DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO, RISCOS E SAÚDE DOS AERONAUTAS: UMA VIAGEM DE CONTRASTES Alexandre Palma CESTEH / FIOCRUZ e Universidade Gama Filho Rua Cachambi, 137 / 405, Cachambi, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 20775-180 Ubirajara A. O. Mattos UERJ: Rua São Francisco Xavier, 524, Bl B, Sl 5006, Fac. de Engenharia, Rio de Janeiro, RJ, FIOCRUZ: Rua Leopoldo Bulhões, 1.480, CESTEH, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 21041-210 Monique Assis PPGEF / Universidade Gama Filho Rua Manuel Vitorino, 625, PPGEF, Piedade, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 20748-900 ABSTRACT The purpose of this study was to verify the consequences of work conditions on brazilian crew members, under the point of view of health. The method used consisted of a risk mapping developed based on literature review on worker health and aviation; interviews with aeronauts inside and outside the work environment; as well as "in loco" observations in the real work conditions flights, aiming at identifying risk factors related to the organization and process of work. The results obtained showed an increase in the risks with the implementation of new variables and an intensification of the already existing risks. According to the increase of risks, the process of automation may reduce the pilot's physical effort. However, it may incite monotony, depression and a loss in the meaning of the task. According to the intensification of the risks, we observed that aspects related to altitude, vibration, noise and task rhythm have been increasing to the whole crew. The study allow us to conclude that the "health" of the companies has enhanced with a growth in productivy. However, unfortunately, crew members are more exposed to risk of accidents and occupacional diseases. Área temática: Segurança do Trabalho (3.5) Key-words: Work conditions, health of crew members, air safety, new technology. 1. INTRODUÇÃO A segurança de vôo parece sempre ter sido uma das questões centrais que nortearam o desenvolvimento tecnológico na indústria aeronáutica. Dentro desta perspectiva, inúmeras transformações ocorreram nas "máquinas voadoras". Disto, pode-se argumentar que houve importantes mudanças no quadro de segurança ao longo dos anos. É inconteste a segurança que há na aviação contemporânea, se comparada com algumas dezenas de anos atrás. O relatório estatístico da Boeing Commercial Airplane Group, sem dúvida um dos maiores fabricantes da aviões comerciais do mundo, aponta, para o período compreendido entre 1959 e 1995, uma diminuição bastante significativa da freqüência anual de acidentes por milhões de partidas com suas aeronaves. Obviamente, é imputado às falhas humanas um percentual maior das causas primárias responsáveis pelos acidentes. Ao aviador é, então, atribuída uma ideologia de segurança onde a conduta correta, esperada e “única a ser tomada” é: sempre seguir os padrões operacionais previamente determinados pelos manuais da companhia, não correr riscos, ser disciplinado, uma vez que a relação homem/máquina exige perfeição. Assim, a aviação, ao longo de quase um século de seu surgimento, passou gradativamente por um processo de reestruturação tecnológica. É neste sentido, então, que Billings (1997) esclarece que para a aviação foi absolutamente necessário automatizar-se, já que, em seus primórdios, as aeronaves eram extremamente instáveis e muito difíceis de serem controladas. O avanço científico-tecnológico continuou e na década de 50 o avião a jato inaugurou uma nova era na aviação comercial. Esta nova tendência no transporte de passageiros proporcionou maiores altitudes e velocidades. Vários são os fatores que se modificaram profundamente. O interior da cabine, as relações interpessoais entre tripulantes, os sistemas operativos da aeronave, os motores etc. O propósito deste estudo foi, deste modo, verificar as repercussões das condições de trabalho dos aeronautas, modificadas com a introdução de inovações tecnológicas ocorridas nas últimas décadas, sob o ponto de vista da saúde. Neste estudo, inicialmente mostrar-se-á os métodos de investigação empregados na consecução dos dados. Posteriormente, numa só sessão, será apresentado e discutido os resultados da pesquisa. Por fim, algumas reflexões finais são trazidas à tona. 2. O MÉTODO O método utilizado consistiu em mapear a evolução dos riscos do trabalho em aviação e confrontá-la com a evolução tecnológica e com possibilidades de agravos à saúde. O mapeamento foi realizado através de uma revisão da literatura nacional e internacional em saúde do trabalhador aeronauta e em aviação; entrevistas com