esclarecimento fornecido por Ivan Corrêa durante seminário ocorrido em maio de 2005.
167
Riobaldo continuava dividido: “Otacília, eu não merecia. Diadorim era um impossível”
(GSV, p.371). O impossível que o instante transformava e incitava quase uma devoção:
Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com
uma beleza ainda maior, fora de todo comum. [...]. E tudo meio se sombreava,
mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do
instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora
da Abadia! A Santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro
respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si só não
alcança (GSV, p.374).
Diadorim, a Santa?! Convenhamos que eis aí mais uma metamorfose
grandiosa. É claro que, para tanto, só mesmo alguma coisa não alcançável pelo
entendimento poderia realçar. As belezas e amor de Diadorim evocavam nos olhos de
Riobaldo a imagem da Nossa Senhora, a Santa Mãe, uma imagem fora do comum capaz
de fazer tudo meio se sombrear. Mas o que poderia realçar assim em meio ao
sombreado, ao encoberto, senão a mulher - aquela que, cedo ou tarde, acabará por
representar para o homem a castração -, mesmo que esta mulher seja a mãe?
Lembremos: em algum instante, o menino perceberá que a mãe também é
castrada. No entanto, como afirma Freud (1980 [1927], v.XXI, p.181), “em sua mente a
mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é o mesmo de antes. Outra
coisa tomou o seu lugar, foi indicada como seu substituto, [...]”. Essa outra coisa nada
mais é que o objeto fetiche, um objeto que herda todo o interesse dirigido ao falo, bem
como todo o horror da castração. Assim, como Freud (1980 [1927], v.XXI, p.181) ainda
assinalou, o objeto fetiche permanece como “um indício do triunfo sobre a ameaça de
castração e uma proteção contra ela”.
Isto nos interessa porque depois da visão grandiosa, Riobaldo deu mais um
presente a Diadorim, passou à suas mãos um objeto com virtude de poder e defesa, um
talismã, um fetiche:
Aí peguei o cordão, o fio do escapulário da Virgem – tanto cortei, por não
poder arrebentar – e joguei para Diadorim, que aparou na mão. Ia me fazer
alguma pergunta, que eu não consenti, a voz dele era que mais significava”
(GSV, p.374).
Diadorim foi impedido de falar, pois a fala significa demais. Ela significa
que algo falta, e neste instante o que Riobaldo queria vislumbrar era um Diadorim
perfeito, sem falta alguma. Dali em diante Diadorim portaria o escapulário da Virgem
cujo fio, mesmo sendo uma fita delgada, tênue, não pôde ser arrebentado, rompido,
168
violado. Consideramos que, assim, revestido com os atributos da Virgem, Diadorim foi
cumulado por Riobaldo com o que Assoun (1993, p.136, grifos do autor) denomina de
“potência feminina”. Ouçamo-lo:
[...] o corpo da mulher, lugar de designação da castração, acaba por encarnar a
onipotência. É essencial compreendermos esse passo da falta para a perfeição,
pois aí se estabelece a verdade da mulher no inconsciente do homem. Ora, é no
corpo da virgem que se efetua essa convergência explosiva: a mulher não
tocada pela relação sexual polariza em si um estranho poder.
Esse estranho poder advém do medo masculino da defloração. Freud (1980
[1918], v.XI, p.190, grifos do autor) abordou-o no artigo intitulado O tabu da
virgindade, no qual, para resumir, ele afirma que “a sexualidade imatura de uma mulher
descarrega-se no homem que primeiro lhe faz conhecer o ato sexual”. É justamente aí
que Assoun (1993, P.136) identifica “a falta da mulher, [...], transformada em poder
explosivo”.
Este é um dos efeitos que a virgindade pode adquirir para o homem. Já para
a mulher é possível que ela vivencie o desejo identificado por Freud a partir da análise
do sonho da recém-casada. Este sonho - observou Freud (1980 [1918], v.XI, p.190) -,
realiza “o desejo da mulher de castrar seu jovem marido e guardar o pênis dele para
ela”. De posse do pênis, nada lhe faltaria. Acontece que o pênis não é o falo e o certo é
que a falta permanece. Daí a perene demanda feminina por algo que preencha a falta.
A partir desta observação, Assoun (1993, P.138) propôs que há na mulher
uma “vocação pela reinvindicação narcísica de uma ligação sem falhas, a dar sentido a
qualquer falha a respeito delas”: é preciso que o homem seja cuidadoso, que se
mantenha atento, que não esqueça nenhuma das pequenas coisas que dizem respeito a
ela... etc, pois, o esquecimento, a negligência, a falta, representa para a mulher que o
homem não lhe valoriza.
Ao mesmo tempo, a própria mulher representa a falta - e a representa
inclusive no inconsciente do homem -, logo, ela
[...] fica colada nesse estranho lugar em que tem que ser, no inconsciente do
homem, sumamente significativa, ou então, insignificante. Daí lhe vem a
aptidão de vigiar o inconsciente do homem, para captar nele o estado de
importância que assume, como se estivesse ameaçada de ser anulada a
qualquer momento! É isso que parece fada-la, decididamente, a funcionar
como lapso ou como ato falho do homem (ASSOUN, 1993, p.139, grifos do
autor).
169
Com Diadorim e Riobaldo não foi diferente. Diadorim vigiava, procurava
um sentido para os atos falhos, auscultava as intenções de Riobaldo:
Porque Diadorim já sabia tudo. Como sabia? Ah, o que era meu logo perdia o
encoberto para ele, real no amor. – “Riobaldo, você vadiou com as do VerdeAlecrim... Você está comprazido?” – êle de franca frente me perguntou. Eu
tibes. [...]. Mas admirei que Diadorim não estivesse jeriza. [...].
