A História da criança no Brasil ainda está para ser contada∗ Sabemos muito pouco sobre a tragédia ocorrida com os indígenas brasileiros e suas crianças. Só conhecemos a história contada pelos colonizadores e pela Igreja. Os próprios indígenas não têm história escrita ou gravada, não têm sua versão da história. O pouco que ficamos sabemos é pela história contada pela Igreja, ou sob o ponto de vista dos colonizadores. O primeiro registro que se tem da história da criança no Brasil é de 1550, através do catequista português padre Manoel da Nóbrega. Quando veio para o Brasil, ele trouxe consigo sete órfãos vindos de orfanatos de Lisboa. Eram crianças que viviam nas ruas ou não, mas que estavam em instituições de recolhimento de crianças de Lisboa. Esses órfãos chegaram aqui para ajudar na catequização das crianças indígenas e eram utilizados pelos catequistas para se fazer a aproximação do homem branco com os curumins. Mas, em Salvador, já por volta de 1552, tem-se a notícia do primeiro colégio para as crianças indígenas no Brasil. A Igreja tinha na catequização três objetivos centrais: combater o paganismo, a antropofagia e a poligamia. No que dizia respeito às crianças, ali só interessava o paganismo. Para os jesuítas, o paganismo tinha que ser vencido pelo batismo, uma vez que com ele as crianças estariam salvas. Hoje, como o BrasiI é um Estado multi étnico, que voltou a reconhecer o direito coletivo e a respeitar a forma como os indígenas nascem, crescem e morrem, vamos ter dificuldade de entender o que aconteceu naquele momento. Mas, naquela época, catequizar e vencer o paganismo significava fazer as crianças abandonarem suas crenças, mitos, ∗ MIRANDA, Nilmário: Por que Direitos Humanos. – Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 200p 1 costumes e tradições. Era fazer com que elas abandonassem o seu espírito de família, de coletividade, a relação que tinham com a água, com a mata, com a terra, com os bichos e com eles próprios. É por isso que, apesar de ter o intuito de uma pretensa proteção, os jesuítas não vinham para promover o extermínio, a catequização e a salvação ajudavam o extermínio na medida em que eles, por exemplo, provocavam o desaldeiamento de centenas de tribos. Há notícias, nas primeiras décadas da colonização, de mais de 300 tribos que foram desaldeiadas e juntadas em outros locais, contribuindo assim para o extermínio e para a dominação. É preciso ressaltar que, para fazer com que os índios abandonassem as suas crenças, mitos, costumes e tradições, eles eram tratados como seres sem alma. Para o diferir do homem branco, os colonizadores chamavam o indígena de selvagem, ou silvícola, como pessoas em estado de pecado. Quando, nos dias atuais, aqueles cinco jovens, em Brasília, incendeiam o índio Galdino Pataxó, no fundo é a reprodução dessa cultura que considera o índio "um nada", uma pessoa sem valor, ou até mesmo uma não pessoa. As crianças indígenas do Brasil Colônia, portanto, eram até objeto da prioridade dos colonizadores, na medida em que abandonavam as crenças, os mitos,seus costumes e tradições e isso contribuía com mais facilidade para a dominação a longo prazo. No século XVI, vieram os escravos da África. Esse foi o maior comércio do mundo, por muitos séculos. Era o chamado ciclo econômico perfeito. Os navios saíam da Europa carregados com armas, pólvora e determinados objetos. Na África eles eram carregados com escravos. Das colônias, eram retiradas as mercadorias - açúcar, especiaria, madeira. Ou seja, não havia ociosidade, era produtividade plena. E isso perdurou séculos. 2 Não há estatísticas definitivas sobre o comércio de escravos por três séculos. Alguns falam em 15 milhões de pessoas. Mas se forem 5 miIhões, estimativa conservadora,a gente pode ter a noção do tamanho desse comércio. Ou seja, diariamente navios negreiros aportavam no Brasil, em Santos, em Salvador, no Rio de Janeiro ou em Recife. Os escravos não eram considerados humanos completos. Eram mercadorias. Para ser objeto de compra e venda, tinham que ser destituídos da sua humanidade. E eram considerados objetos de trabalho, assim como o gado. A travessia podia resultarem mortandade, nas calmarias, sobretudo de homens, mulheres e crianças. Vinham nos porões escuros, sujos, convivendo coma subnutrição. Muitas vezes, as crianças eram separadas dos pais antes do embarque. Mas, na maioria dos casos, eram capturadas as famílias inteiras. No Brasil, eles eram vendidos ou comprados junto com os pais. Os homens eram destinados ao trabalho pesado – lavoura, mineração-, e as mulheres para o trabalho doméstico. As crianças negras eram batizadas em rituais dos brancos, do mesmo modo que com os indígenas, para salvar as almas dos pagãos. Pagão eram os filhos legítimos naturais. Recebiam nomes cristãos e sobrenome dos seus senhores. Era comum receberem nomes de santos, porque se espalhou a crença entre os escravos de que, se permanecessem como pagãos, virariam lobisomem. O ritual do batismo significava uma apropriação daquela consciência, da mente das pessoas. Até os 8 anos, as crianças transitavam entre a senzala e a casa grande, livremente. A partir dessa idade, os meninos iam ser pajens, moleques de recado, cuidavam dos cavalos, lavávamos pés dos donos e dos visitantes, serviam a mesa, espantavam mosquito e balançavam a rede. As meninas faziam rendas, serviam de mucamas e babás e ajudavam na cozinha. 3 Escola era proibida para filhos de escravos. A educação era obrigatória para os brancos. Durante séculos havia pouquíssimas escolas. Grassava o analfabetismo, mesmo entre os brancos. Não havia necessidade da educação, a não ser para quem se encarregasse dos negócios da Colônia, do fisco, da arrecadação, dos cartórios, da coletaria de impostos. A tecnologia empregada era muito rudimentar no País. Por exemplo, a tecnologia da cana-de-açúcar, dos engenhos, foi a mesma durante séculos. E a relação trabalho-escravo tornava desnecessários os ganhos de produtividade, posto que lucros enormes advinham com a apropriação integral do fruto do trabalho escravo pelos seus senhores. A produtividade não era uma exigência, tampouco uma demanda. Portanto coexistia com o analfabetismo, mesmo entre os brancos. Só na segunda metade do século XIX é que há aumento do número de escolas no Brasil. Nos 322 anos de Colônia, o menino branco era considerado um pequeno adulto. Aos 13 anos os meninos aprendiam a ter autoridade com os escravos. Eram estimulados a castigar os negros desobedientes e a seduzir as negras. Os filhos da elite estudavam na Europa e nos colégios internos religiosos. Aos 15 anos começavam as carreiras - Medicina e Direito, principalmente. As meninas iam para os colégios das irmãs aos 7 anos. Não era importante desenvolver inteligência e cultura, e sim que fossem submissas e do lar. Os escravos adolescentes viviam sob o controle dos senhores nas senzalas, seja no campo, seja na cidade. Um negro forte, com 14 anos, era considerado uma mercadoria valiosa para a lavoura e para a mineração. Já as adolescentes escravas iam para o trabalho doméstico e para os serviços sexuais. Os filhos nascidos dessas relações podiam receber atenção especial ou serem abandonados em instituições. 4 Nas cidades, os adolescentes aprendiam ofícios para sustentar os senhores ou as senhoras. Mulheres sozinhas, solteiras, viúvas, adquiriam escravos para servir de escravos de ganho. Vários historiadores relatam que nas ruas do Rio de Janeiro, de Recife e de Salvador, era um burburinho de escravos vendendo algo para seus donos. Tinham que andar descalços, já que isso os distinguia dos demais. Com a Lei do Ventre Livre, os filhos dos escravos eram sustentados pelos senhores até os 8 anos. Ao contrário do que se pensa, quem nasceu a partir da Lei de 1850 não era automaticamente livre. Na verdade ficava até os 8 anos sob a responsabilidade dos senhores,que eram seus provedores. Dos 8 aos 21, eles tinham de trabalhar para indenizar o dono. Só aos 21 anos que de fato eles eram livres. Então, mesmo com a Lei do Ventre Livre, na prática as crianças adolescentes permaneceram escravas. O senhor podia entregar a criança ao governo mediante indenização, para ser internados em orfanatos. Mas eram poucos os casos. "Um negro forte, com 14 anos, era considerado uma mercadoria valiosa para a lavoura e para a mineração. Já as adolescentes escravas iam para o trabalho doméstico e para os serviços sexuais." Com a Abolição da Escravatura,em 1888, o Brasil tinha 13 milhões de habitantes, entre os quais oito milhões eram negros e pardos. Entre os demais 5 milhões restantes estavam os brancos, os indígenas e os outros - analfabetos, sem-terra, brancos pobres.A partir da Abolição, muitos permaneceram no campo, mas a maioria veio para as cidades, com a decadência da cultura tradicional da cana. E houve um deslocamento dos centros econômicos do Nordeste para o Centro-Sul do País. Nas cidades, eles viviam em cortiços, junto com brancos pobres. O mais famoso cortiço da época era o chamado Cabeça de Porco, com mais de 2 mil 5 pessoas, no Rio de Janeiro. Quando Barata Ribeiro tornou-se prefeito, uma das suas primeiras obras foi destruir o cortiço, que era considerado