os aeronautas (pilotos e comissários) nos locais de trabalho e fora deste; bem como observações diretas "in loco" nas situações reais de trabalho, durante os vôos nacionais e internacionais, visando identificar os fatores de risco relacionados com os processos de trabalho e formas de organização de trabalho. As entrevistas foram efetuadas com intuito de, na interação com os atores sociais, construir o "problema" concreto daquilo que estes atores apontaram. As observações, realizadas diretamente nas jornadas de trabalho, consistiram em acompanhamentos dos aeronautas desde de sua apresentação no D.O. (despacho operacional) no aeroporto, uma hora antes da partida, até sua chegada no hotel do local de destino. Durante todo vôo, foi possível ocupar o espaço social do trabalhador, ou seja a cabine de comando, no caso dos pilotos e a "galley" (espaço restrito da comissaria para preparação dos serviços) no dos comissários. Nestas observações foram registradas, em ficha anteriormente desenvolvida, as ações mais relevantes. 3. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Os resultados obtidos, através das análises dos dados, permitiram constatar uma ampliação dos riscos com o surgimento de novos fatores e a intensificação dos riscos já existentes para toda tripulação. Com relação aos primeiros, pode-se destacar alguns pontos: a) a informatização, cada vez maior nas aeronaves, pode reduzir o esforço físico dos pilotos e, com isso, trazer algumas vantagens ao piloto. Contudo, torna o trabalho mais monótono, aumenta a energia de controle, oferece maior possibilidade de tédio, aborrecimento, insatisfação, "empobrecimento" de suas atividades e mesmo o sono. Kantowitz e Casper (1988) explicam que a automação permite a diminuição da carga física, mas que, como a operação do esquema automático ainda depende do homem, este não oferece simultaneamente uma diminuição dos erros da tripulação. Por outro lado, os pilotos sofrem com a valorização da automação na aviação. Muitas vezes, a engrenagem administrativa oculta ou omite a dimensão cognitiva, a dimensão simbólica do homem trabalhador. Assim, o piloto, com o grande número de aparelhos informatizados e automatizados, começa a perder sua identidade de aviador, para tornar-se um operador de sistema altamente especializado, como sugere um piloto em sua fala: "hoje em dia a aviação perdeu muito desse encanto porque ela é tão automatizada ... o piloto tem até pouca oportunidade de pilotar". A convivência com esta ambigüidade é extremamente complicada e, talvez, sofrível. Kantowitz e Casper (1988), então, sugerem que existe uma relutância compreensível por parte dos pilotos para permitir a automação do controle de suas operações. Pois, há muito, a eles recai a responsabilidade de operação e segurança, entretanto, sentem que, também, poderiam ter o controle total da aeronave. Cabe aqui uma pequena "viagem" ao longo da história com o intuito de pontuar algumas facetas do desenvolvimento tecnológico do "mundo" da aviação. Ao demarcar, como momento de ruptura, a informatização da cabine de comando, depara-se com dois cenários. O cenário que antecede este fato compreendia um piloto com maior conhecimento do funcionamento da aeronave, da geografia das regiões e dos fenômenos da natureza, tal como aponta um comandante aposentado: "O Junkers era muito bom porque era um avião que, no tempo que eu peguei ele já estava mais ou menos decrépito, faltando peças, então, precisava levar ... um mecânico de vôo, era melhor do que um co-piloto novo, que podia ajudar na pilotagem, mas não ajudava em mais nada. No fim, eu é que tive que trocar cilindro do avião (...)". Era exigido deste piloto, principalmente, muita habilidade e, em contrapartida, lhe era dado maior autonomia nas decisões. O cenário hoje, sem dúvida mais seguro e com equipamentos de navegação mais precisos, permite ao piloto se localizar em diferentes espaços geográficos. Neste momento, o conhecimento reside na precisão e na competência da programação dos computadores de bordo pré-estabelecidos pelos fabricantes. A valorização do piloto vem de sua capacidade de checar e executar os procedimentos, normas e regulamentos. Um jovem piloto, ao comentar sobre o acidente ocorrido recentemente na Região Amazônica, onde o piloto se perdeu e acabou caindo por falta de combustível, deixou bem claro a importância dos modernos equipamentos de navegação: "(...) eles facilitam a vida do piloto em termos de localização. Se esta aeronave tivesse um IGPS a bordo, com certeza não teria não teria se perdido e não teria caído (...)". b) a evolução tecnológica permitiu, sem dúvida, um aumento significativo do tráfego aéreo