- “Você já está desistido dela?” – em fim ele indagou.
- “Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas velhacas palavras...” – eu
só fiz que respondi, redatado. [...].
[...] Porque eu entendi: que a referida era Otacília. Minha nôiva Otacília, tão
distante - o belo branco rosto dela aos poucos formava nata, dos escuros...
(GSV, p.401).
Então, estava sendo assim: Otacília ficando distante na medida em que eles
se aproximavam do momento de cumprir a vingança. Riobaldo, longe de si mesmo e de
Diadorim. Este por sua vez, qual uma esfinge, continuava às voltas com seus enigmas:
- “Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo
estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...”
Ele disse, com amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu
estava longe de mim e dele. Do que mais Diadorim me disse, desentendi
metade.
Só sei que, no meio reino do sol, era feito parássemos numa noite demais
clareada. [...]. Dentro de muito sol, eu estava reparando uma cena: que era um
jumentinho, [...], no limpo do campo caçando o que roer, [...].
Eu não tinha que tomar tento em coisas mais graves? (GSV,p.386).
Talvez tivesse, mas a claridade daquela proposta de resolução do enigma era
tão grande que ofuscava. Além disto, acaba que, no geral, apesar de eventualmente
amarmos as palavras, como Diadorim, apostando que estas se mostrem indiscutíveis, o
fato é que muitas vezes “a gente não sabe em que rumo está” (GSV, p.410). Por isso
Riobaldo “ia para sofrer, sem saber” (GSV, p.412).
As pedras do quebra cabeça continuaram a rolar, uniram-se. Chegaram
mesmo a compor o Paredão, cenário da luta final, das “entortações” (GSV, p.450), da
travessia “de horror, precipício branco” (GSV, p.450).
Para aí, Riobaldo e Diadorim se encaminharam, a par, quando do díspar se
tratava. Nisto, “o travo de tanto segredo” (GSV, p.453) - um segredo de pedra -, virou
pó e re-velou um enigma capaz de petrificar.
4. 10. Para Riobaldo, o êxtase e o horror. Para Diadorim, o horror e o êxtase
170
Chegamos ao ponto em que podemos perguntar como Riobaldo: “Dali de lá,
eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não? [...] Quem sabe, tudo o que já
está escrito tem constante reforma – [...] – em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?”
(GSV, p.410).
Reforma tem, mas acontece que “[a] gente chega, é onde o inimigo também
quer” (GSV, p.413). Por isso chegamos com Riobaldo, Diadorim e todo bando aos
“campos do Tamanduá-tão; o inimigo vinha, num trote de todos, [...]” (GSV, p. 413). Aí
“[f]oi a grande batalha” (GSV, p.413).
O Tamanduá-tão era uma várzea. Mas, principalmente, “do Tamanduá-tão
era a Vereda” (GSV, p.413, grifos do autor). Uma vereda aumentada, de “V” maiúsculo.
Melhor, era a encruzilhada e o lugar da crucificação. Tanto que, para bem defini-la,
Riobaldo sugere que se “forme uma cruz, traceje” (GSV, p.414). Lá, “todo o todo do
Tamanduá-tão se alastrou em fogo de guerra” (GSV, p.418).
O primeiro combate se deu com o bando do Ricardão. Este, vencido, rendeuse:
Assim estivesse pensando que ia ter julgamento? Achei que. E ele não estava
ferido. [...]. Sendo que - e, aí, foi minha idéia? – ah, não; mas vi que Diadorim,
de ódio ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num tirte-guarte: atirei, só um
tiro. [...]. Se deitou, conforme quase não estivesse sabendo que morria; mas
nós estávamos vendo que ele já morto já estava.
[...]
- “Não enterrem este homem!” – eu disse (GSV, p.422).
Depois, rumaram para o arraial do Paredão: Diadorim, Riobaldo e seu
bando, o cego Borromeu, “[a]trás, o menino Guirigó, se envelhecendo” (GSV, p.423) e
a mulher do Hermógenes. Mas, “[s]ó com o desgosto dos prazos da vida foi que
[Riobaldo enxergou] aquela mulher” (GSV, p.423).
O Hermógenes “[c]ontornava, feito gavião, vônje” (GSV, p.426).
Neste momento de perigo, nesta iminência do combate final, chegou a
Riobaldo uma notícia que lhe fez vivenciar mais um dilema: Otacília, sua noiva, vinha
ao seu encontro. Dividido entre as obrigações do comando e a obrigação de proteger
Otacília, Riobaldo decidiu: “lá ia, no vou e volto; e já mesmo. [...]. Para revir e dar
guerra, tempo havia de ter. Os outros fossem, para o Paredão, tocassem” (GSV, p.428).
Entre estes outros... Diadorim.
171
Terá sido mesmo assim? Diadorim sem singularidade, apenas mais um
homem do bando, mais um chefiado de Riobaldo, um jagunço qualquer? Vejamos:
[...] esbarrei, em saída. Esbarrei para repontar Diadorim, que vinha vindo. – A
lá, que é?! – eu disse asp’ro. Diadorim quisesse me acompanhar, eu duvidava,
de que motivos. Não me respondeu. Li nele a forma duma ira, como apertou os
olhos em direitura do campo. – Tu não vai para o Paredão, tu teme? – eu
ainda buli. Diadorim me empaliava, a certas. O ódio luzente, nele, era por
conta de Otacília... Ele me viu e não disse, ladeando o cavalo. Mirou meio o
chão; vergonha que envermelhou. Agora ele me servia dáv’diva d’amizade – e
eu repelia, repelia. Mas, fora de minha razão, eu precisei com urgência de ser
ruim, mais duro ainda, ingrato assim. – Tu volta, mano. Eu sou o Chefe! –
pronunciei. E ele, falando de um bem-querer que tinha a inocência enorme, me
respondeu assaz:
- “Riobaldo, você sempre foi meu chefe sempre...” (GSV, p.428, grifos do
autor).