uma ameaça, um gueto urbano. As favelas surgiram com a Abolição. No lugar dos cortiços nasceram as favelas, e a maioria delas - Botafogo, Catete - em regiões próximas do centro urbano principal. Como Ihes fora negada a educação, essas pessoas pobres não tinham habilidades para as novas exigências da economia urbana. Prestavam pequenos serviços familiares, pessoais e todos que não exigissem qualificação. Em Belo Horizonte também favelas nasceram praticamente ao mesmo tempo que a cidade, dentro da Avenida do Contorno, como a dos Marmiteiros, as favelas da Serra, que serviam a cidade formal. Com o crescimento urbano pós-Abolição, aparece o fenômeno da delinqüência juvenil, junto com o desemprego e o desamparo; bandos de jovens se dedicavam à venda de loteria, à venda de roupas, à prostituição. Na música, proliferaram os batuques, o samba. E, na esteira, a repressão. A polícia se adaptou, já que, antes treinada para a busca de escravos, passou a dar conta da vadiagem, do mau comportamento social. E surgiram também as idéias do cordão sanitário em relação às "classes perigosas". Em Belo Horizonte, a Avenida do Contorno era o cordão sanitário. Era o limite da cidade para os cidadãos. A reforma urbana do Rio de Janeiro, no fim do século, também separou as "classes perigosas". Nos séculos XVI e XVII, crianças, bebês eram freqüentemente abandonados em lugares públicos, onde circulavam porcos, cães, burros, ratos. Por causa disso, em 1726, a Igreja conseguiu que as Santas Casas tivessem a chamada Roda dos Expostos, que era um armário giratório com 6 abertura para a rua. O bebê era recebido dentro, sem que a mãe ou parente fosse identificada. O abandono ocorria por morte da mãe no parto, doença da mãe ou falta de leite materno, suprido nas Santas Casas pelas amas-de-Ieite, ou ainda por subnutrição, por miséria absoluta, ou também por serem filhos de mãe solteira, filhos ilegítimos ou filhos do sacrilégio, porque filhos dos padres ou das freiras. As elites, preocupadas com o crescimento da delinqüência, da infância pobre e marginalizada, começaram a traçar novas teorias educacionais e de controle educacional. Aí surgiu, no início do século XX, a salvação das crianças pela educação, pela disciplina e pelo controle. Havia um pensamento corrente, freqüente na literatura da época, que os filhos da elite, nascidos da boa família, tinham uma tendência natural para a virtude. E os filhos dos pobres dos cortiços, das favelas recém-nascidas, das classes perigosas, do batuque, do samba, da promiscuidade, tinham uma tendência natural para a vagabundagem, para o crime, para o alcoolismo. Daí nasceu o chamado higienismo, que é a teoria de que as crianças já nascem com a tendência a reproduzir o comportamento dos pais. Como complemento dessa teoria, veio a exaltação do "pobre, porém digno", ou do "negro de alma branca", contraposto ao pobre vagabundo, submisso, cujos filhos deveriam trabalhar bem cedo, dentro da linha do controle e da submissão. Os higienistas apareceram como modernos. Eram médicos, juristas e políticos. Eles combatiam os castigos corporais mais rigorosos, escandalizavamse com a Roda dos Expostos e defendiam, pela primeira vez no Brasil, um código de menores, que só saiu em 1927. Até o séc. 18, os castigos corporais e o infanticídio foram tolerados. No séc. 19, começou o confinamento dos abandonados em colônias agrícolas ou internatos. Aí iniciou-se uma história de juízes para fiscalizar os pais negligentes ou incapazes, que podiam perder com sentenças, sem, muitas vezes, direito de 7 defesa, o pátrio poder. O higienismo propiciou grandes humanistas, como Osvaldo Cruz, que se tornou referência para a Medicina e para a saúde pública, e o célebre doutor Moncorvo Filho, que foi precursor dos centros de defesa das crianças. "Daí nasceu o chamado higienismo, que é a teoria de que as crianças já nascem com a tendência a reproduzir o comportamento dos pais." Havia os autoritários. Uma verdadeira revolta eclodiu no Rio de Janeiro contra a vacina da febre amarela, porque, ante a epidemia da doença, eles entravam nas casas para vacinar as pessoas à força. Surgem grandes figuras, como Miguel Couto, que defendeu a escola pública e sua expansão. A escola era basicamente privada no País. Com isso, essa massa de ex-escravos e seus descendentes ficava excluída e se perpetuava à marginalização. A mortalidade, em especial a infantil, era altíssima nos guetos. Era alta a incidência de coqueluche, tuberculose, difteria, varíola, doenças gastrointestinais e do aparelho respiratório. E esse pessoal falava muito em educação. Na verdade, os orçamentos eram baixos. A "Escola Nova" surgiu na segunda década do século XX com a proposta de preparar os alunos para o trabalho, desenvolvendo o raciocínio, a capacidade de julgar, observar, ter iniciativa. Contrapondo a escola da simples retórica, do diletantismo, a "Nova Escola" refletiu a realidade urbana, a industrialização, as novas profissões urbanas. Em Minas, por exemplo, Francisco Campos, entre 1928 e 1930, aboliu os castigos físicos. E, num período curto, 3.555 escolas foram construídas no Estado. Na época foi um modelo para o País. 8 E chegou ao Brasil, junto com a migração operária, a influência anarquista, com idéias libertárias, privilegiando muito a educação para o trabalho dignificado. O Código Sanitário de 1894, ligado aos higienistas, limitou o emprego fabriI para menores de 12 anos. Era descumprido, não havia fiscalização, mas já havia um código sanitário que negava ou proibia o emprego infantil para menores de 12 anos. E o regulamento do serviço sanitário de 1911 proibiu o trabalho noturno para menores de 18 anos, que também era descumprido. O movimento operário anarquista, socialista, e depois comunista, denunciou fortemente o trabalho infantil fabril. Não só porque concorria com o trabalho adulto e servia para avassalar e precarizar mais ainda o trabalho fabril, mas também porque já tinha uma ideologia de defesa de direitos. Os jornais - a Plebe, a Fagulha, a Terra Livre – já traziam essa denúncia. Mas a ideologia predominante era que o trabalho precoce ajudava a criança a tornar-se útil à sociedade. Aquela velha idéia: "pobre, porém digno", para separar da vagabundagem e como oposição à delinqüência. As jornadas longas seriam necessárias para retirar o menino da rua e formar o seu caráter. Quanto mais tempo no trabalho, menos tempo na rua, "se perdendo". Essas novas idéias tinham conteúdo progressista se comparadas com o paradigma anterior, no entanto, mantém matiz discriminatória. A partir de 1937, com o Estado Novo, houve um retrocesso. Uma política dura com os abandonados. Até 1937, o Serviço de Assistência aos Menores (SAM) cuidava dos abandonados, internando-os. Nasceram as fazendas agrícolas, as colônias agrícolas, a Cidade dos Meninos. Pessoas mais antigas sentem saudade disso, acham que isso funcionava. Mas, no Estado Novo, nesse período de retrocesso, 9 os abandonados foram internados junto com delinqüentes juvenis em colônias agrícolas e correcionais. Na constituição do SAM havia uma disciplina militar para os "transviados" e para os "desvalidos". Aceitavam-se, ali, os castigos físicos, as palmatórias para os desobedientes e o isolamento em celas de castigo. Em contra partida, não havia esforço pela educação, pelo lazer, tampouco pelo esporte. Sem controle social, sem participação da sociedade, a corrupção entre os funcionários, com as exceções de praxe, virou uma marca do SAM. As meninas eram encaminhadas para o trabalho infantil doméstico, como semi-escravas, sem remuneração, ou para internatos, reformatórios e colônias, e muitas eram sexualmente exploradas. Os meninos iam para os internatos, os reformatórios e as colônias. O código de menores de 1927 durou até 1979. Aí, ele sofreu uma modificação para pior, durante o período da ditadura, com a "doutrina dos menores em situação irregular". Antes mesmo do fim da ditadura, como todos os regimes autoritários, ao longo da História, e no mundo inteiro, veio uma explosão libertária. Como apresentei no capítulo anterior, as mulheres se organizaram rapidamente e começaram a lutar pela igualdade jurídica, por políticas públicas. Assim como surgiram movimentos anti-racistas, antimanicomiais, pelas pessoas com deficiência, do novo sindicalismo, também surgiu um movimento libertário infantojuvenil, de ruptura mesmo. O fato é que só agora, nas últimas duas décadas, é que estamos nos libertando do pesadelo que foi a história da infância no Brasil. A imagem que se veicula sobre ser criança não valia para a maioria das crianças, para as crianças do nosso povo. 10 Eca: uma ruptura Década de 1980. Enfraquecimento da ditadura, convocação da Constituinte. Com toda aquela explosão libertária, são rediscutidos os paradigmas da criança e do adolescente. Em forma de rede, sem lideranças conhecidas, nomes ou estrelas, milhares e milhares de militantes anônimos, ONGs, pastorais, creches, especialistas, acadêmicos, humanistas por meio de duas emendas populares, reuniram milhões de assinaturas. Essas foram as que mais reuniram assinaturas de eleitores para a Constituinte. Os setores mais identificados com a democracia