JACQUES LE GOFF: ESTUDO DE CONCEITOS EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO SILVA, Ligiane Aparecida da – UEM. [email protected] LIMA, Rosilene de – UEM. [email protected] Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Este estudo objetiva analisar os conceitos de História e Memória, na perspectiva de Jacques Le Goff, os quais são concebidos como fundamentais para uma maior compreensão dos aspectos históricos da História da Educação. Considera-se o autor supracitado de influência marcante na Historiografia da Educação no Brasil, uma vez que suas obras estão presentes nos trabalhos de pesquisa e docência nas universidades brasileiras. Sobre o conceito de História, avalia-se como fundamental, no sentido em que busca nortear os estudos e métodos do trabalho histórico. O campo da História é complexo, de controvérsias, desafios e interrogações. Constata-se que os próprios historiadores estão em um mundo em crise, de um lado os historiadores “tradicionais”, e de outro os que se orientam pela nova história (LE GOFF, 2003). Entretanto, é inegável que ambas trazem contributos para a consolidação da História, sobretudo no alargamento e aprofundamento da história científica. Com relação ao conceito de Memória, este é crucial para o desenvolvimento da própria História, sem ela não haveria estudo nem conhecimento. A partir da análise realizada, considera-se a necessidade de uma postura dos historiadores para lidarem com esses conceitos: “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471). Dessa forma, a contribuição de Le Goff, na definição dos conceitos aqui analisados, possibilita avançarmos para além dos estudos históricos e adentrarmos na especificidade e/ou na apropriação da História da Educação desses conceitos. Palavras-chave: História da Educação. História. Memória. Jacques Le Goff. 9784 Introdução A manifestação do interesse acerca das questões que envolvem o estudo da História e Historiografia1 da Educação têm sido evidentes. Trabalhos de autores como: Saviani (1983), Cunha (1984), Nagle (1984), Warde (1984) e Lopes (1986), Nunes e Carvalho (1993), demonstram preocupação com as formas delineadas em meio a este campo2 de pesquisa, bem como os encaminhamentos teórico-metodógicos que vem constituindo a própria História da Educação. Entretanto, pensar em História da Educação, campo de pesquisa inserido em uma ciência maior, a saber, a História, nos remete a outra questão: que conceitos têm desenhado a constituição do campo da própria História? Sabe-se que a História da Educação tem seu objeto estritamente relacionado com a História, fator que exige definição de parâmetros comuns entre as áreas, para a efetivação de uma pesquisa, além de demandar uma articulação entre os aspectos educacionais e, ao mesmo tempo, históricos (MACHADO, 2005). Neste sentido, abordam-se nesse trabalho, na perspectiva de Jacques Le Goff3, conceitos que, avalia-se, são fundamentais para uma maior compreensão dos aspectos históricos da História da Educação, tais como: o conceito de História e de Memória. Considera-se o autor supracitado de influência marcante na Historiografia da Educação no Brasil, uma vez que suas obras estão presentes nos trabalhos de pesquisa e docência nas universidades brasileiras. Dessa forma, a contribuição de Le Goff, na definição dos conceitos aqui analisados, possibilita avançarmos para além dos estudos históricos e adentrarmos na especificidade e/ou na apropriação da História da Educação desses conceitos. Vejamos, então, seu contributo. 1 De acordo com Le Goff (2003, p. 12) a Historiografia é um ramo da História, enquanto Ciência, que estuda seu próprio movimento histórico. “[...] a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história.” Assim, entende-se a Historiografia da Educação como a História da História da Educação. 2 Para uma melhor compreensão do conceito de campo vale salientar a efetiva contribuição de Bourdieu e sua teoria dos campos: “Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas). (BOURDIEU, 1983, p. 89)”. 3 Jacques Le Goff, historiador de ofício, nasceu em janeiro de 1924 em Toulon, na França. É considerado um dos maiores medievalistas do mundo. Seu trabalho destaca-se especialmente nas últimas décadas, com o movimento da Nova História, a partir dos anos 1970, exercendo grande influência no “fazer histórico” (FRÓES, 2005). 