Poderíamos parar por aqui, darmo-nos por satisfeitos, e concluir: Diadorim
amava profundamente o pai, mas este amor não lhe impediu de buscar a feminilidade.
Diadorim separou-se do pai. Voltou-se para um outro homem. Para Diadorim, desde a
muito, Riobaldo era seu chefe, era aquele que estava à frente de qualquer coisa,
inclusive da obrigação de vingar o nome do pai. Afinal não o vemos agora preferir
acompanhar Riobaldo em detrimento do dever de vingar a morte do pai?
Tendo chegado a esta conclusão, podemos agora começar a responder
algumas das questões levantadas no início deste capítulo. Podemos, então, dizer que
Diadorim não levou às últimas conseqüências a obrigação de vingar a morte de Joca
Ramiro. Parece óbvio, então, que Diadorim não se manteve preso a este desígnio. Por
dedução, podemos também afirmar que Diadorim conseguir superar os obstáculos que
impediam seu acesso a um destino que lhe fosse próprio: conseguiu superar o desígnio
de vingança e realizou uma travessia em conformidade com suas próprias
determinações.
Mas, não nos precipitemos. A estória não pára por aí.
Além disso, precisamos considerar: se o acesso de uma mulher à
feminilidade depende do fato de ela conseguir desligar-se de seus primeiros objetos de
amor e desejo, quais sejam, a mãe e o pai, e se a consecução deste desligamento implica
em abrir mão do desejo de ter o falo, resta à mulher, como já foi dito, ser o objeto de
amor do homem, portanto, ser o falo para ele. Resta-lhe, ainda, gozar através do órgão
masculino, pois, usufruir deste avatar do falo equivale a receber o falo.
172
Ora, no caso de Diadorim, parece-nos, agora, que podemos afirmar com
certa tranqüilidade que lhe foi possível separar-se da mãe e do pai. Apesar de vestir-se
como homem e ocupar a maior parte do tempo a posição masculina, sua escolha de
objeto de amor e desejo foi uma escolha feminina. Diadorim, como heterossexual,
amava as diferenças, as singularidades do feminino. Por isso, escolheu um homem para
amar e desejar. Conseguiu, sobretudo, abrir mão de ter o falo. Portanto, Diadorim
freqüentou a posição feminina e fez sua escolha a partir do campo do feminino.
No entanto, a estória nos tem dado a ver que Diadorim teve de lidar com a
aspereza, com a ingratidão e com a urgência de Riobaldo “de ser ruim, mais duro ainda”
(GSV, p.428). Riobaldo repeliu Diadorim.
As motivações de Riobaldo não são objetos de nosso estudo. Mesmo assim
nos permitimos uma rápida conjectura: como ele poderia, num momento assim tão
crítico de comando de uma guerra, não sentir a urgência de demonstrar, veementemente,
a si mesmo, que era capaz de ocupar a posição fálica e assumir as escolhas de objeto
segundo a posição masculina? Riobaldo tinha de ser chefe e tinha de se voltar para
Otacília. Tinha de amar aquela que, para ele, parecia saber ocupar sem grandes
ambigüidades a posição feminina. Ele, como heterossexual, amava a diferença, a
singularidade - amava a mulher.
Adiemos, então, outras conclusões, pois muito ainda há por rolar.
Acompanhemos a água que em seguida fluiu. Riobaldo partiu em socorro de Otacília e
Diadorim ficou:
Nem espiei para trás – não ver que Diadorim obedecia, mas como devia de
parar estacado lá, té que o meu vulto desaparecesse. Desjustiça. Mas como a
obrigação do dia me arrolava. E em tudo não pensei, tocando para ir fazer-eacontecer, aos baques do coração. O senhor diria, dirá: como naquela hora
Diadorim e eu despartávamos um do outro – feito, numa água só, um
torrãozinho de sal e um torrãozinho de açúcar... Fui, com desejos repartidos
(GSV, p.429).
Na água não se percebe qualquer separação entre sal e açúcar. Pelo contrário,
misturam-se perfeitamente e a água fica mesmo sendo de uma qualidade só. Mas com
os desejos, não. Estes freqüentemente se mostram misturados e, ao mesmo tempo,
repartidos. Tão repartidos que indo já bem adiantado no socorro a Otacília, Riobaldo
sentenciou a seus dois acompanhantes: “- “Vão sozinhos, vocês dois, beira-rio,
procurando. Eu não posso ir mais, por meu dever. Retorno, já, para o Paredão...””
(GSV, p.432). Mudou de motivos, mudou de urgência, mudou de destino:
173
Agora eu mudava, para motivos: [...]. [...] ah, a gente larga urgente o real
desses estados. Agora minha alegria era mais minha, por outro destino.
Otacília ia ter boa guarda. E então, por uma vez, eu peguei o pensamento em
Diadorim, com certo susto, na liberdade (GSV, p.433).
Ao retornar, Riobaldo encontrou Diadorim que o “esperava, demais” (GSV,
p.433), e pôde ver “a alegria no rosto dele” (GSV, p.433).