verdadeira, autêntica, queriam uma Constituinte autônoma, exclusiva, para só depois haver a eleição do Congresso. Na verdade, como houve uma transição combinada entre os militares e as elites conservadoras, tivemos uma Constituinte congressual. Mas eles fizeram algumas concessões. Uma delas foi admitir as emendas populares. Já foi uma ruptura falar de criança e adolescente. Não era mais a emenda popular dos menores, era a das crianças e dos adolescentes. A ruptura já foi sendo feita ao tratar de prioridade absoluta, afirmar que crianças são sujeitos de direitos, em condições peculiares de desenvolvimento. Ao estabelecer a criança como prioridade absoluta, e a doutrina de proteção integral, os artigos 204 e 227 da Constituição Federal anteciparam a própria Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que só foi ratificada em 1988. E, como decorrência dessa mobilização, o Fórum dos Direitos da Criança e Adolescente (DCA) trabalhou velozmente para a regulamentação dos dois artigos. E redundou no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a mais completa tradução dos artigos 204 e 227 da Constituição federal. O que foi o ECA? O abandono da visão repressiva e assistencialista que são complementares, duas faces da mesma moeda. O ingresso na visão da 11 inclusão e da prevenção. Não por acaso, ele foi antecedido de debates na mídia e em audiências públicas no Congresso, em reuniões, e mobilização no Brasil inteiro. E ele revolucionou a visão do direito infanto-juvenil. Rompeu com a dogmática responsabilidade penal do código de menores. Inaugurou a doutrina da proteção integral. Estabelece o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à Iiberdade, à convivência familiar e comunitária. E mandou colocar a criança a salvo da negligência, da discriminação, da exploração, da violência, da crueldade e da opressão. Como disse o poeta, os lírios não nascem das leis. Mas quem viveu sob ditadura, “democraduras", “ditabrandas", sabe a importância de ter os direitos assegurados em leis, sobretudo na Constituição. Isso permite a exigibilidade. Com 15 anos, o ECA precisa ser aperfeiçoado, valorizando os profissionais e melhorando os salários dos operadores. Mas muitas mudanças já foram operadas a partir daí. Entre 1990 e 2005, nesses 15 anos de ECA, o trabalho infantil entre 5 e 15 anos caiu 50%. Já foram criados Conselhos Municipais de Direito da Criança e do Adolescente em quase 5 mil municípios e Conselhos Tutelares em número um pouco menor. E, com o lançamento do programa pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, com vários parceiros dos Pró-Conselhos Brasil, vamos chegar praticamente à totalidade dos municípios, com conselhos de direitos. Praticamente 80% deles - cerca de quatro mil e quinhentos - já têm Conselhos Tutelares. Como ministro dos Direitos Humanos, entre 2003 e 2005 coordenei um programa chamado "Presidente Amigo da Criança" – compromisso assumido pelos candidatos à Presidência, inclusive Lula, em setembro de 2002. Um compromisso de definir orçamentos em saúde, educação, esporte, cultura, assistência, etc. para avançar nos cumprimentos das Metas do Milênio - ou do Pacto pela Paz ou os desafios do Conanda - com quatro eixos: promover vidas 12 saudáveis; melhorar a qualidade da educação; combater a violência e a exploração; prevenir HIV-Aids. São 56 bilhões de reais em investimentos em quatro anos. Esses índices fizeram do Brasil uma referência internacional, no caso, por exemplo, do trabalho infantil. Em que pese a extraordinária desigualdade que persiste, alcançamos resultados importantes,como a queda da mortalidade infantil. Entre 2002 e 2004, queda de 8,7% - de 25,1/1000 para 23,1/1000 (crianças de até 1 ano); mortalidade neonatal com queda de 7,3% - 16,5/1 000 para 15,3/1000. A Unicef, em 2006, cita o Brasil como exemplo pela queda da desnutrição. Os avanços são muito desiguais. Há variação por região. Existem lugares onde despencou a mortalidade infantil, e outros em que ela é escandalosa, é indecente. O avanço varia também por gênero, cor e etnia, e temos importantes diferenças entre a área urbana e a rural, e, na urbana, entre o centro e a periferia. Como o Estatuto e a própria Constituição são descentralizadoras e democratizantes, transfere-se para os Estados e os municípios a maior parte das tarefas. Isso é correto, mas os governos estaduais e municipais vão da mais completa dedicação até a negligência mais desavergonhada. Esses 388 anos de escravidão deixaram marcas profundas. Depois dela, e também ligada a ela, houve extraordinária concentração da renda, da riqueza, do poder e do conhecimento, o que foi a marca comum de toda a nossa História. O ECA é um passo enorme, desde que traduzido em políticas públicas e orçamentos compatíveis em cada Município, Estado e União. 13 "Esses índices fizeram do Brasil uma referência internacional, no caso, por exemplo, do trabalho infantil. Em que pese a extraordinária desigualdade que persiste, alcançamos resultados importantes, como a queda da mortalidade infantil." O Estatuto prevê engajamento da União, dos estados e dos municípios. Daí a importância dos conselhos de direito para disputar orçamentos e políticas públicas. Senão houver essa disputa, eles nunca vão traduzir prioridade absoluta em possibilidades reais de combate à desigualdade. O Estatuto é sábio quando prevê que a proteção integral é responsabilidade do Estado, considerados aqui os Poderes Executivo, judiciário e Legislativo, e considerados os três níveis de poder - União, estados e municípios, como também de responsabilidade da sociedade e da família. Estabelece direitos e deveres, e estes têm de ser compartilhados. Uma novidade aqui é não considerar que o Estado deve fazer tudo, que a família é até penalmente responsável. As mudanças são mais avançadas ou mais lentas segundo os órgãos do Estado. Tanto a Câmara dos Deputados quanto o Congresso Nacional foram muito permeáveis. O Ministério Público, que é uma instituição mais nova, também foi muito permeável à mudança. Já no judiciário, a mudança é mais lenta, visto a máquina ser mais pesada. É importante investir em Defensorias Públicas. Um dos pontos mais problemáticos da implantação é o tratamento dos atos infracionais dos adolescentes. As defensorias públicas, que só agora estão sendo criadas/são um pressuposto de justiça e de garantia do devido processo legal do direito amplo à defesa. Eu mesmo vi situações de privação de liberdade de adolescentes internados em centros de internação, que não tiveram medidas sócio educativas. Ou seja, não havia ato infracional. E, se eles chegam a ser internados sem haver ato infracional é porque não há nenhuma proteção jurídica. Daí a necessidade de 14 defensorias públicas, que são responsáveis pela orientação jurídica, pela representação judicial e pela defesa gratuita nos Estados da União. Nos crimes praticados contra as crianças, cabe à Defensoria Pública representar as famílias, como também assegurar aos adolescentes infratores, normalmente filhos de famílias carentes, o direito de defesa. E a pessoa em condição especial, singular, peculiar de desenvolvimento, requer especialização dos defensores públicos. A doutrina de proteção integral traz novos paradigmas para a Justiça e supera a doutrina da situação irregular e segregacionista. Supera aquela obsessão do rompimento do pátrio poder, de intervir em famílias. E as varas especializadas em julgar crimes contra as crianças também são uma necessidade, assim como promotorias e delegacias especializadas. É fundamental criar delegacias especializadas para a proteção das crianças e dos adolescentes, com estruturas diferenciadas de atendimento qualitativo e multi profissional para atendê-Ios e fiscalizar preventivamente lugares de diversão, e apurar a violência intrafamiliar. E é fundamental lutar contra a impunidade dos crimes contra as crianças, papel que é do governo dos Estados. É muito importante destacar, além do papel dos conselhos, o do Sistema Informativo de Proteção da Infância e da Adolescência (SIPIAs). É preciso capacitar os conselhos tutelares para cumprir sua função, já que são insubstituíveis. Cabe ao Conselho Tutelar identificar crianças em situação de negligência, miséria, abandono, exploração, violência, em qualquer lugar, inclusive no ambiente doméstico e conduzi-Ia à rede de proteção dos direitos. E cabe aos Conselhos. Municipais de Direitos, traduzir em políticas os direitos assistenciais assegurados pelo ECA, segundo a realidade de cada local. 