9785 História É especificidade do campo da História estabelecer relações com o tempo, com a duração, de forma natural ou não, ou seja, o tempo, por exemplo, das estações do ano como natural e o tempo do próprio ano (do calendário) como não natural. A História, como ciência, se constrói atendendo um imenso leque de temáticas, distribuídas sob vertentes variadas. Pode-se destacar, por exemplo, a História das Mentalidades, a História Cultural e a Nova História, entre outras. A vertente utilizada pelo historiador Jacques Le Goff, pelo qual nortearemos esse trabalho, é a da Nova História. Busquemos, neste primeiro momento, de forma rudimentar, trazer algumas reflexões que podem nos auxiliar na compreensão da concepção de História deste renomado autor. De acordo com Neves (2005), fundamentada nos estudos de Le Goff, História é uma palavra de origem grega, cujo significado é entendido por procurar, investigar. Para Leopold Rank, de acordo com os estudos de Lopes e Galvão (2001), cabe à História simplesmente narrar os fatos, tal como eles aconteceram, afirmativa a qual as historiadoras da educação avaliam como uma ilusão positiva, pois o passado, nunca é completamente apreensível. Le Goff (2003) defende que a História não deve ser entendida como ciência do passado, mas como a “[...] ciência da mutação e da explicação dessa mudança” (LE GOFF, 2003, p. 15). O autor nos apresenta conceitos diferentes de História, de acordo com as línguas românicas: a História como uma procura das ações realizadas pelo homem; a História como “o que os homens realizaram” sendo o tema central ou objeto de procura; e a História como uma narração, verdadeira ou falsa, fundamentada na “realidade histórica” ou no imaginário. O século XIX é considerado por Le Goff como o século da História, pois “[...] inventa ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a história dentro do saber – falando, como veremos, de ‘historismo’ ou de ‘historicismo’ – e uma função, ou melhor, uma categoria do real, a ‘historicidade’ [...]” (LE GOFF, 2003, p. 19). Para o autor, do ponto de vista epistemológico, a historicidade possibilita refutar, no plano teórico, a noção de “sociedade sem história”, refutada, por outro lado, pela forma empírica com que a etnologia estuda as sociedades. Le Goff (2003, p. 19), fundamentado em Certeau, observa que “Há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social”. E, estudando o filósofo Paul Ricoeur, o qual observa um paradoxo no fundamento epistemológico da História, desdobrando-a em um modelo de acontecimentos e em outro 9786 modelo estrutural, concorda que “[...] é sempre na fronteira da história, no fim da história que se compreendem os traços mais gerais da historicidade” (LE GOFF, 2003, p. 20). Sobre o conceito de historicidade, Le Goff (2003) afirma que este possibilita a “entrada” de novos objetos da História no campo da Ciência Histórica. Elementos como a História Rural, História da Loucura, entre outros, ainda não reconhecidos, passam a ser tratados. Por outro lado, essa abertura para novos objetos da História, na concepção do autor, acaba por descaracterizar o ideal que se tem de História, ou, em suas palavras “[...] a historicidade exclui da História com H maiúsculo: ‘Tudo é histórico, logo a história não existe’” (idem, ibidem). Neste sentido, evidencia-se uma preocupação do autor com os diferentes “sentidos” que a história possa apresentar. Le Goff (2003) chama atenção para as possíveis confusões grosseiras e mistificadoras, entre os significados desses “sentidos”, observando a diferenciação existente entre a Ciência da História e a Filosofia da História, da qual suspeita. Isso não implica na não aceitação desse tipo de reflexão, pois “[...] a fronteira entre as duas disciplinas, as duas orientações, não está estritamente traçada nem é traçável (em última hipótese). O historiador não pode concluir que deve evitar uma reflexão teórica, necessária ao trabalho histórico (LE GOFF, 2003, p. 20). Sobre esse aspecto, o autor apresenta o estudo da revista “History and Theory. Studies in the philosophy of History”, a qual aborda a questão da proximidade da Filosofia e da História provando que “[...] a possibilidade e o interesse duma reflexão comum de filósofos e historiadores, assim como da formação de especialistas informados, no campo da reflexão teórica sobre a história” (LE GOFF, 2003, p. 21). Avalia ainda, que “[...] é legítimo que nas margens da ciência histórica se desenvolva uma filosofia da história, como outro ramo do saber” (idem, ibdem). De acordo com Le Goff (2003), a história apresenta algumas ambigüidades e paradoxos, tais como: a história é uma ciência do passado ou só existe história contemporânea?; a questão do saber e poder; sobre a objetividade e manipulação do passado; e ainda, a questão do singular e universal, generalizações e singularidades da história. Observa-se que o autor considera a discussão de tais ambigüidades e paradoxos como fundamentais para a definição de sua concepção de história, pois os explicita de forma detalhada. 