O Paredão ficava na região do Tamanduá-tão, lugar que pode ser
representado por uma cruz. Lá Riobaldo reencontrou Diadorim “- com chapéu xíspeto,
alteado. Nele o nenhum negar: no firme do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos,
na fina cintura; e em peito a torta-cruz das cartucheiras” (GSV, p.433). Aí estava
Diadorim no firme consentimento de portar a obliqüidade das cartucheiras - a injustiça
de uma cruz recobrindo um refinado corpo de mulher.
Uma outra mulher, a do Hermógenes, também não pode se mostrar. Foi
arremetida para um lugar fechado, ao mesmo tempo elevado e com sobras, excessivo.
Neste lugar, foi botada não a mulher, mas seu excesso, algo que lhe está para além, a
Mulher, com “M” maiúsculo: “Fui ver onde tinham botado a Mulher – ela fechada num
quarto, no sobrado. Ficasse lá, sobpé de guarda” (GSV, p.433).
Riobaldo preparava-se para o combate com o Hermógenes. Pelejou “para
recordar as feições dele” (GSV, p.434), mas o que viu foi a figura de “um homem sem
cara” (GSV, p.434). O combate se daria então contra quem?
Riobaldo mesmo nos dirá:
Acho que tirava um ódio por causa de outro, cosidamente, assim seguido de
diante para trás o revento todo. A modo que o resumo da minha vida, em
desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes – naquele dia,
naquele lugar (GSV, p.434).
O combate contra o Hermógenes remete, portanto, a um embate mais antigo,
fantasiado. Isto logo nos lembrou o estudo feito por Freud em 1919 sobre a freqüência
dos relatos de fantasias de espancamento de uma criança. Nestas fantasias enuncia-se
simplesmente que “bate-se numa criança”, logo, o autor da ação é um sujeito
indeterminado. Porém, com os desbobramentos deste enunciado, se concluirá que o que
se fantasia é que quem geralmente bate é o pai.
Sobre este estudo de Freud, Lacan (1992, p.62) comenta:
174
Eis-nos reduzidos, de fato, a que um corpo pode ser sem rosto. O pai, ou o
outro, seja quem for que desempenhe aqui o papel, assegure a função, dê o
lugar ao gozo, ele nem mesmo é nomeado. Deus sem rosto, este é o caso.
Contudo não é apreensível, a não ser como corpo.
O que é que tem um corpo e não existe? Resposta – o grande Outro.
O grande Outro é a alteridade radical. Está para além do outro que, afinal, é
um nosso semelhante. Para nos referirmos ao Outro - lugar da diferença -, recorremos à
palavra. Neste limite, o Outro se confunde com a linguagem (LACAN, 2004). Através
da linguagem é que podemos simbolizar a diferença entre os sexos e a diferença entre as
gerações. A partir destas simbolizações podemos nos situar nas relações de parentesco e
termos acesso às leis que regem estas relações. Desta forma, o grande Outro é também o
lugar da lei. Como já dissemos, lei e desejo são antípodas. Assim, verso e reverso da
mesma moeda, acaba que, como afirma Lacan (2006, p.152) “o desejo do homem [é] o
desejo do Outro – com um O maiúsculo [...]”.
Assim, o embate com o Hermógenes pode ser tomado como representação
do embate com o pai, com o Outro, com o próprio desejo que é desejo do Outro, com
Deus e as diabruras da linguagem.
“[F]oi feito um trovão” (GSV, p.438) que o combate começou:
Tiro ali era máquina. [...]. A gente tinha de caber em buracos escavados. [...].
Eu queria que Diadorim não se descuidasse. Diadorim disse: - “Toma cautela,
Riobaldo...” Diadorim se descabelou, bonitamente, o rosto dele se principiava
dos olhos. Eu comandava? (GSV, p.440).
Riobaldo e Diadorim guerreando lado a lado, “[t]udo ali era à maldição, as
sementes de matar” (GSV, p.440). No Paredão que “era uma rua só” (GSV, p.439)
havia uma residência alta, “soberana das outras. Dentro dela estava sobreguardada a
Mulher, de custódia. E o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos” (GSV, p.441).
Riobaldo desejou ir para lá e estar, do alto, para “todo comandando” (GSV,
p.441). Mas quem comandou foi Diadorim: - “[...] Tu vai lá Riobaldo...”(GSV, p.441).
Ao que ele respondeu:
- “Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais perigoso...” – eu falei, muito
alerta. Tudo que Diadorim aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que
com pressentimentos.
- “Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que é o lugar de chefe. Com teu dever
pela pontaria mestra: [...]. Constante de que, aqui, o negócio está garantido...”
– ele disse, mansinho, de me persuadir.
[...] Meu posto? O quanto também olhei Diadorim: ele, firme se mostrando,
feito veada-mãe que vem aparecer e refugir, de propósito, em chamariz de
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finta, para a gente não dar com o veadinho filhote onde é que está amoitado...
Aquele sobrado era a torre. Assumindo superior nas alturas dele, é que era para
um chefe comandar – reger o todo cantão de guerra!
- “Eu vou...” -; fui (GSV, p.441, 442).
Pensamos como Riobaldo que é preciso estar alerta a tudo que Diadorim
aconselhasse. Também concordamos com ele quando pressente que persuadindo
Riobaldo a instalar-se no alto da torre, Diadorim tinha o propósito de protegê-lo, qual
uma mãe protege o filhote, colocando-se como chamariz. O que Diadorim tencionava
era, certamente, proteger Riobaldo - mesmo que à custa da própria vida. Mas deixemos
isto em suspensão.
Riobaldo foi. Antes, o relance de um olhar de despedida: “Ainda virei,
relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito
um riso e soluço, nesse meio de vida” (GSV, p.442).