15 Os abrigos - completamente em crise no Brasil - deveriam ser instituições para a guarda temporária de pessoas. Eram instituições destinadas a quase uma excepcional idade e passaram a ser instituições destinadas ao abrigo de uma permanência muito mais longa de pessoas que têm famílias, por exemplo. Deixam pessoas no abrigo apenas por causa da pobreza. É preciso resgatar o papel dos abrigos, da sua temporalidade, da sua excepcional idade, da sua provisoriedade. Um avanço importante está ocorrendo na questão da adoção. A consciência de que a adoção deve ser uma medida extrema está se generalizando. É fundamental sempre resgatar as crianças para o lar, para a família natural, para a família biológica. A família acolhedora, substituta, só deve ser considerada quando esgotada a possibilidade com a família biológica. E, a adoção- principalmente a internacional- é a medida mais extrema. É preciso resgatar todas as medidas protetivas. Outra questão ainda muito atrasada no Brasil, a qual a Secretaria Especial de Direitos Humanos procura dar atenção especial, mas ainda muito precária, é em relação às crianças desaparecidas. Há um número extraordinário delas nessa situação. Hoje já se sabe que cerca de 70% dessas crianças acabam voltando. Elas fogem da violência doméstica, do abuso, da violência sexual, da violência física. Em vez de esperar um tempo para caracterizar o desaparecimento, deve-se possibilitar a busca imediata. Houve avanço, até com a inclusão na internet de sites de crianças desaparecidas. O governo Lula desenvolveu muitas parcerias, como com a Caixa Econômica Federal, por exemplo, e com outras instituições. Há projetos de lei no Congresso Nacional e na Assembléia Legislativa de Minas (dep. André Quintão) legalizando esse programa. Outra iniciativa valiosa foi a da proteção dos adolescentes ameaçados de morte, com base em um trabalho realizado em Belo Horizonte, com liberdade 16 assistida. Constatou-se um número grande de garotos que eram, primeiro, ameaçados, que relatavam a ameaça e depois eram assassinados por gangues rivais ou traficantes, pelo próprio grupo de extermínio e até por policiais corruptos. Esses adolescentes morriam, e continuam morrendo, em grande escara. Eles tinham ido para programas de recuperação, de reinserção. Em 2002, iniciou-se timidamente um programa de proteção, que hoje está afirmado como essencial para proteger adolescentes que não sejam réus colaboradores nem testemunhas de crime violento. Atualmente são cerca de 350 adolescentes atendidos. Já existe o Provita, que é o Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas. Ele protege pessoas que estão colaborando com a Justiça, como réus colaboradores, ou são testemunhas de crimes violentos que vão colaborar com a Justiça. Essas pessoas são levadas para locais guardados, sigilosos. É também um programa de reinserção, quando a vítima ou testemunha é envolvida direta ou indiretamente com a criminalidade e com a delinqüência. Para os adolescentes ameaçados de morte, não é necessário estar em nenhum procedimento de ordem policial ou jurídica para ser protegido. Basta ser ameaçado de morte. Lamentavelmente, os governos estaduais estão longe de entender a Importância disso. É um programa caro, porque é para proteger a família inteira. E não basta esconder a criança ou o adolescente ameaçado. Até por exigência do ECA, deve ser um programa de reinserção, com prioridade absoluta. Todos os direitos devem ser assegurados nesse programa. O Trabalho Infantil Será Erradicado O Brasil é um dos países que mais avança no enfrentamento do trabalho infantil. E como chegamos a isso? Foram constituídos fóruns em todos os 26 Estados e o Distrito Federal. Esses convergem para o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, e contam com o apoio da OIT e da Unicef. Reúnem órgãos governamentais das esferas federal, estaduais e 17 municipais, ONGs, movimentos populares e o Ministério Público da União e dos Estados. Esses fóruns mobilizam multidões, organizam marchas, dão entrevistas, palestras, constroem redes em prol da defesa e garantia do direito da criança. Isso tudo resultou num decréscimo significativo, seja pela legislação, pela Constituição federal, pelo ECA, pelas Convenções 132 e 181 da OIT, seja pelos programas governamentais como PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (que concede uma bolsa à família, por criança para que saia do trabalho infantil e freqüente a escola, o Bolsa-Família, o Sentinela e outros. No início da década de 1990 havia muitas acusações internacionais de violação dos Direitos Humanos vinculados ao trabalho infantil. Chegaram a surgir sanções econômicas pela exploração do trabalho infantil em lavouras de laranja e até a revelação de que crianças perdiam as impressões digitais no trato dessa fruta. Na cadeia produtiva do calçado e na produção de cana-de-açúcar surgiram denúncias, e o boicote a calçados brasileiros e à cana-de-açúcar, pelo uso do trabalho infantil. Denúncias de violação de Direitos Humanos, no sisal, nas pedreiras; morte de crianças em indústrias de fogos de artifício. Tudo isso colocou a questão do trabalho infantil, pela primeira vez, como um tema realmente nacional, em contrapartida ao paradigma vigente de que o trabalho infantil era educativo e disciplinador. Hoje, a OIT coloca o Brasil no limiar da extinção do trabalho infantil. Na medida em que a bolsa-família inclua o trabalho infantil na condicional idade do recebimento pela família, e que o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) se volte inteiramente para a jornada ampliada, teremos a possibilidade realmente da extinção, da erradicação do trabalho infantil. Assim como da universalização da escolarização das crianças que já atingiu 98% das crianças. O PETI hoje atinge um milhão de pessoas. 18 O Fundeb, aprovado pelo Congresso, tem uma previsão de quase 5 bilhões de reais nos próximos quatro anos. Ele vai atender crianças já nas creches, na escola infantil, de 3 a 6 anos, depois de 6 aos 18 anos. Assim como o enfrentamento da exploração sexual de criança, da exploração sexual comercial de criança e adolescente e do trabalho infantil doméstico, tudo isso vai convergir para a eliminação do trabalho infantil. O Brasil precisava dar esse passo, essencial ao combate da desigualdade, que é a criação desse fundo que responde aos maiores desafios da educação básica em seu conjunto. Enfrentando a educação indígena, a educação no campo, a educação profissional, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a educação especial. É uma ilusão neoliberal acreditar que haverá um futuro de maior igualdade e eqüidade sem um significativo investimento em educação pública para todos. Tomamos o exemplo do Grupo Executivo Para Erradicação do Trabalho Infantil em Minas (Gectiba) criado há 12 anos, que se reúne mensalmente na Delegacia Regional do Trabalho (DRT). Esse grupo participou da Marcha Global, de todos os aniversários do Estatuto da Criança e do Adolescente, de centenas de seminários, palestras e apoiou a criação de movimentos e redes. Além disso, elaborou a recomendação sobre estágios para adolescentes, para evitar exploração, fez resoluções para subsidiar Conselhos Tutelares e Conselhos Municipais de Direito de Criança e Adolescente, divulgou a legislação protetiva, participou da recente caravana nacional que foi até o governador de Minas, assim como em todos os Estados,e foi o responsável por um termo de erradicação do trabalho infantil em cada Estado, que culminou na assinatura de um pacto no Palácio do Planalto. Ademais, o Gectiba fez termos de compromisso com diversos segmentos produtivos, diversas cadeias produtivas, e projetos-piloto, como o do Bank Boston, em Ribeirão das Neves, ou o Circo de Todo Mundo, com a jornada ampliada e o enfrentamento do trabalho infantil doméstico, e ainda participa de 19 vários conselhos, frentes, planos, programas, ações. Assim como em Minas Gerais, em todos os Estados tivemos a sociedade civil sempre à frente. "É uma ilusão neoliberal acreditar que haverá um futuro de maior igualdade e eqüidade sem um significativo investimento em educação pública para todos." A Convenção 138 foi a que estabeleceu a idade mínima para o trabalho. A Constituição Federal, desde 98, só permite o trabalho a partir dos 16 anos, exceto para o aprendiz, que pode ser desde os 14. Mesmo assim, dos 16 aos 18 anos incompletos, ele não pode ter um trabalho penoso, nem perigoso, tampouco insalubre. A Convenção 182, de fevereiro de 2000, estabelece que todo trabalho infantil é indesejável, mas alguns são absolutamente intoleráveis. Devem ter prioridade na progressividade da erradicação. Por exemplo, crianças em situação de escravidão, de prostituição. O emprego de criança e adolescente em conflitos ou grupos armados, seja do tráfico, do crime organizado, seja em guerras civis. E em atividades ligadas à pornografia e atividades ilícitas de qualquer natureza. Por que erradicar o trabalho infantil? Porque ele compromete o desenvolvimento físico, tem muitas deformações que são causadas pelo peso excessivo ou pela permanência em posições inadequadas, provoca infreqüência em escola ou o baixo rendimento escolar, e priva o direito de brincar, jogar, do lazer, do entretenimento, de namorar, de participar de turmas. O trabalho infantiI só será erradicado com ampla participação e com mudanças culturais. A primeira delas, a mais importante de todas, no meu juízo, é não associar criança pobre com trabalho. Toda vez que a gente fala em pobreza, associada à criança, a gente fala em trabalho como meio de ressocializar, ou de integrar, ou de salvar, seja lá o que for. 20 A criança pobre, no BrasiI, sempre foi sinônimo de potencialmente perigosa ou em perigo de o ser. Quer dizer, a ideologia higienista continua, ao associar sujeira com criança pobre, baderna com criança pobre. E