9787 Sobre o primeiro aspecto, Le Goff (2003) adentra na concepção de Marc Bloch4, o qual entende a História não como uma ciência do passado, mas como a ciência dos homens no tempo, dando a mesma um caráter mais humano. Para Bloch, a história “[...] é um esforço para um melhor conhecer uma coisa em movimento” (BLOCH, 1965, p.29) e, “[...] não se explica um fenômeno histórico fora do estudo de seu movimento” (BLOCH, 2001, p.60). A concepção de Bloch, apresentada, é a de que considerava a história como uma ciência a ser estudada não apenas como o estudo do presente para compreender o passado, mas, também, uma forma de compreender o passado pelo presente. Essa é uma outra forma de olhar para a História, uma História não linear, mas de rupturas e descontinuidades, às vezes inultrapassáveis. Outra questão, apresentada por Le Goff (2003), refere-se à História contemporânea. O autor lembra a famosa frase de Benedetto Croce em que considera que “toda a história” é “história contemporânea”, entendendo que por mais que pareçam estar afastados, os acontecimentos de que trata na realidade, no tempo, a história sempre está em sintonia com situações presentes. Para Croce, segundo Le Goff (2003), a história é conhecer um eterno presente, e isso significa negar a história. O autor considera o passado “[...] uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história” (LE GOFF, 2003, p. 25). Neste sentido, evidencia-se uma preocupação de Le Goff acerca da dependência da história do passado em relação ao presente: Ela é inevitável e legítima, na medida em que o passado não deixa de viver e de se tornar presente. Esta longa duração do passado não deve, no entanto, impedir o historiador de se distanciar do passado, uma distância reverente, necessária para que o respeite e evite o anacronismo (LE GOFF, 2003, p. 26). Sobre o segundo aspecto, é perceptível um dos anseios que Le Goff (2003, p. 29) coloca na história ao escrever que ”[...] ela deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros”, e ainda se perguntando se o historiador está preparado para enfrentar o imenso desafio, o qual chama de doença, se não do passado, então do presente. O autor demonstra por meio de exemplos, que “[...] a objetividade histórica não é a pura submissão dos fatos” (LE GOFF, 2003, p. 32). Salienta que a imparcialidade exige do 4 Marc Bloch, historiador de ofício, foi, em 1929, um dos fundadores da revista Annales. 9788 historiador apenas honestidade, já a objetividade demanda um pouco mais, acrescentando ainda que: Se a memória faz parte do jogo de poder, se autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos, a história, como todas as ciências, tem como norma a verdade. Os abusos da história só são um fato do historiador, quando este se torna um partidário [...] (idem, ibidem). Dessa forma, observa-se a conclusão do autor sobre a questão da objetividade, ao afirmar que “A objetividade histórica – objetivo ambicioso – constrói-se pouco a pouco através de revisões incessantes de trabalho histórico, laboriosas verificações sucessivas e acumulação de verdades parciais” (LE GOFF, 2003, p. 33). É relevante, a respeito do terceiro aspecto apresentado por Le Goff acerca das ambigüidades e paradoxos da história, destacar o pensamento do autor: A contradição mais flagrante da história é sem dúvida o fato do seu objeto ser singular, um acontecimento, uma série de acontecimentos, de personagens que só existem uma vez, enquanto que o seu objetivo, como o de todas as ciências, é atingir o universal, o geral, o regular (LE GOFF, 2003, p. 34). Se de um lado a história permite atingir o universal, de outro, por meio dela, reconhece-se a sua singularidade, pois um fato ou um acontecimento é sempre único, nunca se repetirá. É nesse sentido, que Le Goff argumenta três conseqüências do reconhecimento da singularidade do fato histórico: a primazia do acontecimento, o privilegiar os grandes homens, e a sua redução a uma narração. Mas afinal, após Le Goff realizar toda uma trajetória de estudos a fim de explicitar a sua concepção de História, o que pensa ser o trabalho histórico e a própria história? O autor nos deixa de forma clara o seu pensamento quando afirma que “[...] o trabalho histórico tem por fim tornar inteligível o processo histórico e que esta inteligibilidade conduz ao reconhecimento da regularidade na evolução histórica” (LE GOFF, 2003, p. 44-45). Quanto à história, esta é posta como a ciência do tempo, “Está estritamente ligada às diferentes concepções de tempo que existem numa sociedade e são um elemento essencial da aparelhagem mental dos seus historiadores” (LE GOFF, 2003, p. 52). 