119 GÊNERO, MASCULINIDADES, VIOLÊNCIAS 1 Vanessa Flores dos Santos 2 Resumo: este artigo tem por objetivo uma breve contribuição ao debate acerca das articulações possíveis entre gênero e violência, especificamente as múltiplas construções de masculinidade e as distintas relações com o fenômeno da violência contemporânea. Palavras-chave: violência; gênero; masculinidades Neste artigo, buscar-se-á uma breve explanação acerca das construções sociais de gênero, as múltiplas masculinidades e o fenômeno da violência contemporânea em suas variadas caracterizações. Primeiramente, se introduzirá a reflexão sobre a relevância de se teorizar acerca das masculinidades e o conceito de gênero enquanto categoria relacional. Em seguida, a reflexão se pautará sobre o entendimento da violência como processo de sociabilidade masculina e a separação entre esfera pública e privada, e sua crítica. A partir disso, as velhas e novas formas de articulação entre valores da tradição ocidental e da alta modernidade. Por que pensar as masculinidades? Autores como Medrado e Lyra (2008) apontam o quão recente é o debate acerca das masculinidades no campo dos estudos de gênero. Pelo caráter engajado da produção intelectual feminista, algumas autoras3 inicialmente travam esse debate em termos de 1 Trabalho de conclusão da disciplina de Estudos de gênero, ministrada pela professora Drª Fátima Cristina Vieira Perurena. 2 Acadêmica do curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] 3 Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato Izumino no artigo “Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil” identificam três correntes teóricas acerca dos estudos sobre violência contra mulheres e violência de gênero que exemplificam perspectivas onde os papéis de gênero são vistos de maneira dualista e fixa. Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul. 2010, p. 119-124 120 dominadores e vítimas, em um sentido dicotômico e que não dá conta do caráter relacional das construções sociais de gênero. As masculinidades são construções culturais, sujeitas a contradições internas, e daí a importância de se pensar múltiplas masculinidades. Mas diversos autores acreditam que isso não impeça o reconhecimento de um modelo de masculinidade hegemônica, legitimado pelas relações de poder e apresentado como modelo a seguir (WELZER-LANG, 2001; CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2005). As críticas a este conceito de masculinidade hegemônica baseiam-se na problematização do conceito de hegemonia, de matriz gramsciana: O adjetivo “hegemônico”, derivado de Gramsci, surge como um sério problema teórico, uma vez que o termo implica constante luta pela posição de preponderância. Se é fato que ainda existe uma forma hegemônica de masculinidade, trata-se de refletirmos a respeito da questão: formas distintas de masculinidade, ao se contraporem à predominante, buscam ocupar tal posição hegemônica ou, será que o que pretendem é, sobretudo, reconhecimento como uma forma também legítima e possível de experienciar a masculinidade? Pretendemos, ao recuperar o sentido original de hegemonia, refletir de forma crítica sobre as implicações de tal apropriação teórica aos estudos sobre masculinidades (FIALHO, 2005). Joan Scott (1995), em conhecido artigo, conceitua gênero a partir de duas proposições: o gênero como elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e gênero como uma forma primária de dar significado às relações de poder. A partir desta primeira definição, podemos pensar o gênero enquanto conceito relacional, construído e reconstruído constantemente por e através das relações sociais, entre homens e mulheres. Mas como é colocado por Medrado e Lyra (2008), relacional não implica complementaridade, mas assimetria de poder. Por isso, a importância de uma matriz feminista para os estudos sobre homens e masculinidades. Machado (2001) destaca a categoria relacional da “honra” como fundante da construção simbólica dos gêneros no Brasil. Para ser um homem respeitado, deve-se ter o controle de “suas” mulheres e viver a constante ameaça de conflito com outros homens, em nome dessa honra. Em Violência e estilos de masculinidade, Cecchetto (2004) analisa a pluralidade de construções de masculinidades entre homens jovens no Rio de Janeiro. Para isso, enfoca em três grupos que considera representativos: os grupos charmeiros de jovens do subúrbio carioca, os lutadores de jiu-jitsu da zona sul e a galera do baile funk da periferia. Sua Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul. 2010, p. 119-124 121 conclusão é da impossibilidade de uma ligação direta e não problematizada entre violência, pobreza e etnia: “Foram estudados diferentes etos masculinos vinculados ao lazer, na mesma camada social, para demonstrar a complexidade da correlação entre pobreza, masculinidade e violência”. (p. 208) Esfera pública, privada e as violências de gênero Para Welzer-Lang (2001), a violência pode ser entendida como processo de sociabilidade masculina. Há um certo rito de passagem, quando meninos aprendem as regras e “aprendem a ser um homem”. Essa aprendizagem se faz no sofrimento. Pelos abusos físicos e psicológicos e a agressividade que se espera de um homem. Os espaços que se configuram como os da construção dessas masculinidades, e