Então, a disposição para a guerra ficou sendo esta: Riobaldo, lá, nas alturas,
na torre que é lugar de chefe. Mesmo lugar onde foram botados a Mulher, o menino
Guirigó e o cego Borromeu. Diadorim, cá, embaixo, no meio de todos os outros, no
meio da rua, diabrável, “no meio do redemunho” (GSV, p.450).
Chegando à torre, Riobaldo reencontrou o menino e o cego Borromeu. Lá
também estava a mulher do Hermógenes, presa num quarto. “A chave estava na mão do
cego Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me entregar;
rejeitei” (GSV, p.443). Mais uma vez Riobaldo rejeitou algo. Desta vez – vemos -, ele
rejeitou a chave que daria acesso à mulher. Não a teria rejeitado antes?
Já havia se passado umas duas horas desde o começo da batalha, era quase
meio dia. Mas “[t]empo é a vida da morte: imperfeição” (GSV, p.445). Riobaldo
lembrou que na véspera podia ter perguntado a Diadorim se, depois da guerra, eles
poderiam continuar juntos, Diadorim, morando com ele em uma fazenda, depois que
Riobaldo se casasse com Otacília. Não perguntou.
Agora, “[a]s horas é que formam o longe” (GSV, p.445). Agora, recontar a
estória é dar a conhecer Diadorim:
O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor pensa que morte é
choro e sofisma – terra funda e ossos quietos... O senhor havia de conceber
alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um. [...] O senhor... Me
dê um silêncio. Eu vou contar (GSV, p.449).
176
O silencio foi dado. O “tiroteio da rua tinha pousado termo” (GSV, p.449).
Ao entender o que se passava, Riobaldo perdeu a voz:
Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham cruzado grande e
dôido desafio, [...], uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de forma; e a
frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim – movimentos dele. Querer
mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E
tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz
(GSV, p.450).
Todos vinham na fúria, menos Riobaldo, que só pôde ter um pensamento.
Qual? “... o Diabo na rua, no meio do redemunho...” (GSV, p.450, grifos do autor). Aí
estava o Diabo com “D” maiúsculo, um Diabo avantajado.
Riobaldo queria ver Diadorim, “segurar com os olhos” (GSV, p.450), porém,
o que ele viu foi
[t]recheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal, dobravam para fora e para
dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. ...O
diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de
couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de
homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e
rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas,
vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortavam até os suspensórios
(GSV, p.450, grifos do autor).
Sangue, carnes, camisa, corpo, tudo se embrulhava no meio do redemunho,
até que Riobaldo mirou e viu:
- o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou
– no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar!
Soluço que não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que
fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do
arrebatado no momento, foi poder imaginar minha Nossa-Senhora assentada
no meio da igreja... Gole de consolo... Como lá em baixo era fel de morte, sem
perdão nenhum. Que engoli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de
repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim!
Naquilo eu não pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer,
com ira de tudo... Subi os abismos... [...] Trespassei (GSV, p.451).
Êxtase... Mar seco de orações, imagem orvalhada... Depois, horror. Pois,
nem mesmo imaginar que não era o demônio no meio do redemunho, mas NossaSenhora no meio da igreja, foi de grande consolo. O fel de morte correu com profusão.
Nem mesmo o pano tecido no céu foi capaz de converter-se numa roupa decorosa que,
177
tal como afirma Dias (1997, p.136), trás a esperança de ser “mais conveniente do que
uma aposta verdadeira – sem temor e sem piedade”.
Diadorim fez esta aposta. Nenhum pano de nuvens conseguiria mais cobrir
isso convenientemente: encaminhou-se para o horror e experimentou o êxtase.
Descobriremos.
Diante do que era sem perdão nenhum, restaram a Riobaldo o medo e a
devoção. Restou-lhe, trespassado, subir o alto dos abismos. Desmaiou.
Saído do delíquio - “como no instante em que o trovão não acabou de rolar
até o fundo, e se sabe que caiu o raio...” (GSV, p.451) -, mesmo sem que ninguém lhe
dissesse, mesmo sem querer saber, Riobaldo sabia: “Diadorim tinha morrido – milvezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos
marejaram” (GSV, p.451).
Vieram-lhe as notícias: Ganharam a guerra, “tristonhamente” (GSV, p.452).
O Hermógenes morreu “do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra
todo, no vão-do-pescoço” (GSV, p.452). Não era Otacília a mulher que pensaram estar
vindo ao encontro de Riobaldo e quase o desviou da guerra. Era uma mulher qualquer,
sem o brilho verde da esmeralda, esse verde que era o dos olhos de Diadorim.
Chamava-se “Aesmeralda” (GSV, p.452). Os mortos foram muitos. “Demais...” (GSV,
p.452).
A mulher do Hermógenes foi chamada para ver o corpo do marido. Enfim,
ela pôde aparecer. Permaneceu encoberto, no entanto, o excesso que ela - tida como a
“Mulher” -, representava. Continuou o enigma:
Aquela Mulher não era malina. [...]. Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse
que não, [...]. – Eu tinha ódio dele...- ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda
não estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da
parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em
malmolência. – Tomaram as roupas da mulher nua? Era a Mulher, que falava.
Ah, e a Mulher rogava: - Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso,
o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e
ordenando: - “Traz Diadorim!” – conforme era. – “Gente, vamos trazer. Esse é
o Reinaldo...” – o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino
Guirigó e o cego Borromeu. – Ai, Jesus! – foi o que eu ouvi, dessas vozes
deles (GSV, p.452, 453, grifos do autor).