9789 Memória Filosoficamente, memória refere-se à capacidade mental de armazenamento de informações, sejam de experimentações ou de conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, e de trazer essas informações à tona quando necessário. Ora, o conhecimento se produz por meio de memórias de um passado consolidado no presente. No Dicionário Básico de Filosofia Japiassú e Marcondes afirmam: “A memória pode ser entendida como a capacidade de relacionar um evento atual com um evento passado do mesmo tipo, portanto com uma capacidade de evocar o passado através do presente” (JAPIASSÚ & MARCONDES, 2006, p. 183-184). Isso é perceptível quando, por exemplo, ao sentir o cheiro de um tempero que percebíamos, quando crianças, temos a sensação de que voltamos ao passado ou buscamos nossas lembranças de infância. Entretanto, voltemos ao foco deste trabalho: vejamos, de forma breve, qual a concepção de Jacques Le Goff sobre o conceito de memória, um dos principais objetivos expressos no início desse texto. Para Le Goff (2003), os campos científicos que estudam a memória atualmente, como a biologia, a psicologia, a neurofisiologia, a psicofisiologia e a psiquiatria, podem contribuir para a compreensão das características e dos problemas da memória social e histórica. Em contrapartida, os próprios estudos desenvolvidos por essas variadas ciências têm levado os pesquisadores à necessidade de aproximar a memória do campo das ciências humanas, na medida em que os resultados das pesquisas empíricas evidenciam uma relação intrínseca da memória com “[...] resultados de sistemas dinâmicos de organização” (LE GOFF, 2003, p. 421). O autor afirma que os estudos recentes vêm sendo desenvolvidos apontando para uma aproximação da memória com a linguagem. Ora, antes de uma idéia ser falada ou escrita, precisa primeiramente estar armazenada na memória. Além disso, com o desenvolvimento da biologia e da cibernética, psicólogos e psicanalistas passaram a estudar a memória de uma forma mais teórica e não somente empírica. Esses pesquisadores observaram que os sentimentos inerentes ao homem, como o desejo, a afetividade, a censura, podem manipular a memória individual, consciente ou inconscientemente. Em relação à memória coletiva, observaram que esta pode ser manipulada pelos grupos que objetivam exercer o poder em determinados momentos históricos. 9790 Le Goff (2003) divide seu estudo sobre a memória histórica em cinco partes, a saber, memória étnica; desenvolvimento da memória da Pré-História à Antiguidade; memória medieval; progressos da memória escrita e os desenvolvimentos atuais da memória. Mas o que este autor entende sobre memória? Le Goff (2003) defende que a cultura dos homens com escrita é diferente da cultura dos povos sem escrita, todavia, não radicalmente divergente. Os povos sem escrita cultivam suas tradições por meio de narrativas mitológicas, transmitidas às demais gerações pelos homens – memória, personagens responsáveis pelo cultivo da história de seu povo. No entanto, essa prática não lança mão de estratégias de memorização, não é uma prática mecânica, diferentemente da escrita. E Le Goff acrescenta: “Transmissão de conhecimentos considerados secretos, vontade de manter em boa forma uma memória mais criadora que repetitiva; não estarão aqui duas das principais razões da vitalidade da memória coletiva nas sociedades sem escrita” (LE GOFF, 2003, p. 426). Do período em que se deu o desenvolvimento da memória pela oralidade até o aparecimento da escrita (da Pré-História até a Antiguidade), Le Goff (2003, p. 427) afirma que houve uma “transformação da memória coletiva”, a partir do momento em que os homens passaram a inscrever suas aventuras, vitórias e conquistas em monumentos epigrafados. No entanto, quando a escrita passa a ser organizada em documentos escritos, um outro avanço acontece: a capacidade de registrar, marcar, memorizar, reordenar, reexaminar, etc. Todo esse desenvolvimento não esteve separado, segundo o autor, do crescimento dos centros urbanos que ampliaram as necessidades e condições dos homens. A escrita, assim, possibilitou o aparecimento, ou melhor, a criação de exercícios de memória. No entanto, a história dos gregos demonstra que, apesar de letrados, havia entre eles uma preocupação com a prática de exercícios artificiais de memorização. Os gregos enalteciam a prática natural da memória, que independe da escrita. Isso não impedia, contudo, que praticassem exercícios de rememoração baseados na linguagem escrita. Na Idade Média, com a difusão do cristianismo e com o monopólio intelectual da Igreja, a memória coletiva modifica-se, visto que as religiões judaica e cristã têm como base de sua fé a memorização, a recordação. Traços dessa transformação são: o desenvolvimento da memória dos mortos, o papel da memória no ensino articulando o oral e o escrito, a divisão da memória coletiva entre memória litúrgica e memória laica, desenvolvimento da memória dos mortos, entre outros (LE GOFF, 2003). 