In: Dicionário de Conceitos Históricos - Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva – Ed. Contexto – São Paulo; 2006 MEMÓRIA Segundo Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas. O estudo da memória passa da Psicologia à Neurofisiologia, com cada aspecto seu interessando a uma ciência diferente, sendo a memória social um dos meios fundamentais para se abordar os problemas do tempo e da História. A memória está nos próprios alicerces da História, confundindo-se com o documento, com o monumento e com a oralidade. Mas só muito recentemente se tornou objeto de reflexão da historiografia. Só no fim da década de 1970 que os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com a memória. Na Filosofia, na Sociologia, antropologia e principalmente na Psicanálise, no entanto, os estudos sobre a memória individual e coletiva já estavam avançados. Foi o fundador da Psicanálise, e um dos ícones da modernidade, Sigmund Freud, quem no século XIX iniciou amplos debates em torno da memória humana, trazendo à tona seu caráter seletivo: ou seja, o fato de que nos lembramos das coisas de forma parcial, a partir de estímulos externos, e escolhemos lembranças. Freud distinguiu a memória de um simples repositório de lembranças: para ele, nossa mente não é um museu. Nesse aspecto, ele remete a Platão, que já na Antiguidade apresentava a memória como um bloco de cera, onde nossas lembranças são impressas. Quando os historiadores começaram a se apossar da memória como objeto da História, o principal campo a trabalhá-la foi a História Oral. Nessa área, muitos estudiosos têm-se preocupado em perceber as formas da memória e como esta age sobre nossa compreensão do passado e do presente. Para teóricos como Maurice Halbawchs, há inclusive uma nítida distinção entre memória coletiva e memória histórica: pois enquanto existe, segundo ele, uma História, existem muitas memórias. E enquanto a História representa fatos distantes, a memória age sobre o que foi vivido. Nesse sentido, não seria possível trabalharmos a memória como documento histórico. Essa posição hoje é muito contestada. Antonio Montenegro, por exemplo, considera que apesar de haver uma distinção entre memória e História, essas são inseparáveis, pois se a História é uma construção que resgata o passado do ponto de vista social, é também um processo que encontra paralelos em cada indivíduo por meio da memória. Mas a memória não é apenas individual. Na verdade, a forma de maior interesse para o historiador é a memória coletiva, composta pelas lembranças vividas pelo indivíduo ou que Ihe foram repassadas, mas que não Ihe pertencem somente, e são entendidas como propriedade de uma comunidade, um grupo. O estudo histórico da memória coletiva começou a se desenvolver com a investigação oral. Esse tipo de memória tem algumas características bem específicas: primeiro, gira em torno quase sempre de lembranças do cotidiano do grupo, como enchentes, boas safras ou safras ruins, quase nunca fazendo referências a acontecimentos históricos valorizados pela historiografia, e tende a idealizar o passado. Em segundo lugar, a memória coletiva fundamenta a própria identidade do grupo ou comunidade, mas normalmente tende a se apegar a um acontecimento considerado fundador, simplificando todo o restante do passado. Por outro lado, ela também simplifica a noção de tempo, fazendo apenas grandes diferenciações entre o presente ("nossos dias") e o passado ("antigamente': por exemplo). Além disso, mais do que em datas, a memória coletiva se baseia em imagens e paisagens. O próprio esquecimento é também um aspecto relevante para a compreensão da memória de grupos e comunidades, pois muitas vezes é voluntário, indicando a vontade do grupo de ocultar determinados fatos. Assim, a memória coletiva reelabora constantemente os fatos. Outra distinção entre História e memória está no fato de a História trabalhar com o acontecimento colocado para e pela sociedade, enquanto para a memória o principal é a reação que o fato causa no indivíduo. A memória recupera o que está submerso, seja do indivíduo, seja do grupo, e a História trabalha com o que a sociedade trouxe a público. Autores como Paul Veyne, por exemplo, afirmam que se acreditarmos que alguns fatos são mais importantes do que outros, teremos de considerar que essa importância é relativa e segue critérios pessoais de cada historiador. Para Montenegro, por sua vez, a dificuldade de se utilizar os depoimentos orais como fonte da História é que o fato de que eles são fontes construídas pela memória, e esta reelabora a realidade vivida pela imaginação. Para Jacques Le Goff é preciso diferenciar as sociedades de memória oral e as de memória escrita. Mas enquanto estudiosos como Leroi-Gourham consideram que a memória coletiva, ou étnica, é uma característica intrínseca de todas as sociedades, Le Goff defende que ela é uma forma característica dos povos sem escrita. Seja como for, nas sociedades sem escrita a atitude de lembrar é constante, e a memória coletiva confunde História e