Mesmo nublado pela dor, Riobaldo ouviu o enigma proposto pela Mulher:
“– Tomaram as roupas da mulher nua?” (GSV,p.453). Mas o quê significa isso? Quem
era a mulher nua? Quem tomou suas roupas? Podíamos perguntar. Contudo, talvez estas
não fossem as melhores perguntas. Talvez o melhor fosse perguntar: Como pode
178
acontecer de, seja lá quem for conseguir tomar as roupas de uma mulher desnuda? Se a
mulher está nua, como tomar-lhe as roupas? Eis o problema proposto por este enigma.
Antes, precisamos ver o que é mesmo um enigma, qual a sua relação com a
verdade, que tipo de saber ele transmite, qual é, afinal, a sua função. Ouçamos o que
Lacan (1992, p.33,34) pode nos dizer sobre isso:
O que é a verdade como saber? Seria o caso de dizê-lo: - Como saber sem
saber?
É um enigma. Esta é a resposta – é um enigma -, entre outros exemplos. E vou
dar-lhes um segundo.
Os dois têm a mesma característica, que é o próprio da verdade – a verdade,
nunca se pode dizê-la a não ser pela metade. A nossa querida verdade [...], é
sempre um corpo.
[...]
[...] a função do enigma – é um semi-dizer, como a Quimera faz aparecer um
meio-corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução.
Então, parece-nos possível pensar que a Mulher com seu enigma
representem aqui a Quimera, aquele monstro com corpo de animal e busto de mulher,
aquele mesmo que propôs um outro enigma a Édipo. Assim, o que vemos é que a
Mulher se apresenta como um enigma para o homem. Apresenta-lhe sua meia-verdade porque afinal a verdade não pode ser toda dita -, e aguarda para ver se o homem sabe
interpretar o enigma. Mas atentemos que, enquanto enigma, a Mulher é um saber que
não se sabe.
A feminilidade - talvez possamos dizer - é isso: o enigma da Mulher.
Esclarecemos que o termo Mulher não deve ser tomado aqui como sinônimo de
plenitude. Isso não existe. Lembremos que falamos aqui da Mulher enquanto excesso,
algo a mais, que não pode ser definida, que não pode ser completamente apreendida. A
Mulher, quer dizer, a feminilidade, sempre escapa, não é uma verdade absoluta, mas
uma meia-verdade.
Continuando com este raciocínio, se considerarmos como disse Lacan que a
verdade é sempre um corpo, precisamos ter em mente que este é, tal qual a verdade e a
Quimera, um meio-corpo.
A partir destas considerações podemos então responder ao enigma, “–
Tomaram as roupas da mulher nua?”, da seguinte forma: Sim, tomaram-lhe. A Mulher,
quer dizer, a feminilidade, estava à mostra, estava nua. Acontece, como já vimos, que há
sempre algo para além de um corpo nu. Há sempre algo que o recobre. Este algo está
para além daquilo que se mostra. Não pode ser recoberto pelas roupas nem pela
179
linguagem. Resta descoberto, mesmo que esteja vestido. Este resto, nenhuma roupa,
nenhuma palavra é capaz de cobrir completamente. Por isso mesmo, um corpo, ainda
que desnudo, encobre algo. Algo falta. Assim é a feminilidade, mesmo quando ela se
mostra.
Então, o que este enigma revela é que tomaram as roupas da feminilidade
que se mostrava, ainda que de forma velada, ainda que vestida com roupas de jagunço.
Como?
Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade,
como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca
de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia,
mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito
a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver.
[...].
Eu ia dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. [...]. Mandou todo mundo
sair. Eu fiquei. [...]. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim – nú de tudo. E ela disse:
- “A Deus dada. Pobrezinha...”
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor – e
mercê peço: [...] Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...
Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. [...].
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível. [...] Uivei.
Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não
acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero (GSV, p.452).
Está dito: Diadorim era uma mulher.
Isto era tão certo quanto é certo que o sol não incendeia a água do rio
Urucúia. Mas não podemos dizer tudo sobre essa mulher. Não podemos, nem sabemos
nomeá-la em sua feminilidade. Tampouco o soube Riobaldo:
E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu
beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com
tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da
cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
- “Meu amor!...” (GSV, p.454).
Para sempre, a palavra de amor tentará recobrir a falta de um nome para
chamar a mulher!
A Outra, a Mulher, tornou a vestir Diadorim com as roupas que haviam sido
tomadas:
A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela
tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o
cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de
180
ouricuri e contas de lágrimas-se-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra-deametista, tanto trazida (GSV,p.454).
Com o cordão e o escapulário, com o rosário que é uma seqüência
ininterrupta, e adornada pelas minúsculas lágrimas-de-nossa-senhora, Diadorim também uma minúscula mulher virgem aprontada para o infinito -, foi velada.
Mas, como sempre, faltava algo. Faltava pôr a última pedra por cima de
tudo:
- “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache,
nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real
me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E
todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura
deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela tinha amor em mim (GSV, p.454).
Nunca saberemos em que vereda está Diadorim. Até porque, tentar abraçar a
Mulher - a mulher em sua completude -, só pode mesmo resultar em sofrer um choro
extenso. Isso não é doideira, é lógica. Lógica moderna que tenta lidar com as grandezas
imponderáveis.
Nunca saberemos sobre seu enigma. Ele agora está petrificado. Por isso, não
tentemos fixar por mais tempo o belo olhar de Diadorim. Fazê-lo, seria tomar sua
formosa cabeça pela feia cabeça de Medusa e o efeito disso já foi previsto: restaríamos nós e Diadorim - petrificados (FREUD,1980 [1922]).