e com isso toda uma transformação nas condições e organização do trabalho. Levantamentos nacionais têm mostrado, por exemplo, que a AIDS é uma das principais doenças que geram invalidez permanente. Esta doença ocupa, segundo o DIESAT (1995), a quarta posição na distribuição de afastamento por doenças, com 12,24 % dos casos. Embora, ainda careça de maiores investigações, pode-se supor que estes dados refletem a vida conturbada que estes profissionais levam. Os horários variados, as constantes viagens, a semana com descanso em dias irregulares etc. não favorecem a harmonia na vida familiar e no relacionamento social, fato corroborado por Ferreira (1992). A procura por outros parceiros sexuais, freqüentemente, tem sido relatada entre os aeronautas. A questão merece, então, maior aprofundamento devido a sua grande relevância. O segundo tópico, refere-se ao aspecto de intensificação. Neste sentido, foi possível assinalar os seguintes pontos: a) o aumento da velocidade das aeronaves, da década de 60 até os dias atuais, passou em média de 352 km/h para 725 km/h. Isto tem um profundo significado sobre o ritmo de trabalho, que se tornou mais acelerado. Um vôo, por exemplo, que demanda pouquíssimo tempo, como na Ponte Aérea Rio-São Paulo, incorpora um ritmo de trabalho bem acelerado. Por outro lado, permite também trabalhar mais no mesmo tempo ou num tempo menor de trabalho, ou seja, com aviões mais velozes, pode-se ir a mais lugares num menor espaço de tempo e isto implica em mais pousos e decolagens sem burlar a regulamentação do trabalhador. Curioso perceber que quando os pilotos encontram-se num ritmo mais acelerado no momento de inserção dos dados de navegação, dos inúmeros "checks", dos procedimentos de decolagem e subida, os comissários encontram-se com uma baixa carga de trabalho. Em vôo cruzeiro, onde o piloto monitora os instrumentos de vôo, o comissário depara-se com um frenético ritmo de serviço e atendimento de bordo. Esta situação novamente se inverte no momento de descida, aproximação final e pouso. b) os agravos à saúde relacionados à altitude podem associar-se: b.1) à qualidade do ar, que pela grande diferença entre a temperatura externa e interna tornam a umidade relativa do ar bastante baixa. O ar "seco", principalmente em vôos longos, pode aumentar a probabilidade de formação de litíase renal (DIESAT, 1995); b.2) às exposições a radiações, que serão tanto maiores quanto mais alto for o vôo, e possibilitar disfunções neurofisiológicas, hormonais, do sistema imunológico, catarata, entre outros; b.3) às condições de pressão, que se referem a uma diminuição da pressão atmosférica e da pressão parcial de oxigênio. Considerando o nível do mar, 6.000 pés e 8.000 pés, encontra-se os valores de pressão atmosférica de 760 mm Hg, 609 mm Hg e 564 mm Hg, respectivamente, enquanto os valores de pressão parcial de oxigênio são de 159 mm Hg, 127,4 mm Hg e 118,1 mm Hg. É, no máximo, a partir desta altitude que as cabines são pressurizadas e, por se exporem continuamente, os aeronautas desenvolverão uma relativa hipóxia hipobárica, que poderá ser um fator estressante durante o vôo. A aerodilatação, por exemplo, é relatada como uma situação comum pela exposição a altitudes elevadas. Neste caso, os gases aprisionados nas cavidades aéreas de dilatam, devido a diminuição de pressão. Em geral, há equalização das pressões interna e externa, contudo, num indivíduo gripado a compensação não irá ocorrer (DIESAT, 1995). Numa evolução a partir de década de 60, foi possível constatar um aumento de 25.000 pés (7.620 m.) do Lockeed Super-Constellation para os 45.000 pés (13.715 m.) dos Boeing 747 dos dias atuais. Embora, existam vários outros modelos neste período e não tenham seguido uma evolução crescente e linear. c) a vibração pode ocorrer devido: c.1) ao funcionamento dos motores, cada vez mais potentes, do avião; c.2) ao atrito da aeronave com o ar e, desta forma, quanto maior for a velocidade, maior será o atrito e, também, a instabilidade da aeronave e, conseqüentemente, a vibração; c.3) às maiores altitudes, uma vez que quanto maior a altitude mais instável fica o aparelho; c.4) bem como das ocorrências de turbulência. Para o aeronauta, as vibrações têm sido associadas à ocorrência de diminuição da capacidade visual, de alterações motoras e neurológicas, além de problemas de coluna. d) a origem do ruído, nas aeronaves, provém normalmente das turbinas; do atrito com o ar, quando em vôo; e do pouso e decolagem. Assim, a exposição, ao longo dos anos, pode trazer sérios riscos à audição dos aeronautas e que tem sido percebido quando investiga-se os dados sobre invalidez permanente entre os