mito. Tais sociedades possuem especialistas em memória que têm o Importante papel de manter a coesão do grupo. Um exemplo pode ser visto nos griots da África Ocidental, cidadãos de países como Gâmbia, por exemplo. Os griots são especialistas responsáveis pela memória coletiva de suas tribos e comunidades. Eles conhecem as crônicas de seu passado, sendo capazes de narrar fatos por até três dias sem se repetir. Quando os griots recitam a história ancestral de seu clã, a comunidade escuta com formalidade. Para datar os casamentos, o nascimento de filhos etc., os griots interligam esses fatos a acontecimentos como uma enchente. Tais mestres da narrativa são exemplos de como a tradição oral e a memória podem ser enriquecedoras para a História: ambas são vivas, emotivas e, segundo o africanista KiZerbo, um museu vivo. Esses especialistas em memória das sociedades sem escrita, todavia, não decoram palavra por palavra. Pelo contrário, nessas sociedades a memória tem liberdade e possibilidades criativas, e é sempre reconstruída. A escrita por sua vez, transforma fundamentalmente a memória coletiva. No Ocidente, seu surgimento possibilitou o registro da História por meio de documentos. Para Leroi-Gouham, a memória escrita ganhou tal volume no século XIX que era impossível pedir que a memória individual recebesse esse conteúdo das bibliotecas. O que levou, no século XX, a uma revolução da memória, da qual fez parte a criação da memória eletrônica. O século XX vivenciou também a expansão dos estudos sobre a memória na Arte e na Literatura. O Surrealismo nas artes plásticas, estilo de pintores como Salvador Dalí, por exemplo, preocupado com o mundo dos sonhos, passou a se questionar sobre a memória. Já a obra de Marcel Proust, por outro lado, é o melhor exemplo de uma exploração literária da memória. Outro é o conto de Jorge Luis Borges, "Funes, o memorioso” que explora a possibilidade de um indivíduo que nunca se esquece de nada, e de como isso o faria perder a própria capacidade de pensar, visto que esta se baseia na seleção e associação de memórias. A interdisciplinaridade nas ciências sociais também modificou a percepção da memória coletiva. Já a partir de Halbawchs, em 1950, o estudo da memória coletiva passou a interligar Psicologia Social, Antropologia e Etno-história. Além disso, a partir desse período, a Nova História buscou criar uma História científica com base na memória coletiva, considerando também a importância da memória para a definição das identidades. Na década de 1970, o escritor afro-americano Alex Haley empreendeu uma monumental pesquisa em três continentes em busca do passado de sua família a partir das memórias repassadas geração após geração, desde o primeiro membro da família a chegar na América como escravo. Essa pesquisa, que deu origem ao livro Raizes, impulsionou um processo de valorização da memória como fonte para a construção das identidades. Haley trabalhou com griots em Gâmbia e difundiu no Ocidente um exemplo de como as sociedades sem escrita pensam sua memória: as comunidades tradicionais de Gâmbia, os "homens sábios” afirmavam que a ancestralidade de todas as pessoas remontava necessariamente a um tempo em que a escrita não existia. E aí então a memória humana tornava-se a única forma de conseguir informações sobre o passado. Para eles, a cultura ocidental estava tão condicionada ao esmagamento da escrita, que poucos poderiam compreender do que uma memória treinada era capaz. Nesse ponto, cabe fazermos referência a outro grande africanista, Jan Vansina, que defende que a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade, no caso a habilidade de escrever. E são justamente as sociedades orais as que melhor preservam a capacidade de compreensão de seu passado por meio da memória coletiva. Assim, a reflexão sobre a memória tornou-se, para professores de História, uma oportunidade para refletir sobre a capacidade de produzir conhecimento sobre o passado, e sobre como essa capacidade difere de povo para povo. Estudar em sala de aula os griots, por exemplo, é trabalhar de forma prática com a diversidade cultural da humanidade, não se atendo somente a um discurso de igualdade entre todas as culturas. E o verdadeiro entendimento da diversidade cultural passa pela compreensão de que não há superioridade cultural e, logo, de que a escrita não é um marco entre os povos desenvolvidos e os subdesenvolvidos. VER TAMBÉM Cultura; Discurso; Etnia; Etnocentrismo; Folclore; Fonte Histórica; História; História Oral; Identidade; Imaginário; Interdisciplinaridade; Mentalidades; Mito; Patrimônio Histórico; Relativismo Cultural; Tempo; Tradição. SUGESTÕES DE LEITURA BURGIUÉRE,André (org.). Dicionário das ciências históricas. Rio de Taneiro: Imago, 1993. HALEY, Alex. Negras raízes. São Paulo: Círculo do Livro, s. d. KI-ZERBO, J (coord.). História geral da África. São Paulo: Ática, 1982, v. I: Metodologia e Pré-história da África. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994. MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 2001.