Por isso, deixemos a impossível mulher que ela foi, descansar emparedada
em seu campo que é o sertão. Nele, Diadorim - amante e amada, virgem, mulher em
potência, cardinal de um conjunto infinito, transfinita49 -, se faz presente, por que “[o]
sertão está em toda parte” (GSV, p.9).
49
Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 2001, o termo “potência”, sob a
rubrica da matemática, representa o cardinal de um conjunto. Considerando que a mulher pertence a um
conjunto infinito, temos que o cardinal de um conjunto infinito é denominado de número transfinito.
181
CONCLUSÃO
Poderíamos dizer como Riobaldo que “[a]qui a estória se acabou. Aqui, a
estória acabada. Aqui a estória acaba” (GSV, p.454). No entanto, temos de partir - como
ele “[r]esoluto [saiu] de lá” (GSV, p.454) -, rumo a alguma conclusão.
Riobaldo teve de “cumprir, conforme a ordem que [seu] coração mandava”
(GSV, p.457). Contou tudo o que tinha acontecido a Otacília e lhe pediu “uns tempos”
(GSV, p.457). Depois, enlutado, foi “a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos”
(GSV, p.457, grifo do autor). Fez perguntas, procurou, e tudo o que encontrou
Foi este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem
tantos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em 11 de
setembro da éra de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé
Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e
mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa minha
alma. O senhor acha que essa vida é tristonha? (GSV, p.458).
É.
Maria Deodorina era um dom de Deus. A Ele, ela estava - de início -,
prometida.
Como Reinaldo, identificou-se ao pai. Reinou.
Depois, como Diadorim, essa mulher lutou, sem medo, por seus próprios
desígnios. Foi uma guerreira. Fez mais: amou muito, “[auroreou] de todo amor e
[morreu] como só para um” (GSV, p.449). Morreu virgem. Não teve gozo de amor. Este
que nós podemos nomear - dar-lhe os tons da poesia -, já que é fálico. Diadorim não fez
amor, não desfrutou do gozo sexual. Podemos mesmo dizer que Diadorim não fez
poesia se considerarmos como Lacan (1985, p.98) que “[a]í está o ato de amor. Fazer o
amor, como o nome o indica, é poesia”.
No entanto, podemos perguntar: Diadorim terá tido algum outro gozo?
Concluímos que sim.
Mais pelo amor dedicado a Riobaldo, que pelo amor dedicado ao pai,
Diadorim experimentou um Outro gozo, aquele que, segundo Lacan (1985, p.111),
favorece que a mulher tenha “mais relação com Deus do que tudo o que se pôde dizer
182
na especulação antiga, ao se seguir a via do que só se articula manifestamente como o
bem do homem”.
Não foi apenas pelo bem de Riobaldo, para protegê-lo como se fosse uma
mãe, que Diadorim realizou sozinha a travessia de horror. Diadorim dirigiu-se a
Riobaldo, escolheu-o e sua escolha não foi uma escolha qualquer.
Ela escolheu àquele que, em meio às agruras do sertão, teve não apenas a
coragem de travar seus combates, mas também, a coragem de tecer algum saber sobre as
coisas infinitas: a mulher, o pai, a vida, a morte, a sexualidade, Deus e o diabo. Por isso
Diadorim o amou. Entendemos desta forma a escolha de Diadorim porque, como diz
Lacan (1985, p.91), “[a]quele a quem eu suponho o saber, eu o amo”.
Foi como mulher, e justamente por ser uma mulher, que ela se deixou
transportar para fora de si e do mundo. Diadorim teve o gozo do arrebatamento.
Neste sentido, apreciamos seu percurso sob duas perspectivas.
Por uma, consideramos que, no usufruto deste mais além do gozo fálico,
Diadorim fez uma travessia inusitada: sua feminilidade atravessou os limites e ocupou o
lugar vazio da função paterna, o lugar vazio do inominável Nome-do-Pai. Percorreu o
infinito, rumou para o impredicável – para a morte.
Fundamentamos esta nossa afirmação no comentário feito por Corrêa
(2006)50:
Se considerarmos a função paterna segundo Frege, devemos ter em mente que
a função indica exatamente um lugar vazio. Portanto, a função como tal, como
matriz, é constituída por um lugar vazio que será preenchido pelo argumento.
O que é este lugar vazio na função paterna? É a feminilidade. A tão falada
decadência da função paterna tem como argumento a feminilidade. E, se ainda
considerarmos com Hegel, temos que, de fato, o filho anuncia a morte do pai.
A partir destas observações, afirmamos que a filha também anuncia a morte
do pai. Seu acesso à feminilidade implica em separar-se dele. Implica que a filha possa
prescindir do pai e caminhar pela vereda do Nome-do-Pai, da metáfora da função
paterna. Este movimento redunda, portanto, numa morte do pai. Porém, tal como afirma
Lacan (1999, p.163), “é preciso ter o Nome-do-Pai, mas é também preciso que saibamos
servir-nos dele”.
A nosso ver, Diadorim soube percorrer esta vereda. Riobaldo foi o agente e o
espectador desta travessia, afinal e ao final, sempre solitária. Seu relato da última vereda
50
Comentário proferido durante nosso exame de qualificação ocorrido em 22 de setembro de 2006.
183
percorrida por Diadorim coloca a ele e a nós no lugar de testemunhas de um momento
de epifania e êxtase.
Chegamos à mesma observação por uma outra perspectiva:
O Grande Sertão nos dá a oportunidade de apreciar Diadorim percorrer a
vereda do excesso. Diadorim fez travessia. Ultrapassou.