ainda hoje muita gente sonha em seguir internando crianças problema em colônias agrícolas ou internatos. Ao longo do século XX, os juízes tinham o poder de intervir em famílias pobres segregadas, ou que eles julgassem que assim fossem. Era e ainda é comum ouvir a idéia de pobreza da criança associada a expressões como miscigenação, imoralidade, pobreza, negros e pardos, preguiça, vagabundagem. O Código de Menores falava em abandonados, pervertidos, delinqüentes, anormais. E, para cada um desses grupos, havia um tipo de instituição. Para os "nossos", propomos escola. Para os pobres serem transformados em cidadãos úteis e produtivos propõe-se muita disciplina e inserção precoce no trabalho. Portanto, a mudança cultural é fundamental. O trabalho infantil sempre existiu em nossa sociedade no âmbito familiar. Crianças ajudam em casa em atividades laborais de sustento. Até aí, tudo bem. Realmente isso faz parte da educação e da formação dos laços de solidariedade familiar. O problema é quando há exploração, quando há risco à saúde, quando há ausência da escola, quando há baixo rendimento escolar, quando há alimentação inadequada, quando há privação do lazer, da cultura, da dignidade, do respeito. Há um fenômeno novo sobre trabalho infantil, para o trabalho infantil em geral. Nas grandes cidades, crianças que já saíram do trabalho infantil e já estão na escola estão voltando ao trabalho, vendendo bala, fazendo malabarismo, limpando pára-brisas, ficando em vulnerabilidade, expostas a perigos. Já se encontram na escola, recebem bolsa-família ou bolsa-escola, mas ainda assim saem para complementar a renda. 21 “A criança pobre, no Brasil, sempre foi sinônimo de potencialmente perigosa ou em perigo de ser”. Quer dizer, a ideologia higienista continua, ao associar sujeira com criança pobre, baderna com criança pobre." No caso de Belo Horizonte, 80 mil famílias são atendidas pelo BolsaFamília, e 11mil pela Bolsa-Escola.Com o PETI está funcionando inclusão em creche, jornada ampliada, ainda assim 1.100 crianças trabalham nas ruas. Uma pesquisa mostra que 98% têm escola e têm família. Portanto um perfil já diferente das crianças do começo da erradicação do trabalho infantil, mesmo levando em conta que metade dessas crianças vêm de outros municípios. Trabalho Infantil Doméstico: Exploração em Família Não há uma estatística definitiva, mas o PNAD estima em meio milhão de meninas (há poucos meninos), de 10 a 16 anos no trabalho infantil doméstico, perfazendo um total de 10% das trabalhadoras domésticas, e 80% dessas meninas estão nas cidades. É um desafio enorme, por se tratar de uma forma de exploração oculta e invisível. O primeiro desafio é retirá-Ias da obscuridade. Essas crianças começam a trabalhar em casa, cuidam dos irmãos mais novos, ajudando nas tarefas domésticas, e, muitas vezes, no trabalho familiar, como na agricultura, principalmente, mas também em artesanato, em pequeno comércio, inclusive urbano. Daí são levadas para trabalharem casa de terceiros. Via de regra, o contrato do trabalho infantil doméstico é informal. Ou seja, o contrato é o não-contrato. A família biológica quer colocar a filha para estudar e trabalhar, e espera um futuro melhor. A família que "contrata" prefere essas meninas, porque elas desconhecem direitos, e são presas fáceis de exploração, mesmo quando a intenção é boa. As famílias biológicas são pobres, têm prole 22 numerosa, e às vezes a mãe é a única provedora e doméstica. O limite que eles têm de aspiração é o trabalho doméstico. A família que recebe se vale da cultura, que relaciona trabalho como solução para evitar que crianças pobres vivam nas ruas. É melhor um trabalho mesmo degradante, sem paga, ou com remuneração irrisória numa casa de família, do que a criança se prostituindo, drogando-se e se matando. Como se essas fossem as únicas alternativas. Mesmo quando estão explorando, crêem estar fazendo o bem. É como na canção FadoTropical (Chico Buarque e Ruy Guerra):"Sabe,no fundo, eu sou um sentimental.Todos nós herdamos, no sangue lusitano, uma boa dose de lirismo.Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar e esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e sinceramente chora." É associar educação a sofrimento e dor. Exploram pensando que fazem o bem. Muitas vezes a criança não recebe salário. Ganha comida, assistência, roupa, material escolar. É comum não ter quarto próprio. Como não é reconhecido como trabalho, não tem direitos. É sempre envolvida numa atmosfera de não-trabalho. E envolve uma teia complexa de pobreza, raça, idade, escolaridade, relações de gênero, discriminação às mulheres no mercado de trabalho. No entanto, é um trabalho infantil penoso e perverso, com jornadas longas, sem descanso semanal, pois as crianças não têm para onde ir. Às vezes, elas perdem o laço imediato com a família de origem, quando mudam de Estado,quando vêm do interior para a capital ou mesmo da periferia para o centro. Esta situação humilha e expõe crianças e adolescentes ao abuso sexual. Provoca 23 um problema muito sério de defasagem escolar entre a série e a idade da criança. É muito comum a baixa auto-estima e a perda de vínculos familiares. Muitas vezes, a menina, vítima do abuso, pensa que o abuso faz parte do trabalho, que é direito do patrão abusar dela. Muitas vezes ela nem tem consciência de que é vítima de violência. Até porque já convivia com o abuso sexual e com a violência física consigo mesmo ou com as irmãs. E,quando o abusador se vale da sedução e não da força, ela própria quer o silêncio, faz um pacto. O que a criança perde? Perde o direito ao lazer, a toda a oportunidade para a criatividade, à escola. E a escola como um direito legítimo da criança naquela idade. O educador Paulo Freire falava sempre que a pior opressão é quando o oprimido introjeta o esquema do opressor. No trabalho infantil doméstico isso ocorre. Por isso não é fácil convencer as famílias biológicas da perversidade do trabalho infantil doméstico. Elas sempre acham que ajudaram a criança. Tirou de casa, da miséria, da necessidade, jogou numa família rica que vai propiciar uma vida melhor. E ela tem sérias resistências para enfrentar isso. Até porque, se a criança voltar para o lar de origem, significa um retrocesso para a criança e para a família. Muitas não querem voltar à família de origem. O enfrentamento bemsucedido quanto o trabalho infantil doméstico tem de ser baseado no protagonismo juvenil, na auto-estima, no convencimento da família biológica e da criança. Enquanto a menina não quiser, não tem como enfrentar. Por um lado, há a subalternidade, a solidão, o abandono de uma criança à própria sorte. E, por 24 outro, há ganhos em relação ao passado, como as roupas, a qualidade da moradia, a televisão, a convivência com pessoas de outra classe social. É importante tensionar as pessoas, levá-Ias a pensar o novo, nos fatores que envolvem essa situação. É como diz Guimarães Rosa: "É de fenômenos sutis que estamos tratando". Eles são tão sutis e tão perversos na sua origem porque tiram o vínculo e a relação de identificação com os pais biológicos. Coloca-se outro no lugar, passa a ser quase filho da família. Participei de alguns encontros no Brasil e no exterior, e as meninas falam da demora da tomada de consciência, porque, na família de origem, conviviam com o excesso de trabalho, a má qualidade da moradia e a promiscuidade. A margem de tolerância para a exploração é muito maior. A referência é de onde elas saíram, não o que estão tendo, ou o que poderiam ser. É por isso que a saída implica o protagonismo, a auto-estima, o convencimento também da família biológica, para ela entender que aquilo não é um ponto de chegada. "É de fenômenos sutis que estamos tratando." E se saem do trabalho infantil doméstico, não são muitas as alternativas, porque são pessoas que não têm as habilidades exigidas por outras funções. O trabalho infantil doméstico urbano predomina nessa forma de exploração, representando 80%. No conjunto do trabalho infantil, 52% referem-se a trabalho rural. A linha divisória entre o trabalho que não implica dano à saúde, à educação, ao lazer, ao entretenimento, o respeito às fases e o trabalho danoso nem sempre é fácil de perceber. Há tentativas sérias para dissociar o labor infantil da exploração. É o caso da Escola Família-Agrícola uma escola avançada, trabalha com pedagogia da alternância, com ciclos. No período da colheita ou do plantio, ficam mais na roça. No período de entressafra, eles ficam mais na escola. Passam períodos na escola, e outros em casa. A família participa da educação quando ela 25 está em casa. Cria a oportunidade para a criança e o adolescente participar da agricultura familiar sem perder seus direitos e suas fases. É preciso também respeitar a cultura laboral dos indígenas que não envolve a exploração ou a participação das crianças em atividades laborais coletivas nos remanescentes de quilombos. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a guarda por uma família acolhedora, mas, às vezes, a relação não é de guarda. Guardar é proteger, não é explorar. Enquanto a guarda estiver associada ao trabalho, deixa de ser guarda. Muitas pessoas que militam na rede de proteção social da criança e do adolescente mantêm trabalhadores infantis domésticos. Militantes de esquerda, militantes de partidos políticos, sindicatos de ONGs. Por isso que o debate é interessante. Eles argumentam: dei uma oportunidade para a criança estudar. Vivia numa situação sem dignidade. Encaram como proteção, e não como trabalho. Mas seus filhos não fazem o que faz a que diz proteger. Se fosse simplesmente proteção, a criança iria para lá quase como um adotado, com igualdade de direitos. O trabalhador infantil doméstico está numa situação muito melhor do que estava de onde saiu, mas está trabalhando. Trabalhando antes do tempo, trabalhando com jornadas longas, sem direitos. Como o trabalho infantil não é reconhecido, já que ele não é permitido, esse tempo não vai ser contato para a aposentadoria, não vai constar na carteira, a pessoa não vai ter férias, não vai ter os direitos inerentes ao trabalho. Sempre vai ser uma exploração. É importante incluir trabalho infantil doméstico como violação de direitos. E capacitar conselhos tutelares e de direitos, gestores municipais, formadores de opinião, professores, sindicatos de trabalhadores domésticos, como parceiros. E é 26 importantíssimo convencer os empresários a implementarem o trabalho do aprendiz, permitindo por lei a partir dos 14 anos, como alternativa a trabalhadora infantil doméstica. E aqueles que querem ser trabalhadores domésticos devem ter a oportunidade de se capacitarem como trabalhadores domésticos. Essa é uma profissão nobre, uma profissão digna, hoje com direitos já conquistados com novas conquistas a cada dia. É uma questão muito recente. Basicamente foi em 1999 que a OIT, a Unicef, ONGs, como a Save the Children, os Cedecas, a Abrinq e grupos feministas passaram a se ocupar do trabalho infantil doméstico. E na Secretaria Especial de Direitos Humanos procurei colocar isso em todos os lugares, em todas as conferências municipais e estaduais de que participei. Sempre incluo o tema também para reflexão. Sem fundamentalismo, para não "meter os pés pelas mãos". Não podemos tirar essas crianças da situação em que estão, sem apresentar-Ihes alternativa, sem construir saídas. Uma boa referência sobre o tema é a obra que publicamos pela Cortez Editora com o título Restavec - nome dos trabalhadores infantis domésticos, meninos do Haiti. Um livro do Jean Robert Cadet, um haitiano, agora professor universitário nos Estados Unidos. Sempre lembro que adultos não podem nem devem decidir que crianças devam ser privadas da infância. Mesmo a título de proteção, sob a pena de perpetuar o ciclo de pobreza e de desigualdade. 27 Apanhar Só Ensina a Bater Bater nas crianças para educá-Ias, dar uma lição para ensinar, está muito enraizado na cultura e na tradição das famílias brasileiras. Está nos primórdios da civilização branca européia no Brasil. É herança dos colonizadores portugueses. Os índios não batem nos filhos nem nas mulheres. A literatura e os registros históricos tratam das relações harmoniosas na relação doméstica dos povos indígenas. No Brasil colonial, crianças, jovens, mulheres, negros, indígenas, idosos, empregados, doentes mentais eram submetidos a punições pesadas pelo chefe da família, provedor e senhor absoluto dos seus domínios, incluindo a vida, a liberdade e a dignidade das pessoas. Pais, padrastos, companheiros, madrastas, irmãos mais velhos, tios, babás, avôs e avós se crêem possuidores de direitos e legitimidade para aplicar castigos físicos nas crianças. Os Conselhos Tutelares enfrentam a resistência irada dos "responsáveis" pelas crianças. Eles se sentem violentados em sua vida privada pela ação do Estado ou da esfera pública para garantir a dignidade das crianças, vítimas de abusos físicos, e repetidos castigos em mulheres. É preciso questionar sempre o poder - no BrasiI, é fundamental o poder adulto cêntrico e parental. Crianças e adolescentes são 40% da população. Vinte milhões vivem na pobreza e na miséria. Portanto é o segmento mais exposto à violência e aos maus-tratos físicos. Até mesmo em instituições, como os abrigos, há registros de castigos físicos. No sistema patriarcal colonial, o poder absoluto do homem era incontrastável. O Brasil inteiro se assustou e se comoveu com o caso de Letícia, a garotinha, o bebê abandonado pela mãe para morrer na Lagoa da Pampulha, e 28 que foi salva, por milagre, por um jovem que passava. Imediatamente pipocaram no País inteiro casos de extrema violência contra essas pessoas, esses seres indefesos. Sempre pessoas pobres. As pessoas que as abandonam talvez já tenham passado pela violência constante em suas famílias. De certa maneira, reproduzem o que tiveram, às vezes, até antes de nascer. Milhões dos nossos sofreram violência, humilhação, e transmitem essa herança para cada geração. Crianças aterrorizadas, adultos inseguros, agressores de mulheres e crianças. Maridos homicidas, mães impiedosas. É o rescaldo, a herança, ao longo do século, da violência, da humilhação doméstica. Os pais não podem e não devem ter a prerrogativa da palmadinha, da chinelada. Muitas vezes é o primeiro passo apenas, para depois queimar a mão do filho desobediente com ferro. Há um senso comum de que os pais têm o direito de bater sem exagero para educar. Quem estabelece o limite? Nosso país já não aceita mais como normal a violência sexual contra crianças. A maioria já entende que o trabalho infantil aprofunda e dramatiza a desigualdade. Agora é preciso entender que não podemos ficar indiferentes à violação do direito à integridade física e psicológica das crianças. Um direito a viver os anos preciosos da infância sem dor e sem medo. A deputada Maria do Rosário (PT-RS) entrou com um Projeto de Lei tipificando a violência física e psicológica contra crianças. Nós já tínhamos leis que penalizam e criminalizam a violência contra a mulher, a violência contra os idosos, a tortura e a lei de proteção aos animais. Porque não ter uma lei que proteja as crianças da violência física e psicológica? Prevenir e educar sempre é o melhor caminho. Mas responsabilizar agressores também é preciso. Pesquisas mostram que, em 80% dos casos de violência contra crianças de até 7 anos de idade, a autoria é dos pais. O 29 Laboratório de Escuta à Criança e Adolescente de Campinas (LACRE) apresentou esse estudo e 200 mil assinaturas, pedindo que o Congresso tomasse providência contra a violência física e psicológica contra a criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente repudia qualquer forma de tratamento humilhante. É sinal de que o Brasil já repudia a violência física. Na Suécia, as crianças são educadas para não aceitarem punições físicas na escola. Já há leis, desde 1979; na Finlândia, desde 1984; na Dinamarca, desde 1986; na Noruega, desde 1987 e na Áustria, desde 1989. Em 1992 foi realizado um seminário mundial para discutir punição física a crianças. Desde então, vários países vêm adotando legislações sobre essa questão. Sabemos que a questão não é só de lei. São necessárias campanhas pela erradicação do castigo físico humilhante. Muito se fala da violência urbana, mas pouco se discute sobre o peso da violência doméstica na violência urbana. A violência contra crianças não causa só prejuízos físicos e psíquicos a elas. Estabelece um padrão abusivo na relação social e pode ser causa importante da violência. Até hoje muitos acreditam que essa não é uma questão da esfera pública e, sim, um problema particular das famílias. É claro que isso parte de problemas reais. Toda criança precisa de limite, disciplina. Nenhum dos estudos realizados até hoje no mundo inteiro, por décadas e décadas, provou que as punições físicas são eficazes para estabelecer limites, disciplinar ou formar bom caráter. O pacto de silêncio envolve, além dos pais agressores, cumplicidade de vizinhos, parentes, profissionais da saúde que atendem crianças vítimas de violência doméstica, e ainda educadores e operadores do direito que não notificam 30 os casos ou não tomam as providências. Não tomam conhecimento, porque, no fundo, acreditam que é um problema privado, familiar, e não da esfera pública. Discutir sob o ponto de vista moral é fundamental. É moralmente insustentável que, para atingir um fim desejável a disciplina, a formação de caráter deve-se usar um meio condenado, com imposição da dor. Moralmente, está na hora de rediscutir isso. Pelo ECA já é obrigatória a notificação de maus-tratos (art.13.245), por profissionais da saúde. Mas, de modo geral, a maioria ainda não se comprometeu com o novo paradigma do ECA, da Constituição e da Convenção. Crianças e adolescentes são sujeitos de direito, e não seres passivos. Não são objeto de tutela do adulto ou de quem quer que seja. Jurandir de Meio Freire, em Violência e psicanálise (Graal, 1984), fala que violência é aquela situação em que a pessoa é submetida à coerção e a um desprazer, absolutamente desnecessário ao crescimento, ao desenvolvimento e à manutenção do bem-estar, conquanto ser psíquico. Isso amplia muito as possibilidades de combate à violência, restringindo a violência no âmbito doméstico. Em todos os casos, está sempre presente o poder do mais forte, o abuso desse contra o mais fraco. Ainda mais quando entendido não só como violência física, mas como ato danoso à integridade física, mental, emocional e social. Violência inclui negligência, pressão psicológica, coação, punição cruel, privação de liberdade, trabalho infantil, trabalho perigoso, penoso e insalubre, abuso sexual, exploração sexual. Cada conduta deve ser objeto de um tratamento próprio. 