9791 O ensino cristão é memória e esta se manifesta, essencialmente, na comemoração de Jesus, revelada no calendário litúrgico, e em sua cristalização nos santos e mortos: “Os mártires eram testemunhos. Depois da sua morte, cristalizava-se em torno de sua recordação a memória dos cristãos.” (LE GOFF, 2003, p. 441). Segundo Le Goff (2003), a Idade Média venerava os idosos, pois eram considerados homens-memória. A memória fiel poderia durar até cem anos, uma geração passava sua memória para outra e, por meio dos escritos, desenvolvidos a par do oral, era possível estender essa memória por muito mais tempo. Os escritos seriam, então, suportes para a memória e, para sua conservação, surgiram os arquivos. Assim, “Durante muito tempo, no domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita, e a memória é um dos elementos constitutivos da literatura medieval” (LE GOFF, 2003, p. 445). Ao tratar dos progressos da memória escrita, Le Goff (2003) enfatiza a o aparecimento da imprensa como fator que revoluciona a memória ocidental. Antes, dificilmente se distinguia a transmissão oral e a transmissão escrita. A imprensa trouxe a “[...] exteriorização progressiva da memória individual [...]” (LE GOFF, 2003, p. 452). Para o autor, sobretudo os tratados científicos e técnicos aceleraram a memorização do saber. Entre os diversos traços que evidenciam a imensa revolução trazida pela imprensa, pode-se destacar: a necessidade de festas nacionais, instrumentos de suportes para comemorações (moedas, medalhas, etc.), a construção de monumentos de lembrança, a abertura de museus e as fotografias (LE GOFF, 2003). Jacques Le Goff, ao abordar os desenvolvimentos contemporâneos da memória, última parte do seu estudo sobre memória histórica, reflete, enfatizando o século XIX, sobre a incapacidade de a memória individual abarcar toda a proporção atingida pelos conteúdos das bibliotecas, um imenso arquivo. De acordo com o autor, a maior revolução da memória está no século XX, com o aparecimento da espetacular memória eletrônica. Entretanto, não se pode deixar de salientar suas conseqüências: “[...] a utilização dos calculadores nos domínios das ciências sociais e, em particular, daquela em que a memória constitui, ao mesmo tempo, o material e o objeto: a história [...]” e “[...] o efeito “metafórico” da extensão do conceito de memória e da importância da influência por analogia da memória eletrônica sobre outros tipos de memória” (LE GOFF, 2003, p. 463). 9792 Na concepção de Le Goff (2003), toda essa evolução das sociedades, elucida a relevância do papel que a memória coletiva representa. Ela está presente nas grandes questões das sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento. O autor a defende como “[...] um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.” (LE GOFF, 2003, p. 469). Considerações Finais A partir das análises expressas neste trabalho, reafirma-se, e agora com mais propriedade, as questões aqui apresentadas como fundamentais para uma maior compreensão dos aspectos históricos da História da Educação, uma vez que, delineados os contornos dos conceitos, a saber, o de História e o de Memória, na perspectiva de Jacques Le Goff, pode-se aprofundar as diversas formas de apropriação da História e da Historiografia da Educação acerca dos mesmos, o que vai além dos limites desse trabalho. Sobre o conceito de História, avalia-se como fundamental, no sentido em que busca nortear os estudos e métodos do trabalho histórico. O campo da História é complexo, de controvérsias, desafios e interrogações. Os próprios historiadores estão em um mundo em crise, de um lado os historiadores “tradicionais”, e de outro os que se orientam pela nova história (LE GOFF, 2003). Entretanto, é inegável que ambas trazem contributos para a consolidação da História, sobretudo no alargamento e aprofundamento da história científica. Com relação ao conceito de Memória, este é crucial para o desenvolvimento da própria História, sem ela não haveria estudo nem conhecimento. É preciso, pois, uma postura dos historiadores para lidarem com esses conceitos: “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471). REFERÊNCIAS: BLOCH, Marc. Introdução a História. Lisboa. Publicações Europa-América, 1965. BLOCH, Marc. 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