principalmente de imposição do modelo de masculinidade hegemônica, são chamados de “casa-dos-homens”. Mas a casa-dos-homens não é somente onde se vivencia essa aprendizagem do que é ser homem através do sofrimento. É também onde se constrói a solidariedade masculina, o lugar de transmissão de valores positivos e o sentimento de pertencimento. Por isso, a dificuldade em se relativizar esse modelo legitimado. Souza (2005) apresenta pesquisa com dados impressionantes acerca das mortes por causas externas no Brasil. A maioria esmagadora das vítimas são homens. “Dos 15 aos 19 anos, os homens morrem 6.3 vezes mais que as mulheres; dos 20 aos 24 anos suas taxas são 10.1 vezes maior que a das mulheres” (2005, p. 62). Esse padrão se confirma em causas como suicídio, homicídio, acidente de transporte, queda, lesões, ferimento com arma de fogo. A partir desses dados, pode-se legitimar discursos que associem homens à esfera pública e mulheres à esfera doméstica, refletindo-se nas diferentes caracterizações do fenômeno da violência. Mas como nos lembra Rosaldo (1995), “quando nos voltamos para casos concretos, o modelo baseado na oposição destas duas esferas pressupõe – lá onde deveria antes ajudar a iluminar e explicar – demais sobre como as relações de gênero realmente funcionam”. Velhas e novas formas de articulação Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul. 2010, p. 119-124 122 Machado (2001), em pesquisa onde realiza entrevistas com apenados por crimes de estupro, homens agressores de suas companheiras e jovens infratores, problematiza “a construção social de violências em contexto urbano contemporâneo”. A já citada categoria relacional da honra diz respeito a valores de longa duração, da sociedade ocidental, em que tradicionalmente homens controlam “suas” mulheres e as disputam e defendem de outros homens. A honra do homem depende do cumprimento de sua obrigação enquanto pai e marido, de “não deixar faltar nada” e de ter uma “mulher respeitada”. Machado também discorre acerca de novas formas de sociabilidade, valores da “alta modernidade”, citando Giddens, Debord, Harvey, relacionando ao fenômeno da violência: estes jovens revelam a sua total adesão a um novo conceito de “tempo social”. Seus projetos se inserem num tempo curto, que lhes abra imediatamente a porta para o sucesso, o hedonismo das sensações, daí, o fascínio pelas drogas, e o reconhecimento instantâneo do seu “poder”. A agressividade física, o exibicionismo do desafio corporal, o poder sobre a vontade dos outros e a indiferença em relação às vítimas, que servem apenas para “contar vantagens”, são valores fortemente conectados com “não ser bundão”, isto é, com a concepção de masculinidade. (2001, p. 22) Às questões da violência e novas subjetividades, a autora correlaciona aspectos que dizem respeito ao mal-estar das sociedades contemporâneas4 e assim também estão inscritos nos processos de produção dessas novas subjetividades, tais como: expansão do individualismo e consumismo, enfraquecimento das utopias e dos sentimentos de solidariedade. Giddens (1993), apesar de considerar como positiva a crescente autonomia individual dessa sociedade pós-tradicional, nos alerta para o perigo da crescente generalização de comportamentos viciados ou compulsivos. Machado (2001) aponta que essa reinvenção do masculino, essas novas configurações de subjetividades e sociabilidades machistas e o entendimento do masculino como puro poder arbitrário podem ser entendidos justamente como uma contraposição à crescente desconstrução e questionamento da masculinidade hegemônica. Em diálogo com a produção de Machado, Minayo (2005) aponta dois instrumentos servindo a esse “machismo pós-moderno”: o carro, enquanto símbolo de mobilidade, potência, velocidade e liberdade, que é significativo para se analisar os jovens de classe média e a virilidade associada à figura do carro. Um homem precisa ser tão potente quanto seu carro; 4 Ver Debord (1997), Dumont (1985), Harvey (1990), Giddens (1993). Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul. 2010, p. 119-124 123 e segundo, a arma de fogo, como representação dos jovens de periferia muitas vezes envolvidos com gangues e tráfico de drogas, como o símbolo do poder arbitrário, do tempo curto e da performance exibicionista. Desta forma, evidencia-se a relevância de se teorizar acerca das múltiplas masculinidades e múltiplas violências, que dêem conta das diferentes formas de estar no mundo, viver e representar o que é ser homem, o que é violência e a possibilidade de relacionar esses conceitos, levando em conta a persistência de velhas formas de construção simbólica dos gêneros e também a emergência de novas configurações, com valores da “alta modernidade”. Referências CECCHETTO, Fátima Regina. Violência e estilos de masculinidades. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004. CONNELL, Robert W. Políticas da Masculinidade. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre: v 20, n 2, p 185-206, 1995. CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. Hegemonic Masculinity: Rethinking the Concept. Gender & Society, v 19, n 6, p. 829-59, 2005. FIALHO, Fabrício Mendes. Uma crítica ao conceito de masculinidade hegemônica. Working Papers, p. 14, 2006. 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