31 Em 2000, o Conanda, com base em notificações e informes, concluiu que 6,5 milhões de crianças sofrem violência intrafamiliar no Brasil e que 18 mil são diariamente espancadas. Há 300 mil vítimas de incestos no País. São dados subestimados, e já superados. Isso mostra que os adultos abusam da força física, para mostrar e impor limites àqueles que deles dependem e que lhe são submissos. "A violência contra crianças não causa só prejuízos físicos e psíquicos a elas. Estabelece um padrão abusivo na relação social e pode ser uma causa importante da violência." É enorme o número de crianças espancadas, abandonadas, queimadas, mutiladas e até assassinadas. Marcas de queimadura a ferro e por cigarro é comum, assim como contusões advindas de uso de cintos, fivelas, marcas de dentadas ou ferimentos típicos de quem foi amarrado. Um dos livros que li sobre violência e punição física traz um relato, até bemhumorado de uma mãe, em Goiânia. "Eu passei o cinto na menina, foi a maior sorte, foi Deus que ajudou, porque pegou no cachorrinho e o cachorrinho morreu. Se fosse ela, ela tinha morrido". Então, o que é o limite? Se você admitir a hipótese de que é do direito de dar palmadinha, depende de cada pessoa estabelecer a força empregada. E deixa marcas no comportamento. Desconfiança no contato com o adulto, crianças temerosas, alternâncias bruscas de humor, crianças que ficam apreensivas, angustiadas com o choro de outra criança, dificuldade de relacionar e aprender. Os pais justificam a violência dizendo que a criança é má e desobediente. O abuso do álcool ou da droga leva pessoas a culpar o filho por problemas do lar. Já temos massa crítica, instrumentos para identificara violência física e psíquica nas crianças. 32 O SEDH e o MEC publicaram um guia escolar contra o abuso e a violência sexual. Várias cartilhas hoje trabalham com sinais para a escola procurar identificar isso. É evidente que, quando a violência é doméstica, a escola ou as Casas da Família que estão sendo organizadas pelo Brasil tornam-se lugares privilegiados, o locus. Abuso sexual: Quando o inimigo mora em casa A professora Eva Faleiros, da UNB, intelectual militante dos Direitos Humanos, fez uma pesquisa, a pedido da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, e sua divulgação deu-se quando eu estava à frente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Os jornalistas ficaram chocados com os dados divulgados. Ela analisou 55 casos de abuso sexual em Porto Alegre, Vitória, Recife e Belém. As vítimas eram bebês de até 3 anos (6 casos), de 3 a 6 anos(9 vítimas) portanto 15 crianças na primeira infância. Ou seja, a maioria das vítimas era criança e não adolescente, como seria de se supor. A cobiça sexual dos adultos recai sobre seres indefesos. Os trabalhadores da imprensa ficaram visivelmente indignados com os dados dos abusadores: 13 pais, seis padrastos, dois avôs, dois irmãos, dois primos e outros conhecidos. Vale dizer que 60% dos abusos foram incestuosos. A maior parte deles foi de longa duração; estendeu-se de um a dez anos até ser denunciado. O dado positivo foi a solidariedade feminina: ¾ das denúncias vieram das mães, das avós, das tias e da patroa da mãe. A violência sexual contra crianças envolve relações complexas de poder. Se assim não fosse, a repressão seria suficiente para erradicar tão grave violação de Direitos Humanos. Evidenciam a dominação econômica, política, cultural e simbólica do adulto branco sobre a criança, a mulher, o negro. 33 Abuso sexual é um ato delituoso praticado por homens adultos contra meninas, no ambiente familiar. Preponderam os contra valores do machismo, do patriarcalismo, da inferioridade das mulheres e da submissão das crianças aos adultos. Numa sociedade com uma desigualdade tão acentuada, as pessoas subalternizadas têm enorme dificuldade para reagir a situações e fazer valer direitos legalmente instituídos. Os pobres e os despossuídos esbarram nas custas judiciais, na dificuldade de enfrentar os recursos judiciais. Outra dificuldade de se obter a inacessível justiça através da lei é que as ações da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário dependem de decisões das famílias das vítimas, quando o chefe provedor é o agressor. Fiquei feliz quando, na primeira reunião ministerial, em 8 de janeiro de 2003, o presidente Lula manifestou seu repúdio à violência e à exploração sexual de crianças e adolescentes e pediu empenho na sua erradicação. Trata-se de grave violação dos Direitos Humanos universais. De transgressão, do uso delituoso, delinqüente, criminoso e inumano da sexual idade da criança e do adolescente. Convidei a educadora Beth Leitão para montar uma pequena equipe e decidimos fazer dessa uma luta sem volta na sociedade. Em maio de 2003, relançamos - a SEDH, o Ministério da Saúde e o Ministério do Turismo - o Disque Denúncia 0800 99 05 00. O serviço já funcionava com uma ONG pioneira nessa causa. Decidimos que era dever do Estado encabeçar esse enfrentamento. Desde 2000, em Natal, puxado pela sociedade civil, pela rede de ONGs, entidades, especialistas, militantes do bem tinham foi lançado o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual lnfanto-Juvenil, com participação do DCA. 34 Agora era diferente, o presidente da República se pronunciou dizendo: "Isto não pode, é intolerável, tem que acabar". Há no Brasil belíssimo movimento civilizatório dos Direitos Humanos e da cidadania. O projeto de cidadania e dos direitos se confronta com o projeto repressivo e clientelista, que asila a impunidade e a troca de favores, com o projeto neoliberal obcecado com a redução do Estado com o gerenciamento, a fragmentação e com o favorecimento do mercado. E ainda choca de frente com o projeto violento do crime organizado e do narcotráfico, que coopta crianças desesperançadas e sem sonhos. É inadmissível a negação da cidadania às crianças das classes populares e de todos. Não podemos aceitar que crianças sejam pessoas sem valor, sem direitos. Um pacto civilizatório deve considerar que os danos morais, psíquicos, emocionais são tão profundos, e suas seqüelas afrontam de tal modo a dignidade das crianças abusadas, comprometendo o resto de sua vida, e que, portanto, há de prevenir, evitar, impedir. "Romper o pacto de silêncio e de medo nas situações de abuso sexual é um primeiro passo para 'desarmar a armadilha do perverso'." Esse tipo de violência sexual é praticada por familiares que deveriam proteger e por conhecidos é uma relação que envolve a imposição de seu poder pela força, ocultada por segredos, silêncios, cumplicidades. Romper o pacto de silêncio e de medo nas situações de abuso sexual é um primeiro passo para "desarmar a armadilha do perverso". Implica mudança de valores, educação sexual. Precisa da mídia, de uma opinião pública. Somente trabalho em rede, na mídia, nas escolas, nas igrejas com as ONGs, envolvendo o poder municipal, o Ministério Público, os Conselhos, 35 os Conselhos Tutelares baseados na intersetorial idade, na transversal idade, pode estabelecer que abuso sexual é crime e deve ser evitado, deve acabar. Estimular a revelação, o grito, a denúncia. Há que notificar, defender, proteger, atender, responsabilizar. É possível identificar tudo, inclusive violência sexual. Violência sexual tem indicadores físicos - dificuldade de caminhar, gravidez precoce, dor, inchaço, lesão, sangramento nas partes genitais, presença de DST, infecções urinárias. Indicadores comportamentais, como agitação noturna, pesadelo, medo do escuro, vergonha excessiva, auto flagelação, comportamento sexual inadequado para a idade, depressão, tendência suicida, fuga de casa. É comum aparecer a figura dos pais agressores que acusam a criança de sedução sexual. E, muitas vezes, o agressor já foi abusado. São muitos os casos, estudos de casos de agressor que já foi agredido, já foi abusado. O abuso nem sempre envolve violência física. O mais comum é a ameaça e/ou conquista da confiança e do afeto. E, muitas vezes, não se limitam ao estupro, mas à masturbação, ao sexo oral, à pornografia, ao exibicionismo. E a família oculta a violência, porque ou depende do chefe, ou ela tem medo, ou vergonha. As pessoas orientam as crianças para ter cuidado com os tarados na rua. Mas os casos de abuso de pessoas com pulsão sexual incontrolável são pequenos. A maior parte são pais e padrastos. É uma relação de poder assentado na superioridade do adulto: "a criança é minha, faço dela o que quero. Ao surrar, ao abusar, eu mostro que sou mais forte do que ela". Como diz Sarita Amaro: "Eu miniaturizo a sua importância e seu poder". 