aeronautas. Neste quadro, os problemas audiovisuais despontam em segundo lugar, com 20,41 % do total de casos (DIESAT, 1995). e) pode-se dizer, ainda, que os aviões mais modernos transportam mais passageiros e têm maior autonomia de vôo. Hoje um grande avião, no Brasil, chega a transportar entre 374 a 490 passageiros contra 122 para a década de 60. O mesmo pode ser dito para a autonomia de vôo, hoje com um alcance de até 10.655 km para algo em torno de 5.000 km na referida década. O impacto das condições de trabalho manifesta, ainda, um quadro nosológico específico ao aeronauta. Dados estatísticos sobre prevalência de invalidez permanente, entre aeronautas brasileiros, mostram que 23,47% dos casos decorrem de cardiopatias; 20,41% de problemas audiovisuais; 19,39% de transtornos mentais; 12,24% de AIDS; 3,06% de câncer; 3,06% de problemas motores; 2,04% de problemas neurológicos e 16,33% de outros problemas. O trabalho nos permite perceber que a "saúde" das empresas tem prosperado, com a elevação da produtividade, devido ao aumento da capacidade de transporte (como mostram as relações do número de assentos-km oferecidos por aeronauta e toneladas-km oferecidos por aeronauta, no período de 1964/94). Contudo, não se pode dizer o mesmo com relação à saúde dos aeronautas, pois estão mais expostos aos riscos e doenças ocupacionais. ANO 1964 1969 1974 1979 1984 1989 1994 horas voadas 258413 201113 274609 275737 285013 382542 415502 km voados 91039146 93598396 163478869 194583418 199611891 261715373 301636805 assentos-km oferecidos 4853049146 6920630000 15324152000 21689326000 28252579000 40268760000 52539887000 toneladas-km oferecidos 518875307 840335000 2142585976 3352951069 4556843014 6672504006 8668556498 passageiros transportados 2704418 3948568 6688913 11370537 12136226 17978068 15730452 número de aeronautas 3192 2404 3787 4029 5411 7499 6827 Tabela 1- EVOLUÇÃO DO TRÁFEGO AÉREO BRASILEIRO: Doméstico e Internacional ANO 1964 1969 1974 1979 1984 1989 horas voadas 258413 201113 274609 275737 285013 382542 km voados 91039146 93598396 163478869 194583418 199611891 261715373 assentos-km oferecidos 4853049146 6920630000 15324152000 21689326000 28252579000 40268760000 toneladas-km oferecidos 518875307 840335000 2142585976 3352951069 4556843014 6672504006 passageiros transportados 2704418 3948568 6688913 11370537 12136226 17978068 número de aeronautas 3192 2404 3787 4029 5411 7499 1994 415502 301636805 52539887000 8668556498 15730452 6827 Tabela 2- INDICADORES DE PRODUTIVIDADE: Doméstico e Internacional Fonte: Ministério da Aeronáutica, Departamento de Aviação Civil: Anuário do Transporte Aéreo, vol. I - Dados Estatísticos e vol. II- Dados Econômicos 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa das ponderações finais, é possível perceber que a compreensão dos agravos à saúde dos trabalhadores deve ocorrer na interação de vários agentes que provocam tais problemas. Por outro lado, considerar o discurso em voga, de que "a aviação contemporânea é o transporte mais seguro" ou "que não apresenta riscos (à segurança) e acidentes", é desconsiderar que, embora felizmente aconteçam poucos acidentes, os riscos inerentes à saúde dos aeronautas podem estar crescendo. O próprio risco em si, ou seja, a percepção que o trabalhador vislumbra de possibilidades de pôr em risco sua saúde ou sua vida, já representa uma carga psíquica que deveria ser levada em conta. Deste modo, o presente estudo tentou organizar as exigências e os riscos potenciais dos aeronautas e, ao identificar o quadro de prevalência de doenças e problemas, propiciou refletir sobre a "origem" destes. Decerto muito mais deve ser investigado. Talvez até se possa considerar o presente como um estudo preliminar, afinal a temática está longe de ser esgotada. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BILLINGS, C. E. (1997). Aviation automation: the search for a human-centered approach. New jersey: Lawrence Erlbaum Associates. BOEING COMMERCIAL AIRPLANE GROUP, 1996. Statistical summary of commercial jet aircrafts accidents: worldwide operations 1959-1995. Seattle: Boeing. DIESAT, 1995. Aeronautas: condições de trabalho e de saúde. São Paulo: DIESAT. FERREIRA, L.L., 1992. Voando com os pilotos: condições de trabalho dos pilotos de uma empresa de aviação comercial. São Paulo: APVAR. KANTOWITZ, B. M. & CASPER, P. A., 1988. Human Workload in aviation. In: Human factors in aviation (Earl L. Wiener & David c. Nagel, orgs.), San Diego: Academic Press. MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA, 1995. Anuário da transporte aéreo: dados estatísticos e econômicos do ano de 1994. Rio de Janeiro: Departamento de Aviação Civil.