Essa vereda do excesso é, também, a da exceção. Ao atravessá-la, Diadorim
se singularizou.
Ao mesmo tempo, neste limite radical, novamente podemos constatar que a
vereda da feminilidade se constitui numa encruzilhada com a vereda da função paterna.
Dissemos - até com bastante insistência, desculpem-nos - que é impossível
definir a feminilidade. A Mulher - enquanto termo que se empregaria para denominar
um conjunto universo com tais e tais elementos que determinariam de maneira
inequívoca o que é a feminilidade - não existe. Resta sempre algo mais a ser dito.
Estamos no campo de um conjunto infinito. Este conjunto é composto por mulheres, e
elas são inúmeras. São mesmo inumeráveis. Só podemos falar delas contando-as uma a
uma. Ainda assim nosso contar não se esgota. Por isso falamos tanto. Ela, a
feminilidade, é inominável.
O Pai, também. Não podemos nomeá-lo de maneira precisa, sem excessos ou
sem falta. Tanto é assim que precisamos falar muito de muitos pais. Às vezes falamos
bem, outras, não. “O pai” são vários, quer dizer, o pai é múltiplo, variado e incerto.
Falamos do pai real, do pai simbólico, do pai imaginário e do Nome-do-Pai, que é, ao
mesmo tempo, todos e cada um daqueles. O Nome-do-Pai representa a função do pai:
enoda tudo, amarra tudo, faz laço, faz um nó. Ele até que dá sentido, mas não há um
único nome que diga tudo sobre o pai. Ele permanece inominável.
Todavia, entendemos que o Nome-do-Pai foi inscrito, esteve girando, o
tempo todo, por todo o Grande Sertão.
Entendemos também que a feminilidade esteve sempre entrelaçada a ele.
Ao final, constatamos que o Nome-do-Pai acabou favorecendo que alguma
vereda para a feminilidade fosse percorrida. Diadorim soube servir-se do Nome-do-Pai.
Assim afirmamos que Diadorim soube amar o pai e, apesar disso, soube
separar-se dele. Fez sua travessia em direção ao homem, em direção a Riobaldo. Lutou
por ele.
Lutou contra o Hermógenes, aquele corpo sem rosto que, afinal também
representava o Pai. Diadorim lutou, portanto, contra o Diabo, lutou contra o Pai.
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Ao mesmo tempo, ela lutou pelo Nome-do-Pai, pois sempre que se pode
contar com a inscrição da função paterna, é possível ter coragem para lutar por uma
travessia singular, por um nome próprio. Nisso consistia a coragem de Diadorim.
Mas lembremos que o nome sempre falta. Por isso dizemos que Diadorim
lutou pelo inominável. Lutou por Deus e a ele, enfim, foi dada a “Pobrezinha...” (GSV,
p.453). Paradoxo da feminilidade, esse de ser pobre em meio ao excesso!
Depois de tudo isso, chegamos com Riobaldo ao final – se é que existe final
no Grande Sertão!
Quando iniciamos nossa caminhada, pressentíamos as surpresas. Logo, não
podíamos saber que veredas atravessaríamos e, em virtude disto, começamos com a
interrogação: “O Nome-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?”.
Agora, ao final da nossa travessia - depois de ter apreciado a feminilidade
desfilar enlaçada ao Nome-do-Pai pelas afinidades com o inominável infinito; depois de
ter admirado os rodopios deste par, tão díspar, formando redemoinhos pelas ruas -,
permitimo-nos concluir que o Nome-do-Pai favoreceu a abertura de Veredas
direcionadas à feminilidade. Permitimo-nos também concluir que a filha atravessou as
veredas da feminilidade até o limite mais extremo do Grande Sertão.
Acompanhá-la nesta travessia foi, sobretudo, ter a oportunidade de
comprovar um valoroso e valioso entendimento ético dispensado à feminilidade:
Tanto no Grande Sertão, quanto nas obras freudiana e lacaniana, a mulher
não restou emparedada por concepções mistificadoras que, em última instância, vestemna com as roupas artificiosas da exaltação do feminino para, na verdade, esconder uma
tendência para o repúdio em relação à feminilidade.
Tampouco estas obras despiram a mulher com os argumentos falaciosos de
superestimação da sexualidade feminina, cujo efeito final tem sido, como podemos
comprovar no dia a dia, a desvalorização sexual da mulher.
Vimos o quanto estas obras se empenharam não no ultraje da mulher, mas no
entendimento de seus trajes, das roupas com as quais a feminilidade se revela, mesmo
que impossivelmente.
Na narrativa do Grande Sertão, nos textos de Freud e Lacan, a feminilidade
não conheceu a segregação. Ao contrário. Neles, ela foi vista passeando em seus trajes
paradoxais.
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Como estes textos nos mostraram que a feminilidade costuma passear é pelas
ruas do infinito na companhia de coisas imponderáveis, como o Pai, por exemplo,
continuamos tendo muito que entender sobre tudo isso.
Mas, também como aprendemos com Freud, Lacan e Riobaldo, “[a] gente só
sabe bem aquilo que não entende” (GSV, p.286). Então, bem sabemos que resta muito a
ser entendido. Por isso, mais que a respostas, este trabalho continua nos conduzindo a
novas interrogações.
Assim - ainda seguindo o exemplo do autor do Grande Sertão, que finaliza a
narrativa com um símbolo que nos remete ao infinito, a leminiscata “∞” (GSV, p. 460)
– também nós escolhemos um símbolo para finalizar nosso trabalho. Este símbolo, nós
o dedicamos àquele que, mesmo sem entender, reconhecerá.
?
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