36 A violência contra a criança e o adolescente cresce em número, ou é mais revelada. Esteve sempre cercada de silenciamentos familiares, institucionais e sociais. Hoje, as redes de Direitos Humanos, em especial as que se dedicam ao reconhecimento da dignidade das crianças, buscam dar visibilidade a essa violência. E cresce a resistência das próprias crianças. O protagonismo infantojuvenil. Aí é o papel da escola, da mídia, da educação não formal. E já é notável o protagonismo infanto-juvenil na questão do trabalho infantil, trabalho infantil doméstico e da exploração sexual de crianças e adolescentes. Mas ainda é pequeno em relação à violência doméstica, porque as próprias crianças adolescentes ainda não têm estímulo cultural e político para reagir contra a violência. Para fazer isso é importante desconstruir essas verdades dadas, as teorias totalitárias que justificam a violência. "Crianças e adolescentes buscam carinho e afeto. Se um adulto procura manipular isso para o abuso e a violência sexual, não é culpa da criança." A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes Muito relacionado com isso vem a exploração sexual. As pesquisas entre prostitutas apontam que maioria passou por abusos sexuais na infância. Daí não se pode concluir que toda criança abusada se prostitui – não tem nada a ver uma coisa com a outra. Mas muitas prostitutas foram abusadas sexualmente. Quer dizer, perderam a referência moral ou ética sobre o sexo, sobre sexualidade, por abusos na infância. Crianças e adolescentes nunca são responsáveis pelo abuso e pela exploração sexual. Crianças e adolescentes buscam carinho e afeto. Se um adulto procura manipular isso para o abuso e a violência sexual, não é culpa da criança. 37 A idéia de a criança seduzir o adulto é uma idéia totalmente incorreta. Elas buscam carinho e afeto, e recebem do abusador um afeto erotizado. Quando o abuso ocorre no ambiente familiar, cabe à escola proteger a criança. Criança com medo sem justificativa, com choros sem justificativa, amadurecimento precoce, ausência na escola e no trabalho, baixo rendimento escolar, desinteresse e abandono da escola, comportamento erotizado, são sinais identificáveis. É importante relacionar exploração sexual com negligência. Pais irresponsáveis falham em alimentar, vestir e vacinar. Às vezes, a falha nem decorre de condições de vida além de seu controle. Por exemplo, quando um pai deixa de vacinar uma criança, ninguém pode culpar a pobreza ou qualquer coisa, já que a vacinação é gratuita. A culpa é do pai mesmo. Os pais devem ser responsabilizados por determinadas coisas. O ECA, nesse ponto, não é paternalista. Distribui a responsabilidade entre o Estado, a sociedade e a família. Têm direitos e deveres. Os adultos são, em quaisquer circunstâncias, responsáveis. No caso da exploração sexual comercial, meninos e meninas são levados ao submundo da exploração sexual por agenciadores ou agenciadoras, mediante proposta de trabalho, em casa de família, ou como modelo. Setenta por cento das fugas de crianças desaparecidas são crianças que fogem da violência. A exploração sexual leva à perda da dignidade e da autoestima, da integridade física, mental e moral. Além de ser das piores formas de trabalho infantil e deixar feridas dificílimas de ser curadas. Outras formas de violência, outras formas de abuso às vezes são mais curáveis. A exploração sexual é mais difíciI. 38 Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes Uma adolescente relatou: "Hoje estou recuperada. Voltei para minha casa, cuido dos meus dois filhos pequenos. Vocês que aqui estão não imaginam o que tivemos de nos submeter nesta vida. Tenho um corpo de 18 anos, mas uma alma velha. Minha alma jamais será completa" (Depoimento à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investigou a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes). Quantas são as meninas exploradas sexualmente no Brasil? Não se sabe. Há avaliações de que seriam 100 mil em 2002. O turismo sexual nas belas praias, nas imediações dos hotéis, no turismo de negócio; nas estradas, nos garimpos, nas fronteiras, associado à pobreza. Havia uma banalização, a naturalização da maldade. Na primeira reunião ministerial, em 8 de janeiro de 2003, o presidente Lula manifestou sua indignação contra a situação dessas meninas e pediu ao ministro da Justiça que articulasse uma atuação policial integrada para realizar ações exemplares, com o fechamento de estabelecimentos onde houvesse exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. O pronunciamento do presidente fortaleceu os setores governamentais e não governamentais que reclamavam maior compromisso e mobilização do Estado. Desde o ano 2000, em Natal/RN, as mais importantes ONGs e instituições de defesa dos direitos das crianças do País traçaram o I Plano Nacional de Combate à Exploração Sexual de Meninas e Meninos. Faltava ao poder público assumir o seu papel. 39 Foi criado um Comitê Intersetorial que logo agregou os setores não governamentais. Inicialmente Cláudia Chagas, secretária nacional de Justiça do MS coordenou o grupo. No segundo momento, Elizabeth Leitão, da Secretaria Especial de Direitos Humanos assumiu a liderança. Junto com o Ministério da Saúde e do Turismo assumimos a gestão do Disque Denúncia (0800 990500). Entre maio de 2003 e maio de 2005, o Disque Denúncia recebeu 120 mil ligações. Destas, foram registradas 17.000 denúncias oriundas de 2.500 municípios nos 27 Estados da Federação, envolvendo 26 mil crianças e adolescentes que tiveram direitos, corpos e infância violados. Desde 2004, o projeto conta com o fundamental apoio da Petrobras e do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), entidade responsável pelo suporte técnico e metodológico do serviço. Em outubro de 2004, chefes e integrantes de uma quadrilha internacional de pedofilia, exploração sexual, tráfico de drogas e de pessoas foram presos em Fortaleza, graças a uma denúncia através do Disque Denúncia. A denúncia foi encaminhada à Polícia Federal que investiga crimes pela internet. O 0800990500 propiciou o retorno de uma menina de 15 anos de Macapá que estava em um garimpo do Suriname. Em março de 2005, recebeu uma denúncia de que uma criança de um ano estaria sendo vendida por R$ 200 no centro de Recife. Em uma hora, em ação articulada com o Conselho Tutelar, a mãe foi presa. Ela já havia perdido o pátrio poder dos outros três filhos, e essa criança se juntou aos irmãos. Cada denúncia desencadeia um conjunto de outras ações. Mas, para que haja denúncias, é preciso pessoas conscientes e indignadas. A repressão e a devida punição são indispensáveis. A Polícia Federal, a Polícia Rodoviária, civis e militares têm agido em estradas, aeroportos, fronteiras, zonas urbanas e sites, desmantelando redes de exploração sexual, tráfico, prostituição, turismo sexual, pornografia e pedofilia pela internet. 40 Tão importante quanto a repressão, são a prevenção, as ações de defesa, a aplicação da justiça, as políticas sociais. Durante um ano (julho/2003 a julho/2004) a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, dirigida pela senadora Patrícia Saboya (PSB/CE) e tendo como relatora a deputada Maria do Rosário (PT/RS), realizou audiências, reuniões, diligências, cruzou o País,encaminhou Projetos de Lei para aperfeiçoar a legislação. A repulsa à exploração sexual de crianças e adolescentes ganhou espaço no País, e a mídia nacional cobre o assunto. Fóruns e reuniões nacionais e internacionais vão consolidando essa luta em todo o território nacional. Parcerias como as da Secretaria Especial de Direitos Humanos com a Petrobras e a Confederação Nacional do Transporte são feitas para engajar os caminhoneiros como agentes para denunciar. Maria Lúcia Leal e Maria de Fátima Leal coordenaram a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes, identificando 241 rotas nacionais e internacionais. Diagnóstico nacional realizado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos com a Violes e a Unicef encontrou denúncias em 932 municípios brasileiros. Em todos os Estados brasileiros, crianças são tratadas como objetos descartáveis, como mercadoria. A luta pela erradicação da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes envolve os Ministérios do Desenvolvimento Social, da Saúde, do Turismo, da Justiça, da Educação, do Esporte, da Integração Nacional e das Comunicações. Envolve as Secretarias Especiais de Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial, empresas nacionais como a Petrobras, os Correios, a Infraero, Universidades e a extensa rede de ONGs que empurram o poder público. 41 A Comissão Intersetorial elaborou uma matriz de enfrentamento para subsidiar os que lutam em qualquer ponto deste país. Nunca se fez tanto para dar uma resposta efetiva e ética a essa indignidade. Mas falta muito. Toda e qualquer pessoa pode participar. Quando cruzar com essa realidade em nossas praias, estradas, hotéis, avenidas e portos é só ligar para o 0800 990500 e denunciar. O BrasiI tem de apostar nos conselho tutelares, nas delegacias de proteção, no Ministério Público, nas varas especializadas, nos defensores públicos, nos centros de defesa, nos Conselhos Municipais de Direitos, nas mulheres e nos homens indignados, atuando de forma articulada e rápida para proteger esses seres de corpos juvenis e almas velhas. 42